13/07/2021

Yukio Mishima - Chamado às Armas: O Último Discurso de Mishima

por Yukio Mishima

(1970)


Nosso Tatenokai [1] recebeu treinamento do Jieitai [2]. Neste sentido, o Jieitai é como nosso pai ou irmão mais velho. Então como é que decidimos realizar esta ação aparentemente ingrata? No passado, fomos tratados quase como militares dentro do Jieitai e tivemos a garantia de um treinamento altruísta no curso dos últimos quatro anos para mim e nos últimos três anos para meus alunos. Amamos o Jieitai do fundo do nosso coração e foi aqui que sonhamos com o verdadeiro Japão, que não pode mais ser encontrado fora dos muros do Jieitai e aqui chegamos a conhecer "os lamentos do homem"[3] que eram impossíveis de encontrar no Japão do pós-guerra.

O suor que derramamos aqui foi puro, nada forçado, e caminhamos pelas encostas do Monte Fuji[4] como camaradas que compartilhavam o mesmo espírito patriótico. Eu nunca tive a menor dúvida sobre isso. Para nós, o Jieitai era nossa casa e o único lugar onde podíamos respirar um ar vivo e saudável no fracoJapão de hoje. O amor e as atenções que recebemos de nossos instrutores durante os exercícios foram sem limites. Entretanto, optamos por iniciar esta ação aqui e agora. Por quê? Mesmo correndo o risco de ser considerado um sofista, devo ressaltar que tudo isso se deve ao nosso amor pelo Jieitai.

O Japão do pós-guerra se esparramou na prosperidade econômica, esqueceu os fundamentos de uma nação, perdeu seu espírito nacional, esqueceu o essencial e se dispersou em bagatelas, engajou-se na improvisação e na hipocrisia, e perdeu sua alma. Isto é o que pudemos constatar.

A política tem apenas uma função, que é embelezar as contradições, garantir a autopreservação dos políticos, suas promoções e sua hipocrisia. Assuntos de importância vital e duradoura para o Japão são confiados a um certo país estrangeiro, a humilhação da derrota militar nunca foi verdadeiramente levada em conta ou superada. Hoje em dia, os próprios japoneses estão arruinando a história e as tradições do Japão.

Tudo isso, nós pudemos constatar com raiva. Pensamos que o Jieitai era o único lugar no Japão de hoje onde o verdadeiro Japão, o verdadeiro japonês e o espírito dos verdadeiros guerreiros ainda existe. Mas é claro que, legal e teoricamente, a própria existência do Jieitai é contrária à Constituição do pós-guerra e que a defesa nacional, como componente fundamental de uma nação, é confundida por interpretações jurídicas práticas que procuram definir o papel da força armada sem ao menos usar o nome "força armada"[5]. Esta é a razão fundamental para a decomposição da alma e o declínio da moral dos japoneses.

O exército que deveria estar mais preocupado com sua honra existiu, assim, até hoje, sob a sombra do engano mais maligno. O Jieitai continuou a carregar nas costas a cruz e o estigma de uma nação derrotada. O Jieitai não tem o status de um exército nacional do Japão, não é dotado do verdadeiro significado do exército japonês, pois foi originalmente concebido apenas como uma grande força policial cuja tarefa não estava sequer claramente definida.

Nos enfurecemos com este período excessivamente longo de letargia do Japão pós-guerra. Pensamos que o momento em que o Jieitai acordaria seria o momento em que o Japão adormecido não poderia deixar de acordar também. Pensamos que, para que os Jieitai se reconectassem com a origem dos fundamentos das forças armadas japonesas e se tornassem um verdadeiro exército nacional através da reforma constitucional, não haveria maior serviço de nossa parte como cidadãos japoneses do que dedicar nossos mais humildes esforços a este fim.

Há quatro anos, tornei este ideal meu e me uni ao Jieitai. No ano seguinte, eu formei o Tatenokai. A razão de ser dos Tatenokai está em nossa disposição e determinação de sacrificar nossas vidas para ajudar a restaurar, no Jieitai, a honrosa força armada japonesa.

Como a reforma constitucional é difícil sob o atual sistema parlamentar, a mobilização dos militares é a única oportunidade real. Aspiramos a ser a vanguarda da mobilização do Jieitai, sacrificando nossas vidas e nos tornando a pedra de toque para a reforma das forças armadas nacionais. O papel do exército é proteger a nação, o papel da polícia é proteger o regime.

Quando chegar o momento em que a força policial não puder proteger suficientemente o regime, será o momento de enviar os militares para esclarecer mais uma vez o que é a nação e quando os militares redescobrirão assim seu significado fundador. O significado original e fundador das forças armadas do Japão nada mais era que "proteção da história, cultura e tradições do Japão centradas na monarquia". A fim de cumprir nossa missão de retificar as bases distorcidas de nossa nação, apesar de nosso pequeno número, escolhemos seguir um treinamento duro e estamos preparados para o momento exato em que teríamos que nos oferecer.

