23/02/2025

Sergio Álvarez Fernández - A Tauromaquia: Entre o Bom e o Belo

 por Sergio Álvarez Fernández

(2024)



Introdução: como uma galeia


O que acontece com a tauromaquia é o mesmo que ocorre com o ecologismo: aquilo que era um movimento ético acabou se tornando um campo de batalha político. Na medida em que nossa investigação se dirige à primeira, exige-se de nós uma posição inicial, em parte para proteger nossa cabeça, como uma galeia, em parte para evitar equívocos. Adianto já que quem escreve agora não é taurino; que, até o momento de iniciar este trabalho, jamais presenciou uma tourada; que não milita em nenhum partido político; que nunca exerceu seu direito de voto; e que nem mesmo se pode dizer que nutre especial simpatia nem pelos "unos" nem pelos "outros". Isso não quer dizer que seja apolítico, algo impossível se é que alguém quer continuar sendo cidadão, mas simplesmente que não pode ser adscrito de forma unívoca a um dos dois "lados" em disputa.

Agora, por honestidade intelectual, é necessário dizer que ao autor também não horroriza "visceralmente" a tourada. Ele é consciente do problema ético que a envolve, mas não é animalista. Isso não tem nada a ver com suas opiniões sobre a necessidade ou não de proibir a Festa. Sem ser animalista, como veremos, alguém pode muito bem ser igualmente a favor de sua proibição. Mas a distância filosófica que o separa dos movimentos de libertação animal lhe permite, também, não rejeitar a tauromaquia por princípio e se aprofundar na sua análise. Fazemos, portanto, nossas as palavras do filósofo judeu:


"E, a fim de investigar tudo o que se refere a esta ciência com a mesma liberdade de espírito com que costumamos tratar os temas matemáticos, me esforcei por não ridicularizar, lamentar ou detestar as ações humanas, mas por compreendê-las [...] Pois, embora todas essas coisas sejam incômodas, também são necessárias e têm causas bem determinadas, mediante as quais tentamos compreender sua natureza, e a alma se alegra com seu conhecimento verdadeiro, assim como se alegra com o conhecimento daquelas que são agradáveis aos sentidos" (Spinoza, 1986, p. 82-83).


E também:

"[...] quero voltar àqueles que preferem, quanto aos afetos e atos humanos, detestá-los e ridicularizá-los em vez de compreendê-los. A esses, sem dúvida, parecerá chocante que eu aborde a questão dos vícios e irracionalidades humanas ao modo da geometria e pretenda demonstrar, seguindo um raciocínio certo, o que eles proclamam que repugna à razão, e que é vão, absurdo ou digno de horror" (Spinoza, 2020, p. 208).


Diante disso, procuraremos enfrentar a questão da tauromaquia sem nos deixarmos levar por nossas paixões. Resta apenas esclarecer a que tipo de enfrentamento estamos nos referindo. Não será um enfrentamento, como digo, político, no sentido de defender ou atacar a legitimidade da Festa, argumentando a favor ou contra sua manutenção. Mas também não poderemos evitar fazer referência a esse problema. Não será um enfrentamento estritamente ético, tratando de assinalá-la como uma cerimônia "boa" ou "má", em referência aos animais ou aos homens. Mas também não poderemos evitar fazer referência a esse problema. E, por último, tampouco será um ensaio exclusivamente "estético", precisamente porque os aspectos políticos, e sobretudo os éticos, não os deixaremos de lado.

Portanto, o que vamos perguntar será precisamente pela relação entre esses três planos, entre a Ética, a Estética e a Política, embora prestemos especial atenção às relações entre os dois primeiros. A tauromaquia nos servirá, então, para delinear os limites entre ambas as esferas, para responder à pergunta sobre se é possível uma arte antiética ou se, pelo contrário, o Bem e a Beleza são dois enamorados que sempre caminham de mãos dadas.

A estrutura que seguiremos, portanto, neste trabalho será a seguinte: primeiro, descreveremos brevemente a cerimônia da tourada, com suas diferentes fases e características; depois, veremos quais problemas éticos podem surgir e como foram filosoficamente abordados; assumido seu caráter antiético, algo ainda por demonstrar, se é que isso é possível, nos perguntaremos sobre a possibilidade de que, mesmo nessas circunstâncias, seu caráter estético possa ser determinado, ou pelo menos o de algum de seus componentes, dando origem à pergunta pela autonomia da arte. Finalmente, e dada a atualidade política da questão, não poderemos concluir a exposição sem fazer referência a esta última dimensão.


1. Sobre os touros: como são e em que consistem


Pelo que já foi ensaiado anteriormente, já se pode adivinhar que este não é um trabalho sobre a arte da tauromaquia, no sentido de que o que aqui nos propomos não é tanto descrever ou analisar “a obra da lide”, se é que pode ser considerada como tal, algo que ainda está por ser visto, mas, mais precisamente, olhar através dela, utilizar a Festa como um prisma a partir do qual ponderar as incomensurabilidades entre o reino do Belo e o reino do Bom. No entanto, parece-nos que esta questão não pode ser levada a bom termo sem antes conhecer e caracterizar a Festa em questão. Nosso compromisso com este “exemplo” nos exige conhecê-lo, pelo menos minimamente, para podermos nos elevar sobre ele e a partir dele.


As corridas de touros consideradas como tais


Uma corrida de touros não é senão uma instituição humana que consiste, basicamente, na lide desses animais por uma “quadrilha”. Em uma corrida genérica, três toureiros distintos lidam, cada um com sua quadrilha, com um par de touros; ou seja: seis touros bravos. A duração da cerimônia completa é de cerca de duas horas, a vinte minutos, aproximadamente, por animal. Os personagens fundamentais da quadrilha são o matador, com seu traje de luzes douradas; os subalternos ou bandarilheiros, com hábito prateado, que são três; e dois picadores, montados em um cavalo protegido com um peto. Cada um desses personagens desempenha um papel diferente e intervém em diversos momentos da lide. A tarefa que realizam em conjunto termina, geralmente, com a morte da besta: o touro de lide. Todo esse “cerimonial” é realizado sob o olhar atento de um público mais ou menos entendido, que povoa as arquibancadas sobre a arena que faz as vezes de palco.

Cada uma das ações que a quadrilha faz ao touro são denominadas “sortes”, e essas sortes são as que estruturam a cerimônia, a “obra”, com um fim, dizem os taurinos, artístico. Logo se entenderá em que sentido. Martínez Parras (2002) nos diz que: “As diferentes sortes que integram a lide de um touro não são realizadas arbitrariamente, mas são executadas seguindo uma determinada ordem estabelecida, ao longo do tempo, para alcançar a maior eficácia e rendimento artístico” (p. 11).

A própria ideia de “sorte” é importante porque aponta já para o núcleo essencial da cerimônia. Em cada lance, o toureiro ou matador e sua quadrilha “lançam” a sorte, “jogam” a sorte, diríamos vulgarmente. E o que se joga, supõe-se, não seria senão a própria vida. A ideia de “sorte” é tão importante para a tauromaquia que chega-se a falar de “carregar a sorte”. “Carregar” é colocar o peso, e é algo que podem fazer tanto os bandarilheiros quanto os picadores e, sobretudo, o matador. Já na Tauromaquia ou Arte de tourear (sic.), primeiro tratado de tauromaquia, de 1796, Pepe-Hillo define o ato de “carregar a sorte” como “aquela ação que o Diestro faz com a capa, quando (sic.) sem mover os pés, torce o corpo de perfil para fora, e estende os braços quanto pode” (Illo, 1786, p. 47).

Essa ideia de “carregar a sorte” faz parte desse complexo de ideias que tem a ver com o componente estético da lide e que remete, em última instância, ao domínio do touro por parte do toureiro. Especialmente com aquele trio, cunhado por Juan Belmonte: “parar, temperar e mandar”. “Carregar a sorte” não é outra coisa senão, uma vez citado o touro, quando este chega onde está o toureiro, avançar a perna “de saída” e carregar sobre ela o peso. Ao fazer isso, o toureiro se arrisca a não conseguir retirá-la quando a besta lhe passa ao lado, por isso está ligada essencialmente ao “Valor” do toureiro. O engodo do matador também é adiantado, guiando o touro e desviando-o de sua carga reta, fazendo-o girar ao redor do Diestro sem que este mova um único pé, apenas girando sobre seu quadril. “Parar, temperar e mandar.”

