18/12/2016

Christophe Geffroy - Entrevista com Alain de Benoist: A Bênção dos Limites



Nós tivemos a alegria de entrevistar os maiores intelectuais franceses, de Chantal Delsol a Pierre Manent, passando por Marcel Gauchet, Alain Finkelkraut, Jacques Juillard, e alguns outros, em nossas colunas. Alain de Benoist não é cristão e, portanto, divergimos em alguns pontos, mas ele é uma grande mente aberta ao debate e com a qual as concordâncias abundam. Enquanto ele permanece majoritariamente ostracizado na "mídia de massa", nós estamos felizes e honrados e dar espaço aqui.

P: Você é um dos fundadores da "Nouvelle Droite", do GRECE, e muitas publicações desse movimento. Você poderia recordar as circunstâncias desses desenvolvimentos e as principais ideias que você, assim, defende?


R: O que foi designado muito mais tarde pela extremamente medíocre expressão "Nouvelle Droite" [Nova Direita] nasceu em 1967-1968, um pouco antes dos eventos em Paris durante o mês de maio. Adolescente, eu havia tido uma experiência de militância política intensa, praticamente total nos quatro ou cinco anos precedentes, dentro da direita radical (a Fédération des étudiants nationalistes de François d'Orcival, então o movimento do periódico Europa Ação, fundado por Dominique Venner). Uma escola dura e uma experiência memorável, mas cujos limites eu rapidamente testei. Aos 25 anos de idade, eu entendi que eu era um homem do saber, não um homem do poder, para falar como Raymond Abellio. Ademais, eu estava cansado dos slogans e das ideias prontas. Então eu rompi definitivamente tanto com a ação política quanto com a extrema-direita, para me devotar completamente ao trabalho do pensamento. É então que eu criei o periódico Nouvelle École, pouco antes de lançar o GRECE. O periódico Éléments apareceu em 1972. Eu também publiquei o periódico Krisis em 1988, que foi criado para ser um "periódico de ideias e debates". Essas três publicações ainda são publicadas hoje. Minha intenção à época era começar do zero, quer dizer inventariar sistematicamente todos os domínios do conhecimento de modo a levar ao desenvolvimento de uma nova cosmovisão capaz de esclarecer o momento histórico em que vivemos. Eu tinha em mente o exemplo da Escola de Frankfurt, da Action Française e do CNRS! Obviamente, eu tive que dar alguns passos para trás. No mínimo posso dizer que desde meio século atrás, eu jamais estabeleci outros objetivos.


P: Você colaborou com a Revista Figaro no fim da década de 70: você alcançou notoriedade ali, mas você foi expulso. Isso já havia sido por "crimepensar", e podemos ver neste episódio o início do ostracismo midiático do qual você tem sido vítima?


R: As coisas são mais simples. Louis Pauwels, quando criou a Revista Figaro, me pediu para ajudá-lo, o que aceitei. Muitos de meus amigos também participaram nessa aventura. Três anos depois, traumatizado pela chegada da esquerda ao poder, Pauwels decidiu se convertar ao cristianismo e ao liberalismo, ainda antes ele não fosse nem cristão, nem liberal. O Monsenhor Lustiger recebeu sua confissão. Seguindo seu exemplo, teria sido fácil para mim preservar minha posição na revista. Eu não o fiz. A expulsão da qual você fala foi a consequência lógica. Mas eu não penso que este tenha sido a origem do ostracismo que você também mencionou. Este é apenas um aspecto da evolução mais geral da paisagem intelectual, que tem progressivamente marginalizado uma série de livres-pensadores e que atingiu muitos outros intelectuais além de mim. Isso é algo que está começando a passar hoje. A geleira intelectual está em processo de derretimento. Aquecimento global!


P: Eles o criticaram por defender teorias "racistas" à época: o que era, na verdade, e você mudou? Não seriam essas acusações antigas que se mantém presas a você?


R: Os pequenos perseguidores que querem ditar a mídia hoje lançam mão de muitos meios! Os fantasmas "racialistas" eram parte da bagagem de juventude que eu há muito deixei de lado. Eu publiquei três livros contra o racismo, nos quais eu desconstruí metodicamente teorias racistas de modo a demonstrar sua falsidade intrínseca. Eu fiz o mesmo com todas as doutrinas que pretendem derivar a especificidade sócio-histórica das sociedades humanas exclusivamente da biologia. E quanto eu falo em identidade, é a Martin Buber que faço referência, não a Gobineau! É suficiente me ler para perceber isso (não há falta de material: 102 livros, 2.000 artigos, 600 entrevistas). Mas eu não sou mais tão inocente: ao contrário, eu sei bem que o objetivo verdadeiro é impedir que as pessoas me leiam.


