30/12/2015

Aleksandr Dugin - A Quarta Teoria Política: Ser ou Não Ser

por Aleksandr Dugin

Tradução por Breno Costa



Hoje o mundo é dominado pela impressão de que a política terminou - ao menos a que nós conhecemos. O liberalismo emplacou um combate tenaz contra seus inimigos políticos que propunham receitas alternativas - o conservadorismo, a monarquia, o tradicionalismo, o fascismo, o socialismo e o comunismo - para finalmente vencer todos no final do século XX. Parecia lógico supor que a política se converteria em liberal e que todos os adversários do liberalismo na periferia começariam a repensar suas estratégias e a construir uma nova frente: a periferia contra o centro, segundo a teoria de Alain de Benoist. Porém, no começo do século XXI, tudo seguiu um caminho diferente.

O liberalismo, que sempre tem buscado a minimização da política, decidiu, depois de sua vitória, eliminar por completo a política. Provavelmente para não permitir a formação de uma alternativa política e eternizar o seu reino ou, simplesmente, devido ao esgotamento da agenda política em razão da ausência de inimigos, que, segundo Carl Schmitt, são necessários para a formação de uma posição política. Em qualquer caso, o liberalismo tem conduzido a um recuo na política. Assim, o liberalismo se transforma, passando desde o nível das ideias, dos programas políticos e das declarações, passando ao nível das coisas e ingressando no miolo da realidade social, convertida em liberal, não a partir de um ponto de vista político, mas de uma maneira cotidiana, normal. 

A partir desse ponto de inflexão na história, todas as ideologias políticas que haviam se combatido ferozmente entre si através dos séculos perderam sua atualidade. O conservadorismo, o fascismo e o comunismo, assim como suas variedade marginais, fracassaram, enquanto que o liberalismo, triunfante, converteu-se na vida vida cotidiana, no consumismo, no individualismo, no estilo pós-modernista de ser sub-político e fragmentado. A política converteu-se em biopolítica e passou do nível individual ao nível sub-individual. Portanto, parece haver deixado a cena não somente as ideologias derrotadas, mas, também, a política como tal, incluindo a política liberal. Precisamente por essa razão é tão difícil a formação de uma alternativa. Os oponentes do liberalismo encontram-se em uma situação difícil: o inimigo triunfante evaporou, desapareceu; lutam contra o vácuo. Como fazer política quando não existe Política? 

Só há uma solução: Rechaçar as teorias políticas clássicas, tanto as derrotadas como as triunfantes, demonstrar imaginação, compreender as realidades do novo mundo global, decifrar corretamente os desafios do mundo pós-moderno e criar algo novo, além das batalhas políticas do século XIX e XX. Este enfoque é um convite para desenvolver uma Quarta Teoria Política além do comunismo, do fascismo e do liberalismo.

Para avançar no desenvolvimento desta Quarta Teoria Política, é necessário:

- Modificar a interpretação da história política dos últimos séculos, adotando novos pontos de vista, além do quadro dos clichês ideológicos habituais das velhas ideologias;

- Dar-se conta da estrutura profunda da sociedade global que aparece diante de nossos olhos;
- Decifrar corretamente o paradigma da era pós-moderna;

- Aprender a não opor-se a uma ideia política, a um programa ou a uma estratégia, mas ao estado das coisas "objetivo", ao tecido social apolítico da (pós) sociedade fraturada;

- Por último, construir um modelo político independente propondo um caminho e um projeto em um mundo de becos sem saída e de infinita reciclagem das mesmas coisas (pós-história segundo J. Baudrillard).

O presente trabalho se dedica a isso e ao desenvolvimento de uma Quarta Teoria Política mediante o exame das três primeiras teorias políticas, assim como das ideologias próximas a elas, o nacional-bolchevismo e o eurasianismo. Não se trata de um dogma ou de um sistema pronto de um projeto acabado. É um convite à criação política, à exposição de intuições e de hipóteses, à análise das novas condições. Por fim, é um intento de reinterpretação do passado. 

Nós não concebemos a Quarta Teoria Política como um trabalho de um só autor, mas como uma tendência de um amplo espectro de ideias, estudos, análises, previsões e projetos. Todas as pessoas que pensam segundo essa perspectiva podem contribuir com algumas de suas ideias. E um número crescente de novos intelectuais, filósofos, historiadores, cientistas e pensadores estão respondendo a esta convocação.

É sintomático que o livro do grande intelectual francês Alain de Benoist, Contra o Liberalismo, publicado em russo pelas edições Amphora, tem o subtítulo de Rumo a uma Quarta Teoria Política. É provável que os defensores da velha direita, assim como os defensores da velha esquerda e, provavelmente, os liberais, tendo em conta a mudança qualitativa em sua plataforma política, onde a política se evapora, tenham muito o que dizer sobre este tema. 

Para o meu país, a Rússia, a Quarta Teoria Política tem, entre outras coisas, uma importância prática considerável. A integração com a comunidade mundial é experimentada pela maioria dos russos como um drama, como uma perda de sua identidade. Na década de 1990, a ideologia liberal se vê quase totalmente rechaçada pela população russa. No entanto, por outro lado, a intuição sugere que o retorno às ideologias políticas não-liberais do século XX - o comunismo e o fascismo - é pouco provável em nossa sociedade, sendo que estas ideologias historicamente demonstraram serem incapazes de resistir ao liberalismo, sem mencionar o custo moral do totalitarismo.

Portanto, para preencher o vácuo, a Rússia necessita de uma nova ideia política. O liberalismo não é adequado, enquanto que o comunismo e o fascismo são inaceitáveis. E se, para alguns, é uma questão de livre eleição, de realização da vontade política, que sempre se pode dirigir tanto à afirmação como à negação, para a Rússia é uma questão de vida ou morte, a questão eterna de Hamlet.

Se a Rússia decidir "ser", significaria automaticamente criar uma Quarta Teoria Política. Do contrário, só permaneceria "não ser" e sairia lentamente da arena histórica, para dissolver-se em um mundo que não é criado e gestionado por nós.

29/12/2015

Aleksandr Dugin - Princípios e Estratégia da Guerra Vindoura

por Aleksandr Dugin



Para falar a verdade, a guerra começou. A guerra "foi começada". Esta guerra, que é a mais importante agora, é o confronto de duas civilizações: a civilização terrestre, representada pela rússia, e a civilização marítima, representada pelos EUA. É um impasse entre um sistema comercialista, e uma civilização heroica, entre Cartago e Roma, Atenas e Esparta. Porém, em certos momentos ela alcança uma fase "quente". Nós estamos neste momento novamente. Estamos à beira da guerra, e uma também já existe. Porém, esta guerra pode se tornar a maior e, talvez, a única batalha de nossas vidas, a qualquer momento. Como os principais jogadores - EUA e Rússia - são potências nucleares, a guerra envolve todas as nações do planeta. Ela possui toda chance de se tornar o fim da humanidade. Obviamente, isso não está garantido, mas tal desfecho não pode ser excluído.

O plano espiritual do grande conflito é compreendido em termos e contextos especiais. Aqui, o equilíbrio de poder está sempre a favor da Luz, apesar da posição dos fieis. Porém, ao nível estratégico pode parecer um pouco diferente. Os papeis na guerra não são simétricos. A Rússia está em uma posição mais fraca, mas tentando recuperar seu status de ator global. Ela busca apenas restaurar seu poder regional potencial para exercer sua influência livremente nas áreas próximas a suas fronteiras. Porém, isso é inaceitável para os EUA, que, apesar de tudo, permanecem com a hegemonia global e se recusam a perder a monopolaridade voluntariamente.

Se levarmos em consideração o pano-de-fundo espiritual da guerra se tornará claro que a escuridão não permite que a luz exista em qualquer proporção, ela só se acalmará quando for capaz de combater a luz por todo lugar, não apenas globalmente, mas também localmente. Um raio é suficiente para transformar a escuridão em trevas. Sem a luz, ela pode fingir ser qualquer coisa. Há uma conclusão importante: as ambições globais do Ocidente tecnocrático-materialista moderno, o próprio globalismo, não são uma contingência, mas a essência da força com a qual lidamos. É ingênuo assumir que você pode negociar com o diabo, ou enganá-lo. Você só pode vencer. Essa é a lei da guerra espiritual. Hoje, um ataca e o outro defende. Portanto, a guerra está quase no território russo, na área de seus interesses nacionais diretos. Ao mesmo tempo, a Rússia tenta ir além de suas fronteiras; a guerra é defensiva para ela. Atualmente, ela só tem objetivos regionais. Porém, o poder nuclear global a impede de atingi-los. Isso complica a situação e eleva o conflito a um nível global. Em qualquer coisa, a Rússia é atacada e se defende. Isso é importante.

Agora vamos nos voltar para as frentes da guerra.

Primeira Frente: Síria

Desde o início do conflito sírio, Moscou tem apoiado Assad, que foi atacado por Washington, Europa Ocidental e pelos proxies americanos no Oriente Médio: Arábia Saudita, Catar e Turquia. Cada um dos países, porém, seguia seus próprios interesses. A ferramenta para derrubar Assad eram grupos islâmicos radicais: ISIS, Al Qaeda (a Frente Al-Nusra), etc. Porém, a Rússia tornou-se plenamente envolvida em operações militares apenas em 2015, quando um Assad exausto pediu por apoio militar aberto. Neste caso, Moscou recebeu aliados, representados pelo eixo xiita: Teerã - Iraque xiita - e o Hezbollah libanês; eles não apenas cooperam, mas até lutam lado-a-lado. O mundo xiita é estritamente anti-americano, mas ao mesmo tempo, ao nível regional, se opõe ao financiamento sunita saudita e catari de grupos salafistas extremistas.

Na Primeira Frente, a Rússia enfrenta os EUA e os países da OTAN, não diretamente, mas indiretamente. Os próprios países ocidentais estão em guerra com o ISIS, como eles dizem, mas em verdade apoiam vigorosamente os grupos islâmicos radicais que querem derrubar Assad. As mesmas táticas foram usadas para derrubar Gaddafi na Líbia.

Ademais, a presença de jihadistas salafistas no Iraque, bem como do Talibã no Afeganistão, parece justificar a presença continuada de tropas americanas. Portanto, a Primeira Frente é um desafio vital para a Rússia: ela combate indiretamente os EUA e OTAN, e quase abertamente Turquia, Arábia Saudita e Catar. Portanto, a guerra na Síria não pode ser considerada como uma operação antiterrorista ordinária: ademais, os salafistas agora controlam a maior parte da Síria, possuindo uma impressionante quantidade de apoio direto e indireto. Mas a Rússia é a potência nuclear. Portanto, seu envolvimento na guerra síria mudou dramaticamente a situação, trazendo-a do nível local ao nível global. Com seu envolvimento, ela colocou muito em jogo. Agora isso não é apenas um problema de Assad, seus inimigos são forçados a lutar contra a Rússia. Não obstante, o oposto também é verdadeiro: a Rússia desafio não apenas a rede extremista do ISIS e da Al-Nusra, mas a hegemonia americana e o salafismo médio-oriental, com sua base importante nas monarquias do petrodólar no Golfo. Isso é importante: como Moscou compreende a seriedade da situação da Primeira Frente, e quão longe está disposta a ir em um cenário muito difícil, com uma coalizão impressionante do outro lado. Afinal, os EUA e OTAN estão ali, não importa o que digam.

Segunda Frente: Turquia

Se envolvendo cada vez mais na guerra síria, a Rússia se depara, como é evidente, com a Turquia - que está essencialmente ocupando o norte da Síria, habitada por tribos turcomanas, e começou um conflito militar com os curdos sírios. Erdogan tem estabelecido uma aliança com o rico Catar por um longo tempo, financiando grupos salafistas (como a "Fraternidade Muçulmana" no Egito) e começou uma luta ativa contra Assad. Portanto, quando o exército russo na Síria começou a bombardear as posições dos salafistas no norte da Síria, ela se envolveu em um conflito direto com Ancara. A derrubada do avião militar e o assassinato brutal dos pilotos russos foi apenas um pretexto para a escalada da tensão. Quando a Rússia começou a atuar de forma decisiva e a se envolver no conflito, não havia outro rumo, a guerra com a Turquia se tornou um evento muito real.

Então há a ruptura das relações comerciais, a proibição do turismo e a expulsão de companhias de construção da Turquia, que na esfera econômica é o ataque mais forte e doloroso, que levou a perdas e vários bilhões de dólares. Ancara está ameaçando constantemente fechar o Bósforo para navios russos, o que seria cortar uma artéria vital para tropas russas em Latakia.