Certamente, é o “comando” sobre o animal, fazendo-o passar o mais próximo possível do toureiro, que, segundo os taurinos, confere uma dimensão estética, veremos que também numinosa, embora muitas vezes eles próprios não saibam, à lide. Supõe-se que o comando, e o risco a ele unido, impliquem, sobre o público, um fator emocional ou comunicativo. “Carregar a sorte” também podem fazer os picadores e bandarilheiros, mas não é o caso de descrever agora seus lances. Também é certo que os diferentes teóricos e praticantes da tauromaquia têm teorizado sobre essa questão e que existem múltiplas escolas de toureio, mas isso também não nos interessa neste momento.

O que tentamos introduzir aqui já, através dessa figura, é a ideia de que o toureio tem uma maneira de ser feito “bem”, que nem todo lance é um “bom” lance, e que a “boa” lide deve respeitar uma série de normas. Normas que nem sempre são valorizadas da mesma maneira e que dependem da forma como cada um concebe “a arte”. Para Domingo Ortega, por exemplo, não há toureio sem carregar a sorte, porque sem ela não se pode mandar. Algo similar diz Corrochano (1966), outro importante ensaísta taurino.


“Tourear é mandar no touro, fazer o que se quer com o touro, ter o touro nas mãos; se não se manda no touro, se o touro não vai por onde o toureiro quer que ele vá, não é o toureiro que está toureando, quem está toureando é o touro. E não se pode mandar no touro se não se carrega na sorte” (p. 219).


Além disso, ele indicará que se, em vez de avançar, o toureiro recuar, se em vez de carregar a sorte, ele a “descargar”, então ele não estará toureando, mas “des-toureando”. Pois terá perdido o controle sobre a fera e, com isso, a essência do toureio.

Mas, após este breve excurso sobre uma “sorte” muito especial, voltemos às “sortes” que compõem a lide. As ações que nomeamos como tais se organizam dando lugar ao processo seriado que constitui a lide como um todo, e que dá ensejo para falar de seus “terços” ou partes. São “terços” porque são três, três momentos bem definidos nos quais cada membro da quadrilha deve trabalhar, e não de qualquer maneira.

O primeiro terço, conhecido como “terço de capa e de varas”, é aquele que se realiza ao soar o clarim de início. Nele, os subalternos, embora também possa participar o matador, “correm” diante do touro, medindo seus “pés”, isto é, a velocidade com que ele se move, de modo que o matador possa observar como o touro responde, de onde deve chamá-lo e o que se pode esperar do animal. Em grande medida, é um primeiro contato. Feito isso, o Presidente, aquele que comanda a cerimônia, ordena a entrada dos picadores, montados, que, com uma pica “limitada” — no sentido de que tem um “tope” além do qual não se crava — “picarão” o touro na altura da cernelha. O objetivo dessa prática é causar dor, desgastar suas forças e fazer com que, durante o restante da lide, ele invista com os chifres baixos (daí o ditado “baixar a cerviz”). Em resumo, diminuir seu ímpeto e corrigir os defeitos que possa ter. “Guiar”, podemos dizer, as investidas subsequentes do animal, infligindo-lhe na parte superior do pescoço, no morrillo, feridas de profundidade limitada. Na prática, essa região parece ser pouco sensível para o animal, e os “puyazos”, em teoria, não buscam acabar com o touro, mas apenas domá-lo: reduzir seu ímpeto, mas não em excesso. Em Martínez Parras (2002), pode-se encontrar uma descrição breve, com imagens, dos principais passes ou sortes durante o “toureio de capa” e das diferentes formas de enfrentar a sorte de varas.

O segundo terço da lide, o “de banderilhas”, é de certa forma o reverso da “sorte de varas”. Se naquela o objetivo era atenuar o touro, agora busca-se reanimá-lo, reviver seu ímpeto para que o sangue vertido com as varas não “estrague” o restante da faena. Assim como no primeiro terço da lide, a forma como o touro reage à execução das banderilhas, como se move, será uma informação que o matador deverá levar em conta para o último terço. Em geral, quem realiza o “a-banderilhamento” costuma ser os subalternos, embora nem sempre. A norma é aplicar três pares de banderilhas, mas, se o matador participar, podem ser quatro. Esses “palos”, como aguilhões, supostamente incitarão o touro em suas investidas e são cravados atrás do morrillo, em uma manobra arriscada que também pode assumir diferentes perfis (Martínez Parras, 2002).

Por fim, o terceiro dos terços dá lugar ao que poderia ser considerado a “verdadeira” tarefa do matador. Realiza-se em duas partes: a “faena de muleta” e a “sorte de matar”. Segundo Martínez Parras (2002), nesta, como em outras partes da lide, ocorreram variações históricas. Assim, se no século XVIII a “faena” quase não tinha importância, sendo a “sorte de matar” o elemento central do terço, ao se transformarem as “técnicas de morte”, o trabalho com a muleta foi ganhando maior relevância. Vejamos:


“A substituição da sorte de matar recebendo pela menos arriscada sorte do volapié foi o que originou a faena de muleta. Para executar a sorte de receber, era necessário que o touro tivesse certa mobilidade, enquanto o volapié requeria que o touro estivesse exausto. Para conseguir isso, os matadores começaram a prolongar o muleteo, com o objetivo de enfraquecer os touros, tirando-lhes as forças e dominando-os, dando início à faena de muleta, que, hoje, é a essência do toureio; o eixo fundamental da atuação do matador” (Martínez Parras, 2002, p. 49).


Como o leitor já deve imaginar, este é o momento de “maior brilhantismo técnico”, quando o toureiro enfrenta sua tarefa central: a de parar, templar e mandar. Claro que, apesar do que poderia parecer a um espectador inocente e desinformado, como foi quem agora escreve, o “arte” do toureio, que não tem tanto a ver com matar o animal quanto com dominar a “fera”, por mais que a morte termine sendo sua conclusão “inevitável”, contém um repertório técnico de enorme riqueza. Os passes, as “cabriolas” e os maneirismos do matador são variados e não são executados de qualquer maneira. Já vimos a importância que os teóricos da tauromaquia deram ao “carregar a sorte”. Não cabe aqui desenvolver todos e cada um dos passes que podem ser realizados durante a faena de muleta, entre outras coisas porque os próprios toureiros, à maneira dos artistas, também “inovam”, também são geniais no sentido de criar e “assinar” novos passes, nunca antes realizados. Não é, portanto, uma técnica fossilizada, imutável, mas os toureiros estão inseridos em uma tradição que não podem deixar de desenvolver; tradições, aliás, que não deixam de entrar em disputa, organizando-se em escolas ou formas de entender “sua arte”. Também na lide há modas, assim como “peças” que, uma vez “compostas”, os atores “representam” ou “interpretam” com maior ou menor sorte.

Apontaremos, para explicar isso, o caso de um dos possíveis passes de "início de faena", ou seja: aqueles passes com a muleta com os quais começa o terço. Dependendo das condições em que o animal se encontra, é possível começar testando-o ou com grande “espetacularidade e risco”. Assim descreve Martínez Parras (2002) o “cartucho de pescado”:


“Passe popularizado por Pepe Luis Vázquez, que o realizou pela primeira vez em público na praça de touros de Sevilha, em maio de 1938, embora El Espartero já o tivesse praticado anteriormente. Na execução deste passe, o toureiro se coloca a uma certa distância do touro, com a muleta dobrada na mão esquerda e a espada na direita, apoiada levemente no quadril. Nesta posição, chama o touro e aguenta, com a muleta dobrada, até que o animal chegue à distância apropriada, momento em que o matador desdobra a muleta e executa o passe, que tecnicamente é um passe natural, continuando, normalmente, a tourear por naturais. Pode ser executado no terço ou com o toureiro no centro da arena e o touro no terço ou na barreira. Em qualquer caso, quanto maior for a distância que os separa, mais espetacular e arriscado será o passe” (p. 51).


Há dezenas de passes como este, o que evidencia o enorme repertório técnico e artístico à disposição dos intérpretes e espectadores. Não pode ser realizado de qualquer maneira; pode haver um certo virtuosismo que, embora para aqueles que não "estejam por dentro" pareça um enigma, é coerente supor que, para os "entendidos", seja suscetível de receber valores estéticos. Assim, falarão da “beleza” ou da “elegância” de um passe, da “classe” do matador, de seu “estilo” e “marca”; em suma, de sua maneira ou arte de tourear. Isso não deveria surpreender ninguém.

