por Aleksandr Dugin
(2025)
A possibilidade da filosofia russa
Hoje, as questões sobre o que é a filosofia russa, se ela existiu, se existe agora e se existirá no futuro são prementes. Mas há uma questão ainda mais profunda: a filosofia russa é sequer possível? A pergunta soa estranha e paradoxal, mas não raro nos deparamos com fenômenos que existem de facto, embora seu sentido, conteúdo, justificação e estrutura orgânica permaneçam problemáticos. Sob análise mais atenta, tais fenômenos revelam-se não como aquilo que aparentam ser, mas como simulacros, falsificações, obscuras “cópias sem originais” (Baudrillard)[1]. Eles “são”, mas são impossíveis. Sua ontologia está enraizada no mal-entendido, na falsificação, num deslocamento desarmonioso. Pitirim Sorokin descreveu fenômenos semelhantes nos sistemas sociais como uma “sociedade de despejo”[2]. Oswald Spengler recorreu, em situações análogas, à figura da “pseudomorfose”[3] (em geologia, o nome de uma formação mineral em que fatores heterogêneos interferem inesperadamente durante o processo de cristalização, como a lava de um vulcão em erupção, etc.).
Assim, a questão da possibilidade da filosofia russa é plenamente legítima. O que costumamos chamar por esse nome pode revelar-se justamente um simulacro ou uma pseudomorfose. Ou pode não ser. De qualquer forma, para fundamentar seriamente a possibilidade da filosofia russa, é necessário um certo esforço. Esse esforço é ainda mais necessário porque mesmo a visão mais otimista da filosofia russa não pode ignorar seu surgimento tardio na história russa e a grave interrupção em sua existência no século XX, quando, se não desapareceu completamente (não tendo tido tempo de realmente começar), foi profundamente distorcida pela dogmática marxista. Se a filosofia russa, enquanto tal, existe, está historicamente danificada e precisa de reanimação. Se existe em esboço, é ainda mais necessário recorrer aos seus pressupostos, ao domínio de sua possibilidade. Além disso, há uma demanda por sua fundamentação e retorno às posições iniciais, a partir das quais pode começar o processo complexo e não tão óbvio da filosofia no contexto da cultura autóctone russa [4].
A correlação entre a filosofia russa e a ocidental
A filosofia russa (ou seu simulacro) surgiu como uma reação à filosofia europeia: partiu dela, correlacionou-se com ela, buscou nela suas fontes de inspiração, debateu com ela, imitou-a, refutou-a e desenvolveu-a. Quaisquer aspectos da filosofia russa que abordemos, estaremos inevitavelmente lidando com uma resposta a um desafio, uma reação, uma tentativa de compreender uma tese (teoria, sistema, escola, ideologia) que chegou à Rússia vinda do Ocidente. Mesmo quando os pensadores russos buscavam ser ou eram genuinamente originais em parte, essa própria originalidade expressava-se na forma de contraste com a filosofia do Ocidente, justapondo-se precisamente a ela. Quer imitassem ou rejeitassem a Europa, os pensadores russos comparavam-se precisamente com ela e tomavam como tese uma ou outra teoria filosófica ou o conjunto das teorias ocidentais, a partir das quais desenvolviam suas próprias reflexões.
Essa circunstância nos obriga a recorrer aos contextos filosóficos europeus correspondentes para entender a filosofia russa dos séculos XIX e XX. A possibilidade da filosofia russa está inextricavelmente ligada à filosofia ocidental realmente existente, que se desenvolve segundo uma lógica autônoma. A atualidade da filosofia ocidental era a potencialidade da filosofia russa. Essa correlação é fundamental. Mas pode ser interpretada de diferentes maneiras.
Por um lado, isso pode significar que a filosofia russa é um desdobramento da filosofia ocidental europeia, seu rebento tardio e específico. Por outro lado, é possível decifrar essa potencialização como uma resposta a um desafio, ou seja, como um gesto defensivo forçado, dirigido principalmente contra a filosofia ocidental (como no caso dos eslavófilos e, em parte, dos marxistas russos). Em terceiro lugar, podemos considerá-la como a “pseudomorfose” de Spengler, ou seja, como o resultado do enxerto heterogêneo e inorgânico (semiviolento/semivoluntário) de uma forma cultural em outra, completamente inadequada a ela. E, finalmente, tal correlação pode ser vista como uma forma de expansão cultural, uma tentativa do Ocidente de espiritualizar a sociedade russa por meio da instalação de seu próprio código cultural racional, facilitando a administração do poder real e garantindo o controle da sociedade ocidental sobre a russa.
Em todos os casos, a filosofia russa correlacionou-se e ainda se correlaciona com a filosofia ocidental, e não há razão para supor que isso não continuará sendo assim no futuro.
O momento do desdobramento da história da filosofia ocidental europeia
O pensamento filosófico ocidental europeu é um processo dinâmico. Esse processo pode ser reconstruído e, mais ainda, interpretado de diferentes maneiras, mas ninguém se arrisca a negar que a história do pensamento ocidental europeu, em sua formação, atravessa certas fases sucessivas, dentro das quais dominam determinados paradigmas filosóficos (como a mudança de paradigma revelada por Kuhn no conhecimento científico)[5]. Essas fases, por mais que as definamos, são sistemas conectados que, como círculos na água, se espalham em torno de uma escola ou pessoa, se interseccionam e conflitam entre si, formando um certo padrão intelectual[6]. Esse padrão constitui a estrutura geral da história da filosofia como história da filosofia ocidental europeia. E se há debates infindáveis sobre os parâmetros desse padrão, ninguém questiona o próprio fato da existência dessa história. A filosofia ocidental europeia é um fenômeno histórico, no qual distinguimos claramente um Começo (pré-socrático, Antiguidade) e marcamos épocas posteriores, de Platão e Aristóteles até a Idade Média, a Modernidade e assim por diante, até a atual era pós-moderna. A filosofia russa, em sua possibilidade de ser, lida com um processo histórico, uma estrutura histórica que tem raízes profundas e contornos bem definidos. Os ramos de uma única árvore crescem continuamente, mas a estrutura da árvore do conhecimento filosófico permanece geralmente constante. Portanto, a filosofia russa não pode se limitar ao contato (ressonância/dissonância) com algum momento da formação da filosofia ocidental europeia, com uma escola particular, com um ramo, direção ou trajetória específica do pensamento. Para ser, a filosofia russa precisa relacionar-se com toda a história da filosofia como um todo e, ao lidar com qualquer momento dela, comparar-se com um todo dinâmico e abertamente em desenvolvimento. Torna-se óbvio que, nesse caso, a filosofia ocidental europeia deve ser apresentada à sociedade russa na forma da história da filosofia, ou seja, uma ou outra teoria esquemática que generalize o processo filosófico ocidental europeu. Isso não apenas facilitará o conhecimento dos russos sobre seus momentos individuais, mas, em geral, tornará possível o contato com o particular por meio de um esquema compacto do todo, dando um horizonte de sentido aos fragmentos. Essa circunstância explica o fato da extraordinária popularidade na Rússia de Hegel, criador de um dos algoritmos mais abrangentes e panorâmicos da história da filosofia. Além disso, talvez tenha sido justamente a abordagem hegeliana absorvida por Marx que serviu de base para a ampla popularidade do marxismo na Rússia. Por meio de Marx e Hegel, os russos se familiarizaram de uma só vez com toda a filosofia ocidental europeia, revelada em sua estrutura no exemplo de um esquema dialético simples para compreensão. E a mesma razão está na base da subestimação de Kant e dos kantianos, que não propuseram um modelo histórico-filosófico compacto. Para a consciência russa, Kant permaneceu apenas um momento da filosofia. Hegel, por outro lado, afirmava que, embora representasse um momento do processo filosófico, encarnava nesse momento (especial, escatológico e teleológico) um sentido da história da filosofia como história universal. Essa observação é extremamente importante para entender a essência da filosofia russa. Quando os russos quiseram (ou querem) entrar no processo da filosofia, tiveram (ou terão) que entrar não na filosofia, mas na história da filosofia, e precisaram (ou precisarão) não apenas de seu momento (escola, conceito ou ideia específica), mas também de uma breve apresentação das fases anteriores do processo — e precisamente uma apresentação filosófica, conceitual dele. Somente após compreender todo o processo histórico-filosófico como um todo é possível participar dele. Não basta simplesmente saltar para o “bonde mágico” (Gumilev), é preciso entender qual rota seguir, onde ela começa e aonde leva. Portanto, para “saltar” para a filosofia russa, a história da filosofia é sempre necessária. Apenas aquele momento da filosofia ocidental europeia que contiver a fórmula dessa filosofia como um todo pode se tornar o momento no qual, de fato, a filosofia russa pode ser enxertada ou do qual pode partir (em qualquer direção). Assim, a possibilidade da filosofia russa está na filosofia ocidental europeia que é, ao mesmo tempo, um momento do desenvolvimento dessa filosofia e o relato do algoritmo (estrutura) de toda a história da filosofia em um formato conciso e breve. No século XIX, quando algo semelhante à “filosofia russa” surgiu, a própria possibilidade de sua existência foi a filosofia de Hegel, com seu subtipo, a filosofia de Karl Marx. Justamente o hegelianismo (e sua variedade, a filosofia marxista) pode ser considerado a base hermenêutica, o todo semântico, que serviu como ponto de referência para a “filosofia russa” em sua primeira aproximação. E se compreendermos isso, entenderemos por que o marxismo fascinou o pensamento filosófico russo por quase um século. É dessa maneira, e não o contrário: um sistema político totalitário não fez do marxismo o destino do pensamento russo no século XX, mas o marxismo, como um tipo de história da filosofia hegeliana, predeterminou o sistema político totalitário do período soviético. A política é uma consequência da filosofia; o inverso não é verdadeiro.