Os turcos enviaram, em semanas recentes, uma parte considerável de suas tropas da fronteira com a Grécia para a fronteira com a Síria, e isso pode ser considerado como preparação para uma invasão militar. Todos esses fatos ampliam fortemente o risco de uma nova guerra turco-russa. Quão provável isso seria? É mais provável do que já foi alguma vez no século XX e nas primeiras décadas do século XXI. A Segunda Frente já está aberta. Quando um conflito direto vai começar, ninguém pode dizer com certeza. Teoricamente, isso poderia acontecer a qualquer momento. Aqui novamente, vale a pena lembrar que a Turquia é um Estado-membro da OTAN, e que ela coordena suas ações na Síria com Washington. Isso significa que a Rússia enfrentará a coalizão ocidental (com os EUA na liderança) atuando no lado turco em uma nova guerra potencial, como na Guerra da Crimeia. Assim novamente, um conflito regional obviamente teria impacto global. Isso é especialmente verdadeiro porque na Turquia há uma base militar nuclear americana. Seria difícil uma guerra direta com a Turquia não ser o início da Terceira Guerra Mundial.

A Terceira Frente: Ucrânia

A reunificação da Crimeia com a Rússia não é reconhecida por ninguém no mundo. A RPD (República Popular de Donetsk) e a RPL (República Popular de Lugansk) são uma ferida sangrenta com status desconhecido. A posição de Poroshenko em Kiev é bastante instável, e uma mudança real na situação econômica e social na Ucrânia em geral, até mesmo teórica, é impossível. Portanto, em um certo momento, Kiev só tem um caminho: uma nova rodada de tensão e escalada no leste, e mesmo uma invasão da Crimeia.

Se a Ucrânia enfrentasse a Rússia nessa situação, isso seria suicídio para Kiev.

Porém, nós devemos levar em consideração os EUA e a OTAN. O Ocidente estava por trás do golpe de Estado do inverno de 2014. Ademais, em algum momento, um ataque contra a posição consolidada dos militantes novorrussos e mesmo na Crimeia, pelo exército ucraniano, é bastante possível mesmo por razões ucranianas domésticas, ainda mais no contexto da lógica do confronto global entre Rússia e EUA.

É importante notar que todas as três frentes estão situadas perto das fronteiras russas, na área que separa Eurásia e Rússia, o espaço continental da Heartland, de seus territórios ocidentais. É a área em que civilizações do Oriente e do Ocidente se encontram. Usualmente, disputas por estes territórios iniciam guerras mundiais e conflitos globais. Todas as três frentes estão em antigos territórios otomanos, já que a Rússia ganhou a Nova Rússia e a Crimeia dos turcos, e a Síria era parte do Império também. Anteriormente, essas haviam sido áreas do mundo ortodoxo-bizantino. Portanto, as três frentes possuem um enorme sentido histórico e civilizacional.

Agora vamos olhar para os problemas domésticos da Rússia. Há três frentes também.

Quarta Frente: Terrorismo Salafista na Rússia

As estruturas em rede do Islã radical, ligadas a Arábia Saudita, Catar e Turquia há muito tem estado dispostas na Rússia, tanto no norte do Cáucaso como em outras regiões. Conforme o influxo de população muçulmana em cidades russas e na capital continua, as redes se espalham e amarram todo o espaço russo. Elas não estão limitadas a áreas densamente povoadas por muçulmanos, mas expandem ativamente sua zona de influência em outros ambientes sociais. Usando uma variedade de problemas domésticos, o Islã sunita radical se tornou razoavelmente popular como uma alternativa à agenda ideológica oficial incoerente e letárgica de Moscou e seus representantes puramente conformistas nas regiões. Isso alimenta a preparação e treinamento de grupos terroristas e de ramos diretos do ISIS.

Se os serviços especiais se tornam tecnicamente menos envolvidos com a tarefa de dissuasão grupoa, o plano estratégico e o programa mais ideológico para combater o fenômeno não existirão, o que ao longo do tempo só tornará a Quarta Frente mais importante. A Quarta Frente foi de fato o foco nas campanhas da Primeira e Segunda Guerras da Chechênia; a vitória na Segunda foi alcançada apenas após se usar uma linha patriótica linha-dura na política doméstica.

Quaisquer novas tentativas de enfraquecer o discurso nacional automaticamente fortalece as tendências centrífugas e os grupos extremistas. A Quarta Frente está aberta e em operação, mas a escala dos problemas que ela causa não sabemos. Sem semear pânico entre a população, os serviços de segurança ocultam das pessoas comuns a quantidade de ataques terroristas evitados e outras medidas preventivas, que, na verdade, é impressionante mesmo hoje. Como os EUA e seus centros estrangeiros, os proxies americanos no Oriente Médio, apoiam a Quarta Frente, nós podemos esperar apoio financeiro sério e, mais importantemente, o apoio de uma nova escalada.

 Quinta Frente: Quinta Coluna

Esta frente é uma rede de forças de oposição cujo núcleo consiste nos liberais pró-americanos que sonham em retornar à década de 90, o período do saque óbvio da Rússia e da venda de todos os seus bens para clientes estrangeiros, bem como da onipotência das elites liberais que possuem, como sua bucha-de-canhão, os nacionalistas radicais e neonazistas russos insatisfeitos com as autoridades russas e sua política passiva perante a migração e a ausência completa ou inarticulação da ideia nacional.

Os liberais sozinhos não são suficientes para organizar protestos de grande escala, assim os nacionalistas radicais russos desempenham um papel de apoio massivo na coalizão. Porém, os liberais pró-americanos são o centro principal para coordenar esforços e tomar grandes decisões, e são responsáveis pelo contato com Washington.

Os próprios EUA apoiam oficialmente o movimento "democrático", dando a ele somas substanciais de seu orçamento. Porém, o financiamento de outras fontes, menos evidentes, da Quinta Coluna da Rússia são muito maiores do que os dados abertos demonstram. Na Praça Bolotnaya, na primavera de 2012, a Quinta Coluna mostrou o que podia fazer. No caso do agravamento das consequências das sanções e possíveis conflitos militares, a Quinta Frente pode se tornar um fator significativo no enfraquecimento da Rússia. Ela está preparando uma facada pelas costas que pode ser decisiva se a ineficiência do sistema administrativo (e nada mostra que ele será mais eficiente no futuro próximo) continuar. Sob certas circunstâncias, seções de pessoas comuns desapontadas podem se unir à Quinta Frente, criando uma ameaça séria.

Sexta Frente: Liberais Pró-Ocidente e Agentes de Influência no Governo

Este grupo foi recentemente chamado de Sexta Coluna. São os liberais e pró-ocidentais que se integraram ao poder no novo milênio ou permanecem lá desde a década de 90, aceitando as novas regras do jogo. Em contraste com a Quinta Coluna, os representantes da Sexta Coluna são formalmente leais às autoridades, e inquestionavelmente obedecem e agem em um espírito de total conformidade. Porém, a Sexta Coluna segue a ideologia ocidental, vendo os EUA e a OTAN como a vanguarda do tipo humano progressista, com a economia sendo guiada exclusivamente através de métodos e abordagens liberais. Muitas vezes, as fortunas e famílias de altos funcionários russos estão em países ocidentais. Nessa situação, lealdade e patriotismo contido ocultam a sabotagem consistente da orientação sobre soberania nacional e a implementação de estratégias econômicas, administrativas e de informação, levando, eventualmente, à desmoralização da sociedade, uma economia enfraquecida e mais desideologização populacional. A Sexta Frente consiste em uma sabotagem sistemática, deliberada e muito habilidosa do renascimento russo, a contenção e substituição genuína da reforma patriótica, criando simulacros e falsificações eficientes. A Sexta Coluna não é diferente em sua ideologia da Quinta, já que ela também está orientada para o Ocidente, mas ela o esconde, preferindo atacar o regime de dentro, não de fora. Ademais, tal como a Quinta Coluna, a Sexta Coluna é controlada desde um centro externo, de Washington, ainda que isso seja mais sutil e dotado de nuances do que com a Quinta Coluna. O Conselho de Relações Exteriores (CFR) coordena a Sexta Coluna de forma que a estrutura esteja quase oficialmente representada nos níveis mais altos do governo russo. Em geral, este tipo consiste em uma grande parte do "governo liberal" bem como de um segmento significativo de outras instituições do governo.

Agora vamos nos colocar nos sapatos dos estrategistas americanos. A escalada das relações dos EUA-OTAN com a Rússia é óbvia. Moscou se comportou como uma potência regional soberana nos casos da Ossétia do Sul e da Abkhazia em 2008, da Crimeia e Nova Rússia em 2014 e finalmente da Síria em 2015 e se necessário, usará esse poder para insistir em seus interesses nacionais em certas áreas. É incompatível com a continuação da hegemonia americana que ainda é global. Moscou teria que construir sua política em acordo com Washington e com a OTAN e, é claro, essas ações não apaziguariam a força das sanções. Portanto, apesar da cortesia superficial e da retórica liberal, a Rússia está fora do controle ocidental. Isso é um fato. E Washington deve de alguma forma responder a isso. Se isso for admitido, seria equivalente à negação da hegemonia. Mas no evento de declínio, o Império Americano não se deterá necessariamente nas fronteiras que ele ainda controla firmemente hoje. Encorajados pelos sucessos dos russos, podemos querer olhar para a força dos americanos. Portanto, na posição dos estrategistas de Washington, seria lógico ativar todas as seis Frentes. Especialmente porque, em todos os seis casos, a América não superará a si mesma: mesmo o pior resultado não causaria seu colapso fatal, já que ela está protegida por uma vasta zona europeia, norte-africana, seguida pelos Oceanos Atlântico e Pacífico no oeste (especialmente já que não há atividades russas em seu lado oriental). Ademais, será bem razoável sincronizar os golpes contra a Rússia de todos os lados: militantes na Síria, apoiando a Turquia, fazendo Kiev começar uma nova rodada de combates (e mesmo atacar a Crimeia), influenciando as estruturas terroristas salafistas domésticas da Rússia, apoiando a Quinta Coluna (encontrando a ocasião social apropriada) e colocando mais sanções para encorajar a Sexta Coluna a sabotar de forma mais ativa e eficiente.

Ao mesmo tempo, seria igualmente lógico por um lado manter e talvez até fortalecer as sanções, reduzir os preços do petróleo em alguns pontos, e, ao mesmo tempo, começar atacando a liderança russa com trollagens conciliatórias como "o Ocidente te ajudará", "os terroristas são um problema comum" (comum porque alguns lutam com eles, e outros os apoiam) e "o principal problema é a China" (deixem os russos negar seu arsenal nuclear, e nós os protegeremos, colocando nossos mísseis nucleares em seus territórios) etc.

Porém, a simples estimativa analítica oculta algo muito sério. Guerra. Uma verdadeira com mares de sangue, chamas, tortura, sofrimento e dor. A guerra em que estaremos envolvidos. E, como as três frentes estão fora da Rússia, é provável que a guerra em territórios estrangeiros estará acompanhada por guerra civil. Isso, porém, nós sabemos muito bem da história.

Estratégia Vitoriosa: Inimigo Interno

Imaginemos que nós, muito objetivamente, estimamos os riscos, e nossa análise está correta. O que deve a Rússia fazer em tal situação? Ao travar a guerra ou pelo menos ao estarmos próximos dela, nós não devemos reagir apenas situacionalmente, mas também ter um plano para como travar a guerra e vencê-la. É bastante lógico ter o desejo de vencer, não é? Agora é importante encontrar uma maneira de como alcançá-lo, mesmo que apenas na teoria.

É óbvio que só se pode travar guerra efetivamente com um inimigo externo se a sociedade está bastante consolidada e mobilizada internamente. É desejável estar mentalmente preparado para a guerra. Para fazê-lo, as pessoas devem compreender quem é o inimigo e quem não é, e, mais importantemente, por que este é o caso e não é de outra forma. Você não deve demonizar o inimigo no início da guerra. A imagem do inimigo deve ser formada com antecedência e deliberadamente.

Portanto, a primeira tarefa para alcançar a vitória seria uma campanha completa para criar uma imagem inteiramente negativa, monstruosa e satânica dos Estados Unidos e do Ocidente em geral. Portanto, o Ocidente é o lugar em que o diabo reside. É o centro dos tentáculos capitalistas globais. É a matriz da perversão cultural degeneradora e da posse feroz da falsidade e do cinismo, violência e hipocrisia. A Rússia já faz isso, mas como a Sexta Coluna é a responsável pela propaganda anti-ocidental, ela é uma caricatura ou algo miserável e muito pouco convincente. É esta sabotagem que descreve a essência da Sexta Frente. Seus "soldados" não se recusam a obedecer às ordens do governo, até pedindo mais e mais, mas sua execução se tornou uma farsa, estultificando e sutilmente desacreditando todas as iniciativas. Propaganda esquisita e pouco sincera não raro gera o efeito contrário. Portanto, ao criar as imagens do inimigo americano e seus satélites (que nós de fato temos que combater), seria lógico acusar aqueles que pensam exatamente dessa maneira e puni-los com máxima clareza e cogência para as massas adormecidas. Enquanto isso, os agentes de influência ocidental recebem o encargo de criticar o Ocidente. com resultados previsíveis. Tal abordagem é incompatível com a "estratégia para a vitória" e deve ser reconsiderada (se a Rússia quiser ter pelo menos uma chance de vencer na guerra vindoura).