Eu mesmo, que me considero um analfabeto musical, quando escuto uma peça de Mozart ou Beethoven, sou incapaz de dizer por que é “boa” ou por que é “bela”. É “bela” porque me disseram que é, não porque eu entenda o que está acontecendo. Além do “valor social” que essa peça recebeu, valor que, é claro, deve ser assumido como vindo do julgamento daqueles que realmente a compreendem, daqueles que realmente estudaram música e são capazes de “totalizá-la”, de entender o que está acontecendo; repito, além desse “valor”, para um “surdo musical” como eu, essa música é ruído, um ruído elaborado, mas ruído no fim das contas, justamente porque essa elaboração me é incompreensível. Algo semelhante podemos pensar que acontece com a lide, e, em geral, com qualquer técnica, que só é compreensível, e portanto valorizável, quando se entende como e de que maneira foi feita, quando se fala a mesma língua. E essa conversa, dizemos, conclui-se na tauromaquia com a “sorte de morte”, quando o matador finca sua espada e termina com a vida do animal, já “dominado, preparado e pronto para a sorte final” (Fernández Tresguerres, 1993, p. 121). É então que se distribuem os prêmios, e, quando julgado merecido, é concedido o indulto ao touro, por suas qualidades, para ser usado como reprodutor. Dos prêmios, nos interessa apenas o fato de que são concedidos, pois revela, de fato, que há formas melhores e piores de lidar com o touro, merecendo algumas delas, a critério do público e do Presidente, o devido reconhecimento.

Portanto, o que tentamos apresentar nesta breve descrição da lide é como, com base nos “terços”, ela se organiza sempre de forma sequencial. Cada “sorte” tem seu momento e sua maneira de ser realizada. No entanto, sobre esse protocolo, sobre essa sequência, que é sempre a mesma, o toureiro tem espaço para adornar a faena. Diz-nos Fernández Tresguerres (1993) que:


“os terços prescrevem a ordem que necessariamente devem seguir os atos e sortes obrigatórios que constituem a faena, mas a maneira de desenvolvê-los ou de executá-los depende do toureiro, de seu estilo peculiar e de seu talento, duas das principais coisas que o bom aficionado sabe ver e apreciar” (p. 120).


Nem mesmo o número de passes que devem ser realizados está previamente fixado. O toureiro deve realizar tantos quantos sejam necessários para preparar o touro para sua morte. Este é o arte do toureio: dominar o animal. Todos esses passes, de número incerto, devem, no entanto, estar ligados, seguidos uns dos outros; e a perfeição que o público espera do intérprete é superlativa. Assim, Corrochano nos diz (1989, p. 261; citado por Fernández Tresguerres, 1993, p. 121): “a faena mais perfeita é aquela em que o touro cai ferido no mesmo lugar onde foi dado o primeiro passe”. Basta isso, por ora, para ter em mente aquilo que a tauromaquia consiste como tal.


2. Sobre o que é a tauromaquia


Já sabemos em que consiste a tourada, mas descrevê-la não é suficiente para saber o que é, e sem saber isso, não poderemos avançar um passo em nossa tarefa de traçar os limites entre a Ética e a Estética. Neste ponto, seguiremos as linhas de Fernández Tresguerres (1993), talvez o exemplo mais rigoroso e sistemático de enfrentamento do problema, justamente por ser capaz de apresentar uma “Teoria das teorias do toureio”.

Para nos aproximarmos dessa teoria, é necessário expor, antes de mais nada, os seus pressupostos iniciais. Fernández Tresguerres trabalha a partir das coordenadas sistemáticas do Materialismo Filosófico, vinculado ao filósofo espanhol Gustavo Bueno. Desde o início dos anos 70, essa “escola” tem elaborado, com base nas linhas fundamentais do “mestre”, um “mapa do mundo”, um verdadeiro exemplo de sistema filosófico. Com o passar dos anos, foram abordando, preferencialmente, diversos temas, e entre os anos 70 e 90, algumas das questões “da moda” foram as relativas ao que poderíamos chamar de uma Antropologia Filosófica. Em 1971, foi publicado Etnología y Utopía; em 1978, o artigo na revista El Basilisco intitulado Sobre o conceito de “espaço antropológico”; em 1984, outro artigo: Ensaio de uma teoria antropológica das cerimônias; e em 1985, a obra mais importante para este trabalho, El animal divino. Ensaio de uma filosofia materialista da religião.

Esses são os alicerces sobre os quais se ergue a “Teoria das teorias do toureio” de Fernández Tresguerres. Para compreender seu significado, devemos nos deter para explicar duas ideias fundamentais: por um lado, a noção de espaço antropológico; por outro, a tese central de El animal divino, a saber, que Deus não é feito, como dizia Feuerbach, à imagem do homem, mas que seria feito, antes, à imagem e semelhança dos animais.


A doutrina do Espaço Antropológico e El animal divino


Exposta inicialmente em Sobre o conceito de “espaço antropológico” (Bueno, 1978) e reelaborada em El sentido de la vida (Bueno, 1996), a doutrina do espaço antropológico pretende situar, coordenar os diversos materiais antropológicos de acordo com a forma como se relacionam com o homem. Esse espaço seria composto por três eixos: o eixo circular, o eixo radial e o eixo angular. Chamamos de circular o eixo que contém as relações do homem com outros homens; chamamos de radial o eixo que contém as relações do homem com a “natureza morta”, com os seres inanimados; e chamamos de angular o eixo que contém as relações do homem com outros seres que, sendo racionais, não são humanos e que se nos apresentam como “numinosos”.

Em El animal divino, por sua vez, Gustavo Bueno (1985) desenvolve uma teoria materialista da religião, cuja essência, de inspiração plotiniana, pode ser entendida como composta por um núcleo, um corpo e um curso. O núcleo da religião, aquilo de que se parte, é um referente “real”: os animais. Nossa relação com eles, enquanto númenes, no sentido de Rudolf Otto, seria precisamente “o conteúdo objetivo da experiência religiosa” (Fernández Tresguerres, 1993, p. 88). O corpo e o curso estariam relacionados, precisamente, com aqueles elementos que vão se construindo ao redor do núcleo e que transformam a forma da religião ao longo do tempo. Assim, o curso da religião seria caracterizado como a transição da religião primária, na qual os númenes desempenham um papel central, para formas secundárias de religiosidade, nas quais os númenes são inseridos em um “novo quadro de referências” (Ibid., p. 89), projetados sobre o firmamento, nas constelações do Zodíaco, por exemplo. Essa transição, que começa a ocorrer a partir do Neolítico, quando o homem domesticou os animais, significa que a numinosidade agora é atribuída ou predicada ao próprio homem, que ascende aos diversos panteões politeístas, nos quais ainda podem ser vistos vestígios da religiosidade primária (vejam-se as metamorfoses de Zeus ou, talvez o exemplo mais típico, os deuses meio humanos, meio animais da religião egípcia). Finalmente, o período terciário, crítico em relação à deriva politeísta, teria encaminhado o caminho, informado pela filosofia, em direção ao monoteísmo metafísico, antecâmara do ateísmo. No entanto, não se deve entender esse processo como evolutivo em um sentido unívoco, unidirecional, porque constantemente ocorrem refluxos de formas anteriores e originais de religiosidade.

Armados com esses conceitos, já estamos em posição de enfrentar a “Teoria das teorias” de Fernández Tresguerres (1993, p. 150 e ss.), segundo a qual existem três alternativas que se podem adotar para definir que tipo de cerimônia são as touradas:

Teorias circulares: São aquelas que encerram a essência da tourada no contexto das relações dos homens com outros homens. A esta classe de teorias pertencem aquelas que entendem a tourada em uma chave sociológica, moral, política ou psicológica. É o caso, por exemplo, daqueles que a entendem como uma forma de “educação” do espírito masculino ou daqueles que veem nela, como Tierno Galván, uma representação simbólica das relações erótico-sexuais, encarnada na própria aplicação da linguagem taurina às “formas femininas”. Não posso resistir a citar algum trecho:


“Note-se, entretanto, para citar um exemplo, como se diz da mulher que ostenta garbo no busto que ‘os tem bem postos’, expressão habitual entre os aficionados para elogiar a galhada que se projeta bem e é como deve ser” (Tierno Galván, 1988, p. 8).


E, mais uma “pérola”:


“o espanhol vê o trato erótico com a mulher em estreita relação com a atitude do toureiro diante do touro. No que diz respeito às relações eróticas, a mulher é vista como uma entidade rebelde e bravia que deve ser domada pelos mesmos meios e técnicas empregados na luta taurina” (Tierno Galván, 1988, p. 8).

“Desde este ponto de vista, um dos lugares-comuns da cultura espanhola, Don Juan, coincide com o toureiro. Ambos são duas versões de uma mesma, profunda, postura diante do mundo. Don Juan brinca com o amor; o toureiro, com a morte. Não é que Don Juan não arrisque a vida no jogo, mas esse risco é de menor importância que a fruição que procede da zombaria. Na tourada, o jogo com a morte serve de base para a fruição de enganar e vencer. Don Juan, diestro do amor; o diestro, Don Juan da morte” (Tierno Galván, 1988, p. 8).