Heidegger como uma chance para a filosofia russa
A última observação explica bem a retrospectiva — por que Hegel e por que Marx —, mas não nos leva a uma problemática mais ampla: qual é a possibilidade da filosofia russa? Foi assim, e o fato de ter sido exatamente assim é extremamente importante. Mas, ao mesmo tempo, isso está vinculado a um momento histórico da própria filosofia ocidental europeia, ao período em que ocorreu o contato entre os russos e ela. Isso predeterminou a trajetória de um certo período, revelando regularidades importantes. As regularidades permaneceram (a possibilidade da filosofia russa está na história da filosofia ocidental europeia, agora e sempre), mas o momento mudou. Portanto, para ampliar o horizonte do momento histórico para a regularidade histórica e, de fato (aqui e agora), descobrir essa regularidade, é necessário fazer uma nova pergunta. Enquanto os russos seguiram a história da filosofia marxista durante quase todo o século XX, terá surgido no Ocidente uma versão histórico-filosófica diferente que repensasse o legado hegeliano ou levasse em conta novos momentos? Só nesse caso, após compreender e superar o hegelianismo e o marxismo como uma versão esgotada da filosofia (não equivocada, mas simplesmente esgotada, no sentido das forças filosóficas vivificantes), poderíamos repetir o início da filosofia russa e provar sua possibilidade não em um momento histórico, mas em geral, como um fenômeno mais amplo. Não há dúvida de que houve muitos momentos novos na filosofia ocidental europeia no século XX: Wittgenstein, os estruturalistas, os fenomenologistas e os existencialistas. Mas tudo isso não diz nada à filosofia russa, caso ela queira fundamentar sua possibilidade em um sentido mais amplo do que o desenvolvimento de um dos ramos do pensamento do século XIX. Com nosso hegelianismo (marxismo), tudo está claro (será que está?). Mas como nos relacionamos com todo o resto? Não podemos dar uma resposta clara; após abandonar o marxismo, ficamos confusos, perdemos o fio, começamos a agarrar alguns pontos isolados na necessidade caótica de filosofar na ausência de boas razões para fazê-lo. Tentamos nos declarar como um momento no processo do qual, como se viu, não éramos participantes plenos. Tentamos escapar da questão da possibilidade da filosofia russa, fingimos que podemos prescindir da história da filosofia (ela realmente não é necessária para quem já faz parte dessa história). Mas nada resultou disso. Agora é óbvio: ao tentar filosofar, o russo contemporâneo parece um tolo. E quanto mais ágilmente imita aqueles que filosofam, mais tolo é. A identificação da nova história da filosofia é vital para os russos. Essa é a base para a possibilidade de nossa filosofia russa. Mas é aí que começam os problemas. À primeira vista, o século XX criou muitas histórias da filosofia. Escolha a sua. Eu não quero. Mas, olhando mais de perto, tudo se desfaz como pó: não houve histórias da filosofia, houve filosofias da história (Jaspers)[7] ou apenas momentos de análise epistemológica (Foucault).[8] Em seu contexto, tudo isso foi oportuno e significativo, mas não para nós. Para entrar no círculo hermenêutico, precisamos de uma pista; sem ela, ficamos fora desse círculo. Alguém entre os filósofos ocidentais europeus precisa nos dizer a senha, abrir o código, nos dar a chave. Isso não está na superfície. Mas se quisermos, apesar de tudo, fundamentar a possibilidade da filosofia russa, teremos que buscar exatamente isso: a história da filosofia, destacada pelo pensador ontologicamente representativo do século XX, alguém fundamental e "próprio" para o Ocidente. Minha hipótese é que Martin Heidegger, que criou um conceito adequado a todo o processo histórico-filosófico da cultura ocidental, é esse pensador. Se essa hipótese se confirmar, é nele que teremos de descobrir e fundamentar a possibilidade da filosofia russa, não em um horizonte retrospectivo, mas perspectivo. Se Heidegger se tornar para nós o que Hegel e Marx se tornaram no século XIX, então obteremos legitimidade para a segunda abordagem russa da filosofia.
O Heidegger intermediário como elemento essencial na reconstrução da história da filosofia
Surge a questão: Heidegger tem uma história da filosofia? Será que seu ensino não é apenas um momento no processo da filosofia europeia ocidental, sem apresentar em si mesmo uma exposição sucinta da estrutura desse processo?
Essa pergunta só pode surgir em conexão com uma circunstância histórico-filosófica sutil. No legado de Heidegger, a atenção dos especialistas geralmente se concentra no período inicial de sua obra filosófica, na fenomenologia e no husserlianismo[9], que culminam em sua famosa Ser e Tempo[10]. Um círculo restrito de estudiosos de Heidegger também investigou o Heidegger tardio, interpretando esse período principalmente como um afastamento da filosofia clássica e uma aproximação com a mitologia, o "misticismo" e a hermenêutica poética. Já o período intermediário de sua obra, compreendendo os anos 1930 e a primeira metade dos anos 1940, frequentemente escapou ao olhar dos pesquisadores. Esse período costumava ser interpretado como uma transição da analítica do Dasein para a hermenêutica tardia[11]. Sob essa perspectiva, é realmente difícil encontrar uma história da filosofia plena em Heidegger, e suas ideias parecem apenas um momento filosófico. Mas se preenchermos essa lacuna, considerando os esboços e textos dessa época publicados apenas nas últimas décadas, após a morte do filósofo — como Contribuições à Filosofia, História do Ser, Sobre o Começo, etc. —, o mosaico de seus pensamentos se organiza em uma unidade, e o que buscávamos se revela: a história da filosofia de Heidegger, tão consistente e abrangente quanto a de Hegel[12]. Como em toda esquematização, há exageros e generalizações, mas isso é próprio de qualquer esquema reducionista. Resta-nos apenas uma preocupação: Heidegger conseguiu refletir em sua obra uma holografia do destino europeu ocidental?
