30/10/2012

Mark Dyal - Licurgo e o Estado Espartano

por Mark Dyal

"Licurgo de Esparta" por Merry Joseph Blondel.

"E Teopompo, quando um estranho continuou a dizer, conforme ele lhe demonstrou gentileza, que em sua própria cidade ele era considerado amante de Esparta, disse: 'Meu bom senhor, melhor seria para ti ser chamado amante de tua própria cidade'." - Plutarco 

Assim como Mussolini olhava para a Roma Antiga por um modelo de uma sociedade sadia e orgânica, os antigos romanos olhavam para Esparta. No primeiro século, conforme Roma continuava sua ascensão imperial a uma dominação quase hemisférica, a distância entre a virtuosa nobreza republicana e a espalhafatosa nobreza imperial começou a alertar muitos para o potencial de degeneração social. Um desses era Plutarco, um sábio romano de origem grega.

Plutarco é melhor conhecido por sua série de vidas paralelas dos mais virtuosos gregos e romanos, escrita para explicar as virtudes e vícios particulares que ou elevam ou subordinam um povo. Sua "Vida de Licurgo", assim, é menos uma história celebratória do lendário rei que transformou Esparta da típica pólis grega no maior estado guerreiro na história ocidental do que uma descrição desse estado. Suas lições não são menos assombrosas para americanos contemporâneos do que eram para os romanos imperiais. E, enquanto muitos gregos, romanos, e escritores contemporâneos exploraram as origens da Esparta guerreira, a "Vida de Licurgo" de Plutarco permanece a única fonte necessária sobre o tema.

A Esparta de Licurgo nasceu da decadência. Como o mentor do jovem rei espartano Carilau, seu sobrinho, Licurgo desempenhou um papel como o de Catão. Ele transmitiu virtudes conservadoras e austeras ao jovem rei, buscando represar o amor por dinheiro e ostentação entre a nobreza da cidade. Quando essa tática incomodou a elite espartana, Licurgo deixou a cidade e viajou pela Grécia e Ásia. Ele descobriu os épicos homéricos e visitou o Oráculo de Delfos. Lá, sacerdotes de Apolo lhe disseram que sob sua orientação um estado se tornaria o mais poderoso na Grécia. Assim, com o apoio de Apolo, ele retornou para Esparta e recebeu comando legal da cidade. Ele imediatamente estabeleceu um sistema social no qual a decadência seria impossível.

Licurgo buscou acima de tudo acabar com a vaidade, fraqueza e extravagância do povo espartano. Politicamente, ele desenvolveu um sistema de governo dualmente senatorial e monárquico que governava para o bem do estado, e não somente para seus cidadãos mais ricos. Antes de Licurgo, os reis das duas famílias reais governavam Esparta, um modelo já desenvolvido para limitar a tirania. Ao acrescentar o senado, Licurgo buscou somente ampliar a estabilidade política, compreendendo que a democracia só era tão valiosa quanto seus súditos eram nobres.

Assim enquanto os atenienses fizeram da democracia a razão do estado, Licurgo fez da nobreza a racionalidade da vida espartana. As vidas espartanas individuais estavam subordinadas a esse ideal. Mas o que fez da nobreza licurgana tão extraordinária era que, primeiro, ela só era alcançável pelos guerreiros mais corajosos, fortes e completos - e suas mulheres; e segundo, o quão longe o estado ia em gerar esse tipo de nobreza.

Assim como vimos no pensamento fascista italiano, Licurgo estava interessado nos instintos humanos. Contextualmente falando, porém, nós não damos a este tanto crédito quanto aos primeiros. Pois Licurgo vivia em uma época muito distante dos entendimentos modernos sobre a separação entre mente e corpo. O ideal grego, então, era possível precisamente porque o corpo era compreendido como manifestação externa da mente. O que é notável na Esparta de Licurgo, porém, é a compreensão do elo entre instinto e concepção; e é essa compreensão que fazia dos guerreiros os mais nobres dos nobres. Em outras palavras, o treinamento espartano não era estruturado para criar corpos e conceitos guerreiros, mas instintos guerreiros, dos quais os corpos eram meros sintomas. Daí a importância colocada na ética e no ambiente, como veremos abaixo.

Licurgo pegou um ideal e o transformou no objetivo do estado e seus súditos. Mas enquanto a nobreza grega havia se tornado associada com riqueza hereditária, criando um sistema auto-perpetuador de luxúria e qualidade (ao qual os modernos devem muito do valor do legado helênico, em particular) Licurgo transvalorou a nobreza, fazendo dela algo somente alcançável pelo serviço violento (e sua preparação) ao estado. Ele sentia mais profundamente do que outros gregos a relação entre nobreza e forma humana - conceitualmente e fisiologicamente - e a ideia de treinar estes em consonância. E, ele reformou o estado espartano para se tornar uma fábrica de nobreza corpórea. Foram suas reformas sociais e psicológicas para esse fim que foram críticas para a transformação de Esparta, estabelecendo, como elas fizeram, os refeitórios, a agogê (significando abdução, mas também liderança e treinamento), e a eugenia que deram conteúdo aos guerreiros espartanos.

As primeiras tarefas de Licurgo, como estabelecer o senado, foram desenvolvidas para modificar o clima político e social imediato da cidade. Ele redistribuiu toda a terra em Esparta de modo que cada família cidadã tinha um pequeno pedaço de terra para cultivar. Ele também baniu a moeda cunhada, instituindo o comércio com barras de ferro banhadas em vinagre, tornando quase impossível acumular riqueza. Quase todas as formas de iniquidade desapareceram de Esparta, escreve Plutarco, "pois quem roubaria ou receberia como suborno, ou furtaria ou saquearia aquilo que não poderia ser nem oculto, nem possuído com satisfação, não, nem mesmo cortado em pedaços com qualquer lucro?" Em outro lugar, Plutarco explica que a riqueza "não despertava inveja alguma, nem trazia honra alguma" a seu portador espartano.

Ainda que a maioria dos artesãos tenha abandonado Esparta quando não mais havia uma maneira de comercializar seus bens, Licurgo agravou sua miséria banindo quaisquer artes "desnecessárias e supérfluas". Quando não em campanha, os homens espartanos passavam seu tempo em festivais, caçadas, exercícios, e instruindo a juventude. Dentro de meses das reformas monetárias de Licurgo, se tornou impossível comprar bens estrangeiros, receber cargas estrangeiras, contratar professores de retórica ou visitar videntes e prostitutas em Esparta. Ainda que tais restrições não fossem motivadas pelo desejo de proteger ou desenvolver os ofícios de artesãos, bens localmente produzidos logo se tornaram desejados por todo o mundo grego. Após se estabelecer os limites do que seria permitido em Esparta, Licurgo dirigiu as vistas para a educação com vistas à nobreza.

Para garantir a unidade e aptidão gastronômica dos homens espartanos, Licurgo criou um sistema de refeitórios nos quais homens e guerreiros jovens jantavam juntos. Estudiosos apontaram para os refeitórios como um elemento crucial das reformas de Licurgo, e um que só fazia sentido pela compreensão de Licurgo do relacionamento próximo entre mente e corpo. Como Plutarco explica, o refeitório garantia mais do que coesão social, fornecendo um fórum para a manutenção do próprio guerreiro:

"Com vistas a atacar o luxo, [Licurgo] ... introduziu os refeitórios comuns para que pudessem comer uns com os outros em companhias, comidas comuns e especificadas, e não tomar suas refeições em casa, reclinados em sofás caros em mesas caras, se entregando nas mãos de servos e cozinheiros para serem engordados no escuro, como animais vorazes, arruinando não somente seus caráteres como seus corpos." 

O infame agogê operava com motivações similares. Rompendo com a tradição grega - Xenofonte explica que Licurgo literalmente transvalorou todas as práticas de educação e criança infantil gregas - nenhum tutor ou educação privada eram permitidos em Esparta. O estado espartano, ao invés, educava todos os garotos desde os sete anos de idade, independentemente de seu status familiar. No agogê garotos eram treinados para disciplina, coragem e luta. Eles aprendiam somente o suficiente de leitura e escrita para servirem seu propósito como guerreiros, com sua educação "calculada para lhes fazer obedecer bem a comandos, resistir a privações e conquistar em batalha". Similarmente, os garotos ficavam de pés no chão e em maior parte sem roupa para que pudessem funcionar melhor em terrenos rústicos e clima inclemente. Roupas, Xenofonte explica, se considerava como encorajando o afeminamento e uma inabilidade em lidar com variações na temperatura.

Bem como pouco vestidos, os meninos no agogê eram pouco alimentados e encorajados a roubar comida. Isso lhes ensinava a resolver o problema da fome com as próprias mãos com esperteza e ousadia e encorajava o desenvolvimento de instintos guerreiros. Para promover esse desenvolvimento, os garotos eram forçados a viver por um período no ermo montanhoso, sem armas, e não vistos. Se os garotos fossem pegos roubando, seus superiores no agogê lhes espancavam. Kennell debate a lenda de que esses espancamentos tinham consequências fatais. Afinal, um jovem espartano era o foco de todo o sistema social, e não seria morto prematuramente. Outra parte da lenda não é discutível, porém: os garotos não apanhavam por terem furtado, mas por terem sido medíocres o bastante para terem sido capturados.

Voltando ao refeitório, os garotos, como responsabilidade comum de todos os cidadãos homens de Esparta, estavam constantemente cercados por "pais, tutores e governadores". No jantar, os garotos eram questionados sobre virtudes e vícios, comandados a responder em estilo simples e honesto, agora chamado de lacônico (depois lacedemônio). Normalmente essas perguntas demandava que eles julgassem a conduta dos cidadãos. Aqueles sem resposta eram considerados deficientes na "vontade de excelência", como qualquer ausência de resposta, seja por respeito ou ignorância, fosse produto de uma mente pouco crítica.

Na Esparta de Licurgo, os guerreiros governavam porque a guerra, e o preparo para a guerra, havia feito deles os mais virtuosos. Licurgo recebe o crédito por codificar o valor de uma vida limpa de todos os detalhes supérfluos. A vida tão essencializada se tornou não somente o perfeito guerreiro hoplita, se movendo em harmonia com suas coortes, mas também o mais virtuoso e confiável cidadão. Isso porque o treinamento de guerra espartano era desenvolvido primariamente para endurecer a mente contra o medo, a adversidade, e a dor, sobrando clareza e a confiança de conquistar qualquer adversário em qualquer situação.

Polinices, de Steven Pressfield, explica essa concepção de cidadão-modelo:

"A guerra, e não a paz, produz virtude. A guerra, e não a paz, expurga o vício. A guerra, e o preparo para a guerra convoca tudo que é nobre e honrado em um homem. Ela o une a seus irmãos e os liga no amor altruísta, erradicando no crisol da necessidade tudo que é medíocre e ignóbil".

Mas e quanto aos homens espartanos que não correspondiam a esses ideais nobres e honrados? Xenofonte explica que, em Esparta, o homem covarde era, na verdade, um homem sem cidade. Ele era desprezado em todas as áreas da vida pública, incluindo os refeitórios, jogos de bola, ginásio e assembleias. Esse fato da vida pode ser discernido na crença "oficial" espartana de que a morte honrosa valia mais que a vida ignóbil. Xenofonte resume todo o sistema social de Licurgo assim: garantir "que os bravos tenham alegria e os covardes miséria". Enquanto na Itália fascista, homens covardes poderiam ser encorajados a serem "corajosos" em seu próprio contexto, em Esparta os homens só tinham um caminho para a coragem - a guerra e o preparo para a guerra.

A agogê tem sido central para as visões acadêmicas e populares de Esparta da antiguidade à modernidade, e justificadamente. Os romanos ficaram tão encantados com a agogê que turistas romanos iam a Esparta somente para visitar seus locais e templos (Ártemis e os Dióscuros desempenhavam papéis importantes na instrução religiosa dos jovens). De fato, por volta do ano 100 Roma havia restaurado a agogê em Esparta e a usava como escola para jovens nobres romanos. É somente graças a esse período da agogê que nós sabemos algo sobre sua glória clássica.

E, mesmo que tenhamos sido forçados a especular a partir das poucas anedotas fornecidas por Plutarco e Xenofonte em relação ao conteúdo do treinamento da agogê, nós temos uma definição clara de seu propósito. Como Plutarco explica, a agogê era um regime de treinamento sistemático no qual garotos e jovens aprendiam habilidades de guerra (incluindo a disciplina, senso de dever e liderança já discutidas) bem como "os princípios mais importantes e vinculantes que conduzem à prosperidade e virtude de uma cidade". Estes não eram ensinados somente por aulas e regurgitação, mas "implantados nos hábitos e treinamento dos garotos", através do que "eles permaneceriam imutáveis e seguros, tendo um elo mais forte que a compulsão". Como se diz que Licurgo resumiu a lógica da agogê: "Uma cidade será bem fortificada se for cercada por homens bravos e não tijolos".