O que aconteceu no dia 25 de outubro do ano passado? A manifestação de esquerda antes da visita do primeiro-ministro aos Estados Unidos, considerada a maior já organizada até então, terminou com pó molhado diante de uma força policial esmagadora. Ao ver esta cena em Shinjuku[6], suspirei e lamentei, percebendo que uma reforma constitucional jamais seria possível.

O que aconteceu naquele dia? O governo foi capaz de resistir à esquerda radical, impor o que parecia um toque de recolher aos cidadãos e estava confiante de que poderia manter a situação sob controle sem correr o risco de uma reforma constitucional. O apelo aos militares não foi necessário. Para manter o sistema político em pé, o governo estava certo de que poderia controlar a situação, pura e simplesmente, com a força policial, e assim permanecer confortavelmente acomodado no quadro constitucional habitual, para que pudesse continuar a fechar os olhos para a questão nacional fundamental.

Assim, o governo permitiu que as forças esquerdistas continuassem suas ações, apresentando-se como fiador e defensor da Constituição e reivindicando o crédito por ser o advogado da defesa dessa mesma Constituição, adotando a tática de "rejeitar o nome e preservar a substância". Sim, era disso que se tratava: o governo ganhou o que queria sem se preocupar com o nome. Este resultado foi muito positivo para os políticos, mas fatal para o Jieitai, algo que os políticos certamente sabiam. Aqui vimos hipocrisia, dissimulação, bajulação e engano se desdobrarem diante de nossos olhos, ainda pior do que em ocasiões anteriores.

Tenham tudo isso em mente.

Este dia 21 de outubro do ano passado foi, na verdade, um dia trágico para o Jieitai. Desde sua fundação, há vinte anos, ele esperava ansiosamente a reforma constitucional. Mas naquele dia suas esperanças foram frustradas, a reforma constitucional foi excluída da agenda política do governo e a possibilidade de ação não parlamentar foi abertamente posta de lado pelo Partido Liberal Democrático e pelo Partido Comunista, duas forças parlamentares. Pode-se dizer com segurança que, teoricamente, a partir deste dia, o Jieitai que, até aquele momento, era um filho ilegítimo da Constituição se tornou "o exército defensor da Constituição".

Pode haver um paradoxo maior do que este?

Observamos o Jieitai a cada instante após aquele dia. Pensávamos que estávamos em um sonho.  Se houvesse sequer um traço de espírito guerreiro no Jieitai, como ele poderia aceitar tudo isso sem tomar nenhuma atitude? Defender algo que nega a existência de si mesmo, que lógica contraditória e estranha! Como poderia o orgulho pessoal de um homem permitir que tal coisa acontecesse? Quando a última posição a ser defendida é violada, é um dever, para o verdadeiro homem e para o soldado, levantar-se e lutar com determinação.

Ouvimos incessantemente com ouvidos atentos, mas não ouvimos nenhuma voz no Jieitai que desafiasse a ordem desonrosa e humilhante de "defender a Constituição que nega a sua existência"! Neste ponto, o único meio que restava era estar consciente, confiar somente em si mesmo e agir para retificar a distorção teórica do Estado.

Estávamos tristes, nos sentimos furiosos e, finalmente, ficamos indignados. Vocês disseram que não podiam fazer nada, que não nos havia sido dada nenhuma missão a cumprir. Foi tão triste ver que, finalmente, o Japão não lhes havia confiado nenhuma missão. Também nos foi dito que o controle civil do exército era a natureza essencial da democracia.

Mas este controle pelo poder civil dos militares britânicos e americanos é apenas um controle financeiro. Não é, de forma alguma, como acontece com os militares japoneses, aos quais até mesmo o poder sobre o pessoal é remoto. No Japão, os militares são emasculados, manipulados por políticos pérfidos e caprichosos e explorados pelos interesses e estratégias dos partidos políticos. Além disso, um tal Jieitai que aceitou sem refletir o discurso dos políticos e que estava a caminho de seguir um caminho de autoengano e autoprofonação, estava completamente podre? Onde estava o espírito dos samurais? Para onde se dirigia esse arsenal gigante com uma alma morta?

Enquanto os industriais têxteis denunciavam a traição do Partido Liberal Democrático no âmbito das negociações internacionais sobre o comércio têxtil, outros viam na posição do governo sobre o Tratado de Não-Proliferação Nuclear[7] - uma questão de importância crucial e duradoura para o Japão - uma reedição de antigos tratados desiguais[8], apesar de tudo isso, não havia um único general do Jieitai que abriria sua barriga em protesto contra os políticos traiçoeiros do governo.