Teorias radiais: São aquelas que encerram a essência da tourada na relação do homem com a natureza. Certamente não são as mais comuns, na medida em que suporiam negar a importância tanto do homem quanto do touro, o que, diga-se de passagem, obscurece mais do que esclarece. Tresguerres cita Gil Calvo, que oferece uma interpretação em chave harrisiana da tauromaquia, ou seja, em chave proteico-energética, de acordo com os postulados do determinismo ecológico de Marvin Harris.

Teorias angulares: São aquelas que encerram a essência da tourada na esfera, mais ou menos ampla, dos fenômenos religiosos. As posições que podem ser defendidas são muito variadas, tanto de caráter idealista quanto materialista. Fernández Tresguerres, em consonância com sua filiação filosófica, toma partido por estas últimas. Pois bem, sua teoria, devidamente documentada, assinala como, da primária relação com o numen “touro”, essas relações genuinamente angulares sobreviveram nas formas de religiosidade secundária e terciária por meio do culto e do sacrifício. Essas relações foram sofrendo uma transição para contextos ou âmbitos profanos, onde se situa hoje em dia a tourada. Como ele mesmo assinala:


“A interpretação da tourada que aqui se propõe segue, portanto, a linha de reconhecer a existência de um vínculo de religiosidade real (objetiva) entre o homem e o touro, que se encontra na origem e na base da corrida espanhola, a qual deve ser vista, portanto, como uma refluência de antigas formas de religiosidade primária e secundária, que sobrevivem (como jogo) [ou arte, indicava um pouco mais acima] no seio das religiões terciárias, mas cuja compreensão essencial é impossível, a menos que se reconheça expressamente a sua origem e caráter religioso” (Fernández Tresguerres, 1993, p. 155-156).


Neste ponto, é importante destacar o componente etológico que envolve a lide. E isso não é surpreendente, supondo-se no seu núcleo a "angularidade": a relação do homem com outros sujeitos que operam de forma racional ou raciomorfa, mas que não por isso são humanos. Esse componente, que nós identificamos com o que os etólogos chamam de "relações de dominação", pode ser encontrado na própria essência de tourear: no parar, templar e mandar, tanto quando interpretado como ligado ao "carregar a sorte", quanto quando feito diretamente no sentido "territorial", de disputa pelo "espaço" com o touro. Que o toureio seja a arte de dominar o uro implica deixar de ser dominado por ele. O sentimento numinoso, como algo ao mesmo tempo extraordinário e terrível, que deve ser pressuposto no homem das cavernas, dá lugar no Neolítico à domesticação dos animais. Já vimos seu efeito sobre a religião. É esse domínio que fica encenado, interpretado sobre a arena da praça. Martínez Parras (2002) o exercita claramente ao descrever o passe de "dobladas ou doblones":


“A perna de saída está geralmente flexionada e muito adiantada, enquanto a outra se mantém esticada ou até de joelhos. Quanto ao traçado do muletazo, este é muito curvilíneo, forçando o touro a dobrar-se. Daí, precisamente, o nome de doblada ou doblón. São usados para subjugar e castigar os touros poderosos, para ensiná-los a investir longe ou para corrigir defeitos como levar a cabeça alta, sacudir ou ter tendência a fugir. Quando se executa como um passe de castigo, o toureiro deve avançar muito a perna de saída, forçando a trajetória do animal, jogar a muleta ao chão e arrastá-la pela arena para fazê-lo humilhar-se e tirá-la por baixo da lâmina do chifre. No final deste movimento, deve-se mostrar a muleta pelo lado oposto, quebrando o touro ao fazê-lo girar. Desta forma, obriga-se o touro a dobrar-se bruscamente” (p. 53).


A linguagem é clara: castigar, dominar, ensinar. O mesmo que apontava Tierno Galván, embora agora sem referência ao trato com as mulheres. O toureiro engana o touro, adestra-o na arena para que todos o vejam, e emprega sua arte para isso: corrige seus defeitos na carga, o humilha e, finalmente, quando já "o preparou", dá-lhe a morte. As ressonâncias simbólicas de interpretar este fenômeno em chave etológico-religiosa são extremamente sugestivas.

Nós, já o adiantamos, seguiremos esta interpretação "angular" da cerimônia, entendendo que o essencial a ela é ser uma relação "religiosa" com o touro, no sentido descrito, embora depurada até tomar a forma de um jogo ou de uma arte de dominação. Entendido assim, agora o que se interpõe em nosso caminho é a questão central deste trabalho: se, admitindo que seja uma cerimônia antiética, esse caráter nega sua condição de arte, ou se, pelo contrário, é possível conceber uma forma de “arte sangrenta”, uma “dança de dominação e morte”, “sacrificial”, como a que descrevemos neste ponto. Repito que o que nos interessa aqui não é tanto se deve ou não ser proibida, embora não possamos deixar de nos perguntar isso, dado seu caráter de "problema candente", mas, simplesmente, de que maneira a tauromaquia pode servir para ilustrar a relação entre Ética e Estética.


3. A Ética da Tauromaquia


Já que nossa investigação se dirige precisamente às relações entre o Belo e o Bom, não podemos deixar de lado a questão da Ética. A tauromaquia é uma prática ética ou não? Quais são as condições para que seja? Que posições se podem adotar a esse respeito? Todas essas questões são as que agora nos concernem.

Não podemos aspirar aqui a resolver os inúmeros problemas que envolvem o campo da Ética. Mas, à medida que a maioria dos argumentos, tanto a favor quanto contra, assume o caráter de argumentação moral, é indispensável, ao menos, apresentar um mapa básico.

Em Ética, Estética e Política, Ernesto Castro (2020) elabora uma classificação das possíveis posições sobre a tourada. Tomando como variáveis a orientação (a favor ou contra) e a motivação (política, ético-moral ou estético-religiosa), ele forma uma tabela de dupla entrada, onde se posicionam os principais figurantes no debate sobre os touros. Esta classificação é útil porque faz menção explícita a alguns autores já abordados, bem como a outros que ainda serão discutidos.

Entre as motivações políticas, Castro (2020) aponta aquelas que veem na proibição da tauromaquia um atentado contra a unidade da Espanha. Estas, por certo, só podem ser entendidas no contexto catalão, onde as touradas foram proibidas, em 2010, "por razões supostamente éticas". Ernesto as atribui a organizações patrióticas espanholas, embora se possa argumentar que esse argumento poderia ser utilizado tanto a favor dos touros por essas mesmas organizações quanto contra, caso a proibição em Cataluña tenha sido precipitada mais por questões políticas do que éticas. Contra, por motivos políticos, Ernesto menciona Francisco de Quevedo e outros intelectuais que viram na tourada uma perversão dos costumes e das pessoas. No entanto, isso também não nos parece totalmente correto, já que se poderia argumentar que tais ideias se movem, na verdade, no plano moral antes que no político.

O segundo grupo de argumentos gira em torno da dimensão ético-moral da tourada. A favor, por motivos éticos, Ernesto Castro cita Fernando Savater (2020), autor de Tauroética. Certamente, Savater entende que a Ética não cobre a relação do homem com os animais, aos quais ele considera, contra as descobertas dos etólogos do século XX, seres não inteligentes, sujeitos a seus instintos, “pobres de mundo” ou "obstruídos", como diria Heidegger. Segundo Fernando Savater (2020):


“a ética não deriva de nossas semelhanças evolutivas com outros seres vivos, mas da capacidade única e específica de nos distanciarmos reflexivamente do fim natural imediato e poder afirmá-lo ou rejeitá-lo. Justamente a atitude ética é o reconhecimento dessa excepcionalidade humana e não a afirmação de sua continuidade com o resto da animalidade” (p. 36).