Assim como o conteúdo da agogê é especulativo, parece que também o é a compreensão de Licurgo das conexões entre vitalidade conceitual e corpórea. Até agora, só se demonstrou que Licurgo buscava derrotar a fraqueza e o vício com força e nobreza. Porém, a compreensão de Licurgo do corpo e da mente é melhor demonstrada pelo destino das mulheres e crianças espartanas.

Como sugerido acima, os filhos não eram propriedade do pai na Esparta de Licurgo, mas propriedade comum do estado. Diferente de outros estados gregos, em Esparta a decisão de criar uma criança estava com um conselho de anciãos que verificavam os bebês em busca de saúde e vigor. Se um fosse mal nascido e deformado ele era descartado, já que a vida "que a natureza não equipou bem desde o início para a saúde e a força não era vantajosa nem para si mesma ou para o estado".

Em muitos casos, as crianças espartanas não eram nem produto de um casamento aleatório, "mas projetadas para emergir do melhor que há". Eugenia. Durante seu tempo de exílio, Licurgo notou algo peculiar sobre os homens gregos. Em Atenas, explica Plutarco, ele viu homens discutindo sobre a linhagem de certos cães e cavalos. E ainda assim, esses mesmos homens geravam crianças mesmo que fossem "idiotas, enfermas ou doentias, como se crianças de estirpe ruim não devessem sua ruindade aos seus pais". Casamentos e nascimentos eram cuidadosamente regulados, então, sempre com vistas ao bem-estar físico e político da cidade.

Por causa do exagero licúrgico do ideal educacional grego, Plutarco exclamou que a educação das crianças espartanas começava antes do nascimento - um conceito extraordinário, considerando o contexto do século VII a.C. Na realidade ela começava antes da concepção. O que nos leva às mulheres espartanas como mães. Singularmente no mundo grego clássico, as mulheres espartanas se exercitavam lado a lado com os homens. Elas corriam, lutavam, e arremessavam disco e dardo, para que pudessem lidar facilmente com o parto, e para que sua prole tivesse uma "raiz vigorosa em corpos vigorosos".

Licurgo possuía uma lógica eugênica bem concebida, acreditando que o corpo humano aumentaria de tamanho quando não entulhado por excesso de nutrição. Coisas que são bem nutridas, ele notou, tendem a crescer grossas e largas, ambas coisas que iam contra os ideais de beleza e divindade. Assim, enquanto a magreza marcava a forma humana como mais bela, ela também a aproximava do divino. Porém, para as mães e sua prole, os benefícios também eram mundanos; já que mães que se exercitavam supostamente geravam crianças magras porque a leveza da matéria genetriz tornava a prole mais suscetível a ser moldada.

Após o nascimento, as crianças eram criadas sem serem enfaixadas para que seus membros se desenvolvessem de modo livre e robusto. Garotos no agogê usavam uma simples tanga, e homens pouco mais. Aos grupos de garotos e homens seminus se juntavam as garotas e mulheres seminuas. Talvez a mais deliciosa transvaloração de valores decantes por Licurgo tenha sido seu comando de que em Esparta, a condição sadia do próprio corpo deveria ser mais estimada do que o preço das próprias roupas. Nudez e um código rígido de beleza física - que equiparava beleza a nobreza - parecem estímulos potentes para a saúde; isso sem falar na crença de que o comprometimento com a beleza e a nobreza era de grande benefício para si mesmo, para a própria prole, e para o próprio povo.

Licurgo acreditava que a escassez de roupa encorajava nas mulheres o hábito de viver com simplicidade. Mais ainda, porém, ele queria que as mulheres espartanas desejassem ardentemente um corpo sadio e belo. E porque o caminho para a saúde e para a beleza levava ao ginásio e ao campo esportivo, um corpo feminino belo garantia que seu portador possuísse "coragem, ambição e um gosto por sentimentos elevados".

Em lugar algum no mundo antigo as mulheres eram tão integradas na lógica social e política de um povo. Como resultado das reformas de Licurgo, as garotas espartanas eram educadas para princípios e padrões de coragem, disciplina e honra similares aos garotos. Elas eram alfabetizadas. Elas realizavam rituais públicos para Ártemis e Apolo. Elas eram atléticas o bastante para ganhar medalhas nos jogos olímpicos - mesmo quando competindo contra homens. E elas eram conhecidas por sua "vitalidade, graça e vigor".

Enquanto isso em Atenas, as garotas não recebiam qualquer educação além dos deveres domésticos de uma esposa e mãe. E elas viviam vidas de reclusão, sem atenção para como sua degeneração física poderia afetar Atenas. Daí a reação escandalosa provocada pelas mulheres espartanas. Pois era o estado das mulheres que provocava a ideia de que os homens espartanos eram meros escravos das mulheres. Mas é também a fonte do sentimento, expressado tão sucintamente pela Gorgo, de Zack Snyder, de que "Só mulheres espartanas parem homens de verdade". Incidentalmente, a linha vem de Plutarco e não de Frank Miller.

Licurgo usou filosofia política e fisiologia para combater a degeneração. E enquanto Esparta pode parecer um lugar assustador para homens modernos, esse é precisamente seu valor. Pois Esparta se destaca como o lugar que valorizava a nobreza física e conceitual de seus cidadãos acima de tudo o mais.

Plutarco descreveu o legado da Esparta de Licurgo como um exemplo do que é possível quando todo um povo vive e se comporta ao modo de um único homem sábio treinando para a guerra. Sabedoria, treinamento e guerra: três dos traços clássicos mais amaldiçoados pela modernidade - ao menos segundo o modo como eles eram compreendidos e praticados por povos clássicos. Acima foi sugerido que as lições de Esparta seriam tão chocantes para um romano quanto para um americano. Ainda assim, isso talvez não seja tão verdade; e a razão está na natureza da afirmação de Plutarco sobre Esparta agindo como um único homem sábio. Pois, em efeito, essa foi a explicação de Plutarco da eficácia das reformas de Licurgo. Assim como sua representação da tomada de poder de Licurgo focada na benção de Apolo e na vontade de um punhado de homens, de modo que aqui Plutarco não vê qualquer lógica moderna em funcionamento; mas ao invés um caminho natural de escolha para homens verdadeiramente nobres.

Pois, segundo Plutarco, o que Licurgo fez foi estabelecer uma aristocracia ética divinamente sancionada às custas de uma aristocracia monetária. Essa era uma aristocracia na qual se devia nascer, mas também para a qual se devia nascer. Licurgo incorporou cada espartano vivo na aristocracia, por virtude de estar vivo. Um garoto espartano se saberia digno da nobreza que lhe era demandada simplesmente porque ele havia sido escolhido no nascimento e progredido através do treinamento da agogê. Se pode imaginar que a dureza da vida espartana teria sido aceita bem mais prontamente por alguém provido de uma lógica hereditária e ética para inclusão e aceitação do que pelo homem moderno liberado e atomizado.

Há outro aspecto de Esparta que causa desconforto a homens modernos ainda maias do que a equação de sabedoria e treinamento de guerra, porém: pureza. Nos 300 anos de aderência rígida às reformas de Licurgo, nenhum espartano teve permissão para viver fora do território espartano. Mais ainda, nenhum estrangeiro sem um propósito útil tinha permissão de passar a noite em Esparta. Nenhum deles tinha permissão para ensinar vícios.

"Pois junto com pessoas estranhas, doutrinas estranhas devem vir; e doutrinas novas trazem decisões novas, das quais deve emergir desarmonia dentro da ordem política existente. Portanto Licurgo considerou mais necessário impedir maus costumes de invadirem e infestarem a cidade do que era manter afastadas as doenças infecciosas".

Esse desejo por pureza social também funciona como parte do sistema de Licurgo de transformação ética e fisiológica. Pois não há razão para crer que homens e mulheres nobres pioram em um ambiente que só favorece sua nobreza. Imagine, ao invés, que o corpo se torna aquilo que o meio espera e de manda dele. A dureza é a única coisa que produz vitalidade corporal. Licurgo acreditava que uma dureza corpórea similar também produzia nobreza conceitual. Assim, ao invés de ensinar tais valores em uma fossa e esperar que a natureza forneceria alguns poucos exemplos de destaque em cada geração, Licurgo se espelhou na natureza, fornecendo um meio que garantisse a Esparta o "bom" em cada cidadão. Isso atende a definição de utopia, mas diferente da utopia anti-natural, moderna e igualitária, a utopia espartana de Licurgo era hiper-natural. Assim como o era sua aristocracia ética.

Essa conquista de um alto padrão de vida nobre era um dever público. Os jovens eram geralmente produto de uma procriação seletiva, e era demandado de todos que estivessem em forma e fossem vitais. Os sentimentos e características maiores e mais nobres disponíveis para o homem só eram alcançáveis pelo esforço físico e pela ação guerreira. A beleza era reservada para os dignos e ativamente negada aos indignos. Em resumo, era demandado que homens e mulheres fossem tão nobres quanto possível fisicamente e conceitualmente. E, enquanto a Itália fascista não foi tão longe para promover a "melhoria eugênica" dos fascistas, ela também compreendeu a relação entre ética, comportamento e meio. Estranhamente, a ciência pós-moderna concorda, mesmo que seja para usar esse conhecimento para promover uma comunidade burguesa global privada de conflitos. Não obstante, o próximo artigo explicará como a química do corpo é influenciada pelo meio, abrindo grandes possibilidades para colocar o corpo diretamente no centro de uma guerra contra a modernidade burguesa; e mais, à mercê da compreensão nietzscheana de instintos, corpo e vitalidade conceitual.

27/10/2012

Foi a Revolução Francesa uma Vingança dos Templários?

por Julius Evola



Um historiador francês observou que enquanto hoje se reconhece já que as enfermidades do organismo humano não nascem sozinhas, senão que se devem a agentes invisíveis, a micróbios e bactérias, no referente às enfermidades desses organismos maiores que são as sociedades e os Estados, enfermidades correspondentes à grandes crises históricas e às revoluções, se pensa que ali ao contrário as coisas sucedam de outra maneira, quer dizer que se trataria de fenômenos espontâneos ou devidos a simples circunstâncias exteriores, enquanto que nas mesmas pode haver atuado com grande vigor um conjunto de forças invisíveis similares aos micróbios nas enfermidades humanas.

Escreveu-se muito sobre a Revolução Francesa e sobre a causa que a originou; habitualmente se costuma reconhecer o papel que, pelo menos como preparação intelectual, tiveram certas sociedades secretas e especialmente a dos denominados Iluminados. Uma tese específica e mais avançada é aquela que a tal respeito sustenta que a Revolução Francesa haja representado uma vingança dos Templários. Já em um período bastante próximo àquela revolução se havia assomado uma ideia semelhante. Seguidamente De Guaita teria de retomá-la e aprofundá-la.

A destruição da Ordem dos Cavaleiros Templários foi um dos acontecimentos mais trágicos e misteriosos da Idade Média. Os Templários era uma Ordem cruzada de caráter seja ascético como guerreiro, fundada em 1118 por Hugues de Payns. Exaltada por São Bernardo em sua Laude Novae Militiae, se converteria rapidamente em uma das Ordens de cavalaria mais ricas e poderosas. Improvisadamente em 1307, a mesma foi acusada pela Inquisição. A iniciativa partiu essencialmente de uma figura sinistra de soberano, da parte de Felipe o Belo da França, que impôs sua vontade ao fraco Papa Clemente V, apontando assim a ficar com as grandes riquezas da Ordem. Se acusava os Templários de professarem só em aparência a fé cristã, de terem um culto secreto em uma iniciação alheia ao cristianismo e mais ainda anti-cristã. Como foram as coisas verdadeiramente é algo que não se pôde nunca saber com exatidão. De qualquer forma o processo concluiu com uma condenação: a Ordem foi dissolvida, a maior parte dos Templários foi massacrada e parou na fogueira. Foi queimado também o Grão-Mestre, Jacques deMolay. Esse justamente na fogueira assinalou os dias da morte dos responsáveis da destruição da ordem, do rei e do pontífice. Felipe o Belo e Clemente V morreriam exatamente dentro dos termos profetizados pelo Grão-Mestre templário para se apresentarem perante o tribunal divino.