E o retorno de Okinawa ao seio de nossa nação[9]? Quais são as atribuições da defesa nacional?

É evidente que os americanos não queriam um exército japonês verdadeiramente independente e autodirigido, defendendo o território do Japão. Se aoJieitai não obtivesse sua independência nos próximos dois anos, ele permaneceria, como os esquerdistas notaram, uma força mercenária dos Estados Unidos para sempre.

Esperamos quatro anos. Aguardando com grande impaciência pelo último ano. Mas não podemos esperar mais. Não vale a pena esperar por aquilo que se degrada e se contamina.

Mas ainda vamos esperar pelos próximos trinta minutos. Os últimos trinta minutos.

Levantemo-nos juntos e morramos pelos princípios da justiça.

Devolvamos ao Japão sua verdadeira face e morramos por ele. É realmente surpreendente declarar que a vida é respeitada enquanto o próprio espírito está em processo de morte. Como pode existir um exército se ele não tem coragem ou crença acima da própria vida?

Vamos agora demonstrar diante de seus olhos a existência de um valor que vai além do respeito pela vida. Isto não é liberdade nem democracia. Este é o Japão, o Japão que amamos como uma nação de história e tradição. Há alguém que queira morrer sacrificando-se pela Constituição que privou o Japão de sua espinha dorsal? Se existe um homem assim, mesmo neste momento, levantemo-nos juntos e morramos juntos.

Desejamos forte e intensamente que vocês soldados, possuidores da alma mais pura, revivam como verdadeiros homens e verdadeiros samurais. E é por isso que fazemos este gesto.

Notas

[1] O Tatenokai ("Shield Society") foi fundado em 1968 para defender os valores tradicionais japoneses e restaurar a autoridade do Imperador. Seu iniciador, Yukio Mishima, recrutou os membros da organização entre os jovens estudantes universitários nacionalistas. Foi concedido à sociedade o direito excepcional de receber treinamento militar com as Forças de Autodefesa do Japão.

[2] Jieitai o é o nome da Força de Autodefesa do Japão, criada após a ocupação americana em 1954. Eles estavam confinados às ilhas japonesas e não podiam se mudar para o exterior, nem participar de missões internacionais por prescrição constitucional.

[3] Provocado por grande esforço e dor.

[4] O Monte Fuji é, para o xintoísmo, uma montanha sagrada desde o século VII eele  também é venerado pelos budistas zen. Numerosos santuários foram construídos em suas encostas e fraternidades foram estabelecidas para venerar a montanha. É um dos símbolos do Japão. Antigamente, os samurais treinavam no sopé do Monte Fuji. Desde 1945, os fuzileiros americanos têm uma base aos pés do vulcão, o que foi considerado por Mishima como uma afronta à honra japonesa.

[5] De fato, como observado, o nome oficial do Jieitai (自衛隊) é Força de Autodefesa do Japão, e não Forças Armadas do Japão.

[6] Um dos bairros da cidade de Tóquio.

[7] Mishima se opôs à ratificação do Tratado de Não-Proliferação Nuclear pelo governo japonês, que foi assinado nove meses antes de seu suicídio. Na verdade, até aquele momento, a aquisição de armas nucleares pelo Japão tinha sido uma opção realista e não era de forma alguma excluída. Entretanto, o regime ostensivamente conservador cedeu à pressão dos Estados Unidos e abandonou seus planos de uma potencial arma nuclear, permitindo ao Primeiro-Ministro Eisaku Sato receber o Prêmio Nobel da Paz. Mas, como resultado, o Japão foi incapaz de possuir sua própria capacidade de dissuasão nuclear, impedindo um caminho para a verdadeira independência.

[8] Durante a primeira conferência mundial sobre desarmamento marítimo realizada em Washington de novembro de 1921 a fevereiro de 1922, o Japão foi diplomaticamente obrigado a assinar o tratado de redução de armas marinhas com os Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e Itália. Este tratado limitou a arqueação dos navios de guerra do Japão a 300.000 toneladas. Os Estados Unidos foram o principal credor do Reino Unido, dominaram as negociações e se organizaram para não apenas forçar o Japão a aceitar ter uma potência marítima inferior à sua, mas também aboliram efetivamente a aliança anglo-japonesa. Este tratado foi amplamente considerado no Japão nos anos 20 e 30 como um ato de injustiça e hostilidade por parte dos Estados Unidos.

[9] A ilha de Okinawa foi invadida em 1945. Desde então, foi colocada sob administração militar, e depois sob administração civil americana até 1972, quando os Estados Unidos a devolveram ao Japão. Numerosas bases das Forças Armadas dos Estados Unidos continuam espalhadas pelo arquipélago, com aeroportos onde armas nucleares podem transitar, ocupando, em janeiro de 2016, 18% da ilha.