Do primeiro ponto nós movemos logicamente para a próximo. É importante desmantelar as estruturas da Sexta Coluna tão rapidamente quanto possível, removendo os liberais e os pró-ocidentais de todas as posições centrais. Junto com isso, o liberalismo na economia será abolido, o que permitirá:

* O estabelecimento de controle nacional sobre o Banco Central.
* Se afastar do dólar no comércio exterior para qualquer moeda de reserva diferente (como o yuan).
* A conquista da soberania financeira plena.
* A condutibilidade de mobilização da economia no tempo de guerra.
* Em paralelo, é necessário formar o Comitê Nacional para a Comunicação Social que irá reconstruir o trabalho de informação de acordo com as necessidades de emergência.

A eficiência da atividade puramente destrutiva da Quinta Coluna está amplamente ligada à eficiência da sabotagem da Sexta Coluna. A Quinta e a Sexta Frentes estão inextrincavelmente ligadas. Portanto, a destruição do poder de Sexta Coluna vai enfraquecer drasticamente a Quinta Coluna cujos líderes, em situações de emergência, poderiam ser ou internados (a propósito, as medidas de prisão domiciliar já foram administradas a alguns deles), ou expulsos. Claro, quaisquer meios legais da disseminação liberal ou de propaganda nacionalista destrutiva.

A Quarta Frente é um problema, já que o Estado não possui políticas étnicas e nacionais. No momento, só existe a mesma Sexta Coluna ou os burocratas cognitivamente inadequados. É por isso que os verdadeiros desafios da imigração descontrolada e tensões étnicas e religiosas são aprovados pela burocracia com slogans vazios e sem sentido, para a sociedade russa, de "sociedade civil" e "tolerância". Sem um sistema coerente de estratégia étnica e nacional contra o extremismo islâmico e o terrorismo, as questões na Rússia não serão resolvidas. Algumas medidas de segurança não são suficientes; ela precisa eliminar ou alterar permanentemente o ambiente social. Operações de força contra o fundamentalismo terrorista devem ser correlacionados em escala, incluindo um modelo ideológico de política étnica e nacional.

Estratégia Vitoriosa: Inimigo Externo

Ucrânia - a Terceira Frente - deve-se estar pronta para provocações armadas de Kiev e para repeli-las. Mais cedo ou mais tarde, a Rússia terá que resolver radicalmente a questão novorrussa pois contar com o fato de que Kiev vai cair por si ou vai abandonar a sua política pró-americana e anti-russa é um pouco irresponsável. Para proteger eficazmente a Criméia e resolver o problema do Donbass, todo o espaço da Nova Rússia deve ser libertado, e, se a guerra é inevitável, Moscou terá apenas uma tarefa - ganhar o mais rapidamente possível e da forma mais eficiente possível. Criar uma zona russa amigável de Odessa para Kharkov, seja criando de Estados independentes ou incluí-los em parte das terras russas, é o objetivo que poderia ser considerado como uma vitória. O destino da Ucrânia Central e Ocidental não tem grande valor.

Em relação à Segunda Frente turca, ali, além do desenvolvimento operacional militar que é a tarefa da liderança militar e não pode ser discutidos por analistas, a Rússia deve prestar atenção a dois fatores principais: a oposição política ao regime de Erdogan que, na circunstância atual, tornou-se um aliado natural, e o problema fundamental para a Turquia, os curdos. Ambos os fatores são cruciais para o sucesso no conflito russo-turco. É extremamente importante realizar propaganda anti-turca na sociedade russa, constantemente salientando que os EUA e seus apoiantes (Erdogan) são responsáveis ​​pela escalada do conflito na região, e que Moscou não considera os turcos como seu inimigo histórico. Portanto, quaisquer paralelos com a guerra russo-turca, mesmo nos casos internos, só vai unir os turcos com Erdogan e fortalecer o inimigo. Em contraste, o apoio aos políticos turcos que não compartilham pontos de vista de Erdogan do neo-otomanismo poderia ser decisivo. Ao mesmo tempo, é claro, a Rússia deverá intensificar a cooperação com os curdos, pois é uma força imponente na Turquia.

Finalmente, a Primeira Frente, na Síria. Nós não a colocamos acidentalmente no final da "estratégia vitoriosa". A forma de confronto mais aguda é sempre a mais prático e cheio de detalhes técnicos e militares. No entanto, ela sempre depende dos elementos da sociedade, e dos sucessos locais - no ambiente externo, muitas vezes global.

Vimos que a Rússia tem um importante aliado regional, o mundo xiita, que é representado principalmente pelo Irã e pelo Hezbollah libanês. Estes são "irmãos de armas" russos, e ela deve fazer o seu melhor para aprofundar a aliança. Obviamente, não são só os russos que entendem o seu valor, mas até mesmo as forças pró-americanas na Rússia e no Irã, então eles vão tentar fazer todo o possível para trazer a divisão entre os aliados. Isso deve ser cortado pela raiz, pelo menos, na Rússia, e concisa esclarecido nas negociações com os xiitas.

Em seguida, os russos precisam do apoio político, preferencialmente militar e econômico, dos países do clube multipolar planejado, BRICS. A China desempenha um papel especial lá, preferindo não vir para a frente da oposição dos Estados Unidos, mas estando pronta para apoiar Moscou, permanecendo à margem. Muitas coisas na Síria agora dependem das relações Moscou-Pequim, e ela precisa de atenção máxima.

A Rússia não tem chance de fazer dos países europeus os seus aliados de pleno direito na Síria, na medida em que a influência dos Estados Unidos sobre eles é muito grande. No entanto, qualquer distanciamento de Washington pelas potências europeias (especialmente França, Alemanha e Itália) ao lado de diferenças na OTAN serão muito úteis para Moscou. Se a Europa tiver que continuar a crescer a sua onda de partidos e movimentos da direita conservadora, que geralmente são leais à Rússia, ela irá reforçar significativamente a sua posição na Síria. A propaganda russa na Europa durante a guerra tem particular importância.

Como na Síria, a Rússia enfrenta forças abertamente apoiadas pela Arábia Saudita e Catar. Como o Catar está envolvido no acidente de avião com turistas russos sobre o Sinai, a Rússia deve prestar especial atenção para a desestabilização máxima desses regimes. Sob certas circunstâncias, um ataque direto ao Catar e apoio militar para os Houthis no Iêmen, bem como para os xiitas no Bahrein, não pode ser excluída. O convite das tropas russas no Iraque e no Líbano pelos respectivos governos é estrategicamente crucial; ele vai ajudar a travar uma guerra em grande escala contra as principais bases dos terroristas do ISIS e quebrar sua conexão de infraestrutura com a Turquia e os países do Golfo.

Em geral, a Rússia já está em guerra no Oriente Médio, por isso deve ser reconhecido como um fato consumado que, usando todo o arsenal de meios disponíveis, em primeiro lugar, as redes de inteligência que visam promover, usando formas diferentes, interesses russos na região tais como informacionais, econômicos, ideológicos, etc, devem urgentemente ser revividos.

O último argumento nessa esta guerra vai envolver armas nucleares russas, que, graças a Deus, os reformistas liberais da década de 90 não conseguiram destruir. É senso comum não usá-las nunca. No entanto, isso não significa que elas não podem impor restrições graves no principal inimigo da Rússia, os Estados Unidos da América. Temendo destruição completa, os Estados Unidos vão ter de jogar contra a Rússia respeitando certas regras.

Sétima Frente. Americanos Contra o Governo Federal

Além disso, em termos dos Estados Unidos, é importante abrir a Sétimo Frente. Na verdade, os EUA têm muitas pessoas que estão insatisfeitas com a elite dominante que professa a ideologia globalista, arrastando os EUA em guerras sangrentas, destruindo a identidade cristã europeia tradicional. A Nova América, onde nada resta dos próprios Estados Unidos, e que serve os interesses da oligarquia financeira global que não tem cultura ou identidade, destrói a Velha América. Por isso, o apoio ao tradicionalismo dos EUA e do conservadorismo da identidade americana é uma tarefa importante para a Rússia. Seu aliado nos EUA é o povo americano. Além disso, muitas contradições têm se acumulado na esfera social, nas relações inter-étnicas.

A maioria da sociedade americana não aceita a degeneração moral. O governo federal usa cada ocasião conveniente para começar a abolição da segunda emenda da Constituição que permite que os norte-americanos mantenham e portem armas. As proporções crescentes da população latina, em sua maioria católica, trazem para o público americano uma nova identidade que não é hostil à Rússia. A Rússia deve participar ativamente na luta pela influência na sociedade americana, fortalecendo a explicação da posição espiritual da Rússia na guerra, mostrando que russos e americanos têm um inimigo comum: a elite satânica maníaca que usurpou o poder e está levando toda a humanidade, incluindo os americanos, para a inevitável catástrofe. Os resultados da elite são evidentes: todo o Oriente Médio já está coberto de sangue, eles não são mais capazes de estabelecer qualquer ordem, a elite globalista (o CFR, os neocons, os representantes da oligarquia financeira internacional de Wall Street) implantam em todos os lugares apenas o caos, devastação, morte e dor. A destruição de tal câncer da humanidade é uma questão para o mundo inteiro, incluindo os americanos, que não são apenas os seus instrumentos, mas também vítimas.

Onde Está a Cidade?

Está longe de ser fácil de ganhar neste jogo. Como o nome deste jogo é a Grande Guerra. No entanto, quando a Grande Guerra vem, ela só pode ser evitada através da escravidão e do reconhecimento deliberado como perdedor. A história russa não teve tais momentos. Por mais que pareça difícil, de alguma forma os russos lidaram com ele.

Nós não estamos falando apenas sobre o confronto geopolítico, sobre a redistribuição de esferas de influência ou do cumprimento de interesses nacionais. Trata-se de algo muito mais profundo e mais importante.

Todas as religiões têm uma seção que trata do fim dos tempos e da batalha final. Os cristãos, assim como os judeus e os muçulmanos, associam os eventos do ciclo com a Grande Guerra. Além disso, invariavelmente, todas as três religiões descrevem o Oriente Médio como o lugar da Grande Guerra, como o campo de Armageddon e os territórios vizinhos. Para os muçulmanos, Damasco, Mesquita Omíada, é considerada como o lugar onde a Segunda Vinda de Cristo será realizada. Portanto, a guerra na Síria tem francamente um sentido escatológico. Afinal de contas, a Síria é uma parte da Terra Santa, onde o Salvador pisou no chão. Para os judeus, esperando a iminente chegada de Mashiach, a escalada da violência em suas fronteiras, em áreas críticas para a existência de Israel, tem um significado escatológico. Os protestantes americanos, dispensacionalistas, veem a última batalha como a invasão do exército do norte, de Gog (entendido como a Rússia) à Terra Santa. Finalmente, os monges de Athos e santos gregos, como Cosmas Aeolian [1] ou São Paisios do Monte Athos, repetidamente previram o lançamento de tropas russas e o colapso de Constantinopla e da Turquia. Assim, Santo Arsênio de Capadócia em Faras disse aos fiéis que eles vão perder sua terra natal, mas em breve irão encontrá-la novamente: "As tropas estrangeiras virão, em Cristo crerão, a língua eles não saberão ... Eles vão perguntar: Onde está a cidade? "[2] Entende-se como referência para o exército russo se aproximando de Constantinopla. Em uma de suas conversas São Paisios disse:

"- Saiba que a Turquia vai entrar em colapso. Haverá dois anos e meio de guerra. Seremos vitoriosos porque nós somos ortodoxos..

- Gerontius, nós toleramos danos na guerra?

- Hey, no máximo, um ou dois da ilhas serão tomadas, mas vamos retomar, e Constantinopla. Você vai ver, você vai ver! "[3]

Recentemente, um ou dois anos atrás, todas essas predições teriam causado apenas um encolher de ombros, que conto de fadas! Mas...hoje: sangue está sendo derramado no Oriente Médio; há operações militares nos arredores de Damasco; os russos não estão apenas presentes, mas lutam na Terra Santa; o conflito com a Turquia já começou e não se pode excluir que ele vai levar a uma guerra real. A partir de uma perspectiva escatológica, é hora de voltar para os lugares santos, a Terra Santa, Constantinopla e Kiev. A afirmação de que não estamos vivendo no Fim dos Tempos agora parece não científica. Como Ancião Paísio disse: "Você vai ver, você vai ver". Então, vamos ver.

Assim, onde está a cidade?

20/12/2015

Martínez de Pisón - A Montanha Simbólica

por Martínez de Pisón



Resumo

A montanha contém valores de notável profundidade cultural em seus significados. Estão propostos como exemplos expressivos: 1º, o caráter analógico de determinados conteúdos da própria montanha e da aproximação ao seu sítio e à sua altitude; 2º, o sentido metafórico do vulcão na grande literatura europeia; 3º, o marcado símbolo espiritual da ascensão em nossa literatura; e 4º, a intensa interpretação religiosa de algumas montanhas da Ásia. Cabe, pois, ao interesse geográfico fixar-se e aprofundar-se em tais conteúdos, ainda que não estejam formalizados em seu restrito território como componentes do sentido das paisagens. Portanto, se o pensamento geográfico estabeleceu como limite de seu interesse específico um ponto prévio a esses conteúdos, o que ficaria amputado é o próprio conceito de paisagem.