Se compreendermos holisticamente os três períodos da filosofia de Heidegger, teremos não apenas um quadro completo de sua filosofia, mas também de sua concepção da história da filosofia — o que, para nós, é muito mais importante. Essa história da filosofia reivindica a palavra decisiva sobre a estrutura de todo o processo: o próprio Heidegger (assim como Hegel) compreende sua filosofia como uma "escatologia metafísica" (como ele escreve em Caminhos de Floresta)[13], como a expressão da forma em direção à qual o processo europeu ocidental caminhava.
A filosofia do entardecer
Para Heidegger, a história do Ocidente é a história da filosofia ocidental. Ou seja, a filosofia expressa em si o conteúdo profundo de todo o processo histórico. Ao mesmo tempo, Heidegger — assim como Husserl e todos os pensadores europeus ocidentais — identifica o destino do Ocidente (Zapad) com o destino universal da humanidade, que, em seu ciclo vital, está fadada a avançar em direção ao ocaso (Zakat), ao "pôr-se" (za-pad) de seu sol espiritual. O Ocidente é o lugar do ocaso, onde o sol "cai", adormece. "Ocidente", em alemão, é Abendland — "a terra do entardecer". O entardecer é, em certo sentido, o éschaton e o télos do ciclo diário. Estejamos em qualquer parte do dia — manhã ou tarde —, mais cedo ou mais tarde nos depararemos com o horizonte do entardecer, do Ocidente, do ocaso. A filosofia europeia ocidental é universal no sentido de que tudo, mais cedo ou mais tarde, chega ao seu declínio (Zakat)[14]. Portanto, quem pensa sobre o fim, sobre o entardecer, sobre o crepúsculo do ser, não pensa apenas sobre si mesmo, mas sobre todos aqueles que, mais cedo ou mais tarde, estão destinados a chegar a esse ponto.
Assim, para Heidegger, a homologia é clara: a história mundial se reduz à história da cultura e da civilização ocidental; e a história da cultura e da civilização ocidental se reduz à história da filosofia ocidental. Consequentemente, a história mundial se reduz à história da filosofia ocidental. Portanto, a estrutura da filosofia ocidental como processo é uma expressão concentrada do "destino do ser" (Seynsgeschichte)[15].
Essa lógica do finalismo histórico (que tipicamente repete o padrão hegeliano de pensamento, embora em um nível diferente — existencial, e não conceitual) predetermina mais uma homologia: o teleologismo da própria história da filosofia, que avança em direção ao éschaton. Sendo uma filosofia do entardecer, por definição, essa história culmina no ponto da meia-noite, que é o objetivo e o limite para o qual todo o processo se dirige. Heidegger nos conduz à ideia de que o ponto final da filosofia europeia ocidental é o mais importante de todo o processo de seu desdobramento e, portanto, pode ser tomado como o momento principal de seu conteúdo.
Desse modo, a cadeia homológica recebe seu último elemento: a história da humanidade se reduz à história da humanidade europeia ocidental, que, por sua vez, se reduz à história da filosofia europeia ocidental e, finalmente, ao ponto final dessa filosofia.
Mas é justamente esse esquema que é necessário para a atualização da filosofia russa. Se confiarmos em Heidegger, obteremos exatamente o que precisamos como pré-condição para um pensamento filosófico vivo. Não teremos apenas um momento da filosofia ocidental, mas o algoritmo dessa filosofia — e próximo de seu fim, o que, nessa interpretação, significa a introdução ao que há de mais significativo nela; afinal, trata-se da filosofia do ocaso (zakat), em que o elemento mais importante é a noite e sua estrutura. Heidegger, nesse caso, torna-se a possibilidade buscada pela filosofia russa, permitindo-nos relacionar-nos com seu todo esquematicamente descrito.
Heidegger, o holograma e o círculo hermenêutico
A reconstrução da história da filosofia de Heidegger exige complementar os períodos mais ou menos conhecidos e explorados de sua obra com uma compreensão do significado do período intermediário, quando seu pensamento (conforme a famosa Carta sobre o Humanismo, dirigida ao seu correspondente e amigo francês Jean Beaufret) estava voltado principalmente para o problema do Ereignis[16].
O fato de Heidegger ser o maior representante da tradição europeia ocidental não é contestado por ninguém, independentemente da atitude que se tenha em relação a ele. Já a compreensão de que ele traçou um quadro claro da história da tradição filosófica europeia ocidental — seu sentido e seu destino — é muito menos difundida. No entanto, o contato com todos os três períodos de sua obra e a reconstrução correta da estrutura de seu pensamento filosófico nos permitem apresentar a concepção heideggeriana da história da filosofia em toda a sua univocidade. O que é decisivo para nós não é saber se essa imagem histórico-filosófica é justa ou problemática, mas sim constatar que ela existe, que está descrita de forma sistemática e estrutural, o que significa que pode ser utilizada como um aparato filosófico pleno, como metodologia e como holograma.
Depois de esclarecer a estrutura da concepção heideggeriana da história da filosofia e distinguir suas fases e estágios a partir da perspectiva do próprio filósofo, nós — como russos, olhando a partir da perspectiva russa (o que significa a partir do indeterminado) — estaremos livres para tratá-la de modo diferente, seja de forma crítica ou acrítica. No primeiro caso, tendo esclarecido a estrutura dessa história da filosofia, decidimos não confiar nela; no segundo, optamos por confiar e tomá-la como algo confiável.
Aqui surge a questão da hermenêutica e do problema do "círculo hermenêutico", que preocupava Dilthey e Gadamer. A compreensão só é possível quando correlacionamos o particular com o geral. Mas uma melhor compreensão do geral afeta (e modifica) a compreensão do particular, assim como o entendimento do particular transforma a visão do geral. No processo de apreensão, duas incógnitas se esclarecem, corrigindo-se mutuamente, mas que nunca podem ser totalmente determinadas por si mesmas, sem correlação com a outra. Por isso, no processo de conhecimento, surgem sempre pressuposições tanto do todo quanto do relativamente particular, que são esclarecidas (às vezes refutadas e substituídas por outras) no decorrer da própria prática hermenêutica.
No que diz respeito a Heidegger e à interpretação de sua filosofia, enfrentamos o mesmo problema hermenêutico. Para avaliar corretamente seu lugar no processo da filosofia europeia ocidental, somos obrigados a ter um esquema geral desse processo (a hipótese do todo e de sua estrutura). Mas temos de encontrar esse esquema em algum lugar. Podemos tomá-lo de Heidegger ou de outra fonte. No primeiro caso, podemos usar sua história da filosofia (que, como vimos, existe, especialmente se examinarmos cuidadosamente as teses do período intermediário de sua obra, nos anos 1930-1940) como um todo, a partir do qual consideraremos toda a estrutura da filosofia europeia ocidental e o lugar de Heidegger nela. É claro que, seguindo a lógica do processo hermenêutico, poderemos, em paralelo, especificar tanto o sentido da história da filosofia como um todo quanto o lugar do nosso filósofo nela — o que pode levar a resultados diferentes das fórmulas prontas propostas pelo próprio Heidegger. Mas o esquema inicial do círculo hermenêutico será justamente esse. Podemos dizer que, nesse caso, confiamos em Heidegger e nos movemos ao longo do eixo hermenêutico por ele proposto. Para onde esse movimento nos levará, obviamente, é difícil dizer.
A segunda opção é que não confiemos na história da filosofia de Heidegger (por exemplo, não reconhecendo sua legitimidade ou, como acontece mais frequentemente, sem nos esforçarmos para estudá-la e compreendê-la de forma consistente) e, portanto, devamos adotar como "todo" uma versão diferente da história da filosofia. É aqui que começam as dificuldades.