Se diz que alguns Templários que se salvaram do massacre se refugiaram na corte de Robert de Bruce, rei da Escócia, e que se integraram a certas sociedades secretas pré-existentes. De qualquer modo, segundo a tese mencionada no início, certas derivações dos Templários teriam continuado de maneira subterrânea até o período da Revolução Francesa e teriam preparado, como uma verdadeira vingança, a queda da Casa da França. Que algumas sociedades secretas tivessem se organizado para fins revolucionários, isso é algo revelado pela investigação histórica. Uma mera casualidade - o fato de que um correio das mesmas fosse abatido por um raio - permitiu descobrir documentos dos Iluminados que levava consigo e que continuam planos revolucionários. Mais importante ainda foi a reunião secreta que se realizou em Frankfurt em 1780. Foi descrita de maneira novelesca por Alexandre Dumas em seu famoso livro José Balsamo, onde se serviu certamente das anotações, publicadas em Itália em 1790 e em França em 1791, do processo realizado pelo Santo Ofício a esse misterioso personagem conhecido pelo nome de Cagliostro. Em sua exposição Cagliostro fala daquela reunião, faz menção aos Templários, diz que os convocados se haviam comprometido a derrubar a Casa da França; que logo da queda dessa monarquia sua ação teria devido se dirigir para a Itália tendo em mira particularmente Roma, sede do Papado.

A tudo isso se deve agregar as revelações realizadas em 1796 por parte de Gassicourt em um livro extremamente raro, Le Tombeau de Jacques Molay. No mesmo se sustenta que "os fatos da Revolução Francesa tem um signo templário". Segundo o autor o próprio nome dos Jacobinos - quer dizer os que foram os principais promotores da Revolução - viria do Grão-Mestre templário, Jacques deMolay, e não, como geralmente se crê, da igreja dos religiosos jacobinos, lugar de reunião que a organização secreta havia escolhido por mera casualidade no nome. E a consigna da seita, a que devia ser mantida ainda sucessivamente em alguns altos graus de associações similares, se compunha das iniciais do nome completo do Grão-Mestre templário.

Outra circunstância estranha e significativa está representada pela escolha do lugar onde foi mantido prisioneiro o último rei da França, Luís XVI; lugar que só abandonaria no momento de subir ao patíbulo. Enquanto que a Assembléia Nacional lhe havia assignado como cárcere um local do Palácio de Luxemburgo, ele ao invés foi encerrado no Templo, quer dizer na antiga sede dos Templários de Paris: quase como um símbolo da vingança que golpeava, na pessoa de seu último descendente, à dinastia culpável da destruição da Ordem, no lugar mesmo que ela havia ocupado.

São ademais aduzidos outros elementos como sustentáculo de tal tese. Naturalmente, uma investigação que, como essa, verte sobre o que se desenvolveu nas sombras, por trás dos bastidores da história conhecida, encontra dificuldades particulares. No caso específico, ainda admitindo todos os indícios, ficaria por verificar se existiu uma continuidade entre os agentes revolucionários ao redor de 89 e os verdadeiros templários medievais, podendo também ser que os primeiros hajam tomado dos segundos tão somente o nome, enquanto que por sua vez hajam obedecido a forças escuras de um tipo diferente. De qualquer modo a hipótese aqui assinalada é conhecida por parte daqueles que levam o olhar sobre o que bem poderia ser denominado como a dimensão profunda da história.

24/10/2012

Gwendolyn Taunton - Sobre Lobos e Homens: O Berserker e o Vratya

por Gwendolyn Toynton


O simbolismo lupino é considerado como um dos pontos definidores das Tradições Indo-Europeias, e de fato é difícil mencionar uma civilização indo-europeia na qual o lobo não ocupasse um papel de proeminência; do nascimento de Rômulo e Remo e da fundação de Roma até os tempos modernos o lobo sempre ocupou uma posição eminente de privilégio na mente do indo-europeu. Isso é até evidente hoje - mesmo Hollywood não pode ignorar a figura solitária do lobo à noite, pois o lobisomem sobreviveu no mito popular até hoje. Um número de divindades importantes, indo de Odin ao grego Apolo, podem ser encontrados com um lobo ao seu lado. Que o lobo, e ocasionalmente, seu primo canino o cão, foram importantes animais rituais não se pode duvidar; em tempos ainda que o papel importante desses animais tivessem cruzado do mundo natural dos ermos ao mundo civilizado do homem, onde as fronteiras entre humano e animal se tornaram embaçadas. Um desses ocupantes desse espaço transicional é o lobisomem; outra figura é a do berserker nórdico ou teutônico. Ainda mais velho, há o relato do vratya, datando dos elementos mais arcaicos da sociedade védica, quase completamente enterrado pelo passado. O berserker e o vratya juntos constituem o que é talvez uma das tradições mais antigas, pois ambos partilham de um número de características significativas em comum, que podem ser encontradas dispersas entre outros povos indo-europeus também; fraternidades marciais existiram entre os (indo-europeus) gregos, citas, persas, dácios, celtas e germânicos onde iniciados magicamente assumiam traços lupinos. [1] Conhecidos parcialmente por sua fúria em combate, parcialmente pelo uso de meios mágicos de subjugar o inimigo, esses mitos persistem hoje no mito popular do lobisomem. Ainda que a interpretação literal do berserker seja "guerreiros com camisas (sekr) de urso", também se considerava os berserkers capazes de mudar sua forma naquela de um lobo. [2] Para o propósito desse escrito nós nos concentraremos somente no simbolismo do lobo.

O fato de que o berserker estava fortemente ligado a lobos além de possuir a já mencionada associação com ursos é ilustrada pelo uso de seu título alternativo "casaco-de-lobo". [3] É provável que esse nome fosse usado em conexão com o uso de algum símbolo do lobo tal como um cinto de pele de lobo, pois a tradição popular na Noruega recorda que "transmorfos", eram homens que se transformavam em feras à noite, e cingiriam um cinto de pele de lobo antes de deixar a casa. [4] O traje tradicional do casaco de lobo é também atestado pelo Hrafnsmál, um poema composto por volta de 900 d.C., no qual os berserkers são descritos como os guerreiros privilegiados de Harald Fairhair de Vesthold na Noruega; eles são descritos como recebendo ricos presentes do rei por causa de suas ferozes qualidades combativas, e também referidos como "casacos-de-lobo": [5]

Casacos-de-lobo eles são chamados, aqueles que portam espadas
Manchadas com sangue na batalha.
Eles avermelham lanças quando vem à matança,
Agindo juntos como um. [6]

A conexão entre o berserker e o simbolismo lupino/canino também pode ser vista nos Eddas islandeses que nomeiam Hundingr como o rei de Hundland, "Terra do Cão". [7] Similarmente, o Widsith anglo-saxão pré-século X menciona os hundingar como um povo com cabeças de cão; enquanto os as fraternidades militares de "lobisomens" (ulfhednar) das tribos germânicas lutaram junto a "meio-cães" (halfhundingas). [8]

Um dos papéis primários do berserker estava obviamente predominantemente conectado à guerra, na qual eles são lembrados como oponentes terríveis na batalha, não lutando como homem ou animal, mas como uma criatura que possuía características de ambas. O Ynglingasaga descreve o berserker como segue: "Eles seguiram sem escudos, e eram loucos como cães ou lobos, e mordiam seus escudos, e eram fortes como ursos ou touros; homens eles matavam, e nem fogo ou aço podia detê-los; e a isso se chamava a fúria do berserker". [9] Isso também é referido como "entrar em berserk" (berserkgangr). [10] Não há dúvida quanto ao fato de que o berserker era um adversário feroz e assustador - a dúvida permanece na significância do lobo em si, e na natureza da transformação - seria isso simplesmente um artifício tático para chocar o inimigo, ou haveria um raciocínio mais profundo por trás dessa transformação que beirava a ser de essência espiritual? Georges Dumézil vê o processo como uma fusão entre as duas coisas, tanto tática como espiritual.

"O texto da Ynglingasaga acima diz muito, mas não o bastante: a conexão que o berserker de Odin tinha com lobos, ursos, etc., era não somente uma semelhança em questões de força e ferocidade; em um certo sentido eles próprios eram animais. Seu furor exteriorizava um segundo ser que vivia dentro deles mesmos. Os artifícios de de trajes (cf. a tincta corpora dos harii), os disfarces aos quais o nome berserker e seu paralelo ulf hednar ("homens com pele de lobo") parecem aludir, servem somente para auxiliar, para afirmar essa metamorfose, para imprimi-la sobre amigos e inimigos assustados (novamente, cf. Tácito, Germânia, 38.4, em conexão com os esforços dos suevos em inspirar terror)". [11]

Outro aspecto do berserker, aqui nomeado como harji e descrito por Tácito, fornece mais uma citação em apoio ao uso tático para aterrorizar o inimigo.

"Eles pintam seus escudos e corpos de negro, e escolhem noites escuras para suas batalhas. A horripilante sombra de tal exército diabólico inspira um pânico mortal, pois nenhum inimigo pode resistir a uma visão tão estranha e demoníaca". [12]

Não só isso pinta uma visão terrível, mas também atesta à visão de um ataque mágico ou demônico, que ocorre à noite. A noite, é claro, é um tempo de feitiçaria e magia, que também é parte do imaginário do berserker. Os usos de motivos animais são um traço comum de tradições xamânicas, com as quais a tradição nórdica partilha um certo número de traços. Em tal sociedade, era considerado problemático atribuir mais do que uma "alma" a uma pessoa. A "forma exterior", porém, era considerada o traço mais distintivo da personalidade. [13] Dumézil elabora isso examinando a linguística da raiz "hamr" e examinando seu uso contextual no imaginário do berserker.

"Uma palavra nórdica - com equivalentes em inglês antigo e alemão antigo - imediatamente introduz o essencial nessas representações: hamr designa (1) uma veste; (2) a "forma exterior"; (3) (mais comumente o derivativo hamingja) "um espírito ligado a um indivíduo" (na verdade uma de suas almas; cf. hamingja "acaso"). Há alguns homens, pouco notáveis, que são declarados como einhamr: eles possuem somente um único hamr; então alguns, além de seu heim-hamr ("seu próprio exterior fundamental"), podem assumir outro hamr através de uma ação designada pelo verbo reflexivo hama-sk; eles são capazes de se transformar (ham-hleypa). Agora, o berserker é o eigi einhamr exemplar, "o homem que não é de um único hamr". [14]

O sentido aqui é claro - duas almas habitam o mesmo corpo. Um é o espírito de um humano, o outro de um lobo. O berserker, assim, não é totalmente humano nem animal - como seu descendente o lobisomem ele é uma criatura liminar que existe em um mundo crepuscular onde as fronteiras entre homem e fera estão mal definidas - e ainda assim ambos caminhos estão fechados para ele, pois o berserker jamais pode pertencer verdadeiramente a qualquer reino. Como o deus patrono do berserker, Odin, eles são criaturas xamânicas associadas com as extremidades de modos normais de comportamento, criando estados mentais alterados. Esse aspecto do deus Odin é retratado pelas origens de seu próprio nome, pois o germânico Wodanaz vem da raiz indo-europeia "wat-". [15] Não só é Odin associado com os modos mais cerebrais de xamanismo, o deus é descrito no Ynglingasaga como possuindo a arte de metamorfose. [16] Odin é aqui descrito como possuindo o poder de mudar de aparência e forma à vontade. [17] Ainda que essa perícia seja encontrada em grau menor na representação do berserker, parece que eles ganharam a habilidade de possuir duas almas no mesmo corpo, e consequentemente a habilidade de flutuar entre elas, como reflexo de sua associação com Odin que é o deus patrono do berserker. O berserker nórdico antigo se situa claramente em uma antiga tradição de guerreiros que eram transmorfos, capazes de se transformarem em lobos raivosos em batalha. [18]

Tem sido previamente deduzido por autores que o berserker é único às tradições nórdica e germânica. Isso, porém, é uma suposição incorreta pois um análogo cognato à figura do berserker pode ser encontrado em um componente extremamente arcaico da religião védica. Essa entidade obscura, da qual muitas facetas de seus rituais e existência permanecem desconhecidos, é chamado pelo título de vratya. Até tempos recentes muito pouco era sabido da história do vratya que se supunha que eles fossem pouco mais do que uma coleção de sem-castas da cultura bramânica, habitando nas florestas e às margens da sociedade aceitável, e que eles fossem ao mesmo tempo reverenciados e abominados. Foi até mesmo assumido uma vez que os vratya fossem não-indo-europeus em origem. Ainda que essa afirmação possa agora ser presumida como falsa, é certamente verdadeiro que tanto elementos do tantrismo como do yoga podem ser encontrados nas práticas do vratya, que bem pode ter representado uma contingência xamânica ou proto-yoguica da casta ksatriya. Evidência de uma conexão entre as práticas do vraya e aquelas encontradas no tantrismo e no yoga podem ser vistas no fato de que um livro inteiro do Atharva Veda (XV) é devotado a eles, e dentro dele podem ser encontradas afirmações dizendo que os vratya eram praticantes de ascetismo, estavam familiarizados com uma disciplina de respirações e costumavam homologizar seus corpos com o macrocosmo. [19] Eliade chega tão longe a ponto de dizer que é permissível supor que os vratyas representavam uma fraternidade misteriosa pertencendo à guarda avançada dos invasores arianos. [20] Em 1962 novas evidências também foram trazidas à luz por Jan Heesterman descrevendo o vratya como um componente extremamente arcaico da sociedade sacrificial védica cujo papel foi gradualmente suprimido com a ascensão da varna brâmane como especialistas sacrificiais. [21] Nesse artigo Heesterman apresenta a hipótese de que os vratyas foram então degradados na literatura posterior em um molde antinômico e antibramânico, com seus ritos sattra sobrevivendo nos ritos de iniciação védica e em certos períodos na vrata, ou voto do brahmacarin, o estudante védico. [22] Similarmente no Indra Sunahsakha há uma referência aos vratyas, que reivindica que seu status sócio-religiosos foi outrora tão elevado quanto o dos brahmins. [23] Com a ascensão da casta brâmane, o papel dos vratyas no ritual foi reduzido, eventualmente a tal ponto que o próprio termo se tornou degradado e os próprios vratyas foram julgados como ritualmente impuros. Esse declínio é atestado pelo fato de que há um ritual que é especificamente realizado para restaurar os membros dos vratyas de volta à sociedade bramânica, removendo a impureza de suas ações passadas.