A montanha análoga

Há valores visíveis; explícitos nas paisagens, que convivem com outros ocultos, invisíveis, frequentemente tanto ou mais significativos. Estes requerem perscrutar aquilo que não está à vista. A condição oculta da paisagem é uma referência necessária de valor e determinadas paisagens ficam ás vezes estreitamente enlaçadas a essa carga simbólica. Assim, no valor oculto da ascensão reside o símbolo espiritual de seu itinerário e do encontro com o alto. O olhar se lança desde uma perspectiva que por acaso pode encontrar-se melhor nas bibliotecas e nos museus do que no próprio terreno. Há novelas que exploram esse mundo simbólico expressamente, como A montanha análoga, de Daumal, uma alegoria do diálogo interior com a natureza, cuja realidade é melhor que a fantasia, O Odor da Altitude, de Jouty, que remete inclusive ao inalcançável e inexpressável, mesclando a ascensão real e a espiritual pela paisagem própria do estranho, aonde a valia moral conta mais que a capacidade física, porque o cume verdadeiro não se corresponde com o cume material. Significam não só enlaces com aspectos sublimes da realidade senão mais concretamente com a cultura, ou com alguns de seus componentes específicos: por exemplo, o inexpressável da montanha envolve com Senancour, ou a mística da ascensão com suas metáforas poéticas. E assim sucessivamente. Estão sendo invocados aqui, com clareza para quem transite por esses mundos, ainda que sem dizê-lo, órbitas próprias das letras e das artes.

Porém, a ascensão da montanha real é sempre o percurso de uma paisagem, o percurso apropriado ao declive e à rugosidade naturais, no qual é preciso um trato direto com a paisagem, que opõem sua resistência e oferece suas possibilidades. Em todo o processo de ascensão se sopesam as forças e habilidades do ascensionista com as forças estáticas e dinâmicas da montanha.

Ao mesmo tempo, não é menos verdadeiro que há, ademais, uma constante experiência espiritual que pode tomar uma expressão religiosa, inclusive mística, presentes na literatura alpina de modo abundante. Mas a relação entre montanha e religião é ampla, mais ampla que o alpinismo, e tem suas raízes no mais antigo e profundo de nossa cultura. O Himalaya é chamado por isso a morada dos deuses. O Monte Kailash, no Transimalaia tibetano, tem um caráter religioso em si mesmo e como objeto de peregrinação esse caráter é ainda mais intenso e vigente, estendido a budistas, hinduístas e bon. O forte simbolismo destas montanhas e de seus chorten ou stupas, principalmente no budismo tântrico, adquire uma dualidade significativa da montanha como templo e do templo como montanha. A forma do chorten, além de seu sentido geral como túmulo e ponto de devoção, tem significados cósmicos estratificados da terra ao céu, de modo que sua base corresponde à terra e se refere a um tipo de saber, o da identidade, seu domo central é símbolo da água e do saber ver, seu mastro faz referência ao fogo e ao saber discriminar, sua culminação significa o ar e o saber dos atos, e finalmente os símbolos solar e lunar que o completam evocam o éter e a sabedoria da lei. O chorten é, pois, também um símbolo do eixo ancorado no solo, e que se lança ao céu. O nosso Teide foi considerado pelos clássicos como “trono dos deuses” e talvez como eixo do mundo entre os aborígenes. E sem falar do alcance cultural tão intenso dos signos mitológicos do Olimpo ou do Parnaso. A outra grande raiz da relação montanha e religião em nossa cultura procede dos conhecidos acontecimentos bíblicos do Monte Sinai. O Símbolo religioso da ascensão é, portanto, explícito, e prosseguiu em diversas propostas ascéticas ou místicas. A subida é então exposta como um método religioso e uma das maneiras de realizar a viajem da prova que leva à iluminação ou à revelação, que não são o mesmo. O ermitão significa genericamente o desejo de retirada, de afastamento na natureza e de adentrar-se na montanha, porque esta proporciona amplamente ambos requisitos: natureza e solidão. Desprovida destas a montanha deixa de ser, portanto, desde um ponto de vista simbólico e não só naturalista, um bem maior.

As raízes universais das relações entre altitude, montanha, ascensão e experiência religiosa possuem muitas de suas chaves catalogadas. Algumas, por Samivel, com a capacidade de sugestão tão característica desse escritor da montanha alpina, e com as numerosas referências eruditas que ele era capaz de aportar, nesse caso sobre as múltiplas modalidades que adotam as concepções religiosas da montanha na história e na geografia. Ao abordar o simbolismo da altitude demonstrava Samivel a associação primária entre o baixo -com menos- e o alto -com mais-. A altitude e a verticalidade, escrevia, são geralmente qualificadas positivamente, de tal modo que à altitude correspondem conceitos de transcendência e à ascensão, de progresso e crescimento. No alto se encerram signos do que é bom e leve, do que vence o peso, do celeste; o espiritual ascende; em contrapartida, a matéria pesa e a vida precisa lutar contra o peso. A elevação é, portanto, uma qualidade e o cume é o seu êxito, a vitória sobre os obstáculos materiais mediante um esforço, sua recompensa moral. Tudo isso sacraliza a montanha e a sua ascensão. É o esforço que consegue a entrada em um domínio alheio e aberto entre linhas aéreas -sugestão do infinito-, em espaços grandes, no distanciamento progressivo do basal e de seus labirintos. De modo que a dualidade baixo-alto se polariza em dois ambientes contrapostos, o alto como cenário de natureza, solidão e individualização; e o baixo como mecanizado, massificado e gregário. Tudo isso são modelos culturais. Mas o baixo também é o terreno, o mundano, o subterrâneo, inclusive o infernal e, em contrapartida, o alto é o celeste e o divino. Sem distanciar-nos, vemos o mesmo em culturas populares, em misteriosos ambientes exóticos, em difíceis poetas místicos ou no próprio Dante.

Ademais, está claro que há um sentido moderno da ascensão, impregnado de valores científicos, artísticos e exploratórios, que banham culturalmente e ideologicamente o ato de ascender à montanha. Na Espanha é o que aconteceu, em sua melhor versão, sobretudo por influência da Instituición Libre de Enseñanza (“Instituição Livre de Ensino”) no excursionismo, com sua qualidade particular. A soma de ambos os modelos e sentidos constitui o produto cultural que o alpinista recebe e mantém. Não vamos mais nos estender sobre esse aspecto, que requer um tratado próprio. Portanto, agora vamos nos concentrar em três exemplos muito característicos do simbolismo herdado e às vezes esquecido. Não são os únicos, mas são suficientemente expressivos para revelar a existência e a importância do lado imaginário de toda a montanha e, por derivação, irão auxiliar-nos na busca de outros aspectos simbólicos que pesam na cultura. Trata-se, portanto, de um percurso fugaz pela outra vertente da geografia dos objetos, que suponho também ser geografia, como transitar pelo lado oculto da lua, naturalmente, considerando que ela seja redonda e não plana.

Primeiro exemplo: a erupção como metáfora.

Vamos começar com a raiz, com a origem simbólica da montanha no antro do fogo e do cataclisma. Não é exato, evidentemente, só é parcialmente verdade, mas assim tem sido prazeroso a mais de um poeta. Um caso é o de Gabriel e Galán, quem em Gredos escrevia: “Te engendrou trepidante o terremoto / [...] a terra te pariu de suas entranhas, / rugindo de dor em seu seio rompido. / [...] E transpiraste em teu alentar imenso / espirais soberbas / que cegaram o éter de fumo denso. / e tua louca infância, brava e ardente / envolveu-se em fraldas / que eram manto de lava incandescente...”. Não explicaria dessa forma a origem de Gredos, evidentemente, mas a licença poética nos serve perfeitamente para entrar no tema.

Nossa cultura nasceu junto ao vulcão. Os grandes mitos clássicos se associaram em casos como esse, com naturalidade no geográfico e com lógica no dinâmico, às formas vulcânicas e às destruições próprias das erupções. É o que se conhecia empiricamente nas forças terrestres presentes no mundo mediterrâneo e é o que transmitiram os escritores a seus contemporâneos e aos tempos posteriores. Logo se transportaram também no espaço ao aplicar-se por distintos descobridores em parte ao atlântico e ao continente americano. Vieira e Clavijo propôs, a modo de exemplo, “se as Ilhas Canárias foram parte da Atlântida de Platão”. A marca da cultura mediterrânea estendendo-se pelo Globo também estava composta por suas antigas considerações míticas e naturalistas, logicamente.

As referências a vulcões na mitologia clássica são, como se sabe, abundantes: nada mais explícito que Efestos ou Vulcano, deus do fogo profundo, como principio tanto criador como destruidor. A ativa proximidade do Etna, do Vesúvio, de Vulcano, entre outros vulcões, fará habitual sua presença na literatura, por exemplo, em Homero, Hesíodo, Lucrécio, Virgílio, e algumas de suas ideias iriam persistir até o Renascimento como explicação dos fenômenos telúricos, como no caso dos breves, porém insistentes, discursos expressados por Aristóteles com respeito aos terremotos e vulcões. As fúrias atribuídas aos Titãs no antro desde o século VIII antes de Cristo, o alento do Titã enterrado no submundo das sombras, nas profundas câmaras de castigo, serão as forças do Etna, vinculando contendas próprias dos homens, agigantadas, aos deuses e às forças naturais. E, ao ar livre, outro gigante elevado até que sua cabeça desapareça na altitude, o Atlante castigado, também haverá de suportar o céu sobre seus ombros. É, em suma, a figura do vulcão completo, com as raízes no inferno e sua cúspide celeste. O eixo, a coluna inquieta e viva do universo. A erupção, a força convulsa de sua base, é uma titanomaquia. De modo que, nesse drama –pois a terra é entendida dramaticamente-, a cratera central do Etna foi algo mais que o abismo em direção ao interior da Terra, o que já é inquietante: foi a órbita esvaziada do olho do ciclope. A via vertical, profunda, até a residência das fráguas nas cavernas, aonde se escutam as marteladas dos ciclopes. Deste modo, em nossa raiz a paisagem era pura força. Perto estava, não esqueçamos, do Vesúvio ameaçante, a paisagem imediata era o perigo. Podem ler Plínio o Jovem se acreditam que exagero.

Porém, como sabemos, há duas tradições culturais nossas acerca dos vulcões: aparte da cultura clássica está a bíblica, também alegórica, que se soma às anteriores raízes com sua própria intenção e seu âmbito, como chave de conhecimento, símbolo ou parábola bem influentes e que inclusive se estenderam por muito tempo na cultura popular (não agora, pois duvido que alguma dessas duas raízes possua um grande número de adeptos nesse momento). Tais lugares, clássicos e bíblicos, passaram a ser chaves, modelos de referência na linguagem cultural e ritos de viagem. Tal modelo cultural, como antes apontei, será levado com os europeus até a América, à Filipinas e aos arquipélagos, de modo que sua extensão não chegou a ser universal mas quase conseguiu. Ainda que não só em nosso continente e em suas prolongações culturais, mas em todas as partes, os vulcões foram interpretados a partir de conteúdos religiosos, e só é preciso dar uma volta pelo mundo habitado para acumular notas sobre essas atribuições, aqui nos bastará recordar agora dois cenários.

De um lado, em outras ocasiões destaquei como a Teofania da revelação a Moisés no Sinai parece descrever uma erupção: suas trovoadas, o estrondo, a nuvem densa que cobria o monte, o fogo ardente que abrasava o cume, “fumegando por haver descendido a ele o Senhor em meio às chamas”, o fumo que subia como se fosse de um forno. A imagem do vulcão em atividade. No momento culminante da revelação, portanto, o cenário reclama a força telúrica e o aparato do vulcão. E, por outro lado, na destruição de Sodoma não faltam tampouco ressonâncias aos efeitos destrutivos de algumas erupções. Além disso, as erupções serviram repetidamente, primeiro, para insistir no mesmo ensinamento: a interpretação do desastre natural como castigo divino aos pecadores. E, segundo, para evocar o inferno, cuja imagem se concretiza nas crateras incandescentes, nos piroclastos e na lava ígnea. Um autor espanhol piedoso muito conhecido chegou a pensar no final do século XVI se aquilo que se via em certas crateras ativas da América poderia ser realmente o fogo do inferno, e não lhe faltaram partidários. Para outros, de espírito mais prático, a dúvida residia em descobrir se tal magma era ou não ouro derretido. Como é compreensível, esse aspecto atraiu um número maior de pessoas dispostas a obter amostras e analisá-las. É evidente que ninguém pode comprovar com certeza suas respectivas hipóteses.