O fato é que pouquíssimos autores se dedicaram à criação de uma história da filosofia coerente no Ocidente, e entre as figuras de primeira grandeza, apenas alguns podem ser lembrados. A primeira iniciativa desse tipo — e em grande parte insuperável até hoje — foi a filosofia de Aristóteles. No século XIX, Hegel estabeleceu a história da filosofia como a mais alta manifestação da própria filosofia, criando os pressupostos para uma ampla gama de teorias filosóficas, em particular o marxismo, que foi extremamente popular nos séculos XIX e XX. Além disso, para essas e outras histórias da filosofia impressionantes, em maior ou menor grau, vigorava o princípio da holografia: essas filosofias eram pensadas como uma síntese generalizadora do processo histórico-filosófico. A história da filosofia e a filosofia de Aristóteles situavam-se no início da história da filosofia, abrindo suas primeiras páginas e resumindo o "prefácio" (o pensamento pré-socrático). Hegel pensava a si mesmo como um pensador que concluía o processo histórico-filosófico, encontrando em seus escritos seu fim teleológico (em conformidade com a doutrina da Ideia Absoluta e das fases de seu desdobramento dialético). Outras tentativas "não holográficas" de oferecer uma história da filosofia como um processo aberto foram, na maioria das vezes, representadas por modelos formalmente descritivos, e não semanticamente estruturados (Johann Franz Buddeus (1667-1729), Johann Jakob Brucker (1696-1770) e assim por diante, até Bertrand Russell (1872-1970)). Nelas, a história da filosofia era concebida não como um todo, mas como uma sequência de momentos. Ao mesmo tempo, a presença ou ausência da construção holográfica da história da filosofia não era crítica para os próprios filósofos europeus ocidentais, uma vez que eles naturalmente pertenciam a esse processo e estavam inseridos em uma cultura construída sobre bases filosóficas — o que obviamente predeterminava sua participação implícita naquilo que poderia não estar explicitamente formulado. Em outras palavras, uma história da filosofia aberta, puramente descritiva, ou mesmo a ausência de qualquer tipo de história da filosofia, não era um problema sério para os filósofos europeus ocidentais. Eles podiam muito bem viver sem ela.
A filosofia russa é algo completamente diferente. Ela sentiu uma necessidade urgente de um holograma sintetizador para interagir corretamente e se relacionar com cada um dos momentos reais da filosofia ocidental (ou seja, os ensinamentos de um ou outro filósofo). Sem uma imagem do "todo", ela não poderia ser o que deveria ser.
Portanto, enfrentamos um sério problema no contexto cultural russo: se recusarmos a confiar na história da filosofia de Heidegger, teremos de situar o próprio filósofo em outro contexto histórico-filosófico, com base na correlação com outro "todo". E aqui há pouca escolha: dificilmente seria correto interpretar Heidegger com base na história da filosofia de Aristóteles (o momento iluminador do início da tradição filosófica) ou nos esquemas hegeliano ou marxista do "todo" buscado. Leituras marxistas de Heidegger na escola filosófica soviética não produziram nenhum resultado além de equívocos, e as correntes ocidentais do marxismo e do neomarxismo, que absorveram, além de Marx e da dialética hegeliana, muitos outros elementos filosóficos de outros contextos (kantismo, fenomenologia, freudismo, existencialismo, estruturalismo, filosofia da linguagem, nietzschianismo etc.), não conseguiram integrar essas áreas em uma história da filosofia geral e atualizada — ou não se propuseram a essa tarefa. Nessa situação, a projeção do hegelianismo na interpretação de Heidegger seria simplesmente um anacronismo, especialmente porque o hegelianismo não sobreviveu no século XX em sua forma pura, e suas diversas interpretações (incluindo as críticas) se transformaram em um espectro de sistemas filosóficos conflitantes que obscureceram a clareza e a convicção originais do próprio Hegel.
A questão de confiar ou não na história da filosofia de Heidegger é, portanto, aguda para aqueles que pensam sobre a possibilidade da filosofia russa — e a escolha por "não confiar" parece ainda mais difícil e problemática do que "confiar". Para explicar isso, é necessário enfatizar mais uma vez que esse problema não surge para a filosofia ocidental. A história da filosofia de Heidegger pode ser levada em conta ou ignorada com igual sucesso: a participação orgânica na história da filosofia é garantida pelo "enraizamento" do pensador ocidental no ambiente cultural, e para isso nenhum holograma especial é necessário.
Essa lacuna de contexto cultural, no entanto, pode dar aos russos interessados em filosofia a ilusão de que, por meio da imitação direta dos filósofos ocidentais, é possível prescindir do "todo". Aí reside o erro: para os europeus, é possível; para nós, não. Se quisermos nos relacionar com o círculo hermenêutico da filosofia ocidental, não podemos prescindir da imagem do "todo" — só depois disso ganhamos a possibilidade de um filosofar pleno.
Minha tese é a seguinte. Nos estágios anteriores dos séculos XIX e XX, a possibilidade da filosofia russa era justificada pela referência à história da filosofia hegeliana, sobre a qual construímos o processo do filosofar russo por quase duzentos anos. Vista desse ângulo, o marxismo do período soviético se encaixa perfeitamente — afinal, o marxismo também representava uma versão holográfica, teleológica e escatológica da história da filosofia. Mas hoje, para nós, a legitimidade e a construtividade da história da filosofia hegeliano-marxista se esgotaram. Tiramos dela o máximo possível e esgotamos esse paradigma. Portanto, devemos novamente — agora com o apoio de novas construções histórico-filosóficas — fundamentar a possibilidade da filosofia russa. E propõe-se tomar como tal holograma histórico-filosófico, como base para a entrada no círculo hermenêutico, a filosofia de Martin Heidegger. Para isso, devemos deixar de lado nossa desconfiança e, ao contrário, tratar a filosofia de Heidegger — pelo menos em um primeiro momento — com confiança e abertura, com uma espécie de empatia gnoseológica. Se tivermos sucesso, obteremos, em uma nova era histórica, um terreno para que a filosofia russa exista.
Três estágios da obra filosófica de Heidegger
Como já observado, é comum nos estudos heideggerianos dividir seu ciclo filosófico em um período inicial (estudos fenomenológicos e a escrita de Ser e Tempo), um período intermediário (pouco conhecido, marcado pela reflexão sobre o Ereignis e incluindo as séries de conferências sobre Nietzsche, os Holzwege e os ciclos de palestras dos anos 1930, reunidos postumamente em coletâneas como Contribuições à Filosofia, Do Início, História do Ser, etc.) e um período tardio (ligado à filosofia da linguagem e à formalização da descrição do Geviert).
Em todas essas etapas, elementos isolados da história da filosofia heideggeriana estão dispersos em diversas obras. Se buscarmos sua identificação, consolidação e descrição sistemática, os encontraremos nos trabalhos mais antigos, em Ser e Tempo e no período hermenêutico. Mas eles são expostos de modo especialmente explícito no período intermediário. Contribuições à Filosofia e História do Ser, em geral, são resumos de palestras organizados como uma história da filosofia, e Introdução à Metafísica esclarece a estrutura dessa história da filosofia e sua base ontológica. Dessa perspectiva, a famosa teoria heideggeriana do Dasein se revelará como o ponto culminante do processo histórico-filosófico, para o qual esse processo converge teleologicamente.
Assim, as obras do período intermediário de Heidegger nos fornecem um quadro para esclarecer seu esquema histórico-filosófico, sobre o qual se sobrepõem teorias de outros períodos de sua obra.