Na verdade, não nos parece que Savater seja “a favor dos touros por motivos éticos”. Além disso, não nos parece que seja possível estar “a favor” por tais motivos. Argumentos éticos podem estar na base da rejeição, mas não da aprovação. Não creio que seja possível, pelo menos nos dias de hoje, imaginar uma pessoa dizendo algo como: “devemos manter a festa dos touros porque é nosso dever ético para com os nossos semelhantes”; muito menos alguém que pudesse pensar que matar o animal é bom para o próprio animal. De fato, a única maneira possível de argumentar a favor da dimensão ética da tauromaquia é com base em pressupostos animalistas, o que não deixa de ser paradoxal. E com isso quero dizer que só é possível argumentar a “bondade” da tourada a partir da ideia de que o “bem” está em função da utilidade, entendida esta em termos de prazer e dor. Apenas em uma chave sensorialista pode-se dizer que a utilidade agregada do touro, ao longo de sua boa vida na dehesa, pode justificar sua morte na arena. As motivações éticas contra são fáceis de imaginar. Estas podem ir desde o animalismo “puro e simples”, que entende que todo dano infligido a um ser senciente é, por definição, “mau”; até o argumento mais sutil de que a “maldade” dos toureios não reside tanto no dano causado ao animal, mas sim na violação que isso representa para a dignidade humana. Este último ponto fica confuso na classificação de Ernesto, pois não apenas não aparece no quadro correspondente à ética e à moral, como também, como vimos, aparece no quadro “político” e, além disso, entre os argumentos estético-religiosos contrários.

Por fim, entre os argumentos estético-religiosos a favor, Castro identifica a obra de Tresguerres (1993), bem como as opiniões de intelectuais como Vargas Llosa, Chaplin ou, talvez o mais destacado, Ernest Hemingway, cujas declarações a respeito são amplamente conhecidas. É verdade que a tauromaquia inspirou várias obras de arte, e que a exposição de Fernández Tresguerres é realizada em chave religiosa. No entanto, não nos parece que Tresguerres possa ser classificado como “a favor”, embora de sua obra se possam extrair argumentos nesse sentido. Tal como a entendemos, a obra do asturiano é, como a nossa, uma exposição mais ou menos “neutra” no terreno político, no sentido de que não se preocupa realmente com a necessidade ou não de proibir a cerimônia, mas em entendê-la como tal. Se de suas conclusões se podem extrair consequências “a favor”, não é necessariamente porque ele o esteja (pelo menos a priori). Além disso, nos parece perfeitamente possível assumir as linhas fundamentais de seu trabalho e ser contra. Se de sua análise filosófica resulta a fraqueza de muitos dos argumentos antitouradas, isso não ocorre porque ele tenha um compromisso especial com a Festa, mas sim porque, efetivamente, tais argumentos são fracos; pelo menos desde as coordenadas filosóficas assumidas por Tresguerres. Em nome da verdade, deve-se dizer que, se quiséssemos “extrair” a posição “limpa” de Tresguerres, ela não seria tanto a favor de manter as touradas, mas contra os argumentos “éticos” que buscam proibi-los, pois ele, como Savater, restringe a ética ao âmbito das relações “circulares”, aquelas que ligam o homem ao homem. E, voltando a Savater, diremos que sua postura representa mais a dimensão “estético-religiosa” do que a ética. Pois Savater realmente é “a favor”, e o é porque para ele os touros são algo excepcional, algo que põe em evidência a “realidade da morte”. Segundo ele, na praça, o touro morre por nós.


“São precisamente essas duas manifestações [a morte como risco permanente e a morte como destino final] que ocupam o centro da praça na festa: no caso dos toureiros, como risco que se evita e com o qual se joga em um perpétuo estilismo que supera o medo do que conhecemos bem demais; e no caso do touro como destino que finalmente se cumpre, pois o animal morre em nosso lugar aquela morte que ele desconhece e nós vemos adiada graças à arte” (Savater, 2020, p. 78).


Neste ponto, assim como na compreensão da relação com os animais em chave mais religiosa do que ética, como “compaixão”, a posição de Savater é solidária com a de Fernández Tresguerres, e se é solidária, gostaríamos de acrescentar como exegese, é porque, uma vez circunscrita a ética ao “eixo circular”, ao “mundo dos homens”, e distinguida a vida animal da vida humana; uma vez reconhecido isso, assim como o fato de que os animais tampouco são máquinas; então, só nos resta concebê-los “angularmente”. Neste ponto, se se quiser defender os touros, ou se faz sob o ponto de vista de considerá-los uma arte, ou se faz assumindo sua dimensão religiosa “sem rodeios”, falando abertamente de seu caráter sagrado. E dado que isso último seria hoje anacrônico, não surpreende que ambos se inclinem para o primeiro, sendo mais claro neste ponto Savater, precisamente porque para ele “a vida está em jogo” na defesa da tourada. Por isso, a categoria de classificação “estético-religiosa” de Ernesto Castro nos parece tão sugestiva. No entanto, adiantamos que não acreditamos que o caráter “artístico” da tourada seja também um argumento suficientemente forte para sua manutenção.

Assim, a título de resumo, apontamos o seguinte. De acordo com o alcance ou a extensão que atribuirmos à Ética, poderemos distinguir entre uma ética antrópica, que restringe a relação moral ao círculo das relações humanas, e uma ética anantrópica, que estenda essa relação moral: seja para abranger os animais ou outros sujeitos racionais, como Kant, seja para englobar o mundo ou a própria Biosfera, como poderia ser o caso da hipótese Gaia de James Lovelock. Dependendo de onde nos posicionemos, se optarmos pela visão da ética antrópica, poderemos dizer que a tauromaquia não possui uma dimensão ética, e que, se a possui, é pelo “efeito degradante” ou “perverso” que exerce sobre o homem; mas, se entendermos que a ética é anantrópica, então ficará claro que a relação com o touro será suscetível de receber um status ético, e só restará determinar se essa relação deve ser considerada individualmente (com cada touro singular), especificamente (com a espécie em geral) ou ecologicamente (para o ecossistema ou o próprio planeta).

De entre todas estas opções, apenas três apresentam um problema para a questão que estamos tratando aqui: a da relação entre o Bom e o Belo. Do ponto de vista antrópico, será questionável apenas até que ponto o ato de matar um animal é “mau” para o homem; do ponto de vista anantrópico, serão questionáveis, em primeiro lugar, os efeitos “climáticos” e “ecológicos” das dehesas (por exemplo, se seria “melhor” utilizar essas terras para a agricultura e o sustento de uma dieta vegetariana) e, em segundo lugar, do ponto de vista do touro singular, se é “mau” matá-lo, seja porque a dor é “má em si”, seja porque o “soma de prazeres/dores” não compensa sua “boa vida” na dehesa.

Nós tomaremos partido, aqui, pela opção de “maior compromisso” para a independência entre o Bom e o Belo: aquela que entende que a tourada é “má”, eticamente falando, pelo dano que necessariamente inflige a outro ser vivo. Assumimos esta posição não porque seja a nossa, mas porque é aquela que a coloca em pior situação. Se a tourada, assumindo sua “maldade”, ainda pode manter elementos “belos”, então estará provada a independência, ao menos relativa, entre o Belo e o Bom.


4. Beleza e Bondade


Percorridas já as principais posições que podem ser defendidas em relação ao caráter ético, ou não, da tourada, decidimos assumir a “pior” das opções, aquela que a destaca como intrínseca e irremediavelmente “má”. Dissemos que esta é a “pior” porque revela, para os efeitos do nosso trabalho, a difícil relação entre o Belo e o Bom. Perguntamo-nos agora, então, se uma “dança da morte”, “sangrenta” e “mortal” pode ou não ser artística, passível de receber uma avaliação estética.

É interessante notar que a confusão entre o Belo e o Bom, entre a Ética e a Estética, não tem sido incomum; muitos sustentam, de fato, que a arte não pode ser “má”, que “a tortura não pode ser cultura” ou que, até mesmo, o “feio”, o “horrendo” e o “grotesco”, uma vez tematizados esteticamente, se traduzem em valores “positivos”, em “belos” e, portanto, “bons”. O que nos interessa aqui é este último ponto: se algo, por ser “belo”, deve ser “bom”, ou se algo, por ser “bom”, deve ser “belo”.

A confusão é milenar. Já no Górgias, Sócrates usou essa confusão para desmantelar os argumentos de Polo (Platão, 2018, pp. 78 e segs.). Polo tentava demonstrar que cometer uma injustiça é melhor do que sofrê-la. Como o Sócrates platônico pôde desfazer suas afirmações? Perguntando primeiro não sobre a injustiça da ação, mas sobre sua “feiura”. Para Polo, era “mais feio” cometer uma injustiça, embora ele tenha se recusado a aceitar que, por isso, também fosse “mais mau”. Vemos em Polo uma primeira separação entre feiura e maldade.

Ora bem, Sócrates prossegue, e aqui nos ateremos ao texto (Platão, 2018, p. 81):

Sócrates – Entendo. Pelo visto, você não acredita que o bom e o mau, o belo e o feio sejam a mesma coisa?

Polo – Certamente que não.