Mas sigamos até o âmago. Quando Dante ascende em sua viagem literária à montanha dos antípodas figurada como o Purgatório, diz que se trata do “monte que ao céu mais se eleva em meio às águas”. Na viagem ao Inferno, Ulisses havia contado que em sua navegação atlântica avistou tal montanha: “uma montanha obscura pela distância e tão alta como nunca havia visto outra”. A importância do clássico Atlas parece evidente, e a companhia de Virgílio se enlaça com a raiz cultural, mas a montanha é sobretudo uma referência com conteúdo ascético cristão e a moral localizada na sombra de uma referência imprecisa na época de uma alta montanha erguida sobre o oceano. E como sua culminação leva ao possível acesso ao Paraíso, tudo se reúne, a raiz profunda cuja entrada é uma caverna que acessa os andares do Inferno até o centro da Terra, enquanto a montanha imprecisa de maneira oposta leva até às nuvens e ao céu na altitude. Essa geografia sem fundamento orográfico, baseada nas máximas clássica e religiosa de interpretação simbólica da montanha é, no entanto, um fundamento clássico de nossa cultura. Como essa montanha imaginária elevada no Atlântico tem todas as probabilidades de estar baseada em uma imagem geográfica um tanto apagada do Teide, própria do século em que foi escrito o poema, podemos nos permitir aceitá-la seguramente entre os vulcões e suas metáforas.

Mais tarde há outras traduções literárias deste tipo e há uma que possui suficiente envergadura para que ao menos possamos mencioná-la brevemente nesse texto. Trata-se da aparição de imagens vulcânicas no Fausto de Goethe, em oposição alegórica com as paisagens alpinas. Os Alpes alegres mostram o pulso da vida como um ensinamento, enquanto o antro infernal, do fogo eterno com o “acre denso do enxofre”, provém da demolição, dos escombros da montanha, de modo que aqui, mais uma vez, mas a seu próprio modo, o vulcão desolado é novamente metáfora do Diabo, mas nesse caso porque nada conhece da maneira esperançosa de ver o mundo. Século após século, a montanha volta a ser, de uma maneira ou outra, repetidamente tanto rocha como metáfora.

Não deixa de ser agradável e instrutivo passear pelas geografias de Homero, de Dante ou de Goethe. Deveria o geógrafo abster-se disso?

Segundo exemplo: a metáfora espiritual

Parece-nos conveniente dedicar aqui mais uma vez, de maneira breve, ao menos para quem não haja lido nossos velhos trabalhos, uma referência especial à imagem tradicional que possui em nossa literatura o símbolo da ascensão. Essas questões possuem, com efeito, sua medula literária fortemente arraigada em nossas letras, concretamente em São João da Cruz, e em seu centro a Subida do Monte Carmelo, obra escrita entre 1578 e 1582. A referência geográfica ao Monte Carmelo se remonta aos ermitões da época das Cruzadas, instalados no século XII na franja deste monte, situada em Haifa, próximo ao mar e que alcança os 600 m. de altitude. Logo, a visita ao Monte Carmelo foi sendo incluída de modo habitual no caminho dos peregrinos à Terra Santa, entre os lugares de Jerusalém, Nazaré e São João do Acre. Mas tudo isso não é mais que um ponto de arranque. Trata-se, mais uma vez, no que elegemos aqui, uma geografia simbólica, de grande entidade literária, que joga com seus elementos como se fosse uma base real, mas evidentemente com absoluto distanciamento de uma análise ou de um guia alpino.

A subida, o escrito do poeta, tem uma boa parte de seu sentido gravitando na montanha como metáfora espiritual. Esta obra contém um sistema de chaves expressado por todos os meios: desenho, comentários, poesia e prosa. A ascensão é utilizada como símbolo com intenção explicitamente ascética e mística, ainda que tais atributos acabem por impregnar a ascensão real com caracteres sublimados. São João fala da ascensão simbólica, e a ascensão real se contagia com tais símbolos.

O gráfico que acompanha o texto permite hoje, que se faça inclusive uma leitura montanhista dos valores espirituais da ascensão ou uma leitura religiosa de seus valores montanhistas ou uma leitura literária de seus valores poéticos. O croqui do santo está exposto como um esquema de ascensão moderno, com as vias de escalada em direção ao cume e seus comentários, como poderia ser um bosquejo alpinista. Além disso, o croqui foi desenhado pelo próprio escritor, inicialmente de modo esquemático, ainda que logo os carmelitas o tornaram mais elaborado nas edições sucessivas, com maior realismo, mas sem variar as bases topográficas fundamentais nem o percurso nem as intenções espirituais do santo poeta.

O desenho está composto sobre uma citação do Evangelho: “que restrita é a porta e quão estreita é a senda que conduz à vida eterna”. O croqui representa, por isso, o itinerário gráfico da ascensão, com suas chaves espirituais. Uma observação geográfica de seus componentes internos nos permite decompô-lo em andares sucessivos. De baixo para cima, eles são: Colinas basais, com caminhos e senda. Montanhas desnudas intermediárias. Montes com árvores espalhadas. Escarpa pronunciada e elevada. Colina superior com arbustos. Cume arredondado. Iniciemos a marcha: na base do monte há três caminhos possíveis, o do “espírito imperfeito”, o do “espírito errado” e o da “senda estreita da perfeição”, a via difícil, a escalada monte acima, fora dos caminhos trilhados. Cada qual tem seu guia de itinerário e possui seu valor e recomendação. Em suma, o caminho central é o correto, a chave do monte, mas tal caminho está justamente onde não há caminho, só a senda estreita. Despojado de superficialidades, consistirá no essencial. O piso intermediário alcançado tomando somente a direção correta é a montanha desnuda. Pela senda estreita se chega aonde não há nada. A via de escalada se adentra e atravessa o “monte-nada” e se dirige diretamente ao cume, e o desenho adverte “já por aqui não há caminho”. E acrescenta, “que para o justo não há”. A leitura espiritual é a da solidão interior. Mas a leitura da ascensão é a da rota diretamente pela montanha desnuda como quadro de realização pessoal, com suas exigências de negação, esforço, risco e renúncia. A isso se segue uma faixa superior de árvores com uma escarpa. As virtudes desta parte do percurso são, entre outras, fortaleza, prudência e temperança. As referências virtuosas se tornam abundantes e sem elas não haveria passagem em tal ponto. Desde o ponto de vista religioso são essas virtudes sustento e alcance. Desde o ponto de vista da escalada parecem objetivos, e também assistências e condições daquele que ascende em sua relação entre a fortaleza própria, a vinculação reta com sua equipe e a resistência do lugar. Ao término superior da escarpa fica a depuração espiritual transpassando o obstáculo. Como culminação, por cima da escarpa, estão finalmente uma colina superior e o cume. Na ampla colina elevada e suspendida “só mora a glória e honra de Deus”. É o fim buscado, a meta, a união com Deus, o estado de perfeição e, de certo modo, a recompensa moral do escalador. Isto é, se consegue um sentido espiritual explícito e máximo.

Essa leitura montanhista da “subida” de São João que acabamos de fazer contém um valor literário e teológico oculto, geralmente inconscientes, mas com frequência bastante latente nos valores habituais da ascensão do monte. Conhecê-lo, portanto, só esclarece acerca das qualidades escondidas em nossos atos, insólitos e rituais, e de nossas paisagens. E São João conclui: “dessa maneira, desnudo, encontra o espírito quietude e descanso... no centro de sua humildade”. Por isso escreveu: para evitar que as almas não entendam “por falta de guias idôneos e corretos, que as levem até o cume”. Deste modo manifesto, São João executa a primeira “guia” de ascensão a uma montanha em língua espanhola, guia sem dúvidas profundamente espiritual e simbólica, nem prática nem geográfica, mas cuja luz transcende no “como ir”, tanto a Deus no religioso, com voz direta, como à montanha no profano, como eco cultural. Ou a ambos simultaneamente.

Podemos nos permitir ler, então, só as guias de por onde ir e não de como ir? Os significados profundos das coisas nos escaparão ou não, mas depende do quão importante é isso para nós; tudo reside, portanto, na trama do enredo teórico do geógrafo, de maneira que só se crivem dados territoriais ou que sua ferramenta permita passar também os símbolos e conteúdos que constroem a profundidade das paisagens.

Terceiro exemplo:

Quando se viaja e quando se lê aprende-se que, no âmbito em que temos discorrido, as montanhas sagradas se estendem pelo mundo inteiro. Tomavam ou tomam diversos modos religiosos, naturalmente, e por isso convém observar igualmente os cumes distantes, em outras cosmogonias tradicionais. Antes apareciam em quase todas as culturas e ainda seguem sendo invocadas e cultuadas em montanhas distantes e símbolos devotados a elas encontram-se inclusive nas que estão próximas. Na Ásia estão presentes frequentemente, mas são encontradas igualmente na África, na América, em ilhas distantes. São montanhas sagradas, algumas tão famosas como o Everest, o Kilimanjaro ou o Monte Fuji. Entretanto, montanhas europeias muito significativas, como o Aneto e o Cervino, que são estritamente sagradas, concluem com uma grande cruz superior cujo simbolismo é evidente. E há certas montanhas que adquirem caráter sagrado de modo especialmente intenso, como ocorre com o monte Kailas, no Tibet.

Porém, na ampla continuidade geográfica entre o Tibet e Qinghai, por cima dos altiplanos que vão do Himalaia ao Kunlun, se estendem as cordilheiras de outras montanhas que participam de similares modos de entendimento e de expressão religiosa, como nas digitações do Kunlun e os sistemas transversais de Hengduan. Entre elas há um translado de conceitos e rituais, ainda que invocados de maneira particular ou conformando representações de deidades específicas. O modelo é o Kailas, como pilar do mundo cujo topo sagrado é intocável, mas há muitas outras que constituem centros espirituais de similar intensidade. Entre elas, no espaço mencionado, devemos unir ao Kailas (6.714 m.), no Transimalaia, ao menos o Meili ou Kawakarpo (6.740 m.) e ao Gongga Shan (7.556 m.), ambas na cordilheira Hengduan, e ao Amne Machin (6.282 m.) no extremo oriental do Kunlun. Há mais pela região, porém, não tão intensamente consideradas, na atualidade, como montanhas sagradas e inclusive divinas. Ao possuir características simbólicas tão profundas, ao menos as mencionadas devem ter seu lugar neste escrito, ainda que de maneira concisa.

Tanto no Tibet como em Qinghai há uma profusão de templos, em geral templos budistas que se encontram ativos. Alguns, como o de Kumbum ou Taersi, é um monastério de lamas de grande entidade, indicador de sua potência real na sociedade local, de sua influência espiritual e de sua persistência apesar das inúmeras tempestades da história recente da China. No entanto, além destes centros monásticos, as próprias montanhas são núcleos de religiosidade, com suas duras peregrinações ao redor dos montes que atraem a numerosos fiéis. Nem todas essas marchas ou “koras” são de idêntica exigência física: algumas são tão pequenas que só supõem uma volta ao redor de um chorten; algumas são de distância média, por exemplo, ao redor do monastério de Kumbum; algumas são grandes, como ao redor de uma montanha, que pode ter grandes desníveis, alcançar altitudes elevadas e, como a do Amne Machin, prolongar-se por 180 km de percurso. De modo derivado, em função da carga espiritual da montanha podem aparecer também monastérios locais, altos, isolados, em um vale alto do maciço Meili, em uma elevada plataforma junto ao Gongga Shan ou ao pé do Amne Machin, que são os centros espirituais dessa montanha tutelar, desse deus protetor feito montanha.

Entretanto, essa inserção da montanha na paisagem geral não é tudo. Os tibetanos leem suas paisagens de amplos horizontes também com referências espirituais, e de fato estão repletos de lugares santos e simbólicos que ordenam os espaços com significados transcendentes. O território tibetano é entendido mediante constantes dualidades: o alto e o baixo, cume e vale, sombra e luz, casa e porto, e nele há uma série de símbolos espirituais que o enriquecem de ordem e de centros significativos. Esses centros ou lugares principais que concentram valores e a partir dos quais se dividem os demais, são frequentemente montanhas com características divinas. O Kailas inclusive ordena o mundo inteiro, reúne a geografia mítica da Ásia e agrupa os espíritos de meio continente. É um formidável relevo, um indivíduo geográfico sobressaliente, pilar do mundo, é fonte de águas que se dispersam por tal continente em todas as direções, é o centro de uma mandala expressiva da harmonia do cosmos, está composto por quatro faces invioláveis que guardam os espíritos do solo e que possuem portas imaginárias para o mundo subterrâneo aonde habitam forças complementárias, e seu vértice se prolonga no céu em uma pirâmide inversa, intangível morada dos deuses. Ademais, cada detalhe, cada recordação, cada caminho, cada pedra, cada contraforte possui um significado religioso próprio. Essas montanhas não são, portanto, simplesmente conglomerados amontoados e abertos pela erosão glacial pleistocena; essas montanhas condensam o espírito complexo da espiritualidade da Ásia.