O esquema heideggeriano da história da filosofia
A reconstrução heideggeriana da história da filosofia pode ser esquematizada da seguinte forma. O nascimento da filosofia no pensamento pré-socrático é a grande tríade de Anaximandro, Heráclito e Parmênides, que constitui o primeiro Início ou o grande Início. Aqui, a filosofia surge da pré-filosofia ou não-filosofia, do pensamento. Seu precursor, alguns séculos antes, foi o gênio poético de Homero.
Segundo Heidegger, o primeiro Início da filosofia é caracterizado pela resolução do problema ontológico, a questão do que é o ser e como ele deve ser compreendido. Esse problema adquire uma forma clara pela primeira vez na doutrina de Heráclito sobre physis e logos. O ser, enquanto aquilo que faz com que o que é seja o que é, é concebido no grande Início como physis — ou seja, a "força da presença" que se abre, ascende e revela. Para Heidegger, nessa doutrina de Heráclito reside o triunfo radiante da filosofia e, ao mesmo tempo, o primeiro nascimento daquela tendência que — muito depois — levará a filosofia ao seu Fim. A identificação do "ser" com a physis é apenas uma solução parcialmente correta do problema ontológico. É claro, pensa Heidegger, o ser é physis, a força geradora do mundo, que traz as coisas e os entes à luz da presença, à abertura, fazendo com que o existente [sushcheye] seja existente, aquilo que é. Nesse sentido, o ser é um existente [bytiye i yest' sushcheye], toda a existência como um todo, ou seja, physis. Mas esse ponto de partida da filosofia — com toda a sua grandiosidade fundamental — já contém um certo erro: ao celebrar o ser como presença e como trazer-à-presença, como existente, a ontologia pré-socrática deixa de lado o outro lado do ser — aquele que leva o existente ao não-ser, à morte, aquele que aniquila, que reduz o existente ao nada. Nada se esconde por trás do ser, apreendido apenas como physis, desaparecendo nele. E Parmênides, em seu famoso poema, consolidará esse desaparecimento com a fórmula "o não-ser não é". Segundo Heidegger, o não-ser, o nada (Nichts) como o não (Nichten), de fato, é. E uma ontologia pura teria de colocar inicialmente esse "não" dentro da physis, vê-lo no ser como seu lado oposto, diferente dele e, ao mesmo tempo, idêntico a ele. Mas o pensamento grego seguiu outro caminho: concentrou-se no "ser" como physis, perdendo de vista o "nada" (por causa de sua nulidade).
Assim, já no grande Início, surgiu uma certa lacuna entre como a filosofia começou a tomar forma e como deveria ter tomado forma se o problema ontológico tivesse sido formulado adequadamente. A lacuna entre como foi historicamente e como deveria ter sido deu origem a dois pontos na estrutura da ontologia, através dos quais foi traçada uma linha reta que predeterminou todos os outros estágios da história da filosofia ocidental. Como resultado, obtivemos um raio com uma trajetória (uma linha) e uma orientação (um vetor direcional, indo de como se deveria ter entendido o ser para como não se deveria tê-lo entendido).
Já no primeiro Início, Heráclito e Parmênides formalizam a configuração fundamental de todo o processo histórico-filosófico. Esse processo é estruturado pelo paradigma principal: um "recuo progressivo do ser", uma "perda do ser", um "esquecimento do ser".
Logos e niilismo
A compensação pela perda da distinção do lado niilizante do ser no ser como "physis" foi o aparecimento do "logos". O "logos", que Heidegger interpreta etimologicamente como "colheita", "recolha", torna-se um topos prioritário, em que o nada que se perde na compreensão do ser como "physis" faz-se lembrar. Essa é a especificidade da filosofia: a introdução no jogo de um logos niilizante, colocado desta vez não no ser (como deveria ter sido), mas fora dele, no ponto condicional que mais tarde se tornará, com Aristóteles, o "hypokeimenon" e, na modernidade, o "sujeito" cartesiano.
Heidegger identifica o trabalho do logos no procedimento da "technê", ou no que mais tarde chamará de "Gestell". Se a existência do mundo passa a ser pensada como uma presença predominantemente positiva, então o nada se concentra cada vez mais no lado do conhecimento e do seu topos dual.
O conhecimento, como processo, é a raiz da "technê", na qual ocorre uma rígida cisão do ser em physis e logos, em cognoscível e cognoscente, o que leva, por sua vez, à colocação no centro justamente do cognoscente, do portador do logos, que desdobra seu poder niilizante sobre a esfera da physis, conquistando o ser e, no limite, reproduzindo o ser como um produto artificial. Nesse limite do desenvolvimento do princípio técnico, manifesta-se o triunfo do niilismo. O logos deveria estar dentro da physis, mas acabou fora, e isso se tornou o destino da filosofia ocidental europeia, o destino do Ocidente, assim como o sentido e o conteúdo do seu desdobramento.
O Fim do primeiro Começo
Se a principal tendência da filosofia ocidental europeia foi apenas esboçada em Heráclito e Parmênides, em Platão e Aristóteles seu caminho foi claramente fixado. Heidegger chama o platonismo e o aristotelismo de "Fim do primeiro Começo". Ainda é um pensamento filosófico absolutamente grego, respirando ontologia e ser, mas a possibilidade de interpretar o ser como algo aberto, a possibilidade de colocar o logos não fora da physis, mas dentro dela, é aqui retirada da pauta. A doutrina platônica das ideias fixa os pressupostos da teoria referencial da verdade, formulada em sua plenitude, que consiste na busca da correspondência entre o princípio especulativo (a ideia) e as coisas do mundo natural.
A realização dessa operação concerne à razão, ao logos.
O ser passa a ser pensado como ente, apenas como o ente supremo ou como o ente-em-totalidade. Além disso, não se trata mais apenas da dinâmica da força natural, que impele a coisa à presença, mas de uma imagem visual fixa e estática, um momento de "percepção intelectual luminosa" [svetovogo sozertsaniya]. Para Heidegger, esse é um passo fundamental e irreversível na diminuição do estatuto do ser, agora equiparado não simplesmente à physis, mas à ideia. Simetricamente a isso, o logos, por sua vez, dá um sério passo em direção ao niilismo e à relação técnica com o mundo; começa a dominar a metáfora do deus demiurgo, do trabalhador, do artesão que fabrica tecnicamente o mundo a partir de imagens-ideias fixas.
Em sua filosofia e história da filosofia, Aristóteles fixa o momento qualitativo do Fim do período pré-socrático da filosofia ocidental. É um fim em todos os sentidos: término (encerramento) e cumprimento, ou seja, a realização da plena maturidade, da perfeição, da completude daquilo que estava incorporado no pensamento dos pré-socráticos. A filosofia de Aristóteles é o holograma de toda a filosofia grega inicial. Ela sintetiza o período anterior e lança as bases para os estágios posteriores, o que vale não apenas para os estoicos, mas também para os períodos escolásticos posteriores da filosofia ocidental e, em grande medida, para a modernidade (afinal, Kant observou que o campo da lógica não avançou um único passo desde a filosofia de Aristóteles). Segundo Heidegger, Platão e Aristóteles marcam o momento da conclusão do Começo filosófico. Em seguida, vem o período médio, associado ao cristianismo e à escolástica e, no sentido mais amplo, chamado de "Idade Média". Do ponto de vista histórico-filosófico, esses séculos são chamados de "Médios" precisamente porque ocupam uma posição intermediária entre a filosofia da Antiguidade (a filosofia do primeiro Começo) e a filosofia da modernidade.