Como os berserkers, os vratyas são às vezes referidos como cães em um certo número de passagens. A mais notável dessas é uma passagem no Chandogya Upanisad... A passagem é chamada o "Cântico [Samavédico] dos Cães". [24] Os vratyas não são somente fortemente associados com a imagem canina (os textos repetidamente se referem a eles como "Cães") eles são também fortemente conectados com o deus védico Rudra, que age não só como deus da floresta, mas também é uma divindade conectada com o xamanismo e a tempestade - tanto quanto o seu equivalente nórdico Odin. Falk dá um passo a mais na comparação das duas divindades, afirmando que os sacrifícios de doze dias dos vratyas védicos eram o cognato ritual de outros fenômenos indo-europeus, incluindo a Lupercalia romana e as doze noites de Natal, na qual o caçador selvagem Wode-Wodin vagava pelas florestas do norte da Europa. [25] Ademais, quando os vratyas sacrificam uma vaca em nome de Rudra, se diz que eles são seus "cães" ou "lobos", e simbolismo lupino ou canino é quase tão abundante no caso védico de Rudra quanto no de Indra. [26] Paralelos entre os cultos de Rudra, o caçador selvagem da floresta, e aqueles do Odin/Wodin germânico, bem como do iraniano Aesma e um número de outros deuses indo-europeus associados com as doze noites do solstício de inverno, são também significativos aqui. [27]

Há elemento comum no simbolismo do que examinamos até agora - o berserker, o vratya são ambos um tipo de pessoa que não se encaixam nos papeis de civis normais. Tanto o berserker como o vratya eram simultaneamente temidos e reverenciados pela comunidade. Como figuras fortes peritas em magia e guerra, o público os admirava; mas havia também um sentimento de medo despertado por essas figuras. Primeiramente eles eram temidos por seu poder, que nem sempre esteve completamente sob o controle do berserker. Sempre houve perigo em se associar a eles, pois sua natureza animal, como a do lobo é imprevisível, e diferente de seu primo canino, o lobo não foi domesticado. Ele é, portanto, perigoso. Essa atitude de ambiguidade em relação ao berserker e o vratya também se estendeu a outras áreas - parece que ambas figuras existiam em uma linha de fronteira entre papéis de casta claramente definidos. Eles são uma síntese entre membros da casta guerreira e a casta sacerdotal, tanto nos sistemas de casta hindu e nórdico. Dado que o vratya é uma figura particularmente arcaica, isso sugere que o legado original tanto do vratya como do berserker podem ter suas raízes em um tempo anterior ao da separação (e consequente antagonismo) das duas castas primárias. Eles pareciam operar sob um papel dual de serem guerreiros que eram também magos - isso é especialmente claro no mito nórdico em que os berserker são retratados como os camaradas de Odin, e no caso dos vratya também é claramente afirmado por Heesterman que eles foram figuras primitivas do sacerdócio védico que veio a ser substituído pela ascensão da casta brâmane. Também, no símbolo do hamr ou veste exterior, nós vemos um simbolismo dual assumindo lugar - duas almas habitam um corpo, um lobo, um humano. O vratya e o berserker são corretamente classificados como jamais sendo um ou o outro, mas uma síntese perigosa dos dois. Todas as três dessas questões podem ser exprimidas por um simples conceito - o simbolismo do vratya e do berserker é sempre liminar. A palavra liminar significa um "estado intermediário" e foi cunhada por Arnold van Gennep para explicar estados que são "intermediários" ou ambíguos.

"Os atributos da liminaridade ou da persona liminar ("pessoas de limiar") são necessariamente ambíguos, já que essa condição e essas pessoas evitam ou ultrapassam pela rede de classificações que normalmente localizam estados e posições em um espaço cultural. Entidades liminares não estão nem aqui nem lá; elas estão em meio a e entre posições designadas e ordenadas por lei, costume, convenção e cerimonial". [28]

Tais estados, ademais, não são somente amplamente característicos do caráter de indivíduos; a liminariedade pode ser vista em termos de tempos e eventos. Qualquer coisa transitória pode ser um momento liminar - exemplos disso podem ser os períodos de transição do dia para a noite (amanhecer e/ou anoitecer) ou especificamente no caso do vratya e do berserker durante os tempos em que é indistinguível em relação a serem humanos ou lupinos em natureza. Um exemplo tal da transição entre dia e noite sendo conectadas com a metamorfose do berserker pode ser visto na Saga de Egil que recorda a vida de um berserker "aposentado" chamado Úlfr:

"Após muitas gloriosas campanhas ele se casou, ampliou sua riqueza, se manteve ocupado com seus campos, seus animais, suas oficinas, e conquistou ampla estima pelo bom conselho que ele distribuía com tanta liberalidade. "Mas às vezes quando a noite caía, ele se tornava carrancudo (styggr) e poucos homens podiam conversar com ele então; ele cochilava à tarde (var hann kveldsvaefr); o rumor se espalhou de que ele estava hamrammr (isto é, que ele se metamorfoseava e vagava pela noite); ele recebeu o nome de Kveldulfr, Lobo do Anoitecer". [29]

Nesse trecho é amplamente ilustrado que o berserker era perigoso mesmo quando ele não mais ocupava o papel de ser um berserker; mesmo "aposentado" o berserker permanece em um papel liminar, separado dos modos normais de civilização. A própria transformação, sendo do período do dia para a noite pode ter também ecos com os vratya cujos rituais secretos na floresta eram réplicas do ano solar, realizados no inverno para restaurar o poder do sol. No trecho acima, porém, uma diferença clara entre o berserker e o vratya pode ser vista - o berserker, ainda que "aposentado" não retornou completamente à sociedade normal, enquanto um antigo membro dos vratya é cerimonialmente restaurado e purificado antes de reentrar na sociedade bramânica. É a natureza liminar de seu ser que os torna perigosos; paradoxalmente é também a natureza liminar de seu ser que lhes dá poder. Outra ilustração de um período liminar pode ser visto em estados psicológicos - por exemplo, um iniciado antes da performance de um ritual de iniciação é considerado uma pessoa normal, após o ritual uma mudança de algum tipo se presume ocorrer na psiquê do iniciado.

Ainda que se saiba pouco das práticas iniciáticas dos vratya, a Saga Volsunga descreve o que Eliade crê ser um processo de iniciação para o berserker.

"Os temas iniciáticos aqui são óbvios: o teste de coragem, resistência a sofrimento físico, seguido por transformação mágica em lobo. Mas o compilador da Saga Volsunga não estava mais consciente do significado original da transformação. Sigmund e Sinfjotli encontram as peles por acaso e não sabem como retirá-las. Agora, a transformação em lobo - isso é, o ritual de trajar uma pele de lobo - constituía o momento essencial da iniciação em uma sociedade secreta de homens. Ao se por a pele, o iniciado se assemelhava ao comportamento de um lobo; em outras palavras, ele se tornava um guerreiro selvagem, irresistível e invulnerável. 'Lobo' era o apelido dos membros das sociedades militares indo-europeias". [30]

O evento aqui ao qual Eliade está se referindo, e consequentemente percebendo como um rito iniciatório ocorre logo cedo na Saga, e pode ser encontrado no conto no qual Sigmund e Sinfjotli se vestem com pele de lobo.

"Uma vez, eles foram novamente para a floresta para conseguir para si algumas riquezas, e eles encontraram uma casa. Dentro dela estavam dois homens adormecidos, com grossos anéis de ouro. Um feitiço havia sido lançado sobre eles: peles de lobo estavam penduradas sobre eles na casa e apenas a cada dez dias eles podiam trocá-las. Eles eram os filhos de reis. Sigmund e Sinfjotli colocaram as peles e não conseguiam tirá-las. E o estranho poder estava lá como antes: eles uivavam como lobos, ambos compreendendo os sonhos". [31]

O fato de que a transformação não é puramente física é aludido pelo fato de que uma vez que eles vestiam as peles de lobo, eles não mais se comunicavam como homens, mas ao invés "uivavam como lobos". Ademais, eles compreendiam o sentido por trás dos sons, o que significa que não era simples mímica do uivo dos lobos; ele estava sendo usado como forma de comunicação. Isso indica que durante o processo Sigmund e Sinfjotli não estavam somente imitando a forma do lobo - uma mudança psicológica também havia se dado, permitindo a eles pensarem como lobo. O fato de que os dois homens descritos dormindo aqui possuírem grossos anéis de ouro também pode ser significativo - porém a tradução da Saga Volsunga citada não descreve a localização dos dois anéis. Em outra descrição do berserker, nós encontramos uma clara menção dos anéis, não de ouro mas de ferro, e eles também estavam conectados com os ritos iniciáticos do berserker. Em uma passagem sobre os chatti, uma tribo germânica descrita por Tácito no século I, a seguinte citação pode ser encontrada.

"Eles usavam anéis de ferro ao redor dos pescoços, e só podiam descartar esses após terem matado um inimigo. Alguns de fato escolhiam usá-las por toda sua vida, desde que eles pudessem seguir lutando, e 'para tais velhos guerreiros sempre resta começar a batalha'". [32]

Assim os anéis ao redor dos pescoços dos que dormiam podem não ser puramente ornamentais, mas ao invés uma indicação de status. Como a tradução consultada não menciona o local dos anéis, porém, nada de definitivo pode ser concluído. Não é especificado no texto se esses anéis na Saga Volsunga eram usados ao redor do pescoço ou sobre a mão. Parece provável porém, que no contexto da Saga, essas seriam anéis de pescoço, que são usados pelos berserker para mostrar seu elo ao deus Odon. Sem uma descrição do local dos anéis, porém, nada de definido pode ser concluído nesse sentido.

O perigo das peles de lobo e seu papel ambíguo na sociedade é também relatado no conto de Sinfjotli e Sigmund. A natureza animal do lobo não está sempre plenamente sob controle, e isso pode ser visto no trecho da Saga Volsunga em que Sigmund ataca Sinfjotli.

"'Você aceitou ajudar a matar sete homens. Em sou uma criança em idade perto de você, mas eu não pedi ajuda para matar onze homens'. Sigmund saltou sobre ele tão ferozmente que Sinfjotli cambaleou e caiu. Sigmund o mordeu na jugular. Naquele dia eles não foram capazes de sair das peles de lobo. Sigmund colocou Sinfjotli sobre seu ombro, o levou para a cabana, e sentou sobre ele. Ele amaldiçoou as peles de lobo, implorando aos trolls que as levassem embora". [33]

A natureza do homem está em certos momentos, em contraste em oposição a em harmonia, com a natureza do lobo. A natureza do lobo, em combate, é extremamente valiosa, ela é um grande poder. Se ela não for totalmente controlada, porém, ela pode se tornar uma  grande maldição, como visto do conto de Úlfr, o berserker aposentado. Aqui nós também vemos as peles de lobo sendo amaldiçoadas, e de fato, uma vez que Sinfjotli e Sigmund conseguem remover as peles de lobo, eles as queimam no fogo.