P: Em relação ao início da "Nouvelle Droite", quais são os principais pontos que você acredita terem mudado e quais são os temas persistentes, fundamentais?


R: Mais que mudanças, houve inflexões. Por exemplo, hoje eu não mais subscreveria à rejeição completa do pensamento de Freud ou de Marx à qual eu aderia nos anos 70. Além dos grandes polos de influência que deixaram sua marca em mim bem cedo, como o pensamento socialista do início do movimento sindicalista (Sorel, Proudhon, Leroux, Malon), os "inconformistas" da década de 30 (Mounier, Robert Aron, Alexandre Marc), ou a Revolução Conservadora alemã (Schmitt, Spengler, Jünger, Moeller van den Bruck), meu interesse se voltou cada vez mais para as ciências sociais, de Max Weber a Jean-Claude Michéa, passando por Simmel, Sombart, Baudrillard e Louis Dumont. Mas eu também segui com minhas obras sobre tradições populares e a história das religiões.


P: Como você analisa a emergência do "politicamente correto", com seu vetor principal de antirracismo, e a pouca resistência que ele enfrenta?


R: Ele é originalmente um modismo que veio dos EUA. Na França, ele floresceu na esquerda, mas também marcou o fim de uma esquerda fiel a suas aspirações iniciais. Ao privilegiar o antirracismo e a "luta contra toda discriminação", a esquerda buscou um sujeito histórico substituto, porque ela deliberadamente se separou do povo. Ao recitar os mantras dos direitos humanos e reivindicar a defesa de toda forma de desejo, inclusive a nível institucional, ela quer ocultar sua vergonhosa adesão ao monoteísmo de mercado. Este virada encontrou pouca resistência porque o terreno havia sido preparado, por pelo menos dois séculos, pelo que eu chamei de a ideologia do "Mesmo", essa ideologia multifacetada que nos diz que os homens são fundamentalmente os mesmos em todo lugar e que as diferenças que notamos entre eles são secundárias, ou mesmo danosas. A igualdade, nessa perspectiva, se torna um sinônimo de mesmidade.


P: Você tem escrito bastante sobre liberalismo. Enquanto nosso país sofre com um paralisante socialismo estatal, enquanto violência islâmica se espalha em casa com a imigração em massa, enquanto eles "desconstroem" o homem passo a passo da teoria de gênero ao trans-humanismo, em resumo, enquanto muitas ameaças concretas nos sobrepujam, por que o liberalismo também é um perigo nesse contexto?


R: As ameaças mais barulhentas e visíveis não são necessariamente as mais importantes. Algumas são tão formidáveis quanto silenciosas, como o poder crescente da inteligência artificial ou a convergência de NBIC (nanotecnologias, biotecnologias, informação e ciências cognitivas) na fabricação e transformação da vida. Se eu privilegio a crítica do liberalismo, é porque ele hoje representa a ideologia dominante na maioria dos países do planeta, mas também porque ele está na origem da maioria dos males que você menciona. O trans-humanismo e a ideologia de gênero se sustentam na ideia de que o homem pode criar a si mesmo a partir do nada, que se conforma perfeitamente à antropologia liberal, que não vê o homem como herdeiro, mas como um ente autorizado a sempre buscar seu interesse de maneira egoísta e cujas escolhas jamais se enraizam em algo que o precede. Desde o começo, a imigração representa o "exército de reserva" dos empregadores: os liberais sempre foram partidários da livre circulação de pessoas, bens e capital. Em face das patologias sociais resultantes, eles não tem nada a oferecer além da criação de um "mercado de imigração" (já que eles também querem criar um mercado baseado no direito de poluir!). Quanto a violência islamista, ela é apenas o resultado convulsivo das guerras "humanitárias" lançadas no Oriente Médio pelas potências ocidentais dominadas pelo universalismo dos direitos humanos e pela obsessão pelo mercado.