A Idade Média
Heidegger estudou a filosofia medieval com meticulosidade nos primeiros anos de seu ensino na Universidade de Freiburg; mais tarde, dedicou-lhe muito pouca atenção. Do seu ponto de vista, a fórmula de Nietzsche de que "o cristianismo é platonismo para as massas" é um axioma exaustivo para resumir o estado das coisas filosóficas na filosofia medieval. Para Heidegger, a escolástica cristã é o desenvolvimento do passo filosófico que Platão deu em princípio, colocando a ideia (a ideia suprema, a ideia do bem) no lugar do ser, removendo assim fundamentalmente o ser da esfera do pensamento filosófico e substituindo os problemas epistemológicos e ontológicos. A teologia continua a mesma tendência, colocando Deus no lugar do ser supremo, ou seja, permanecendo no mesmo paradigma platônico.
Para Heidegger, nada de fundamentalmente novo acontece na Idade Média. A filosofia segue o caminho predestinado pelos pré-socráticos, especialmente Platão e Aristóteles.
A Modernidade – Descartes
Mas um período verdadeiramente interessante para Heidegger é a modernidade. Ele a define como o "Começo do Fim" (simétrico ao modo como o platonismo foi, para ele, o Fim do primeiro Começo). A modernidade descongela o platonismo escolástico medieval e dá livre curso à força niilista do logos. No centro desse processo está Descartes, com sua construção dual de sujeito e objeto. O sujeito substitui o logos, o objeto substitui a physis. Ao mesmo tempo, Heidegger acredita que, nessa filosofia moderna, aproxima-se uma formulação mais direta do problema: a rejeição das ideias e o apelo ao pensamento lógico-racional diretamente como sujeito revelam a própria essência do problema filosófico estabelecido na era do Começo da filosofia. O racionalismo cartesiano, o empirismo inglês, Newton e todas as outras vertentes da filosofia moderna (de Spinoza e Leibniz a Kant) desenvolvem-se no campo de uma problematização mais aguda da ontologia, onde as coisas são chamadas pelos seus próprios nomes.
Assim, Descartes, com seu cogito, coloca abertamente a discussão sobre a ontologia no campo da epistemologia, tornando-a derivada do logos, da razão. Segundo Heidegger, esse é o começo da clara dominação da atitude técnica em relação ao mundo e ao homem; o homem se torna um técnico em relação à natureza-objeto, e o Gestell, antes velado, expõe seu poder histórico-filosófico. A própria filosofia torna-se cada vez mais uma ocupação técnica, uma técnica do pensamento, que se resume a métodos de cálculo e avaliação. Em outras palavras, na modernidade, o niilismo como essência da filosofia ocidental europeia revela-se em plenitude.
Hegel e Nietzsche
Segundo Heidegger, a modernidade termina na filosofia de Hegel, e Nietzsche é seu último acorde.
Hegel transforma sua história da filosofia em uma grandiosa e monumental criação do espírito europeu ocidental, concentrando em si o destino da Ideia Absoluta, encarnada durante o "fim da história" no espírito subjetivo da cultura europeia ocidental moderna. Hegel coloca seriamente a questão da relação entre ser e nada, ser e conhecimento, construindo sua dialética a partir disso. Em sua obra síntese, Hegel, segundo Heidegger, ainda permanece no âmbito da metafísica europeia ocidental, pensando por meio de "conceitos" e "categorias", ou seja, ainda está no espaço da teoria referencial da verdade e do topos filosófico comum europeu. A ontologia hegeliana, para Heidegger, é a máxima aproximação do que a verdadeira ontologia deveria ter sido (daí a enorme atenção de Hegel a Heráclito e aos pré-socráticos, que pensaram em um segmento simétrico da história da filosofia — mas apenas na era do Começo, enquanto o próprio Hegel pensa na era do Fim). No entanto, essa aproximação é fatalmente incorreta precisamente por pertencer à antiga metafísica, suas estruturas e métodos.
Nietzsche filosofa de maneira ainda mais honesta e franca. Ele proclama diretamente o "nihilismo europeu", a crise da metafísica ocidental e a "morte de Deus", expondo a "vontade de poder" como base do processo histórico e, consequentemente, da filosofia e da história da filosofia. Ao mesmo tempo, Heidegger acredita que Nietzsche, ao demolir a metafísica, não deu um único passo além de seus limites, mas tornou-se justamente o último pensador metafísico da tradição europeia ocidental. O "super-homem" e a "vontade de poder" nietzschianos, segundo Heidegger, não indicam de forma alguma um novo horizonte do pensamento, mas apenas a absolutização do caráter niilista do logos e a mais alta concentração do Gestell.
Em outras palavras, Nietzsche não só não é uma alternativa, mas representa um verdadeiro e consumado Fim, o Fim da filosofia europeia ocidental e, consequentemente, o fim da própria filosofia.
Assim, com Hegel e Nietzsche, a filosofia europeia ocidental percorre um ciclo completo: desde o primeiro (grande) Começo, passando pelo período intermediário (medieval, em sentido amplo), até o Começo do Fim em Descartes e o Fim completo e irreversível em Hegel e, especialmente, em Nietzsche. Começando com uma definição um tanto imprecisa do ser como physis, e apenas como physis, a filosofia ocidental adentrou sua história (destino) fatalmente predeterminada, cujo único conteúdo foi a desontologização progressiva, a perda do ser, o crescimento do niilismo, da techne, do Gestell, da razão niilizante como expressão da vontade de poder. O ser declinou [ubyvalo] até ter declinado por completo.
Mas isso, segundo Heidegger, é o destino do Ocidente como a "Terra da Tarde" (Abendland). O declínio [Ubyvaniye] do ser é o lote do Ocidente e o sentido da história da filosofia como um fenômeno puramente ocidental. A desontologização, o ocultamento do ser e o advento da noite niilista não são um acidente, nem uma catástrofe, e muito menos um erro — é uma afirmação da geografia filosófica. A luz se apaga lá e então quando deve. E quando deve, a escuridão chega, a "Grande Meia-Noite".
Segundo essa reconstrução, a filosofia ocidental acabou. O tempo restante pode ser dedicado a compreender esse fim, descrevendo e interpretando o significado desse evento.
Mas Heidegger tem outro tema que predetermina a vanguarda de seu pensamento nos anos 1930 e na primeira metade dos anos 1940. É o pensamento sobre outro Começo ou sobre o Ereignis.
Outro Começo
No período intermediário de sua obra, Heidegger concentra sua atenção no conceito de “Ereignis” e no tema de um outro Começo que está diretamente ligado a ele. Ereignis é, segundo Heidegger, um outro Começo[17]. Mas isso não é simplesmente um “evento” (“evento” é a tradução literal de Ereignis), mas a possibilidade de um “evento”, uma “realização” que tem um significado filosófico fundamental.
O outro Começo é aquele Começo que não se iniciou no pensamento pré-socrático. É uma compreensão do ser que inclui o nada no ser como seu componente necessário; que, ao identificar o ser com a existência e a physis, enfatiza que essa identificação não esgota o ser, pois o ser é simultaneamente não existente, não-ser, nada, bem como aquilo que faz com que um ente não apenas exista, mas também não exista — ou seja, aquilo que aniquila. O ser no outro Começo deve (deveria) ser reconhecido tanto como aquilo que é, quanto como aquilo que não é, mas que, embora não seja um ente, ainda assim é (o não-ser é, apesar de Parmênides).
Toda a história da filosofia é um distanciamento da possibilidade do Ereignis, é primordialmente não-Ereignis, como se encarna na desontologização e no esquecimento do ser, no Gestell e na techné. Mas a interpretação heideggeriana negativa do processo histórico-filosófico como não-Ereignis traz em si uma indicação inversa do próprio Ereignis, desde que se decifre esse processo não como uma narrativa daquilo que ele é em si mesmo, mas daquilo que ele não é — e que essa não-manifestação é seu sentido mais elevado e primordial. A filosofia ocidental, entendida como um afastamento progressivo da verdade, seu ocultamento gradual, é uma forma paradoxal de encontrar a própria verdade por meio de sua negação e velamento dialéticos. Portanto, o Ereignis e o outro Começo devem ser buscados não em outro lugar, fora dos limites da filosofia europeia ocidental, mas nela mesma, em seu conteúdo interpretado de modo inverso. O próprio fato do distanciamento do ser no desenrolar da história da filosofia é uma indicação invertida da importância do ser e de como se deve pensá-lo.