"Então eles foram para o lar subterrâneo e ficaram lá até que tivessem que tirar as peles de lobo. Eles pegaram as peles e as queimaram no fogo, esperando que esses objetos não os causariam mais dano". [34]

Para concluir, parece haver pouco espaço para dúvida de que há um caso justificado para comparação entre o berserker e a figura do vratya - ambos ocupam um papel dual similar, como guerreiro e sacerdote ou xamã. Ambos eram não somente respeitados pela população em geral, mas também temidos por ela. Eles também partilham do simbolismo canino e/ou lupino, e ambos são associados a divindades similares, pois Rudra e Odin também partilham um certo número de traços comuns. Talvez a principal diferença entre as duas figuras esteja no contraste entre seus papéis por um longo período de tempo (tendo em mente que os vratya existiam ao nível mais básico do substrato védico, fazendo deles extremamente arcaicos). O berserker não sofria do mesmo estigma social que a figura do Vratya. Um berserker aposentado era temido,  por ele poder continuar a se transformar contra sua vontade, mas ele não era considerado como um objeto de "impureza" como os vratya vieram a ser considerados. O vratya, talvez graças à natureza de alguns de seus rituais, provavelmente conflitaram diretamente com a ascensão da casta brâmane, pois algumas referências textuais antigas atribuem ao vratya um status social extremamente elevado - em textos subsequentes o período védico posterior, o vratya é considerado como quase totalmente impuro e não muito melhor considerado do que o sem-casta médio da sociedade. O berserker parece ter sido poupado dessa degradação em relação a sua posição social. Em termos de comparação direta entre os dois, o fator mais importante, além da ligação óbvia com o lobo, é a natureza liminar de seu papel. Como previamente afirmado, eles antecedem à separação védica das castas primárias e assim ocupam uma posição que não é nem de sacerdote, nem de guerreiro. Similarmente o berserker contém duas almas; uma lupina e uma humana - novamente sua natureza é liminar, pois não se pode dizer que ele seja nem completamente fera, nem completamente homem. Ainda que não possa ser dito nesse ponto se os vratya também usavam uma forma de metamorfose em batalha ou não, eles também são lembrados como lobos ou cães, e utilizavam o ermo da floresta para performance ritual. Assim que essa forma de liminariedade não possa ser verificada com segurança, o que é certo é que eles também ocupam um papel dualista, sendo tanto puros como impuros. Assim também se pode dizer que eles ocupam um papel liminar, de uma ambiguidade perigosa e imprevisível.



[1] White, D.G., Myths of the Dog-Man, University of Chicago Press, Chicago, 1999, 27
[2]Eliade, M., Essential Sacred Writings From Around the World, New York, HarperSanFrancisco, 1992, 294
[3] Ellis Davidson, H.R , Myths and Symbols in Pagan Europe: Early Scandinavian and Celtic Religions, Syracuse : SyracuseUniversity Press, 1988, 79
[4] Ibid, 79
[5] Ibid, 79
[6] Ibid. 79
[7] White, D.G., Myths of the Dog-Man, University of Chicago Press, Chicago, 1991 61
[8] Ibid. 61
[9] Eliade, M., Essential Sacred Writings From Around the World, New York, HarperSanFrancisco, 1992, 294.
[10] Ellis Davidson, H.R , Myths and Symbols in Pagan Europe: Early Scandinavian and Celtic Religions , Syracuse : SyracuseUniversity Press, 1988,80
[11] Dumézil, G., The Destiny of the Warrior, University of Chicago Press, Chicago, 1970, 141
[12] Ellis Davidson, H.R., Gods and Myths of Northern Europe, Penguin Books, Middlesex, 1964. 67
[13] Dumézil, G., The Destiny of the Warrior, University of Chicago Press, Chicago, 1970, 141
[14] Ibid. 141-142
[15] Gerstein, M.R., The Germanic Warg: The Outlaw as Werewolf, Myth in Indo-European Antiquity, Larson, G.J., ed., University of California Press,California, 1974.143
[16] Dumézil, G., The Destiny of the Warrior, University of Chicago Press, Chicago, 1970, 142
[17] Ibid. 143
[18] Gerstein, M.R., The Germanic Warg: The Outlaw as Werewolf, Myth in Indo-European Antiquity, Larson, G.J., ed., University of California Press,California, 1974 156
[19]Eliade, M, Trask, W.R, trans , Yoga: Immortality and Freedom, New Jersey, Princeton University Press, 1990, 103
[20] Ibid. 105
[21] White, D.G., Myths of the Dog-Man, University of Chicago Press, Chicago, 1991 96
[22] Ibid. 96
[23] Ibid. 100
[24] Ibid. 96
[25] Ibid. 98
[26] Ibid. 101
[27] Ibid. 101
[28] Turner, V. W., The Ritual Process, Aldine Publishing Company, Chicago, 1995, 95
[29] Dumézil, G., The Destiny of the Warrior, University of Chicago Press, Chicago, 1970, 142
[30] Eliade, M., Essential Sacred Writings From Around the World, New York, Harper San Francisco, 1992, 296
[31] Byock, L. J., Trans., The Saga of the Volsungs, Penguin Books, London, 1990, 44
[32] Ellis Davidson, H.R, Gods and Myths of Northern Europe, Penguin Books, Middlesex, 1964, 66
[33] Byock, L. J., Trans., The Saga of the Volsungs, Penguin Books, London, 1990, 45
[34] Ibid. 45

23/10/2012

Crítica da Ideologia Liberal

por Alain de Benoist



Não sendo a obra de um único homem, o liberalismo jamais foi apresentado na forma de uma doutrina unificada. Vários autores liberais, em diversos momentos, o tem interpretado de modos divergentes, senão contraditórios. Ainda assim, eles partilham de suficientes pontos comuns para classificar a todos como liberais. Esses pontos comuns também tornam possível definir o liberalismo como uma escola de pensamento específica. Por um lado, o liberalismo é uma doutrina econômica que tende a fazer do modelo de mercado autorregulador o paradigma de toda realidade social: o que é chamado de liberalismo político é simplesmente uma maneira de aplicar os princípios deduzidos dessas doutrinas econômicas para a vida política. Isso tende a limitar o papel da política o máximo possível. (Nesse sentido, se pode dizer que "política liberal" é uma contradição em termos). Por outro lado, o liberalismo é uma doutrina baseada em uma antropologia individualista, ou seja, ele se apoia em uma concepção do homem como um ser que não é fundamentalmente social.

Esses dois traços característicos, cada um dos quais possui aspectos descritivos e normativos (o indivíduo e o mercado são ambos descritos como fatos e sustentados como modelos), estão diretamente opostos a identidades coletivas. Uma identidade coletiva não pode ser analisada de uma maneira reducionista, como se ela fosse simplesmente a soma das características possuídas pelos indivíduos de uma dada comunidade. Tal identidade requer que os membros da coletividade estejam claramente conscientes de que sua pertença abarca ou excede seu ser individual, ou seja, que sua identidade comum é um produto dessa composição. Porém, na medida em que ele se baseia no individualismo, o liberalismo tende a romper todas as conexões sociais que vão além do indivíduo. Quanto à operação óptima do mercado, ela requer que nada obstrua a livre circulação de homens e bens, ou seja, as fronteiras devem ser tratadas como irreais, o que tende a dissolver estruturas e valores comuns. É claro que isso não significa que os liberais jamais podem defender identidades coletivas. Mas eles só o fazem em contradição com seus princípios.

Louis Dumont demonstrou o papel do Cristianismo na passagem da Europa de uma sociedade holista tradicional a uma sociedade individualista moderna. Desde o começo, o Cristianismo apresentou o homem como um indivíduo que, antes de qualquer relação, possui uma relação interior com Deus e que assim busca a salvação através de uma transcendência pessoal. Nesse relacionamento com Deus, o valor do homem como um indivíduo é afirmado, e por comparação o mundo é necessariamente degradado ou desvalorado. Ademais, o indivíduo é tornado igual a todos os outros homens, que também possuem almas individuais. Igualitarismo e universalismo são assim introduzidos em um plano superior: o valor absoluto que a alma individual recebe de sua relação filial com Deus é partilhada por toda a humanidade.

Marcel Gauchet aborda o tema de um elo causal entre a emergência de um Deus pessoal e o nascimento de um homem interior, cujo destino no além depende somente de suas ações individuais, e cuja independência já está presente na possibilidade de um relacionamento íntimo com Deus, ou seja, de um relacionamento que envolve somente Deus. "Quanto mais Deus se torna remoto em sua infinitude", escreve Gauchet, "mais o relacionamento com ele tende a se tornar puramente pessoal, ao ponto de excluir qualquer mediação institucional. Erguido ao absoluto, o sujeito divino não possui contraparte terrestre legítima além da presença íntima. Assim a interioridade original leva diretamente à individualidade religiosa". [1]

A doutrina paulina revela uma tensão dualista que faz do cristão, em seu relacionamento com Deus, um "indivíduo outromundista": se tornar cristão implica de alguma maneira desistir do mundo. Porém, no curso da história, o indivíduo "outromundista" gradualmente contaminou a vida mundana. Na medida em que ele adquiriu o poder de fazer com que o mundo se conforme a seus valores, o indivíduo outromundista progressivamente retornou ao mundo, submergindo nele e o transformando profundamente.

O processo foi efetivado em três fases principais. Inicialmente, a vida secular não foi mais rejeitada, senão relativizada: essa é a síntese augustiniana das duas cidades. Na segunda fase, o papado se secularizou assumindo poder político. Finalmente, com a Reforma, o homem se investiu completamente no mundo, onde ele trabalhava para a glória de Deus ao buscar o sucesso material que ele interpretava como a prova mesma de ser um eleito.

Dessa maneira, o princípio de igualdade e individualidade - que inicialmente funcionou tão somente no relacionamento com Deus e assim podia ainda coexistir com um princípio orgânico e hierárquico estruturando o todo social - foi gradualmente trazido à terra, resultando no individualismo moderno, que representa sua projeção secular. "Para que o individualismo moderno nascesse", escreve Alain Renaut explicando as teses de Louis Dumont, "foi necessário para o componente individualista e universalista do Cristianismo 'contaminar', por assim dizer, a vida moderna em tamanha medida que gradualmente as duas ordens foram unificadas, o dualismo inicial foi apagado, e a vida no mundo foi reconcebida como sendo capaz de se conformar completamente ao valor supremo": ao fim desse processo, "o indivíduo outromundista se tornou o indivíduo moderno mundano". [2]

A sociedade orgânica de tipo holista então desapareceu. Em termos contemporâneos, se passou da comunidade à sociedade, ou seja, à vida comum concebida como uma simples associação contratual. O todo social não mais vinha primeiro, mas sim os portadores individuais de direitos individuais, ligados uns aos outros por contratos racionais auto-interessados.

Um momento importante dessa evolução foi o nominalismo do século XIV de Guilherme de Ockham, que sustentou que nada existe senão entes particulares. Outro momento chave foi o cartesianismo, que filosoficamente estabeleceu a concepção do indivíduo posteriormente pressuposta pela doutrina legal dos direitos do homem e pela perspectiva intelectual do Iluminismo. Começando no século XVIII, a emancipação do indivíduo situado de suas ligações naturais foi rotineiramente interpretada desde a perspectiva do progresso universal como marcando o ingresso do homem à "idade adulta". Sustentada por esse impulso individualista, a modernidade se caracterizou primeiro e principalmente como o processo pelo qual grupos locais e de parentesco, e comunidades mais amplas, são gradualmente desintegradas para "liberar o indivíduo", e todas as relações orgânicas de solidariedade são dissolvidas.

Desde tempos imemoriais, ser humano significou ser afirmado tanto como pessoa e como um ser social: a dimensão individual e a dimensão coletiva não são idênticas, mas são inseparáveis. Na visão holista, o homem se desenvolve com base no que ele herda e em referência a seu contexto sócio-histórico. É a esse modelo, que é o modelo mais comum na história, que o individualista, que se deve considerar como uma peculiaridade da história ocidental, vem se opor diretamente.

No sentido moderno do termo, o individualismo é a filosofia que considera o indivíduo como a única realidade e o toma como o princípio de toda valoração. O indivíduo é considerado em si mesmo, em abstração de seu contexto social ou cultural. Enquanto o holismo expressa ou justifica a sociedade existente em referência a valores que são herdados, transmitidos, e compartilhados - ou seja, em última análise, em referência à sociedade em si - o individualismo estabelece seus valores independentemente da sociedade conforme ele a encontra. É por isso que ele não reconhece o valor autônomo de comunidades, povos, culturas ou nações. Pois ele vê essas entidades como nada além de somas de átomos individuais, que sozinhos não possuem valor.

Essa primazia do indivíduo sobre a comunidade é simultaneamente descritiva, normativa, metodológica e axiológica. O indivíduo é assumido como vindo primeiro, seja ele anterior ao social em uma representação mítica da "pré-história" (a anterioridade do estado de natureza), ou simplesmente possuindo primazia normativa (o indivíduo é o que vale mais). Georges Bataille afirma que, "na base de cada ser, lá existe um princípio de insuficiência". O individualismo liberal, ao contrário, afirma a total suficiência do indivíduo singular. No liberalismo, o homem pode apreender a si mesmo sem referência a seu relacionamento com outros homens dentro de uma socialidade primária ou secundária. Sujeito autônomo, dono de sim esmo, movido somente por seus interesses particulares, o indivíduo é definido, em oposição à pessoa, como um "ser moral, independente, autônomo e assim primariamente associal". [3]

Na ideologia liberal, o indivíduo possui direitos inerentes em sua "natureza" inteiramente independente de organização social ou política. Governos são obrigados a garantir esses direitos, mas não o estabelecem. Sendo anteriores a toda vida social, eles não estão imediatamente correlacionados a deveres, porque deveres implicam precisamente que a vida social já existe: não há deveres em relação a outros se não há outros. Assim o próprio indivíduo é a fonte de seus próprios direitos, começando pelo direito de agir livremente segundo o cálculo de seus interesses privados. Assim ele está "em guerra" com todos os outros indivíduos, já que se supõe que eles ajam da mesma maneira em uma sociedade concebida como um mercado competitivo.