P: Segundo você, os problemas que eu acabei de mencionar delineam novas divisões políticas, e se sim, quais?

R: Nascida da modernidade, a divisão esquerda/direita decai com a modernidade. Apenas aqueles que ainda se apegam a ela não entenderam que o mundo mudou, e que instrumentos conceituais obsoletos não permitem análises. A única divisão verdadeira hoje é a que contrasta a França periférica com a França urbanizada, o povo com as elites globalizadas, as pessoas comuns com a classe governante, as classes populares com a grande burguesia globalista, os perdedores com os vencedores da globalização, os defensores das fronteiras com os parditários da "abertura", os "invisíveis" com os "sobrerrepresentados", em resumo os que estão no fundo e os que estão no topo. Sobre este ponto eu os remeto às obras de Christopher Lasch e Christophe Guilluy. É apenas nessa perspectiva que podemos compreender um fenômeno como a ascensão do populismo, que constitui a única real novidade política dos últimos 30 anos.

P: Você acha que estes problemas podem encontrar soluções no esquema do debate eleitoral, e assim se aproximar a uma resolução após uma "boa" eleição?

R: Eu não acredito muito em "boas" eleições, nem que o partido político enquanto forma ainda tenha muito futuro. Sob as circunstâncias atuais, as eleições permitem alternância, mas não alternativas: elas permanecem no mesmo paradigma social. Toda a questão é saber como podemos mudá-lo. Mesmo se vivemos na época de implosões, ao invés de explosões, meu sentimento é de que só mudaremos a sociedade quando se tornar impossível não mudá-la. É outra maneira de considerar o fim do capitalismo que desejamos. Eu escrevi isso muitas vezes: o sistema monetário perecerá pelo dinheiro.

P: O que combate cultural significa para você, e como você o situa em relação a ação política?

R: A cultura geral desapareceu na escola; a classe política hoje consiste fundamentalmente de pessoas educadas, mas incultas, como disse Alain Finkelkraut. Ademais, os partidos políticos sempre desconfiaram de ideias, que inutilmente dividem as pessoas aos seus olhos. Quanto a direita, ela nunca gostou muito de intelectuais. O trabalho cultural, que objetiva mudar o espírito dos tempos, deve portanto seguir outros canais.

P: Os EUA terão um novo presidente neste outono. Você acha que isso mudará algo concretamente em termos de equilíbrio mundial?

R: Os EUA entraram em uma fase de relativo declínio, mas permanecem uma potência que não deveríamos subestimar. Com Hillary Clinton, que é a representante dos meios empresariais e do sistema, o principal risco é o de um relançamento da Guerra Fria, ou mesmo da guerra, ponto. O capital sempre demandou guerra quando não há outros meios de relançar a corrida pelo lucro! Donald Trump representa o desconhecido. No mínimo, estaria de acordo com o princípio da precaução lembrar que, se a Europa sempre teve muitos governos pró-americanos, nunca houve um governo pró-europeu nos EUA.

P: Você se define como "pagão": Para você, o que é ser pagão? O que estabelece sua antropologia?

R: Como resumir em poucas frases, e ademais em uma publicação católica, uma posição sobre a qual eu já escrevi milhares de páginas? A oposição entre cristãos e pagãos claramente não pode ser reduzida ao número de deuses. O paganismo é, fundamentalmente, uma religião da pólis (os gregos adoram deuses gregos). Ele é, então, uma religião do cosmo e da vida, onde ética e estética jamais entram em oposição. O paganismo é a ética da honra, não a moralidade do pecado. É a condenação do excesso (hybris), o senso de limites, a negação da primazia a tudo que é meramente material. Historicamente, o cristianismo é um fenômeno híbrido que teve que disputar com as formas do paganismo sem cessar de combatê-lo em essência. É essa complexidade que eu tentei revelar em Comment peut-on être paien? [Como se pode ser pagão?] (1981), e talvez ainda mais em meu diálogo com o filósofo cristão Thomas Molnar em L'éclipse du sacré [O Eclipse do Sagrado] (1986).