Sócrates – O que você acha disto? Você chama todas as coisas belas, como corpos, cores, formas e profissões, de belas sem as relacionar com algo? Começando pelos corpos bonitos, quando você diz que são belos, não é em relação ao seu uso, pela utilidade que se pode obter deles ou por certo prazer quando seu aspecto desperta um sentimento de agrado na alma dos que os contemplam? Fora disso, há outra razão que o leva a dizer que um corpo é bonito?

Com isso, Sócrates obriga Polo a reconhecer que o feio é definido em termos de dor e maldade, assim como o belo é definido em função do prazer e da utilidade; algo é mais feio ou mais belo que outra coisa porque causa mais dor ou mais prazer, ou porque é mais mau ou mais útil, respectivamente. Uma vez aceita essa correspondência de ideias, torna-se fácil concluir que a injustiça, sendo "mais feia", "mais vergonhosa", é também ou mais dolorosa ou mais má, e como não é dolorosa, então é má. Por isso ninguém, diz Sócrates, preferiria a injustiça à justiça, porque ninguém escolheria o feio e o mau ao invés do bom e do belo.

Sócrates se valeu da identificação do belo com o bom, e nessa confusão enredou Polo até fazê-lo confessar aquilo de que no início renegava. Mas será lícita essa identificação? Será que o bom é o mesmo que o belo? Acaso Sócrates não se valeu de uma verdadeira confusão? Não teria ele obscurecido mais do que esclarecido a relação entre esses dois "valores"? Nós acreditamos que sim, mas isso ainda precisa ser demonstrado.

Ao final de seu "Proêmio" a Ética, Estética e Política, Ernesto Castro (2020) afirma o seguinte:

“Uma das estratégias argumentativas mais recorrentes deste livro consiste em discriminar entre diferentes campos de valores potencialmente antagônicos, em afirmar que a ética, a estética e a política não têm necessariamente que estar sempre de acordo. [...] Alguns leitores superficiais, aqueles que ficam nas solapas dos livros, pensarão que a relação que quero estabelecer entre a ética, a estética e a política é a mesma que existe entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Problema deles.” (pp. 19-20).

A este grupo de "confusionários" pertenceria o Sócrates do Górgias, embora, se não estivermos errados, não poderia ter sido de outra forma tratando-se do Sócrates platônico. E é que, como é amplamente sabido, a estrutura hierárquica do Mundo das Ideias estaria presidida pela Ideia suprema do Bem. Todas as Ideias, inclusive a Ideia do Belo, da Beleza, estariam subordinadas a esse Sumo Bem, o ápice do edifício platônico.

Qual é o problema? Que, conforme foi exposto, essa Ideia do Bem permeia tudo. Aquele que, com Platão, remete os valores estéticos aos éticos, entenderá, de fato, que não pode haver algo Belo sem que, ao mesmo tempo, seja Bom. Nenhum valor estético poderá sustentar a tourada se for qualificada como “má”, pois, como o pneuma dos pitagóricos, a maldade inundaria tudo o que pudesse haver de belo, desintegrando-o e tornando-o irreconhecível.

Nós, ao contrário, entenderemos, como Platão, que o Belo se relaciona com o Bom, mas que tal relação é analógica. Postularemos, portanto, uma doutrina da analogia do Bem. Ou, dito de outra maneira: o bem se diz de muitas formas. Uma vez aceito isso, é possível desvincular a Beleza da Bondade, a Estética da Ética, pois o Bem da obra de arte não será o mesmo Bem que rege a “boa vida” ou as “boas ações”, ainda que também não esteja completamente separado. A arquitetura da Ideia do Bem tomará a forma de uma symploké, onde nem tudo estará relacionado com tudo, mas também não haverá nada completamente isolado; algumas partes estarão conectadas com outras, mas não com terceiras.

Análise das Ideias do Bem e da Beleza segundo uma lógica de classes


Podemos formalizar as relações entre o bom e o belo por meio da lógica de classes ou conjuntos. Tomando como conjuntos de interesse o conjunto das “coisas” boas e o conjunto das “coisas” belas, aparecem quatro tipos possíveis de relações:

a) Não-relação ou disjunção: Se o Belo e o Bom forem classes disjuntas, em sentido excludente, não haverá pontes entre as coisas belas e as coisas boas. Aquilo que for bom não será belo, e vice-versa. Não creio que alguém se atreveria a postular essa possibilidade.

 


b) Identificação ou equivalência: Se o Belo e o Bom são classes equivalentes, se o Belo e o Bom são identificados, então todas as coisas boas serão belas e vice-versa. Essa é uma possível interpretação da passagem platônica do Górgias, como um caso limitador da relação de inclusão. Entretanto, assumindo a arquitetura hierárquica da Ideia do Bem atribuída a Platão, parece-nos mais apropriado interpretá-la em termos de inclusão não total.




c) Inclusão: Isso pode ocorrer de duas maneiras. Ou é a Beleza que inclui a Bondade, ou o contrário. Se o conjunto de coisas belas inclui o conjunto de coisas boas, mas não se esgota nele, diremos que, se algo é bom, então esse algo é belo, embora não necessariamente vice-versa. No entanto, se for o conjunto de coisas boas que inclui, sem se esgotar nele, o conjunto de coisas belas, diremos que toda coisa bela é boa, mas nem toda coisa boa é bela.




c.1) Primeiro modo de relação inclusiva entre o Belo e o Bom (Bu ⸦ Bell). De acordo com o primeiro modo de relação apresentado, no qual o Bem é sempre parte do Belo, mas não o contrário, toda forma de fazer o Bem será bela. Esse modo de relação será assumido por todos aqueles que fazem da Ética uma forma de Estética, talvez Nietzsche seja seu mais alto representante, mas também inclui todos aqueles que entendem a vida e a moralidade como uma grande obra de arte, como um exercício de criação de novos valores de acordo com o modelo do artista.



c.2) Segundo modo de relação inclusiva entre o Belo e o Bom (Bell⸦ Bu). De acordo com o segundo modo de relação que articulamos, o Belo é sempre parte do Bom, mas não vice-versa: toda forma de beleza será boa. Mas isso, por sua vez, pode ser entendido de duas maneiras diferentes: da maneira platônica, tomando o Bem de maneira inteira e unívoca; ou, como tentaremos colocar, de maneira analógica, entendendo que o Bem é dado em muitas formas. Aqui nos deteremos no modo platônico de entendê-lo, segundo o qual a Ideia do Belo, como toda Ideia, participa de alguma forma da Ideia do Bem, o vértice apical do Mundo das Ideias.




d) Intersecção: Se o Belo e o Bom são duas classes ou conjuntos que se interseccionam, isso significa que pode haver, ao mesmo tempo, uma coisa tanto bela quanto boa; assim como coisas apenas belas e coisas apenas boas. A rigor, essa era a possibilidade pela qual pretendíamos tomar partido no início do trabalho, talvez por ser a mais amplamente estendida pelo “senso comum”. No entanto, parece-nos agora que essa opção só pode ser defendida tomando-se a Ideia de Bem em sua totalidade, “ao estilo platônico”, e identificando-a, univocamente, com o Bem ético. Entendida de forma tão restrita, é possível conceber, por exemplo, uma obra de arte que seja “bela”, no sentido de receber uma avaliação estética positiva, sem a necessidade de que seja ao mesmo tempo “boa”, em um sentido ético, por exercer ou representar valores ou ações eticamente condenáveis. O caso dos touros teria terminado assim: “é possível reconhecer [tomando o partido de sua rejeição ética] formas de Beleza em uma atividade eticamente ruim, porque Beleza e Bondade podem andar de mãos dadas, mas também separadamente”. Em outras palavras, isso teria nos permitido concluir a possibilidade de uma “arte má”. Entretanto, essa não é a nossa posição.




Sobre a relação do Belo com o Bom entendida de maneira analógica


Tomamos o partido de uma relação de inclusão do Belo no Bem, mas entendendo isso não de uma forma unívoca, como Platão, mas de uma forma analógica. A confusão entre esses dois termos vem de longa data. Como Alasdair MacIntyre (2019a), a quem devemos muito, aponta, na Grécia clássica essa confusão já era notável. Os termos ágathós e áreté já eram problemáticos naquela época, e não é preciso dizer que o termo kalós também era problemático, e ainda mais se considerarmos sua relação com o primeiro. Já vimos como eles foram usados pelo Sócrates platônico. Reduzindo essa questão filológico-linguística, podemos dizer que ágathós, “bom”, era aquele que, na sociedade homérica, cumpria a função que lhe era própria, seu télos, então conferido por sua posição social. Portanto, não é diretamente identificável com nosso “bom” moderno. De acordo com MacIntyre (2019a), era uma palavra intercambiável com “as palavras que caracterizam as qualidades do ideal homérico” (p. 19). Áreté, traduzida como “virtude”, era aquilo que um homem tinha que cumpria sua função. Esses termos foram transformados, mas poderíamos resumir sua situação atual dizendo que o “bem” de algo é considerado o cumprimento da função que lhe é própria; e que a “virtude” é aquela pela qual é possível alcançar esse “bem”. Por sua vez, kalós dizia, ao mesmo tempo, “bom” e “honrado”, mas também “belo” ou “formoso”. O uso enganoso que Platão faz dele no Górgias não é surpreendente.