Os indivíduos bem podem escolher se associar uns com os outros, mas associações que eles formam são condicionais, contingentes e transitórias, já que eles permanecem dependentes de concordância mútua e não possuem qualquer outro objetivo além de melhor satisfazer os interesses individuais de cada parte. A vida social, em outras palavras, não é nada além de um caso de decisões individuais e escolhas egoístas. O homem se comporta como um ser social, não porque isso está em sua natureza, mas porque isso lhe é vantajoso. Se ele não mais considera isso vantajoso, ele pode sempre (ao menos em teoria) romper o pacto. De fato, essa ruptura expressa melhor sua liberdade. Em oposição à liberdade antiga, ou seja, à possibilidade de participar na vida pública, a liberdade moderna é, acima de tudo, o direito de se retirar da vida pública. É por isso que liberais sempre tendem a definir a liberdade como sinônimo de independência. [4] Assim Benjamin Constant exalta "o prazer pacífico da independência individual privada", acrescentando que "os homens, para serem felizes, precisam apenas ser deixados em perfeita independência, em tudo que se relaciona com suas ocupações, suas companhias, sua esfera de atividade, seus sonhos". [5] Esse "prazer pacífico" deve ser compreendido como o direito de secessão, o direito de não ser constrangido nem pelo dever de pertença nem por qualquer uma daquelas afiliações que, em certas circunstâncias, podem de fato aparecer como incompatíveis com a "independência privada".

Os liberais insistem particularmente na ideia de que os interesses individuais jamais devem ser sacrificados pelo interesse coletivo, pelo bem comum, ou pela segurança pública, conceitos que eles consideram como inconsistentes. Dessa ideia se segue que somente os indivíduos possuem direitos, enquanto as comunidades, sendo somente coleções de indivíduos, não possuem nenhum. Assim Ayn Rand escreve, "Já que somente um homem individual pode possuir direitos, a expressão 'direitos individuais' é uma redundância". [6] Benjamin Constant também afirmou que, "A independência individuai é a necessidade primária moderna. Consequentemente, nunca se deve pedir que ela seja sacrificada para estabelecer a liberdade política". [7] Antes dele, John Locke declarou que "uma criança não nasce súdita de qualquer país ou governo", já que, tendo se tornado um adulto, ele é "livre para escolher sob que Governo ele se colocará; a que Corpo Político ele se unirá". [8]

A liberdade individual assim supõe que os indivíduos podem ser abstraídos de suas origens, seu ambiente, o contexto em que vivem e onde eles exercem suas escolhas, ou seja, de tudo que os torna quem eles são, e não outra pessoa. Ela supõe, em outras palavras, como John Rawls diz, que o indivíduo é sempre anterior a seus fins. Nada, porém, prova que o indivíduo pode se apreender como sujeito livre de toda afiliação, livre de qualquer determinismo. Ademais, nada prova que em todas as circunstâncias ele preferirá a liberdade acima de todo outro bem. Tal concepção por definição ignora compromissos e ligações que não devem nada ao cálculo racional. É uma concepção puramente formal, que torna impossível entender o que é uma pessoa real.

A ideia geral é que o indivíduo possui o direito de fazer tudo que ele quiser, desde que seu uso dessa liberdade não limite a liberdade de outros. A liberdade assim seria definida como a expressão pura de um desejo que não possui limites teóricos além do desejo idêntico de outros, a totalidade desses desejos sendo mediada por trocas econômicas. É o que Grotius, o teórico do direito natural, já afirmou no século XVII: 'Não é contra a natureza da sociedade humana trabalhar pelo seu próprio interesse, desde que se faça isso sem ferir os direitos dos outros". [9] Mas isso é obviamente uma definição irênica: quase todos os atos humanos são exercidos de uma maneira ou de outra às custas da liberdade de outros, e é, ademais, quase impossível determinar o momento em que a liberdade de um pode ser considerada como incômoda para a de outros.

Na verdade, a liberdade individual é, acima de tudo, a liberdade de ter. Ela não reside no ser, mas no ter. O homem é chamado livre na medida em que ele é um proprietário - em primeiro lugar, um proprietário de si mesmo. A ideia de que a auto-propriedade determina fundamentalmente a liberdade será posteriormente adotada por Marx. [10]

Alain Laurent define a auto-realização como uma "insularidade ontológica cujo objetivo primário é a busca pela própria felicidade". [11] Para escritores liberais, a "busca pela felicidade" é definida como a liberdade desimpedida de sempre tentar maximizar o melhor interesse de si mesmo. Mas imediatamente nós encontramos o problema de compreender "interesses", especialmente já que aqueles que tomam interesses como axiomáticos raramente se importam em falar de sua gênese ou em descrever seus componentes, mais do que imaginam se todos os atores sociais estão no fundo motivados por interesses idênticos ou se seus interesses são comensuráveis e compatíveis. Quando encurralados, eles tendem a dar ao termo uma definição trivial: para eles um "interesse" se torna sinônimo de um desejo, um projeto, uma ação dirigida a um objetivo, etc. Qualquer coisa pode se tornar um "interesse". Mesmo a ação mais altruísta e desinteressada pode então ser definida como egoísta e interessada, já que ela corresponde à intenção voluntária (o desejo) de seu autor. Em realidade, porém, é claro que para liberais, um interesse é definido inicialmente como uma vantagem material que, para ser apreciada enquanto tal, tem que ser calculável e quantificável, ou seja, tem que poder ser expressa em termos do equivalente universal que é o dinheiro.

Não deveria, portanto, ser surpresa que a ascensão do individualismo liberal inicialmente incluía um deslocamento progressivo das estruturas orgânicas da existência características da sociedade holista, então uma desintegração generalizada dos laços sociais, e finalmente uma situação de relativa anomia social, em que os indivíduos estavam cada vez mais apartados uns dos outros, e mesmo inimigos uns dos outros, o que é parte e parcela da versão moderna da "guerra de todos contra todos", isto é, da competição generalizada. Tal é a sociedade que Tocqueville descreveu em que cada membro, "retirado para os lados, é como um estrangeiro para todos os outros". O individualismo liberal tende em todos os lugares a destruir a sociabilidade direta, a qual por um longo tempo impediu a emergência do indivíduo moderno e das identidades coletivas que estão associadas com ele. "O liberalismo", escreve Pierre Rosanvallon, "em alguma medida faz da despersonalização do mundo uma condição de progresso e liberdade". [12]

O liberalismo não obstante é obrigado a reconhecer a existência do social. Mas ao invés de imaginarem por que o social existe, os liberais estão ao invés preocupados com como ele é estabelecido e mantido, e como ele funciona. Afinal, a sociedade para eles é nada mais que a simples soma de seus membros (o todo não sendo nada além da soma de suas partes), meramente o produto contingente de vontades individuais, uma simples coleção de indivíduos todos buscando defender e satisfazer seus interesses privados. O objetivo essencial da sociedade, portanto, é regular relações de troca. Tal sociedade pode ser concebida ou como a consequência de um ato voluntário racional inicial (a ficção do "contrato social") ou como o resultado do jogo sistêmico da totalidade de projetos produzidos por agentes individuais, um jogo regulado pela "mão invisível" do mercado, que "produz" o social como resultado não-intencional do comportamento humano. A análise liberal do social se apoia, assim, ou no contratualismo (Locke), recorre à "mão invisível" (Adam Smith), ou à ideia de uma ordem espontânea, independente de qualquer intenção (F. Hayek).

Os liberais desenvolveram toda a ideia da superioridade da regulação pelo mercado, que se supõe ser o meio mais eficaz, mais racional e assim também mais justo de harmonizar trocas. À primeira vista, o mercado é assim apresentado acima de tudo como somente uma "técnica de organização" (Henri Lepage). Desde um ponto de vista econômico, ele é ao mesmo tempo um lugar efetivo em que bens são trocados de uma entidade virtual onde de um jeito óptimo as condições de troca - ou seja, o ajuste de oferta e demanda e o nível dos preços - são formadas.

Mas os liberais não se perguntam sobre a origem do mercado também. A troca comercial para eles é de fato o modelo "natural" de todas as relações sociais. A partir disso eles deduzem que o próprio mercado é também uma entidade "natural", estabelecendo uma ordem prévia a qualquer deliberação ou decisão. Sendo a forma de troca mais em harmonia com a natureza humana, o mercado estaria presenta na aurora da humanidade, em todas as sociedades. Se encontra aí a tendência de cada ideologia de "naturalizar" seus pressupostos, ou seja, de se apresentar, não pelo que ela é, de fato uma construção do espírito humano, mas como uma simples descrição, uma simples transcrição da ordem natural. O estado sendo correlativamente rejeitado como um artifício, a ideia da regulação "natural" do social através do mercado pode então ser imposta.

Ao compreender a nação como um mercado, Adam Smith realiza uma dissociação fundamental entre o conceito de espaço e o de território. Rompendo com a tradição mercantilista, que ainda identificava território político e espaço econômico, ele mostra que o mercado não pode por natureza ser contido dentro de limites geográficos específicos. O mercado é de fato não tanto um lugar quanto uma rede. E essa rede está destinada a se estender aos confins da terra, já que seu único limite em última análise reside na habilidade de troca. "Um comerciante", Smith escreve em uma passagem famosa, "...não é necessariamente o cidadão de qualquer país particular. É em grande medida indiferente a ele de que lugar ele realiza seu comércio; e um desgosto bastante corriqueiro o fará remover seu capital, e junto com ele toda a indústria que ele sustenta, de um país para o outro". [13] Essas linhas proféticas justificam o juízo de Pierre Rosanvallon, que vê Adam Smith como "o primeiro internacionalista consistente". "A sociedade civil, concebida como um mercado fluido", acrescente Rosanvallon, "se estende a todos os homens e lhes permite transcender divisões nacionais e raciais".

A principal vantagem do conceito de mercado é que ele permite aos liberais resolverem o difícil problema de como fazer da obrigação parte do pacto social. O mercado pode de fato ser considerado como uma lei - um princípio regulador da ordem social - sem um legislador. Regulado pela ação da "mão invisível", que é inerentemente neutra porque ela não é encarnada em indivíduos concretos, o mercado estabelece um modo abstrato de regulação social baseado em "leis" supostamente objetivas que tornam possível regular as relações individuais onde nenhuma forma de subordinação ou comando existem. A ordem econômica assim teria que estabelecer a ordem social, ambas ordens sendo concebidas como emergindo sem serem instituídas. A ordem econômica, diz Milton Friedman, é "a consequência não-intencional e indesejada dos projetos de um grande número de pessoas impulsionadas exclusivamente por seus interesses". Essa ideia, abundantemente desenvolvida por Hayek, é inspirada pela fórmula de Adam Ferguson (1767) que se referiu aos fatos sociais como "o resultado da ação humana, mas não a execução de qualquer desígnio". [14]

Todo mundo conhece a metáfora smithiana da "mão invisível": No comércio, o indivíduo "quer somente seu próprio ganho, e ele está nisso, como em muitos outros casos, guiado por uma mão invisível para promover um fim que de modo algum estava em suas intenções". [15] Essa metáfora vai muito além da observação completamente banal de que os resultados de suas próprias ações são muitas vezes diferentes do que se esperava (o que Max Weber chamou de "paradoxo das consequências"). Smith de fato enquadra essa observação em uma perspectiva resolutamente otimista. "Cada indivíduo", ele acrescenta, "sempre faz o maior esforço para encontrar o emprego mais vantajoso para todo capital a sua disposição; é bem verdadeiro que ele visualiza seu próprio benefício, não o da sociedade; mas o cuidado que é dado em descobrir sua própria vantagem o leva naturalmente, ou melhor necessariamente, a precisamente preferir o tipo de emprego que é mais vantajosos para a sociedade". E mais: "Ao mesmo tempo em que ele busca somente seu interesse pessoal, ele muitas vezes trabalha de uma maneira muito mais eficaz para o interesse da sociedade do que se seu propósito fosse realmente trabalhar por ela".