As peregrinações que circundam ao redor das montanhas são realizadas por centenas, inclusive milhares de fiéis hoje em dia, que podem remontar a colinas situadas a mais de 5.000 m. de altitude. Normalmente são feitas a pé, às vezes a cavalo, em certas ocasiões com prosternações contínuas. Deixam oferendas, repetem mantras, dão voltas no moinho de orações, atiram ao ar estampas do cavalinho do vento ou sopro de vida à galope, estendem bandeiras com as cores do céu, das nuvens, do sol, da água e da terra, impressas com preces e imagens de cavalos, que são agitadas pelos ventos da colina, rodeiam no sentido da esquerda os túmulos de pedra, que possuem o gravado: “Om Mani Padme Hum”.

Além da kora do Kailas, as mais renomadas são as do Kawakarpo e do Amne Machin. Kawakarpo é em realidade um deus benevolente, porém zeloso de seu retiro nas alturas e aqueles que o veneram não desejam que seus recintos, gelos e cumes sejam perturbados e nem profanados por estranhos. Ele é representado armado sobre um cavalo branco e é o dono do trovão. Igualmente, a divindade do Amne Machin é equestre, vigiando do alto com sua família divina, e protegendo aos pastores de yaks que vivem a seus pés. Conta-se que quem contemple o pico do Gongga Shan (só o podem ver os corações puros) ficará limpo de pecados e sua vida será então como um renascimento. Tais montanhas personificam, portanto, um “poder tutelar”, são a encarnação de uma divindade, de modo que cada uma é uma montanha-deus individualizada, ainda que todas possuam características similares.

Na origem desta doutrina está também a ideia tão comum da montanha cósmica, o eixo do mundo ou, ao menos, da região circundante. Sabemos que é próprio de diversas culturas o princípio do eixo do mundo aplicado a montanhas concretas, destacadas e inacessíveis, colunas do céu e centros de organização espiritual das coisas do território, mas a força que adquire esse conceito no Tibet é bastante especial. Este papel, similar ao do Kailas em escala regional, foi atribuído, por exemplo, ao Amne Machin pelos goloks que habitam seus flancos. Segundo as suas tradições, sua culminação tocaria a lua e o sol enquanto sua raiz se afundaria na profundidade subterrânea. É portanto, como a figura de um chorten gigantesco. Esse eixo, tão alto, iria cobrir-se de cristal que serviria de relicário gigantesco do deus denominado Machin Pomra, que estaria pelas cumes acompanhado por centenas de seus irmãos, concretizados fisicamente pelos cumes secundários repartidos profusamente por todas as suas arestas. É possível, portanto, fazer um mapa da família divina.

Logicamente, ideias tradicionais semelhantes de sacralização das montanhas se estendem pela cordilheira de Kunlun, aonde também reaparece outro eixo cósmico, dessa vez com sentido geográfico e fundo espiritual. No cume, já celeste, habitaria “O Uno”, imortal, ou em outras ocasiões, a deusa da imortalidade, ou ali se guardariam as espadas protetoras que vencem aos maus espíritos. O fato é que isso também é uma montanha paralela que eu vejo, e é a mesma que vê quem está ao meu lado. O que ocorre é que, se faço um esforço, eu posso também entender a sua montanha sem esquecer a minha.

Enfim, há nessas montanhas uma geografia religiosa muito intensa própria desses lugares, razão pela qual emigraram as ilusões, fazendo-se locais, mas não são diferentes das ilusões universais dos homens, decantadas em histórias, lugares e personagens individuais. A montanha dirige o espaço no interior dos homens. A paisagem é entendida então por suas histórias, por suas vontades, por suas respostas, em um tecido que se plasma em comportamentos. Ao protetor dos homens, ao deus-montanha, lhe corresponderá enfrentar ao tenebroso. A ti, o respeito. Tudo isso e muito mais ensinam as montanhas simbólicas, muito além de sua materialidade tangível.

Se trataria então de abarcar todos os conteúdos? Se uma parte dos homens, quando aceita valores espirituais na paisagem, vive mais perto dos que estão ocultos, mas se movem em ativos fios invisíveis, do que daqueles que poderiam decantar apreços culturais de outra ordem, aonde deveria se deter então o pensamento do geógrafo? Eu intentaria chegar até o fundo. Creio que, depois do que foi dito, me acompanham razões muito boas.

Bibliografía

MARTÍNEZ DE PISÓN, E. (2000): El territorio del leopardo, Madrid, Desnivel.

MARTÍNEZ DE PISÓN, E. (2009): “Valores escondidos de los paisajes. Calidades ocultas de la ascensión a la montaña”, en MARTÍNEZ DE PISÓN, E. y ORTEGA CANTERO, N., eds. (2009): Los valores del paisaje. Madrid,
Universidad Autónoma de Madrid y Fundación Duques de Soria, pp. 9-44.

MARTÍNEZ DE PISÓN, E. y ÁLVARO LOMBA, S. (2002): El sentimiento de la montaña. Doscientos años de soledad, Madrid, Desnivel.

MARTÍNEZ DE PISÓN, E., ROMERO RUIZ, C. y FERNÁNDEZ PALOMEQUE, P. (2011): Volcanes de papel, La Laguna, Universidad de La Laguna.

MARTÍNEZ DE PISÓN, E., TOMÁS, R., ÁLVARO, S. y PALLÁS, J. (2012): Más allá del Everest: las montañas escondidas
de Asia, Madrid, Desnivel.

09/12/2015

Alain de Benoist - O Reino de Narciso

por Alain de Benoist



"A sociedade adotou integralmente, sem o menor limite e sem o menor contrapeso, os valores femininos"; com estes termos expressou recentemente seu parecer o pediatra Aldo Naouri. Dessa feminização temos já testemunhos: a primazia da economia sobre a política, do consumo sobre a produção, da discussão sobre a decisão, o declínio da autoridade em proveito do "diálogo", também a obsessão com a proteção das crianças (ademais da sobrevaloração da palavra da criança), a exibição em praça pública da vida privada e as confissões íntimas nos "reality shows" da TV, a moda do "humanitarismo" e da caridade midiática, pôr ênfase constante sobre os problemas da sexualidade, da procriação e da saúde, a obsessão com as aparências, do querer agradar e do cuidado de si mesmo (também a assimilação da sedução masculina à manipulação e a "doença"), a feminização das profissões (docência, magistratura, psicologia, operadores sociais), a importância das tarefas da comunicação e dos serviços, a difusão das formas redondas na indústria, a sacralização do matrimônio por amor (um oxímoro). 

A moda da ideologia vitimística, a multiplicação das "células de contenção psicológica", o desenvolvimento do mercado da emotividade e da compaixão, a nova concepção da justiça que faz dela um meio não para julgar com absoluta equidade, mas para fazer pesar a dor da vítima (para lhe consentir "elaborar o luto" e "se reconstruir"), a moda da ecologia e dos "remédios doces", generalizar os valores de mercado, a sacralização do "casal" e dos "problemas de casal", a predileção pela transparência e pela mistura de conceitos, sem esquecer o telefone celular como substituto do cordão umbilical, o progressivo desaparecimento do imperativo na linguagem corrente e finalmente a globalização, que tende a instaurar um mundo de fluxos e refluxos, sem fronteiras nem pontos de referência estáveis, um mundo líquido e amitótico (a lógica do Mar e também a da Mãe).

Depois da ríguda cultura dos anos 30, nem tudo foi negativo nessa feminização, claro; mas se precipitou excessivamente no sentido inverso.

Para além de ser sinônimo de desvirilização, desembocou no cancelamento simbólico do papel do Pai, confundindo os papeis sociais masculino e feminino. 

A generalização da condição salarial e a evolução da sociedade industrial provocaram que hoje os homens não contem com tempo para dedicar a seus filhos, o Pai, progressivamente, foi reduzido a um papel econômico e administrativo.

Transformado em "papai", tende a se converter em um simples sustentáculo afetivo e sentimental, provedor de bens de consumo e executor da vontade materna, e ao mesmo tempo um assistente social familiar, um enfeito de cozinha, destinado a trocar panos e promover passeios.

Não obstante, o Pai simboliza a lei, referente objetivo que se alça por cima da subjetividade familiar. Enquanto a mãe expressa, antes de mais nada, o mundo dos afetos e das necessidades, o pai tem a função de cortar o vínculo de união entre a criança e a mãe. Fazendo funcionar a terceira instância que impulsiona a criança a sair da onipotência narcisista, consentindo-lhe o encontro com seu contexto sócio-histórico e o ajuda a se colocar dentro de um mundo em transformação. Assegura "a transmissão da origem, do nome, da identidade, da herança cultural, da tarefa a desenvolver", como escreveu Philippe Forget. Servindo de ponte entre a esfera familiar privada e a pública, limitando o desejo por intermédio da Lei, ele se revela indispensável na construção da identidade. Em nosso tempo os pais tendem a se converter em "mães como as outras". Para usar as palavras de Eric Zemmour "também eles querem ser portadores do Amor e não mais apenas da Lei".

Pois bem, a criança sem pai deve realizar um enorme esforço para acessar o mundo simbólico. Na busca de um bem-estar imediato sem obrigá-lo a afrontar a Lei, a dependência dos bens torna-se naturalmente seu modo de ser. 

Outra característica da modernidade tardia é a confusão entre as funções masculinas e femininas, que faz dos progenitores sujeitos perdidos na confusão dos papeis não distinguindo na névoa os pontos de referência. 

Os sexos são complementares-antagônicos, o que quer dizer que se atraem e se combatem simultaneamente. A indiferença sexual, buscada na esperança de pacificar as relações entre os sexos acaba fazendo desaparecer aquelas relações. Confundindo identidades sexuais (não há mais que duas) com orientações sexuais (pode haver uma multidão), a reivindicação da homoparentalidade (que retira à criança os meios de identificar sua parentela e nega a importância da filiação em sua construção psíquica) se reduz a solicitar ao Estado a fabricação de leis, para convalidar costumes adquiridos, legalizar uma pulsão ou dar uma garantia institucional a um desejo, todas funções que não lhe competem.

Paradoxalmente, a privatização da família se produz paralelamente com a invasão de parte do "aparato terapêutico" de técnicos, especialistas, conselheiros e psicólogos. Essa "colonização do mundo vivido" efetuada com o pretexto de racionalizar a vida quotidiana, reforçou simultaneamente a medicalização da existência, retirando responsabilidade dos progenitores e a capacidade de supervisão e controle disciplinar ao Estado. Em uma sociedade em dívida perpétua em relação com os indivíduos, em uma república oscilante entre comemoração e compaixão, o Estado assistencial, aprisionado na gestão lacrimejante das misérias sociais pelo trâmite de sua caricatura sanitária e de assistência social, se transformou em um Estado maternal, protetor, higienista, distribuidor de mensagens de "ajuda" a uma sociedade reclusa em um curral.

Essa sociedade dominada pelo matriarcado mercantil se indigna hoje com o "machismo" da periferia metropolitana e se surpeende ao se ver desprezada.

Tudo isso não é mais que a forma exterior de um fato social, por trás do qual se dissimula a desigualdade salarial e as mulheres violentadas.

A dureza, apagada do discurso público, retorna com mais força, a violência social se desencadeia sob o horizonte do Império do Bem.

A feminização das "elites" e o papel adquirido pelas mulheres no mundo do trabalho não o converteram em mais afetuoso, tolerante, amante do próximo, só mais hipócrita. A esfera do trabalho assalariado obedece, sempre, somente às leis do mercado, cujo objetivo é acumular retornos lucrativos, ao infinito, sobre os investimentos efetuados. O capitalismo, se sabe, constantemente impulsionou as mulheres a trabalharem com o fim de exercer uma pressão para rebaixar o salário masculino.

Cada sociedade tende a manifestar dinâmicas psicológicas que se podem observar, também, a nível pessoal. Ao fim do século XIX se advertia com frequência a histeria, ao início do século XX, a paranoia. Nos países ocidentais, a patologia mais corrente hoje parece ser um narcisismo de civilização, que se expressa em particular na infantilização dos cidadãos, em uma existência imatura, em uma ansiedade que leva muitas vezes à depressão. Cada indivíduo toma como objetivo e como finalidade de tudo, a busca de si mesmo aproveita a vantagem sobre o sentido da diferença sexual, sua relação com o tempo se limita ao imediato.

O narcisismo produz uma obsessão de autogeração, em um mundo sem lembranças nem promessas, no qual passado e futuro se encontram igualmente desdobrados sobre um eterno presente no qual cada um se assume assim mesmo como objeto do próprio desejo, pretendendo escapar às consequências de seus atos. 

05/12/2015

Kerry Bolton - A Rússia de Spengler

por Kerry Bolton



Teria sido fácil para considerar Oswald Spengler, autor do epocal O Declínio do Ocidente (volume um foi publicado no verão de 1918) como  um russófobo. Ao fazê-lo o papel da Rússia no desenrolar histórico dessa era para a frente poderia ser facilmente desprezado, oposto ou ridicularizado por adeptos de Spengler, enquanto na Rússia seus insights sobre morfologia cultural seriam compreensivelmente mal vistos como partindo de um nacionalista alemão eslavófobo. Porém, enquanto Spengler, como muitos outros da época posterior à revolução bolchevique, considerasse - parcialmente a Rússia como o líder asiatizado de uma "revolução colorida" contra o mundo branco, ele também considerava outras possibilidades.