Heidegger descreve o pensamento correto do ser no marco da existência “autêntica” (eigene) por meio da figura gráfica do Geviert, o quádruplo[18]. Nele, cruzam-se dois pares de opostos que representam a unidade ontológica: 1) o Céu (“mundo”, em algumas versões) e 2) a Terra, 3) os mortais (homens) e 4) os deuses (imortais). Essa imagem, emprestada da poesia de Hölderlin — e que remonta, aliás, a Platão, onde na inimizade heraclítica convergem entre si os quatro domínios mundiais do ser — descreve como se deve entender o ser no outro Começo.
O outro Começo, segundo Heidegger, deve nascer diretamente do Fim da filosofia, desde que esse fim seja corretamente decifrado e reconhecido. Nesse ponto, Heidegger cita versos de Hölderlin: “Onde cresce o perigo, cresce também o que salva”[19]. Para transitar para o outro Começo, não é preciso dar um passo para o lado, nem muitos passos para trás, mas um passo à frente. No entanto, esse é um passo muito difícil, no qual o próprio niilismo, a perda do ser na filosofia europeia ocidental, a própria techné e o próprio Gestell se revelarão como o desvelamento da verdade do Seyn-ser por meio de seu auto-ocultamento. Sob essa perspectiva, a filosofia ocidental, que é, em primeira instância, uma crise progressiva e uma queda no crepúsculo, revelar-se-á como um caminho para a salvação: quem primeiro chegar ao fundo do abismo poderá ser o primeiro a dele se impulsionar e começar a ascender.
Quem sois vós, senhor Heidegger?
O próprio Heidegger se perguntou repetidamente: quem é Hölderlin no contexto da filosofia moderna? Quem é o Anjo de Rilke?[20] Quem é Zaratustra de Nietzsche?[21] Na mesma linha, podemos nos perguntar: quem é Martin Heidegger em seu próprio quadro histórico-filosófico? Do que foi dito acima sobre a estrutura da história da filosofia de Heidegger, a conclusão é quase inequívoca: Heidegger se considerava o filósofo de outro Início; o arauto da possibilidade do Ereignis; uma figura que decifrou a lógica da história da filosofia europeia ocidental e abriu, através de sua interpretação especial, o espaço para ingressar em uma nova compreensão do problema do ser.
Em sua própria história da filosofia, Heidegger vê um momento-chave dual. Ele consiste em estabelecer o esgotamento do processo histórico-filosófico ao testemunhar o avanço do ponto da Grande Meia-Noite, por um lado, e, por outro, em abrir o horizonte de outro Início, ou seja, a possibilidade de filosofar de modo diferente do que a filosofia fez antes, mas levando em conta a experiência dramática e catastrófica que está impressa na história desta filosofia.
Por um lado, Heidegger cumpre o papel do “médico dos mortos”, introduzido por Dumas nas últimas páginas de O Conde de Monte Cristo: ele escreve um atestado da morte indubitável que ocorreu (a filosofia europeia ocidental). Por outro lado, ele abre a possibilidade de espiar – através do Geviert e da perspectiva de outro Início – para além do horizonte do niilismo racionalista e técnico para se aproximar intimamente de uma filosofia diferente.
Em outras palavras, na filosofia europeia ocidental Martin Heidegger é um ponto de referência em todas as direções: para o passado, para o futuro e até mesmo para o lado. Pode-se dizer que Heidegger, em última instância, pensa a si mesmo como Dasein, cuja presença ele primeiro revelou e fundamentou, e depois compreendeu fundamentalmente durante o desdobramento de sua filosofia.
Se Hölderlin, segundo Heidegger, foi um arauto poético de outro Início (assim como Homero foi um arauto poético do primeiro Início), o próprio Heidegger se tornou o ponto de partida daquele pensamento que explicitamente (e não apenas explicitamente) põe um fim à filosofia europeia ocidental e a lança na boca de um vulcão.
Entscheidung
Heidegger como um personagem filosófico em sua própria (eigene) história da filosofia é um convite incorporado à execução de uma decisão (Entscheidung).[22] Heidegger polemizou sobre a Entscheidung com Carl Schmitt, que construiu sua filosofia do direito (Entscheidungslehre) sobre o princípio da decisão (decisio). Heidegger repreende Schmitt por ele diminuir, reduzir a significância da decisão, reduzindo-a a uma escolha de orientação em questões específicas de tipo político. Segundo Heidegger, Entscheidung é algo muito mais fundamental e meta-político. É uma escolha que é feita diante do momento final na história da filosofia: a escolha entre “avançar em direção a outro Início” e “perecer” nos labirintos infinitos do adiamento do último momento histórico-filosófico, no “ainda-não”, que não é nada fundamentalmente novo, mas busca estender ao infinito a lacuna entre o fim já concluído da filosofia (o fim da história da filosofia, em Hegel e Nietzsche) e a conscientização final e irreversível desse fim. A decisão é a escolha entre realizar o que aconteceu e se recusar a tal realização.
Nos últimos anos de sua vida, Heidegger inclinou-se a concluir que o Ocidente decidiu ignorar o fim da filosofia e comprometeu-se com o “fim infinitamente terminante”.
Nos anos 1930 e 1940, uma Entscheidung foi tomada na forma da rejeição da Europa a duas versões da Machenschaft,[23] as encarnações finais da techne no triunfo da filosofia da máquina da sociedade maquínica (americana), que Heidegger chamou de “planetär-Idiotismus” [idiotia planetária], e a soviética, marxista. Tendo perdido a batalha pela Europa como uma decisão diferente (em comparação com os EUA e a URSS como duas formas das encarnações últimas da metafísica europeia ocidental), o Ocidente tomou uma decisão pelo nada, pela rejeição do Ereignis.
Decisão e filosofia russa
Mais uma vez retornamos ao nosso problema, a possibilidade da filosofia russa.
Se nos relacionarmos com Heidegger com confiança e tomarmos sua filosofia como a história da filosofia que nos fornece um modelo do todo no círculo da hermenêutica filosófica, podemos delinear dois caminhos para a formação da filosofia russa em novas circunstâncias, quando a legitimidade da versão hegeliana (e marxista) se esgotou.
Primeiro: aceitar a reconstrução de Heidegger, e também o papel do próprio Heidegger como o elaborador do discurso fúnebre para a filosofia europeia ocidental. Então teremos o direito de estudá-la biograficamente ou, no caso de um grau extremo de desconfiança, planos anatomopatológicos (estudaremos o morto examinando como e por que ele morreu e como estava morrendo). Se, ao mesmo tempo, tivermos dúvidas sobre as circunstâncias da morte, poderemos desenterrar o cadáver e reexaminá-lo. Em qualquer caso, a filosofia russa, construída sobre tal base, será capaz de se tornar autêntica; entenderemos o que estamos explorando e obteremos uma ideia correta do significado e da significância do que estamos estudando. Este contato consciente com o nada, expresso no momento contemporâneo da história da filosofia, será o garantidor da autenticidade de nosso pensamento filosófico e a base da escala interpretacional, com base na qual perceberemos e compreenderemos o que chega à nossa atenção.