As conotações teológicas dessa metáfora são óbvias: a "mão invisível" é apenas um avatas secular da Providência. Deveria ser enfatizado que, contrariamente ao que se costuma acreditar, Adam Smith não assmila o próprio mecanismo do mercado ao jogo da "mão invisível", porque ele utiliza essa somente para descrever o resultado final da confluência de trocas comerciais. Ademais, Smith ainda aceita a legitimidade da intervenção pública quando os projetos individuais sozinhos falham em realizar o bem comum.

Mas essa qualificação logo desaparecerá. Neoliberais agora disputam o próprio conceito de bem público. Hayek proibiu qualquer abordagem compreensiva da sociedade por princípio: nenhuma instituição, nenhuma autoridade política deve determinar objetivos que possam questionar a eficiência da "ordem espontânea". Considerando essa perspectiva, o único papel que a maioria dos liberais concorda em permitir ao estado é a de garantir as condições necessárias para que o jogo livre de racionalidade econômica funcione no mercado. O estado não pode possuir objetivos próprios. Ele existe somente para garantir direitos individuais, liberdade de troca, e respeito pela lei. Equipado com mais permissões do que prerrogativas, ele deve em todos os outros domínios permanecer neutro e renunciar a propor um modelo de "vida boa". [16]

As consequências da teoria da "mão invisível" são decisivas, particularmente no nível moral. Em algumas passagens, Adam Smith de fato reabilita os mesmos comportamentos que séculos anteriores sempre condenaram. Ao subordinar o interesse social aos interesses econômicos individuais, Smith faz do egoísmo a melhor maneira de servir aos outros. Enquanto buscamos maximizar nosso melhor interesse pessoal, nós trabalhamos - sem saber, de fato mesmo sem querer - para o interesse de todos. O livro confronto de interesses egoístas no mercado "naturalmente, ou melhor necessariamente", permite sua harmonização pelo jogo da "mão invisível", assim fazendo com que eles contribuam para o óptimo social. Assim não há nada imoral em buscar o próprio interesse primeiro, já que em última análise a ação egoísta de cada um leva, como que por acidente, ao interesse de todos. É o que Frédéric Bastiat resumiu em uma fórmula: "Cada um, enquanto trabalha para si, trabalha para todos". [17] O egoísmo é assim nada senão o altruísmo corretamente compreendido. Por contraste, são os esquemas das autoridades públicas que merecem ser denunciados como "imorais", sempre que, em nome da solidariedade, eles contradigam o direito de indivíduos agirem segundo seus próprios interesses.

O liberalismo liga o individualismo e o mercado ao afirmar que a operação livre desse é também o garantidor da liberdade individual. Ao garantir o melhor retorno nas trocas, o mercado em efeito garante a independência de cada agente. Idealmente, se a performance do mercado não é impedida, esse ajuste ocorre de um modo óptimo, tornando possível alcançar um conjunto de equilíbrios parciais que garantem um equilíbrio geral. Definido pelo mercado como uma "catalaxia", o mercado constitui uma ordem espontânea e abstrata, o suporte formal e instrumental para o exercício da liberdade privada. O mercado assim representa não somente a satisfação de um ideal econômico de optimalidade, mas a satisfação de tudo a que os indivíduos, considerados como sujeitos genéricos de liberdade, aspiram. Finalmente, o mercado é identificado com a justiça mesma, o que leva Hayek a defini-lo como um "jogo que aumenta as chances de todos os jogadores", estipulando que, sob essas condições, não seria recomendável que os perdedores reclamasse, pois eles só tem a si mesmos a culpar. Finalmente, o mercado é intrinsecamente "pacificador" porque, baseado no "comércio gentil", ele substitui o princípio de negociação pelo conflito, neutralizando tanto a rivalidade como a inveja.

Observe que Hayek reformula a teoria da "mão invisível" em termos "evolucionários". Hayek de fato rompe com qualquer tipo de raciocínio cartesiano, tal como a ficção do contrato social, que implica a oposição (padrão desde Hobbes) entre o estado de natureza e a sociedade política. Ao contrário, na tradição de David Hume, ele elogia o costume e o hábito, que ele opõe a todo "construtivismo". Mas ao mesmo tempo ele afirma que o costume seleciona os códigos de conduta mais efetivos e racionais, ou seja, os códigos de conduta baseados nos valores comerciais, cuja adoção resulta em rejeitar a "ordem tribal" da "sociedade arcaica". É por isso que, invocando a "tradição" ao mesmo tempo ele critica os valores tradicionais e condena firmemente qualquer visão organicista da sociedade. De fato, para Hayek o valor da tradição deriva acima de tudo do que é espontâneo, abstrato, impessoal, e assim inapropriável. É esse caráter seletivo do costume que explica porque o mercado foi gradativamente imposto. Hayek assim pensa que qualquer ordem espontânea é basicamente "certa" do mesmo jeito que Darwin afirma que os sobreviventes da "luta pela vida" são necessariamente "os melhores". A ordem do mercado assim constitui uma ordem social que proíbe por definição qualquer tentativa de reformá-la.

Assim se vê que, para os liberais, o conceito de mercado vai muito além da esfera meramente econômica. O mercado é mais do que um mecanismo para a alocação óptima de recursos escassos ou um sistema regulando os caminhos de produção e consumo. O mercado é também e acima de tudo um conceito sociológico e "político". O próprio Adam Smith, na medida em que ele transformou o mercado no principal agente de ordem social, foi levado a conceber as relações humanas no modelo econômico, ou seja, como relações entre mercadorias. Assim uma economia de mercado leva bastante naturalmente a uma sociedade de mercado. "O mercado", escreve Pierre Rosanvallon, "é primariamente um modo de representar e estruturar espaço social; ele é somente secundariamente um mecanismo descentralizado para regular atividades econômicas através do sistema de preços". [18]

Para Adam Smith, a troca generalizada é a consequência direta da divisão do trabalho: "Cada homem assim vive trocando, ou se torna em alguma medida uma mercadoria, e a própria sociedade cresce para ser o que é propriamente uma sociedade comercial". [19] Assim, da perspectiva liberal, o mercado é o paradigma dominante em uma sociedade que se define totalmente como uma sociedade de mercado. A sociedade liberal é somente um reino de trocas utilitárias por indivíduos e grupos todos eles impulsionados somente pelo desejo de maximizar seu interesse. Um membro dessa sociedade, onde tudo pode ser comprado e vendido, é ou um comerciante, ou um proprietário, ou um produtor, e em todos os casos um consumidor. "Os direitos superiores de consumidores", escreve Pierre Rosanvallon, "são para Smith o que a Vontade Geral é para Rousseau".

Na era da moderna, a análise econômica liberal foi gradativamente estendida a todos os fatos sociais. A família foi assimilada a um pequeno negócio, as relações sociais a uma rede de estratégias egoístas de competição, a vida política a um mercado onde os eleitores vendem seu voto para a melhor oferta. O homem é percebido como capital, a criança como um bem de consumo. A lógica econômica foi assim projetada sobre o todo social, em que ela uma vez esteve entranhada, até que ela a englobou inteiramente. Como Gerald Berthoud escreve, "a sociedade pode então ser concebida partindo de uma teoria formal de ação propositada. A análise de custo-benefício é assim o princípio que governo o mundo". [20] Tudo se torna um fator de produção e consumo; tudo se pretende resultar do ajuste espontâneo de oferta e demanda. Tudo vale seu valor de troca, medido por seu preço. Correlativamente, tudo que não pode ser expresso em termos quantificáveis e calculáveis é mantido como desinteressante ou irreal. O discurso econômico assim se prova profundamente reificadora das práticas sociais e culturais, profundamente estranho a qualquer valor que não pode ser expresso em termos de preço. Reduzindo todos os fatos sociais a um universo de coisas mensuráveis, ele finalmente transforma os próprios homens em coisas - coisas substituíveis e intercambiáveis desde o ponto de vista monetário.

Essa representação estritamente econômica da sociedade possui consequências consideráveis. Completando o processo de secularização e "desencantamento" do mundo característico da modernidade, ela leva à dissolução de povos e à erosão sistemática de suas características distintas. No plano sociológico, privilegiar a troca econômica divide a sociedade em produtores, proprietários, e classes estéreis (como a antiga aristocracia), através de um processo eminentemente revolucionário que Karl Marx não foi o último a elogiar. No plano da imaginação coletiva, ela leva a uma inversão completa de valores, ao mesmo tempo que ergue ao pináculo os valores comerciais que desde tempos imemoriais haviam sido considerados como a própria definição do inferior, já que eles eram questões de mera necessidade. No plano moral, ela reabilita o espírito do cálculo auto-interessado e o comportamento egoísta, que a sociedade tradicional sempre condenou.

A política é considerada como intrinsecamente perigosa, na medida em que concerne o exercício do poder, que é considerado "irracional". Assim o liberalismo reduz a política à garantia de direitos e ao gerenciamento da sociedade somente por perícia técnica. É a fantasia de uma "sociedade transparente" coincidindo imediatamente consigo mesma, fora de qualquer referente simbólico ou intermediação concreta. À longo prazo, em uma sociedade inteiramente governada pelo mercado e baseada no postulado da auto-suficiência da "sociedade civil", o estado e instituições relacionadas estão fadadas a decair tão certamente quanto na sociedade sem classes imaginada por Marx. Ademais, a lógica do mercado, como Alain Caillé demonstra, é parte de um processo maior tendendo à equalização, mesmo à intercambiabilidade, de homens, por meio de uma dinâmica que é observada já no uso moderno da moeda. "O ato conciliador da ideologia liberal", segundo Caillé, "...reside na identificação do estado legal com o estado comercial, sua redução a uma emanação do mercado. Consequentemente, a reivindicação pela liberdade de indivíduos em escolher seus próprios fins se torna uma obrigação em ter somente fins comerciais". [21]

O paradoxo é que liberais jamais deixam de afirmar que o mercado maximiza as chances de cada indivíduo realizar seus próprios fins, ao mesmo tempo que afirmando que esses fins não podem ser definidos de antemão, e que, ademais, ninguém pode defini-los melhor que o próprio indivíduo. Mas como eles podem dizer que o mercado faz emergir o óptimo, se nós não sabemos o que é esse óptimo? Na verdade, se poderia tão facilmente afirmar que o mercado multiplica aspirações individuais muito mais do que lhes dá os meios de alcançá-los, que ele amplia, não sua satisfação, mas sua insatisfação no sentido tocquevilliano do termo.

Ademais, se o indivíduo é sempre por definição o melhor juiz de seus próprios interesses, então o que o obriga a respeitar a reciprocidade, que seria a única norma? A doutrina liberal não mais basearia o comportamento moral em um senso de dever ou na lei moral, mas no egoísmo, corretamente compreendido. Ainda que sem violar a liberdade de outros, eu os dissuadiria de violar as minhas. O medo da polícia teoricamente resolveria o resto. Mas se eu estou certo de que, ao transgredir as regras, eu incorro apenas em um risco mínimo de punição, e a reciprocidade não me interessa, o que me impede de violar as regras ou a lei? Obviamente nada. Ao contrário, tomar em consideração nada além dos meus interesses me encoraja a fazê-lo o máximo possível.

Em sua Teoria dos Sentimentos Morais (1759), Adam Smith escreve francamente:

"...ainda que entre diferentes membros da sociedade não deve haver amor mútuo e afeição, a sociedade, ainda que menos feliz e concordável, não será necessariamente dissolvida. A sociedade pode subsistir entre homens diferentes, como entre comerciantes diferentes, desde um senso de sua utilidade, sem qualquer amor mútuo ou afeição; e ainda que nenhum homem nela deveria dever qualquer obrigação, ou ser vinculado em gratidão a qualquer outro, ele pode ainda ser firmado por uma troca mercenária de bons ofícios segundo uma valoração consensual". [22]

O sentido dessa passagem é claro. Uma sociedade pode muito bem economizar - essa palavra é essencial - em qualquer forma de socialidade orgânica, sem deixar de ser uma sociedade. É o bastante para ela se tornar uma sociedade de comerciantes: o laço social se fundirá com o sentimento de sua "utilidade" e a "troca mercenária de bons ofícios". Assim para ser humano, é suficiente tomar parte em trocas comerciais, fazer uso livre do próprio direito de maximizar seus melhor interesse. Smith disse que tal sociedade certamente será "menos feliz e concorde", mas a nuance foi rapidamente esquecida. Imagina-se até se, para certos liberais, o único jeito de ser plenamente humano é se comportar como comerciantes, ou seja, aqueles que outrora recebiam um status inferior (não que eles não fossem considerados como úteis, e mesmo necessários, mas pelo exato motivo de que não eram nada além de úteis - e sua visão do mundo estava limitada pelo valor único da utilidade). E isso obviamente levanta a questão do status daqueles que não se comportavam assim, ou por falta de interesse ou pelos meios. São eles ainda homens?