Conforme a concebemos, a ideia do “Bem” nos será então revelada como “aquilo para o qual todas as coisas tendem” (Aristóteles, 2019, Eth. Nic., I, 1094a), mas cada uma de acordo com sua própria natureza. A Ideia do Bem necessariamente afirmará uma relação de finalidade: algo será bom se servir e atingir um fim, sempre entendendo, é claro, que a relação entre meios e fins é uma relação dialética. No entanto, essa Ideia sempre se referirá ao mundo dado na escala dos seres racionais, uma vez que somente eles podem ter “fins” apropriados no sentido proposicional. Isso inclui os animais, é claro, embora isso não seja importante para nós agora. A questão é que os fins são muitos, são plurais, e o plural será então a própria ideia de Bem. Para cada coisa e ação, para cada prática que diz respeito ao homem, há um bem que lhe é próprio. 

Uma prática nada mais é do que uma forma complexa de atividade humana, na qual é possível obter “bens” inerentes a ela. Dessa forma, é possível extrair deles “modelos de excelência”, algo a ser buscado no desenvolvimento da própria atividade. Essas práticas são práticas regulamentadas, que não podem ser realizadas de qualquer maneira, assim como os bens “internos” a ela, como MacIntyre os chama, também não são um “bem” qualquer, mas bens que são inteligíveis apenas para aqueles que estão “no meio da atividade”, para aqueles que participam da atividade. Assim, ele definirá a virtude como: “Uma qualidade humana adquirida, cuja posse e exercício tendem a nos tornar capazes de alcançar os bens que são internos às práticas e cuja falta efetivamente nos impede de alcançar tais bens” (MacIntyre, 2019b, p. 237).

Nos distanciamos agora do modelo narratológico de MacIntyre. Não porque o rejeitemos, mas porque a formação do caráter não é o que nos interessa neste momento. O que queremos recuperar é a noção de prática e do bem que lhe é inerente, aplicando-a às categorias artísticas. Cada uma das artes assumirá a forma de uma prática humana, com sua própria tradição, seus repertórios normatizados e suas formas de buscar o Bem que lhe é próprio e que chamaremos de “Beleza”. O belo será, portanto, o bem próprio da obra de arte, com as particularidades que esta possa ter, conforme estejamos em uma ou outra categoria artística. Não se pintará bem tocando piano, nem se tocará bem piano pintando. O bem que rege a pintura não será o mesmo que rege a música, nem qualquer outra das artes. Esse bem, assim concebido, admite variações e não é absoluto; também não é um bem que se confunda com o bem ético.

Todo Bem, tal como o descrevemos, diz utilidade, mas não a utilidade dos utilitaristas, medida em termos de prazer e dor, numa chave sensualista, mas “utilidade” entendida como “adequação” de meios e fins. “Adequação” que não será uma simples justaposição, mas sim uma influência recíproca: uma relação dialética, como já dissemos. A nosso ver, toda a polêmica em torno da relação entre a Ética e a Estética teria surgido por entender a Ideia de Bem como unívoca e não análoga, confrontando o Bem da Ética com o Belo da Estética, sem perceber que não era necessário reduzir o Belo ao Bom para concebê-los ambos como formas análogas da Ideia de Bem. Pensar o Bem de maneira plural-analógica nos permite entender que o Bem, em geral, é aquilo que os diferentes bens compartilham: uma relação entre meios e fins, sendo o bem ético e o bem estético duas maneiras de ser do Bem, mutuamente irredutíveis.

Alguém poderia se perguntar, após isso, em que consiste o bem ético, pois aquilo que até agora havia sido considerado o Bem por antonomásia não é mais do que um bem entre outros. A verdade é que, para os propósitos deste trabalho, isso tampouco importa: desde o início nos comprometemos com a discutível suposição de que a tauromaquia é eticamente questionável, precisamente para, a partir de tal suposição, nos perguntarmos apenas pela possibilidade ou não de uma arte bela e “má”. Em qualquer caso, em virtude da honestidade intelectual, sentimos a obrigação de manifestar nosso compromisso com uma Ética de raiz espinosista que, nas coordenadas do Materialismo Filosófico de Gustavo Bueno, distingue claramente entre o que é “bom” para o indivíduo, no sentido mais genérico, em sua organicidade, e o que é “bom” para um determinado grupo. Ao primeiro chamaremos “ética”, cuja virtude cardinal será a fortaleza, expressa como firmeza para si e como generosidade para os demais. Ao segundo chamaremos “moral”, entendendo que, muitas vezes, um bem moral pode entrar em conflito com outro e até mesmo com um bem ético (Bueno, 1996). Repito, para os efeitos deste trabalho, é irrelevante o fato de que a ética materialista seja uma ética estritamente antrópica; pois no que diz respeito aos valores artísticos da tauromaquia, como já foi dito, assumimos desde o início a alternativa mais beligerante: que seja antiética, por hipótese.

Posto isso, e de acordo com o que expusemos nesta seção, utilizando a lógica de classes, a Ideia de Bem ficaria formulada da seguinte maneira:

{(B.et. ∪ ... ∪ B.est.) ⸦ Bem}



Agora, está claro que, sob esta concepção analógica do Bem, ainda é possível conceber a relação entre as coisas belas e as coisas boas de forma equivalente, disjunta, intersectada e até mesmo em termos de inclusão. Na seção anterior, já vimos que a interseção era o modo de relação mais sólido; porém, resolvida a confusão entre o Belo e o Bom, essa interseção só pode ocorrer no campo do Bom em geral, na Ideia analógica do Bem. Sob nossa representação simplificada, também não fica excluída a possibilidade de outras interseções, em virtude de práticas distintas; mais ainda, considerando nossa concepção geral de Ética, é perfeitamente viável propor interseções entre os bens estéticos e éticos com os bens morais, políticos, etc. As possibilidades são tão amplas quanto ampla for a Ideia geral do Bem.

A partir de nossa exposição, podemos extrair uma série de teses fortes:

  1. A Beleza é o bem próprio da obra de arte. O que seja "bom" nesse sentido dependerá de cada categoria artística, cabendo ao especialista descobri-lo de acordo com a tradição em que a prática se insere, bem como com as virtudes estéticas que nela se tenham sedimentado. Será sua a tarefa de identificar o "artista virtuoso".
  2. Toda obra de arte Bela é uma obra de arte boa, sem prejuízo de que, por motivos variados, possa resultar antiética. Dito de outra forma: nenhuma obra de arte que seja boa pode deixar de ser Bela. Assim, fica resolvido o antigo problema do "grotesco" nas artes, que não seria senão um modo de ser do "belo".
  3. Supondo que a tauromaquia fosse uma arte, ainda que também fosse uma prática antiética, tal caráter antiético não comprometeria necessariamente seu valor estético: sendo "má", poderia ser perfeitamente "bela"; isto é, uma "boa obra".
  4. À luz do que foi dito, podemos falar de uma recuperação da velha doutrina grega da kalokagathía; porém, modificada pelo caráter analógico-propositivo que foi conferido à Ideia geral do Bem.

5. Últimas disposições estéticas, "malignas" e políticas


Concluída já a maior parte do nosso trabalho, parece-nos que ainda resta finalizar alguns fios que possam ter ficado soltos. Em primeiro lugar: o caráter artístico da lide. A primeira parte do nosso trabalho foi dedicada a descrever brevemente a estrutura típica de uma tourada e a oferecer uma teoria mínima da tauromaquia. Nosso objetivo não era outro senão sugerir o caráter artístico da lide, aceitando as considerações dos principais teóricos taurinos. É certo que os aficionados às touradas costumam recorrer à estética para defender sua paixão; é certo também que a tauromaquia sempre gozou de grande popularidade entre filósofos, artistas e literatos, impregnando nossa cultura e, como vimos que sugeria Tierno Galván, também nossa linguagem cotidiana. O próprio Ernesto Castro (2020) destaca os argumentos estético-religiosos em sua tabela de classificação e, em um recente debate mediático no Gen Playz, salientou como o núcleo da disputa entre taurinos e antitaurinos residiria, precisamente, no conflito entre a primazia de uns valores sobre outros: éticos versus estéticos (é possível visualizar esse debate em wF7_OmJXDH0; min 37:25 – 38:55).