No segundo caso, as perspectivas são mais promissoras: ao adotar Heidegger, seremos capazes de apresentar nossas reivindicações e ambições para a participação em outro Início. Embora o simples entusiasmo não seja suficiente para isso; teremos que nos dar ao trabalho de nos imergir nas sutilezas e nuances da história da filosofia ocidental, pois outro Início não pode ocorrer (acontecer, abrir-se) sem um rastreamento escrupuloso e cuidadoso de todo o processo de desontologização que se originou no contexto do primeiro Início. Em outras palavras, dificilmente se pode esperar outro Início sem a participação no destino do primeiro. Para que nos seja concedida a participação em outro Início, precisamos viver e esgotar o destino do niilismo europeu ocidental (e para isso temos alguma base histórica na forma do período soviético e da leitura russa da filosofia marxista). Em qualquer caso, para obter um mandato para participar de tal decisão, devemos estar não fora, mas dentro da filosofia europeia ocidental: curso extremo de entrada no qual, no entanto, nos é garantido se a legitimidade da reconstrução histórico-filosófica de Martin Heidegger for reconhecida.
O fato de os russos não estarem tão longe no caminho além da borda do Ocidente, até o ponto da Grande Meia-Noite, não deve nos enganar. Isso não é um motivo para evitar a influência deste ponto escatológico final; se não hoje, então um pouco mais tarde, mas estaremos lá. O fato de sermos “ainda-não”, “noch nicht”, não pode nos acalmar ou inspirar esperança vazia: o fundo do abismo é o que nos dará a possibilidade de receber uma parte em um legado diferente, em outro Início. “Já nele”, não “ainda não nele”: tal é a terrível aposta no processo histórico-filosófico.
Desconstrução Fenomenológica
Assim como nos séculos XIX e XX, operamos com o modelo hegeliano-marxista da reconstrução do processo histórico-filosófico para identificar o conteúdo e o significado de qualquer fenômeno filosófico, escola, autor ou teoria, hoje, ao aceitar a legitimidade e a história da filosofia de Heidegger, seremos capazes de classificar e interpretar com bastante precisão e univocidade qualquer fato na história da filosofia através da operação de “destruição fenomenológica”. Derrida adotou esta tese heideggeriana de Ser e Tempo em seu famoso método de “desconstrução” (anteriormente usado por Lacan)... Derrida está falando sobre a contextualização de uma declaração no ambiente semântico original, exigindo uma pesquisa cuidadosa. Isto é uma consequência da aplicação das regras da linguística estrutural e da abordagem conotativa (não obstante a denotativa) na análise de conteúdo do discurso filosófico. A versão original de Heidegger, que serviu de base para a “desconstrução”, apresenta um método ainda mais claro: colocar este ou aquele discurso filosófico no quadro geral do “todo” do processo histórico-filosófico, compreendido como um movimento gradual ao longo do caminho da desontologização em direção ao niilismo total. O lugar onde esta ou aquela declaração ou teoria filosófica está localizada nesta trajetória predetermina seu significado hermenêutico.
Uma vez que aceitemos a história da filosofia de Heidegger, os fatos filosóficos e as constelações de fatos farão sentido para nós.
Heidegger e a segunda tentativa dos russos de entrar na filosofia
A segunda tentativa dos russos de entrar na filosofia está diretamente conectada com Martin Heidegger. Sem uma história da filosofia – distinta, abrangente e teleológica – os russos não podem penetrar o círculo hermenêutico da filosofia ocidental. Claro, resta uma dúvida: devemos, em geral, penetrar lá? Além do mais, a declaração do niilismo crescente do processo de filosofar europeu ocidental dificilmente serve para dissipar essa dúvida. Mas, no entanto, em um nível puramente teórico, se não quisermos permanecer ignorantes eternos no processo filosófico, tomando uma coisa por outra e não pelo que realmente é, estamos simplesmente fadados a aceitar uma das histórias da filosofia ocidental na fé. E a escolha, como vimos, é pequena aqui. A maioria das construções que são conhecidas como “história da filosofia” não é de forma alguma o que precisamos: elas descrevem o processo formal do fluxo de teorias e conceitos filosóficos, cuja lógica implícita é inteligível apenas para aqueles que participam desse processo de forma natural, devido ao pertencimento cultural a uma sociedade construída sobre fundamentos filosóficos. Os fundamentos de nossa sociedade e de nossa cultura são o que quiserem, mas não filosóficos, o que significa que não fecharemos essa lacuna com esforços pessoais. Precisamos de uma imagem do “todo”; só então podemos avaliar corretamente o particular. Mas para os representantes naturais da cultura europeia ocidental, tal imagem não é necessária. Eles a conhecem implicitamente e são parte dela. Somos outsiders neste caminho para o abismo, e sua trajetória, metas e causas estão longe de ser óbvias para nós.
Poderíamos considerar outras versões da história da filosofia, tão abrangentes e holográficas quanto a filosofia de Martin Heidegger. Mas nada vem à mente. Existem várias versões da filosofia da história (por exemplo, a de Jaspers),[24] mas isso é completamente diferente. A história da filosofia não é uma filosofia da história. Se tais histórias da filosofia do século XX forem descobertas e forem suficientemente substantivas, então será possível pensar sobre outras possibilidades da filosofia russa; mais precisamente, sobre outra possibilidade da filosofia russa. À primeira vista, Heidegger é a opção mais ideal para nós, a mais lógica e estruturalmente próxima para nos dar um impulso fundamental primário.
Notas
[1] Baudrillard J. 1994. Simulacra and Simulation. Ann Arbor: University of Michigan Press
[2] Sorokin P. 1962. Social and Cultural Dynamics. New York: Bedminster Press
[3] Spengler O. 1928. The Decline of the West. New York: A. A. Knopf
[4] Nota do tradutor: http://russian_federation.enacademic.com/504/Samobytnost
[5] Kuhn T. 1970. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: University of Chicago Press
[6] Dugin A.G. 2009. Post-philosophy. Moscow.
[7] Jaspers K. 1949. Vom Ursprung und Ziel der Geschichte. München & Zürich
[8] Foucault M. 1978. The History of Sexuality. New York: Pantheon Books
[9] Heidegger M. 1920. Phänomenologie der Anschauung und des Ausdrucks. Theorie der philosophischen Begriffsbildung. Frankfurt am Mein
[10] Heidegger M. 2010. Being and Time. Albany: State University of New York
[11] Heidegger M. 2000. Vorträge and Aufsätze. 1936-53. Gesamtausgabe 7. Frankfurt am Mein: Vittorio Klosterman
[12] Heidegger M. 2012. Contributions to Philosophy (of the Event). Bloomington, IN: Indiana University Press; Heidegger, Martin. 2015. The History of Beyng. Bloomington, IN: Indiana University Press.
[13] Heidegger, Martin. 2000. Über den Anfang. Gesamtausgabe 70. Frankfurt am Mein: Vittorio Klostermam; Heidegger M. 2002. Off The Beaten Track. Cambridge: Cambridge University Press
[14] Heidegger M. The History of Beyng
[15] Heidegger M. The History of Beyng
[16] Heidegger, M. 1978. “Letter on Humanism,” in Basic Writings: Nine Key Essays, plus the Introduction to Being and Time. London: Routledge
[17] Heidegger M. Contributions to Philosophy (of the Event)
[18] Heidegger M. Das Ding. Heidegger M. Vorträge und Aufsätze
[19] Heidegger M. Holzwege
[20] Heidegger M. Wozu Dichtern? Heidegger, Holzwege
[21] Heidegger M. We ist Niezsches Zaratustra? Heidegger M. Vorträge und Aufsätze
[22] Schmitt C. 1985. Political Theology: Four Chapters on the Concept of Sovereignty. Cambridge, Mass.: MIT Press
[23] Heidegger M. 2000. Introduction to Metaphysics. New Haven: Yale University Press
[24] Jaspers K. 1953. The Origin and Goal of History. New Haven: Yale University Press
.jpg)