A "Alma" da Rússia

Spengler considerava os russos como formados pela vastidão da planície terrestre, como inatamente antagônicos à Máquina, como enraizados no solo, como irrepreensivelmente camponeses, religiosos e "primitivos". Porém, quando Spengler escreveu sobre essas características russas ele estava fazendo referência aos russos como um povo ainda juvenil, em contraste ao Ocidente senil. Daí o russo "primitivo" não é sinônimo da "primitividade" como popularmente compreendida àquela época em relação a povos tribais "primitivos". Nem deve ser isso confundido com a percepção hitlerista do "eslavo primitivo" incapaz de construir seu próprio Estado.

Para Spengler, o "camponês primitivo" é a fonte da qual uma raça retira seus elementos mais saudáveis durante suas épocas de vigor cultural. A agricultura é a fundação de uma Alta Cultura, permitindo que comunidades estáveis diversifiquem o trabalho nos especialismos dos quais a Civilização procede.

Segundo Spengler, cada povo possui sua alma, uma concepção alemã derivada do Idealismo de Herder, Fichte, etc. Uma Alta Cultura reflete esta alma, seja em sua matemática, música, arquitetura; tanto nas artes como nas ciências físicas. A alma russa não é idêntica à alma faustiana ocidental, como Spengler a chama, ou à alma "magiana" da civilização árabe, ou à clássica dos helenos e romanos. A Cultura Ocidental que foi imposta sobre a Rússia por Pedro o Grande, que Spengler chama de Petrinismo, não passa de um verniz.

A base da alma russa não é o espaço infinito - como no imperativo faustiano do Ocidente (Spengler, 1971, I, 1983), mas sim a planície ilimitada (Spengler, 1971, I, 201). A alma russa expressa seu próprio tipo de infinitude, ainda que não o do ocidental que se torna até escravizado por sua própria técnica ao fim de seu ciclo vital. (Spengler, 1971, II, 502) (Ainda que poderia ser dito que o sovietismo escravizou o homem à máquina, um spengleriano citaria isso como um exemplo de petrinismo). Porém, civilizações seguem seu próprio curso de vida, e não se pode ver as descrições de Spengler como juízos morais, mas sim como observações. O encerramento para a Civilização Ocidental segundo Spengler não pode ser o de criar ainda mais formas grandiosas de arte e música, que pertencem à época juvenil ou "primaveril" de uma civilização, mas dominar o mundo sob uma mandato tecnocrático-militar, antes de decair no esquecimento como civilizações mundiais anteriores. É após este declínio ocidental que Spengler aludiu à próxima civilização mundial sendo a da Rússia.

A arquitetura russa ortodoxa não representa o infinito na direção do espaço que está simbolizado pelas torres das catedrais góticas da Alta Cultura do Ocidente, nem o espaço fechado da mesquita da Cultura Magiana, (Spengler, 1971, I, 183-216) mas a impressão de assentar-se sobre um horizonte. Spengler considerava que esta arquitetura russa "não era ainda um estilo, apenas a promessa de um estilo que despertará quando a verdadeira religião russa despertar". (Spengler, 1971, I, p.201) Spengler estava escrevendo sobre a cultura russa como um forasteiro, e ele mesmo reconhecia as limitações disso. É, portanto, útil comparar seus pensamentos sobre a Rússia com os de russos notáveis.

Nikolai Berdyaev em A Ideia Russa afirma o que Spengler descreve:

"Há aquilo na alma russa que corresponde à imensidão, à vagueza, à infinitude da terra russa, a geografia espiritual corresponde com a física. Na alma russa há um tipo de imensidão, uma vagueza, uma predileção pelo infinito, tal como a que é sugerida pela grande planície da Rússia". (Berdyaev, 1).

"Socialismo Russo"

No que concerne a alma russa, o ego e vaidade do homem e cultura ocidentais estão ausentes; a persona busca crescimento impessoal no serviço, "no mundo-irmão da planície". O Cristianismo Ortodoxo condena o "Eu" como "pecado". (Spengler, 1971, I, 309) O conceito russo de "nós" ao invés de "Eu", e de serviço impessoal à vastidão da própria terra implica outra forma de socialismo distinto do marxismo. É talvez neste sentido que o stalinismo procedeu segundo linhas às vezes antitéticas ao bolchevismo pensado por Trótski et al. (Trotski, 1936)

Um comentário de uma visitante americana à Rússia, Barbara J. Brothers, parte de uma delegação científica, afirma algo similar à observação de Spengler:

"Os russos possuem um senso de conexão consigo e com outros seres humanos que simplesmente não é parte da realidade americana. Não é que a competitividade não existe; a questão é que simplesmente sempre parece haver mais consideração e respeito pelos outros em qualquer dada situação".

Do ethos tradicional russo, intrinsecamente antitético ao individualismo ocidental, incluindo suas relações de propriedade, Berdyaev escreveu:

"De todos os povos no mundo, os russos possuem o espírito de comunidade; no mais alto grau o modo de vida russo e as maneiras russas são desse tipo. A hospitalidade russa é uma indicação desse senso de comunidade". (Berdyaev, 97-98)

Taras Bulba

A literatura nacional russa partindo de 1840 começou a expressar conscientemente a alma russa. Primeiramente, o Taras Bulba de Nikolai Vasilievich Gogol, que junto com a poesia de Pushkin fundou uma tradição literária russa; isto é, verdadeiramente russa, e distinta da literatura anterior baseada na alemã, na francesa e na inglesa. John Cournos fala disso em sua introdução a Taras Bulba:

"A palavra falada, nascida do povo, deu alma e asa à literatura; apenas vindo à terra, à terra nativa, lhe foi permitido voar. Vindo da Pequena Rússia, a Ucrânia, com sangue cossaco nas veias, Gogol injetou seu próprio vírus saudável em um corpo fraco, soprou seu próprio espírito viril, o espírito de sua raça, em suas narinas, e deu ao romance russo sua direção até o dia de hoje.

Taras bulba é um conto sobre a formação do povo cossaco. Nessa formação popular o inimigo exterior desempenha um papel crucial. O russo foi formado fundamentalmente como resultado de batalhas ao longo de séculos contra tártaros, muçulmanos e mongois".

Sua sociedade e nacionalidade eram definidas pela religiosidade, como as do Ocidente pelo Cristianismo Gótico durante sua época "primaveril", em termos spenglerianos. O recém-chegado a um Setch, ou aldeia permanente, era saudado pelo Chefe como um cristão e como um guerreiro: "Bem-vindo! Você crê em Cristo?" - "Sim", respondia o recém-chegado. "E você crê na Santíssima Trindade?" - "Sim" - "E você vai à igreja?" - "sim". "Agora faça o sinal da cruz". (Gogol, III)

Gogol retrata o desprezo que se tinha pelo comércio, e quando o comércio havia penetrado entre os russos, ao invés de ser mentido confinado a não-russos associados ao comércio, isso é considerado como um sintoma de decadência:

"Eu sei que a ignomínia encontrou seu caminho para nossa terra. Os homens só se importam em ter suas pilhas de grãos e feno, e seus rebanhos de cavalos, e que seu hidromel possa estar seguro em seus porões; eles adotam, sabe-se-lá que costumes muçulmanos. Eles falam de forma desprezível com suas línguas. Eles não se importam em falar seus reais pensamentos com seus compatriotas. Eles vendem suas próprias coisas a seus próprios camaradas, como criaturas desalmadas em um mercado... . Que eles saibam o que irmandade significa em solo russo!" (Spengler, 1971, II, 113)

Aqui podemos ver um socialismo russo que está a um mundo de distância do materialismo dialético adumbrado por Marx, o sentimento místico de "nós" forjado pela vastidão das planícias e pelo imperativo de irmandade acima da economia, imposto por aquela paisagem. O sentimento de missão de mundo da Rússia possui sua própria forma de messianismo, seja expressa pela Ortodoxia cristã ou pela forma não-marxiana de "revolução mundial" sob Stálin, ou ambas em combinação, como sugerido pela reaproximação posterior entre Stalinismo e a Igreja a partir de 1943 com a criação do Conselho para Assuntos da Igreja Ortodoxa Russa (Chumachenko, 2002). Em ambos os sentidos e mesmo nas formas embrionárias tomando lugar sob Putin, a Rússia é consciente de uma missão mundial, expressa hoje no papel da Rússia em forjar um mundo multipolar, com a Rússia tendo um papel principal na resistência ao unipolarismo.

O comércio é preocupação para estrangeiros, e as intrusões trazem com elas a corrupção da alma russa e de sua cultura em geral: na fala, na interação social, no servilismo, solapando a "irmandade" russa, o sentimento russo de "nós" que Spengler descreveu. (Spengler, 1971, I, 309)

A irmandade cossaca é retratada por Gogol como o processo formativo na construção do povo russo. Este processo não é um biológico, mas espiritual, transcendendo até o laço familiar. Spengler similarmente tratou a questão racial mais como uma de alma do que uma de zoologia. (Spengler, 1971, II, 113-155) Para Spengler a paisagem era crucial para determinar o que se torna "raça", e a duração de famílias agrupadas em uma paisagem particular - incluindo nômades que possuem uma extensão definida de deslocamento - formam "um caráter de duração", que era a definição spengleriana de "raça". (Spengler, II, 113) Gogol descreve este processo formativo "racial" entre os russos. Longe de ser um nacionalismo racial agressivo, é uma irmandade mística em expansão sob Deus:

"O pai ama seus filhos, a mãe ama seus filhos, os filhos amam seu pai e mãe; mas isto não é como aquilo, irmãos. A besta selvagem também ama sua prole. Mas um homem pode se relacionar apenas por similaridade de mente ao invés de sangue. Tem havido irmandades em outras terras, mas nunca nenhuma irmandade tal como a que há em nosso solo russo". (Gogol, IX)

A alma russa nasce no sofrimento. O russo aceita o destino da vida a serviço de Deus e de sua Pátria. Rússia e fé são inseparáveis. Quando o velho guerreiro Bovdug é mortalmente ferido por uma bala turca suas palavras finais são exortações à nobreza do sofrimento, após o que seu espírito alça voo para se unir a seus ancestrais. (Gogol, IX) A mística da morte e do sofrimento pela Pátria é descrita na morte de Taras Bulba, quando ele é capturado e executado, suas palavras finais sendo de ressurreição:

"Aguardem, o tempo virá quando vocês aprenderão o que é a fé ortodoxa russa! O povo já o fareja longe e perto. Um czar surgirá do solo russo, e não haverá poder no mundo que não se submeterá a ele!". (Gogol, XII)

Pseudomorfose

Um elemento significativo da morfologia cultural de Spengler é a "Pseudomorfose Histórica". Spengler traçou uma analogia a partir da geologia. Quando cristais de um mineral estão embutidos em uma camada de rocha, onde "fissuras e rachaduras ocorrem, a água se infiltra, e os cristais são gradualmente trazidos para fora de modo que no devido tempo apenas seu molde oco permanece". (Spengler, II, 89)

"Pelo termo 'pseudomorfose histórica' eu proponho designar aqueles casos em que uma Cultura estrangeira mais velha jaz tão massivamente sobre a terra que uma Cultura jovem, nascida nessa terra, não consegue respirar e falha não só em atingir formas de expressão puras e específicas, mas até mesmo em desenvolver sua própria consciência plena de si. Tudo que emerge das profundezas da alma jovem é lançado nos velhos moldes, sentimentos jovens se endurecem em obras senis, e ao invés de se empinar em seu próprio poder criativo, ele só pode odiar o poder distante com um ódio que cresce até se tornar monstruoso". (Ibid.)

Uma dicotomia tem existido por séculos, começando com Pedro o Grande, de tentativas de impôr um verniz ocidental sobre a Rússia. Isso é chamado de Petrinismo. A resistência a essas tentativas é o que Spengler chamou de "Velha Rússia". (Spengler, 1971, II, 192) Spengler também descreveu essa dicotomia.

Nikolai Berdyaev escreveu em termos similares aos de Spengler: "A Rússia é uma seção completa do mundo, um Leste-Oeste colossal. Ela une dois mundos, e dentro da alma russa dois princípios estão sempre engajados em uma luta - o oriental e o ocidental". (Berdyaev, 1).

Com a orientação da política russa na direção do Ocidente, a "Velha Rússia" foi "forçada a uma história falsa e artificial". (Spengler, II, 193) Spengler pensou que a Rússia havia sido dominada pela cultura ocidental tardia:

"Artes e ciências de um período tardio, iluminismo, ética social, o materialismo das cidades globais, foram introduzidos, ainda que neste tempo pré-cultural a religião fosse a única língua pela qual o homem compreendia a si e ao mundo". (Spengler, 1971, II, 193)

Em 1863, escrevendo para Dostoievski, Ivan Sergyeyevich Aksakov (fundador do grupo "Eslavófilo" anti-petrinista) notou que "A primeira condição de emancipação para a alma russa é que ela deve odiar Petersburgo com toda sua força e toda sua alma". Moscou é santa, Petersburgo satânica. Uma lenda popular apresentava Pedro o Grande como o Anticristo.