Claro, alguém poderia pensar que a opinião de um renomado professor de Estética, e um que não é precisamente amante das touradas, não é suficiente para justificar o caráter estético da lide, e que recorrer às palavras do professor Ernesto Castro não passa de um argumento de autoridade grosseiro. Bem, para aqueles que pensam assim, basta dizer que, certamente, a lide é uma arte no sentido mais puramente técnico da palavra: é arte como tékhne.

Já vimos na primeira seção que tourear não é algo que se possa fazer de qualquer maneira, mas que tem um "esquematizado" técnico dentro do qual, por certo, é possível afastar-se da tradição. Em termos familiares: na tauromaquia é possível encontrar um âmbito do repertorial e outro do disposicional; assim como também é possível "avaliar" a tourada em termos de "boa" ou "má", em termos de uma "faena bela". Aqui nos alinhamos à Teoria da Arte exposta por David Alvargonzález na Escola de Filosofia de Oviedo em janeiro de 2021 (JkW31TD7cZ0), posteriormente resumida em Alvargonzález (2021) e complementada pelo trabalho do mesmo autor sobre analogias (Alvargonzález, 2020).

Deste ponto de vista, as artes [substantivas] são pensadas como técnicas não subordinadas a finalidades externas [diremos nós: que tendem a um bem que lhes é inerente], e cujo fim é, pelo contrário, por meio da analogia, ou exploratório ou analítico (Alvargonzález, 2021). Esse caráter exploratório não pode deixar de nos lembrar de uma das propostas de Martin Heidegger (2010) em "A origem da obra de arte", segundo a qual a obra de arte "revela" um determinado fenômeno que permanecia oculto ou desatendido, e, nesse sentido, guarda relação com a "verdade".

Qual poderia ser a verdade da lide? O que ela poderia nos desvelar? Parece que Savater (2020) tem isso claro, assim como também têm claro os toureiros quando são questionados: se algo a tauromaquia nos revela, é nossa condição finita, mortal:

“Nós, humanos, somos os animais que vemos morrer e compreendemos a fatalidade da morte, diante da qual procuramos nos encorajar da melhor maneira possível: nosso olhar sobre a morte, transformado em poesia ou em um jogo arriscado, volta-se contra nós e é a vingança dos animais que perecem sem súplica ou protesto. Ao longo dos séculos e em diferentes culturas, a cena primordial [...] deve ter ocorrido de acordo com rituais muito diferentes. Alguns [...] se tornaram estilizados, codificados como uma dança popular na qual a vida era exposta” (p. 61).

A lide, sob esse ponto de vista, não deixaria de ser aquela forma de “dança sangrenta” na qual, na arena da praça de touros, é encenada a luta entre a vida e a morte, entre homens e deuses, ou assim presumem os toureiros.

Outra dúvida que pode ter sido levantada por nossa teoria do Bem é a de qual lugar o “mal” ocuparia. Parece claro, a partir de nossa exposição, que o “mal” não existe como tal, mas é definido negativamente como a ausência do bem (lembre-se de que esses “males” e “bens” não são “bens e males éticos”). Essa não é uma tese original. Mais interessante é a questão da “arte ruim”, que pode ser entendida em um sentido ético ou estético. Do ponto de vista ético, como já dissemos, o “bem ético” se cruza com o estético, de modo que é possível encontrar uma obra bonita que seja “antiética”. Do ponto de vista estético, a questão se torna mais complicada e é possível falar em dois níveis diferentes. Do ponto de vista da Ideia do Bem, é impossível que uma obra de arte bela seja uma obra de arte ruim; no entanto, é possível pensar que existe uma “arte boa” (e, portanto, bela) e uma “arte ruim ou não boa” (e, portanto, não bela):




Como pode ser visto na figura acima, uma “arte ruim”, não boa e não bela, é perfeitamente possível, representada pela parte do todo da “Arte” que não se enquadra “dentro” do todo das coisas boas: “BEM”. O que é o mesmo que dizer que nem toda arte é boa, mas que, ao contrário, toda arte bela é boa.

Por fim, a “cereja no bolo”, não podemos terminar este trabalho denso sem considerar o aspecto político das touradas. A tourada está no centro do debate político, e é exatamente por isso que a escolhemos como fio condutor de nossa pergunta de pesquisa, não sem um “espírito provocativo”. Não é possível desenvolver aqui todos os argumentos possíveis a favor ou contra sua proibição, por isso nos limitaremos àqueles que afetam diretamente nossa discussão e que, como já mencionamos, são para Ernesto Castro os verdadeiramente importantes. Pois bem: nem a sensibilidade ética dos que são contra as touradas nem a sensibilidade estética dos toureiros, acreditamos, têm a menor importância quando se trata de sua proibição ou permissão legal. E isso se deve ao fato de que nem a política se reduz à ética, nem os valores estéticos precisam necessariamente ser salvaguardados acima de qualquer outra coisa. Em última instância, a decisão será tomada na atmosfera sempre cruel do jogo do poder, indiferente aos interesses de todos aqueles que não garantem sua recorrência. Um bom exemplo disso é a retirada da concessão do Conselho Municipal de Gijón para a praça de touros da cidade; uma retirada “motivada” pelo batismo de dois touros com os nomes de “Nigeriano” e “Feminista”. O mau gosto do batista é antológico; o que não impede que a proibição, por tais “razões”, esteja longe de responder a uma defesa da natureza senciente da dupla de bovinos; e está claro que esse foi o sinal que desencadeou o veto. O tempo dirá o destino das touradas em nosso país: se sobreviverá, com ou sem transformações; em todos os lugares ou apenas em alguns; por pouco ou muito tempo.

6. Conclusões


Ao longo deste trabalho, tentamos analisar as relações entre o bom e o belo, à luz de um exemplo paradigmático: a tauromaquia. Partimos de uma breve descrição da cerimônia e tentamos esboçar, na primeira parte, uma teoria sobre os touros, convencidos de que, sem uma compreensão adequada do fenômeno, por mínima que seja, não é possível embarcar na arriscada tarefa de julgá-lo. No entanto, a tauromaquia, como tal, nunca foi o verdadeiro objeto deste trabalho, que sempre seguiu em uma direção bastante distinta. Supondo que a tourada é uma atividade antiética, o que, como vimos, é no mínimo discutível — e isso não deveria nos surpreender, pois, de outra forma, não seria um dilema —, tentamos responder à pergunta de se, por essa mesma razão, assumindo também que é uma arte em seu sentido técnico estrito, como tekhné, ela pode ou não ser, ao mesmo tempo, bela.

Para responder a tal pergunta, que em grande medida está, por assim dizer, "à vista de todos", recorremos a Platão e Aristóteles, filtrados pela teoria das virtudes de Alasdair MacIntyre. O resultado foi uma ampliação da ideia clássica do Bem, que, de monolítica, como em República, transformamos em analógica. Pluralizamos essa ideia, convertendo-a em “virtudes” no plural; aquilo que, no seio de uma prática específica, permite alcançar o bem, o fim que lhe é próprio. Assim, a Beleza, a partir dessas coordenadas, será a virtude ou o bem próprio das obras de arte, em um retorno, embora modificado, à velha teoria clássica da kalokagathia. No entanto, com isso, resolvemos pouco sobre qual é, ou pode ser, a virtude ou virtudes próprias de cada categoria artística, incluindo a arte do toureiro. Nesse sentido, pode-se dizer que nosso trabalho é metateórico, sem cumprir uma função normativa e, portanto, está inerte na determinação do que pode ser ou não, de fato, uma boa obra de arte. Pesquisas futuras poderiam explorar precisamente esse caminho, embora, para isso, seria necessário "mergulhar" verdadeiramente nos códigos poéticos das diferentes artes, cada uma com seus próprios. Pode-se dizer que nosso trabalho aqui foi oferecer uma "kalologia geral", restando ainda a imensa tarefa de esboçar as diferentes "kalologias especiais". Igualmente interessante seria responder à pergunta sobre se é possível ou não falar de determinados aspectos do belo comuns a todas as artes, se, entre sua imensa variedade, podemos encontrar algumas características que as unifiquem, o que deveria acontecer se quisermos chamá-las todas de "arte". Nós ecoamos os trabalhos de Alvargonzález (2020, 2021), não porque sua seja a última palavra, mas como um primeiro passo, suscetível de revisão ou modificação. Em última análise, o que se pretendeu com isso foi repensar o problema clássico da relação entre Ética e Estética, espero, com certa frescura.