A lógica do mercado efetivamente se impôs gradativamente, começando ao fim da Idade Média, quando o comércio de local e de longa distância começaram a se unificar dentro de mercados nacionais sob o ímpeto dos estados-nação emergentes, ávidos por monetarizar e assim taxar formas outrora não-tributáveis de comércio intracomunitário. Assim, longe de ser um fato universal, o mercado é um fenômeno estritamente localizado no tempo e no espaço. E, longe de ser "espontâneo", esse fenômeno foi na verdade instituído. Particularmente na França, mas também na Espanha, o mercado de modo algum foi construído à despeito do estado-nação, mas sim graças a ele. O estado e o mercado nascem juntos e progridem no mesmo ritmo, o primeiro constituindo o segundo ao mesmo tempo que institui a si mesmo. "No mínimo", Alain Caillé escreve, "é recomendável não considerar o mercado e o estado como duas entidades radicalmente diferentes e antagonistas, mas como duas facetas do mesmo processo. Historicamente, mercados nacionais e estados-nação são construídos no mesmo ritmo, e um não é encontrado sem o outro". [23]

De fato, ambos se desenvolvem na mesma direção. O mercado amplifica o movimento do estado nacional o qual, para estabelecer sua autoridade, não pode deixar de destruir metodicamente todas as formas de socialização intermediária que, no mundo feudal, foram estruturas orgânicas relativamente autônomas (clãs familiares, comunidades rurais, fraternidades, guildas, etc.). A classe burguesa, e com ela o liberalismo incipiente, sustentou e agravou essa atomização da sociedade, na medida em que a emancipação do indivíduo que ele desejava demandou a destruição de todas as formas involuntárias de solidariedade ou dependência que representam tantos obstáculos à ampliação do mercado. Pierre Rosanvallon observa:

"Desde essa perspectiva, estado-nação e mercado refletem o mesmo tipo de socialização de indivíduos no espaço. Eles são concebíveis somente dentro do esquema de uma sociedade atomizada, na qual o indivíduo é compreendido como autônomo. Assim tanto estado-nação e o mercado, tanto no sentido sociológico como econômico dos termos, não são possíveis onde a sociedade existe como um todo social abarcante.[24]

Assim a nova forma da sociedade que emergiu da  crise da Idade Média foi construída gradativamente, começando do indivíduo, de seus padrões éticos e políticos, e de seus interesses, lentamente dissolvendo a coerência dos reinos político, econômico, legal e mesmo linguístico que a velha sociedade tendia a sustentar. Até o século XVII, porém, estado e sociedade civil continuaram a ser uma e a mesma coisa: a expressão "sociedade civil" era ainda sinônima da sociedade politicamente organizada. A distinção começa a emergir tarde no século XVII, notavelmente com Locke, que redefine a "sociedade civil" como a esfera da propriedade e das trocas, o estado ou "sociedade política" sendo assim dedicado a proteger somente os interesses econômicos. Com base na criação de uma esfera autônoma de produção e trocas, e refletindo a especialização de papeis e funções característica do estado moderno, essa distinção levou ou à valorização da sociedade política como resultado de um contrato social, como com Locke, ou à exaltação da sociedade civil com base no ajuste espontâneo de interesses, como com Mandeville e Smith. [25] Como esfera autônoma, a sociedade civil cria um campo para a disposição irrestrita da lógica econômica de interesses. Como consequência do advento do mercado, a "sociedade", como Karl Polanyi escreve, "é gerenciada como um auxiliar do mercado. Ao invés da economia estar entranhada em relações sociais, as relações sociais estão entranhadas em relações econômicas". [26] Esse é o próprio sentido da revolução burguesa.

Ao mesmo tempo, a sociedade assume a forma de uma ordem objetiva, distinta da ordem natural ou cósmica, que coincide com a razão universal à qual o indivíduo deveria ter acesso imediato. Sua objetivação histórica inicialmente cristaliza na doutrina política de direitos, cujo desenvolvimento se pode seguir desde o tempo de Jean Bodin ao Iluminismo. Em paralelo, a economia política emerge como uma ciência geral da sociedade, concebida como um processo de desenvolvimento dinâmico sinônimo ao "progresso". A sociedade assim se torna o sujeito de um conhecimento científico específico. Na medida em que ela alcança um modo supostamente racional de existência, e suas práticas são sujeitas a uma racionalidade instrumental como princípio último de regulação, o mundo social cai sob um certo número de "leis". Mas graças a essa mesma objetivação, a unidade da sociedade, como sua simbolização, se torna eminentemente problemática, tanto quanto a privatização da pertença e da conexão leva rapidamente à fragmentação do corpo social, à multiplicação de interesses privados conflitantes, e ao início da desinstitucionalização. Novas contradições logo aparecem, não apenas entre a sociedade fundada pela burguesia e remanescentes do Velho Regime, mas mesmo dentro da sociedade burguesa, tal como a luta de classes.

A distinção entre o público e o privado, entre estado e sociedade civil, era ainda aguda no século XIX, generalizando uma visão dicotômica e contraditória do espaço social. Tendo estendido seu poder, o liberalismo, daí em diante promoveu uma "sociedade civil" identificada tão somente com a esfera privada e denunciou a influência "hegemônica" do setor público, levando-o a reivindicar o fim do monopólio estatal sobre a satisfação de necessidades coletivas e pela extensão dos modos comerciais de regulação intrassocial. A "sociedade civil" então assumiu uma dimensão majoritariamente mítica. Sendo definida menos e menos em seus próprios termos do que em oposição ao estado - seus contornos confusamente definidos pelo que teoricamente era subtraído do estado - ele parecia mais uma força ideológica do que uma realidade bem definida.

Ao fim do século XIX, porém, ajustes tinham que ser feitos à lógica puramente econômica da regulação e reprodução sociais. Esses ajustes foram menos o resultado de resistência conservadora do que das contradições internas da nova configuração social. A própria sociologia emergiu da resistência da sociedade real a mudanças políticas e institucionais bem como daqueles que invocaram uma "ordem natural" para denunciar o caráter formal e artificial do novo modo de regulação social. Para os primeiros sociólogos, a ascensão do individualismo fez eclodir um medo duplo: de "anomia" resultando da desintegração dos laços sociais (Émile Durkheim) e da "multidão" formada por indivíduos atomizados subitamente unidos em uma "massa" incontrolável (Gustave Le Bon ou Gabriel Tarde, ambos os quais reduzem a análise de fatos sociais à "psicologia"). O primeiro encontra um eco entre pensadores contrarrevolucionários em particular. O segundo é principalmente perceptível entre a burguesia preocupada acima de tudo com se proteger das "classes perigosas".

Enquanto o estado-nação apoiou e instituiu o mercado, o antagonismo entre liberalismo e o "setor público" cresceu sequencialmente. Liberais jamais deixam de fulminar contra o estado de bem-estar, sem perceber que é precisamente a extensão do mercado que necessita de uma intervenção estatal cada vez maior. O homem cujo trabalho é sujeito somente ao jogo do mercado é de fato vulnerável, pois seu trabalho pode não encontrar nenhum interessado e não possuir valor. O individualismo moderno, ademais, destruiu as relações orgânicas de proximidade, que eram acima de tudo relações de ajuda mútua e solidariedade recíproca, destruindo assim velhas formas de proteção social. Enquanto regula oferta e demanda, o mercado não regula relações sociais, mas ao contrário as desorganiza, no mínimo porque ele não leva em consideração demandas pelas quais não se pode pagar. A ascensão do estado de bem-estar então se torna uma necessidade, já que ele é o único poder capaz de corrigir os desequilíbrios mais evidentes e atenuar as perturbações mais óbvias. É por isso que, como Karl Polanyi mostrou, cada vez que o liberalismo parece triunfar, ele tem sido paradoxalmente auxiliado pelo acréscimo de intervenções oficiais necessárias pelo dano ao tecido social causado pela lógica do mercado. "Sem a relativa paz social do estado de bem-estar", Alain Caillé observa, "a ordem do mercado teria sido varrida completamente". [27] Essa sinergia entre mercado e estado há muito tem sido caracterizada (e em certos sentidos continua a caracterizar) o sistema fordista. "Proteção social", conclui Polanyi, "é o acompanhamento obrigatório do mercado autorregulador". [28]

Na medida em que suas intervenções objetivam compensar pelos efeitos destrutivos do mercado, o estado de bem-estar de uma certa maneira desempenha um papel em "desmercadizar" a vida social. Porém, ele não pode substituir completamente as formas de proteção comunitária destruídas pelo desenvolvimento industrial, pela ascensão do individualismo, e pela expansão do mercado. Em comparação a essas velhas formas de proteção social, ele de fato tem tantas limitações quanto benefícios. Ao passo que a velha solidariedade se apoiava em uma troca de serviços mútuos, que implicavam responsabilidade para todos, o estado de bem-estar encoraja a irresponsabilidade e transforma cidadãos em dependentes. Ao passo que a velha solidariedade caiu sob uma rede de relações concretas, o estado de bem-estar assume a forma de um maquinário abstrato, anônimo e remoto, do qual se espera tudo e ao qual se pensa não dever nada. A substituição de uma solidariedade impessoal, externa e opaca por uma solidariedade antiga e imediata e, assim, longe de ser satisfatória. Ela é, na verdade, a própria fonte da atual crise do estado de bem-estar que, por sua própria natureza, parece fadado a implementar somente uma solidariedade que é economicamente ineficaz por ser sociologicamente desajustada. Como Bernard Enjolras escreve, "ir para além da crise interna do estado de bem-estar pressupõe...redescobrir as condições que produzem a solidariedade de proximidade", que são também "as condições para reforjar o laço econômico para restaurar o sincronismo entre a produção de riqueza e a produção do social". [29]

"Toda a degradação do mundo moderno", escreveu Péguy, "ou seja, toda redução de padrões, toda degradação de valores, vem do mundo moderno considerar como negociáveis os valores que os mundos antigo e cristão consideravam como inegociáveis". [30] A ideologia liberal porta uma responsabilidade maior por essa "degradação", na medida em que o liberalismo se baseia em uma antropologia irrealista englobando uma série de conclusões errôneas.

A ideia de que o homem age livremente e racionalmente no mercado é somente um postulado utópico, pois  fatos econômicos jamais são autônomos, mas relativos a um certo contexto social e cultural dado. Não há racionalidade econômica inata; é apenas o produto de um desenvolvimento sócio-histórico bem definido. Trocas comerciais não são a forma natural das relações sociais, ou mesmo das relações econômicas. O mercado não é um fenômeno universal, mas um fenômeno localizado. Ele jamais realiza o ajuste óptimo entre oferta e demanda, no mínimo porque ele só toma em consideração a demanda daqueles que podem pagar. A sociedade é sempre mais do que seus componentes individuais, como uma classe é sempre mais do que os elementos que a formam, porque ela é o que a constitui enquanto tal, e aquilo de que ela é assim logicamente e hierarquicamente distinto, como demonstrado na teoria de Russell dos tipos lógicos (uma classe não pode ser membro de si mesma, mais do que um de seus membros pode por si só constituir uma classe). Finalmente, a concepção abstrata de um indivíduo desinteressado, "descontextualizado" que age a partir de expectativas estritamente racionais e que livremente escolhe sua identidade do nada, é uma visão totalmente insustentável. Ao contrário, teóricos comunitários e quase-comunitários (Alasdair MacIntyre, Michael Sandel) demonstraram a importância vital para indivíduos de uma comunidade que necessariamente constitui seu horizonte, sua episteme - mesmo para forjar uma representação crítica dela - para a construção de sua identidade bem como para a satisfação de seus objetivos. O bem comum é a doutrina substancial que define o modo de vida da comunidade e assim sua identidade coletiva.

Toda a crise atual emerge da contradição que é exacerbada entre o ideal do homem abstrato universal (com sua atomização corolária e despersonalização de todas as relações sociais) e a realidade do homem concreto (para quem os laços sociais continua a se fundar em laços emocionais e relações de proximidade, junto com seus corolários de coesão, consenso, e obrigações recíprocas).

Autores liberais acreditam que a sociedade pode se basear exclusivamente no individualismo e nos valores de mercado. Isso é uma ilusão. O individualismo jamais foi a única fundação do comportamento social, e jamais será. Há também boas razões para pensar que o individualismo pode aparecer somente na medida em que a sociedade permaneça em alguma medida holista. "O individualismo", escreve Louis Dumont", é incapaz de substituir o holismo completamente e reinar sobre toda a sociedade... Ademais, ele não pode funcionar sem o holismo contribuindo para sua vida de uma variedade de maneiras imperceptíveis e subrreptícias". [31] O individualismo é o que dá à ideologia liberal sua dimensão utópica. Assim é errado ver o holismo como somente um legado mal-fadado do passado. Mesmo na era do individualismo moderno, o homem permanece como um ser social. O holismo reaparece no momento que a teoria liberal propõe uma "harmonia natural de interesses", em efeito reconhecendo que o bem comum toma precedência sobre interesses privados.