O ódio do "Ocidente" e da "europa" é o ódio por uma Civilização que já havia atingido um estágio avançado de decadência no materialismo e buscava impôr sua primazia pela subversão cultural ao invés dep elo combate, com sua perspectiva urbanita e monetarista, "envenenando a cultura ainda não nascida no ventre da terra". (Spengler, 1971, II, 194) A Rússia era ainda uma terra em que não havia burguesia e nenhum sistema de classes verdadeiro, mas apenas senhor e camponês, uma visão confirmada por Berdyaev, escrevendo: "As várias linhas de demarcação social não existiam na Rússia; não havia classes preponderantes. A Rússia nunca foi um país aristocrático no sentido ocidental, e igualmente não havia burguesia". (Berdyaev, 1)

As cidades que emergiram vomitaram uma intelligentsia, copiando a intelligentsia do Ocidente Tardio, "ávidos por desvendar problemas e conflitos, e abaixo, um campesinato desenraizado, com todo aquele pesar e ansiedade metafísicas...perpetuamente nostálgicos pela terra aberta e odiando amargamento o mundo cinzento e pétro no qual o Anticristo os havia tentado. Moscou não tinha alma adequada". (Spengler, 1971, II, 194) Berdyaev ressalta de forma similar sobre o petrinismo da classe superior que "a história russa era um conflito entre Oriente e Ocidente dentro da alma russa". (Berdyaev, 15)

Messianismo Russo

Berdyaev também afirma que enquanto o petrinismo introduziu uma época de dinamismo cultural, ele também colocou um fardo pesado sobre a Rússia, e uma desunião de espírito. (Ibid.) Porém, a Rússia possui seu próprio senso religioso de Missão, que é tanto universal quanto a do Vaticano. Spengler cita Dostoievski que escreveu em 1878 que "todos os homens devem se tornar russos, primeiro e fundamentalmente russos. Se a humanidade geral é o ideal russo, então todo mundo deve em primeiro lugar se tornar russo". (Spengler, 1963, 63n) A ideia messiânica russa encontrou uma expressão de força Os Possuídos de Dostoiévski, onde, em uma conversa com Stavrogin, Shatov diz: 

"Reduzir Deus ao atributo de nacionalidade?...Ao contrário, eu elevo a nação a Deus... O povo é o corpo de Deus. Cada nação é uma nação apenas na medida em que tenha seu próprio Deus particular, excluindo todos os outros deuses na terra sem qualquer reconciliação possível, desde que creia que por seu próprio Deus ele conquistará e expulsará todos os outros deuses da face da terra... A única nação 'portadora de Deus' é a nação russa..." . (Dostoievski, 1992, Parte II:I:7,265-266)

Spengler viu a Rússia como estando fora da Europa, e mesmo como "asiática". Ele até mesmo via um renascimento ocidental vis-à-vis a oposição à Rússia, que ele considerava como liderando a "revolução colorida" contra os brancos, sob o manto do bolchevismo. Porém também havia outros destinos que Spengler viu no horizonte, que haviam sido previstos por Dostoievski.

Uma vez que a Rússia houvesse derrubado suas intrusões estrangeiras, ela poderia olhar com outra perspectiva sobre o mundo, e reconsiderar a Europa não com ódio e vingança mas em parentesco. Spengler escreveu que enquanto Tolstoi, o petrinista, cuja doutrina foi precursora do bolchevismo, era a "Rússia passada", Dostoievski era a "Rússia vindoura". Dostoievski como representante da "Rússia vindoura" "não conhece" o ódio da Rússia pelo Ocidente. Dostoievski e a velha Rússia são transcendentes. "Seu poder apaixonado de viver é suficientemente compreensivo para abarcar todas as coisas ocidentais também". Spengler cita Dostoievski novamente: "Eu tenho duas pátrias, Rússia e Europa". Dostoievski como o portador de uma alta cultura russa "passou para além tanto do petrinismo como da revolução, e de seu futuro ele olha para trás por sobre elas com ode longe. Sua alma é apocalíptica, desejosa, desesperada, mas de seu futuro ele está certo". (Spengler, 1971, II, 194)

Para os "Eslavófilos", dos quais Dostoievski era um, a Europa é preciosa. O Eslavófilo aprecia a riqueza da alta cultura europeia, ao mesmo tempo que percebe que a Europa está em um estado de decadência. Berdyaev discutiu o que ele considerou uma inconsistência em Dostoievski e nos eslavófilos em relação a Europa, mas uma que é compreensível quando consideramos a diferenciação crucial de Spengler entre Cultura e Civilização:

"Dostoieviski chama a si mesmo de um eslavófilo. Ele pensava, como o fazia também um grande número de pensadores sobre o tema da Rússia e da Europa, que ele sabia que a decadência estava se estabelecendo, mas que um grande passado existe nela, e que ela fez contribuições de grande valor para a história da humanidade". (Berdyaev, 70)

É notável que enquanto essa diferenciação entre Kultur e Zivilisation é atribuída a uma tradição filosófica particularmente alemã, Berdyaev comenta que ela estava presente entre os russos "muito antes de Spengler", ainda que derivando de fontes alemães:

"É de ser notado que muito antes de Spengler, os russos traçaram a distinção entre 'cultura' e 'civilização', que eles atacaram a 'civilização' mesmo quando permaneciam apoiadores da 'cultura'. Essa distinção na verdade, apesar de expressa em uma fraseologia distinta, seria encontrada entre os eslavófilos". (Ibid.)

Dostoievski era indiferente ao Ocidente tardio, enquanto Tolstoi era um produto dele, o Rousseau russo. Imbuídos com ideias do Ocidente tardio, os marxistas buscavam substituir uma classe governante petrina por outra. Nenhuma das duas representava a alma da Rússia. Spengler observou: "O verdadeiro russo é o discípulo de Dostoieviski, ainda que ele possa não ter lido Dostoievski, ou qualquer outro, não, talvez porque ele não possa ler, ele é ele próprio Dostoievski em substância". A intelligentsia odeia, o camponês não. (Ibid.) Ele eventualmente derrubaria o bolchevismo e qualquer outra forma de petrinismo. Aqui nós vemos Spengler inequivocamente afirmando que a civilização pós-ocidental será russa:

"Aquilo pelo que esse povo desassentado anseia é sua própria forma vital, sua própria religião, sua própria história. O Cristianismo de Tolstoi foi um equívoco. Ele falava de Cristo, mas queria dizer Marx. Mas ao Cristianismo de Dostoievski os próximos mil anos pertencerão". (Ibid.)

Sobre a verdadeira Rússia, como Dostoievski a expressou, "nem uma única nação já foi alguma vez fundada sobre princípios da ciência ou da razão". (Dostoievski, 1872, II:I:VII)

À época em que Spengler publicou A Hora da Decisão em 1934 ele concluiu que a Rússia havia derrubado o petrinismo e as vestimentas do Ocidente tardio, e ainda que ele chamasse a nova orientação da Rússia de "asiática", ele disse que ela era "uma nova Ideia, e uma ideia com um futuro também". (Spengler, 1963, 60) Esclarecendo, a Rússia olha para o "Oriente", mas enquanto o ocidental assume que "Ásia" e Oriente são sinônimos de mongol, a etimologia da palavra "Ásia" vem do grego Aσία, ca. 440 a.C., se referindo a todas as regiões a leste da Grécia. (Ibid. 61) Durante seu tempo Spengler viu que na Rússia,

"raça, língua, costumes poulares, religião, em sua forma presente...todos ou qualquer um deles pode e será fundamentalmente transformado. O que vemos hoje, então, é simplesmente o novo tipo de vida que uma vasta terra concebeu e irá fazer emergir presentemente. Não é definível em palavras, nem está seu portador consciente disso. Aqueles que tentam definir, estabelecer, ditar um programa, estão confundindo a vida com uma frase, como o faz o bolchevismo governante, que não é suficientemente consciente de sua própria origem cosmopolita, racionalista e euro-ocidental". (Ibid.)

Na Rússia Spengler já via em 1934 que "de marxismo genuíno há pouco, excetuando nomes e programas". Ele duvidava que o programa comunista seja "realmente levado a sério ainda". Ele via a possibilidade dos vestígios de bolchevismo petrino serem derrubados, para ser substituído por um tipo oriental "nacionalista" que atingiria "proporções gigantescas". (Spengler, 1963, 63) Spengler também se referiu à Rússia como paradoxalmente o país "menos perturbardo pelo bolchevismo", (Ibid., 182) e sugeriu que a "face marxiana só foi trajada para benefício do mundo exterior". (Ibid., 212) Uma década após a morte de Spengler a direção da Rússia sob Stálin havia perseguido definições mais claras, e o bolchevismo petrino havia se transformado da maneira que Spengler previu. (Brandenberger, 2002)

Conclusão

Como na época de Spengler, como séculos antes, continuava a existir duas tendências na Rússia: a Russa Antiga e a Petrina. Nem um, nem o outro espírito domina atualmente, ainda que sob Putin a Velha Rússia lute para ressurgir. Spengler em uma palestra publicada para a Convenção de Negócios Reno-Vestfaliana em 1922 se referiu ao "antigo, instintivo, difuso, inconsciente e subliminar impulso que está presente em todo russo, não importa o quão metodicamente ocidentalizada sua vida consciente possa ser - um anseio místico pelo Sul, por Constantinopla e Jerusalém, um espírito cruzado genuíno similar ao espírito que nossos ancestrais góticos tinham em seu sangue, mas que dificilmente podemos apreciar hoje". (Spengler, 1922)

O bolchevismo substituiu uma forma de petrinismo por outra forma, limpando o caminho "para uma nova cultura que algum dia surgirá entre Europa e Ásia. É mais um início do que um começo". O campesinato "algum dia se tornará consciente de sua própria vontade, que aponta em uma direção totalmente diferente". "O campesinato é o verdadeiro povo russo do futuro. Ele não se permitirá perverter ou sufocar". (Ibid.).

Spengler, o antimarxista arquiconservador, seguindo a tradição alemã de realpolitik, considerava a possibilidade de uma aliança russo-alemã em seu discurso de 1922, o Tratado de Rapallo sendo um reflexo dessa tradição. "Um novo tipo de líder" despertaria na adversidade, para "novas cruzadas e conquistas lendárias". O resto do mundo, repleto com um anseio religioso, mas que cai sobre chão infértil, está "rasgado e cansado suficiente para lhe permitir subitamente assumir um novo caráter sob as circunstâncias adequadas". Spengler sugeriu que "talvez o próprio bolchevismo mude dessa maneira sob novos líderes". "Mas a Rússia silenciosa e profunda" voltaria sua atenção para o Oriente Próximo e Extremo, como um povo de "grandes extensões interiores". (Ibid.)

Ainda que Spengler postulasse os ciclos orgânicos de uma Alta Cultura passando pelas fases vitais de nascimento, vigor, maturidade, velhice e morte, deve-se ter em mente que um ciclo de vida pode ser perturbado, abortado, rompido ou acometido por doença, a qualquer momento, e findar sem se realizar. Cada um tem sua analogia na política, e há muitos russófobos ávidos por aleijar o destino da Rússia com contaminações políticas, econômicas e culturais. O bloco soviético caiu por contágio interno e externo.

O que Spengler previu para as possibilidades da Rússia, ainda a realizar sua missão histórica, messiânica e de escopo mundial, pode agora estar se desabrochando se a Rússia conseguir aparar pressões de dentro e de fora. A revogiração da Ortodoxia é parte desse processo, como o estilo de liderança de Putin, distinto de um Ieltsin, por exemplo. Do que quer que a Rússia seja chamada externamente, seja monárquica, bolchevique ou democrática, há uma Rússia interior - eterna - que perdura e aguarda a sua hora no palco histórico mundial.

Referências

Nikolai Berdyaev, The Russian Idea, MacMillan Co., New York, 1948

D Brandenberger, National Bolshevism: Stalinist culture and the Formation of Modern Russian National Identity 1931-1956. Harvard University Press, Massachusetts, 2002

T A Chumachenko, Church and State in Soviet Russia, M. E. Sharpe Inc., New York, 2002

H Cournos,‘ Introduction’, N V Gogol, Taras Bulba & Other Tales, 1842, http://www.gutenberg.org/files/1197/1197-h/1197-h.htm

Dostoyevski, The Brothers Karamazov, 1880

Dostoyevski, The Possessed, Oxford University Press, 1992

Spengler, Prussianism and Socialism, 1919

Spengler, ‘The Two Faces of Russia and Germany’s Eastern Problems’, Politische Schriften, Munich, 14 February, 1922

Spengler, The Hour of Decision, Alfred A Knopf, New York, 1963

Spengler, The Decline of The West, George Allen & Unwin, London, 1971

Leon Trotsky, The Revolution Betrayed: what is the Soviet Union and where is it going?, 1936