Eu não gosto daqueles que não crêem em nada. Eu acredito que para que se possa dar o melhor de si, para que se possa alcançar o próprio telos, o homem deve apelar a algo que o ultrapassa. Mas eu não creio em qualquer "pós-mundo", em qualquer além-mundo. Eu não creio na distinção teológica entre ser criado e ser não-criado. É por isso que eu me sinto mais em casa submergindo nos épicos homéricos ou na Canção dos Nibelungos, praticando Heráclito, Aristóteles, Sêneca ou Marco Aurélio, do que lendo Sâo Paulo ou Santo Agostinho. Eu estudei as origens do cristianismo por mais de 40 anos. Não vejo nada de crível ou atrativo ali. Eu reprovo o universalismo do cristianismo (o "povo de Deus" não corresponde a qualquer povo), que o impede, quando deixado por conta própria, de assumir uma dimensão identitária. Eu o reprovo por ter introduzido o universalismo individualista no espaço mental europeu, por ter esvaziado o mundo de toda sua sacralidade intrínseca, por ter propagado uma concepção vetorial e linear da história a partir da qual todos os historicismos modernos surgiram, e por ter disseminado essas "verdades cristãs tornadas loucas" (Chesterton) as quais, uma vez secularizadas, se tornam o pedestal do mundo desencantado, esvaziado de sentido, em que vivemos hoje.

Ao mesmo tempo, se você ler minhas memórias (Mémoire vive), que foram publicadas 4 anos atrás, você sabe o que eu devo a autores como Charles Péguy e Georges Bernanos [autores católicos]. Eu também me recordo calorosamente de Gustave Thibon e Jean-Marie Paupert, com quem eu mantive relações bastante afetuosas, que eram correspondidas ao que parece (foi no La Nef, em outubro de 2003, que Paupert teve a gentileza de se referir a mim como seu "alter ego"!). Eu acrescento que não sou um daqueles que não gosta da encíclica Laudato sí, e que o "ecossocialismo" do Papa Francisco me agrada bastante. Sobre a condenação do dinheiro, este "pasto do diabo"; a rejeição da ganância e da crematística; a proteção dos ecossistemas; e a condenação da "comercialização" da vida (que os católicos costumam esquecer que principia com a venda da força-trabalho), pode indubitavelmente haver concordância. Discussões religiosas são discussões intermináveis. Mesmo os crentes são ateus na religião dos outros! A simples experiência humana me mostrou por um longo tempo que entre cristãos, pagãos, ateus ou agnósticos há a mesma proporção de homens bons e espíritos livres, bem como de sectários medíocres e verdadeiros canalhas. Ideias são uma coisa, homens são outra. Eu julgo os homens fundamentalmente com base no que eles valorizam (ou parecem valorizar aos meus olhos), não no que eles dizem. É o que me distingue tanto das santas víboras, os defensores do "politicamente correto", e dos inquisidores do momento.

P: Que temas importantes dirigem seu pensamento político ou filosófico hoje, e quais são os principais perigos que nos ameaçam aos seus olhos?

R: Os perigos são de todo tipo, já que nunca vivemos em um mundo tão incerto. Entre aqueles que eu considero mais preocupantes: a ilimitação global do comércio, o desaparecimento de culturas populares e modos de vida enraizados, a possível substituição do homem pela máquina, a exaustão de grandes projetos coletivos, a ascensão do tecnomorfismo, e muitas outras. Estes são alguns dos temas sobre os quais eu reflito. Mas eu também trabalho sobre temas tão diferentes quanto a importância decrescente do político ou as realizações da exegese contemporânea. É difícil fazer tudo junto!

16/12/2016

Alain de Benoist - A Ideia de Império

por Alain de Benoist



A Europa foi o lugar em que dois grandes modelos de regime, de unidade política, foram elaborados, desenvolvidos e se confrontaram: a nação, precedida pela monarquia, e o império. O último imperador do Ocidente Latino, Rômulo Augusto, foi deposto em 475. Apenas o Império Oriental permaneceu. Mas após o desmonte do Império Ocidental, uma nova consciência unitária parece ter emergido. Em 795, o Papa Leão III começou a datar suas encíclicas com base no reinado de Carlos, rei dos francos e patrício dos romanos, ao invés de no reinado do imperador de Constantinopla. Cinco anos depois em Roma, no dia de Natal no ano 800, Leão III colocou a coroa imperial sobre a cabeça de Carlos Magno.

Essa é a primeira renovação do império. Ela obedece a teoria de transferência (transratio imperii) segundo a qual o império que Carlos Magno reviveu é uma continuação do Império Romano, pondo assim um fim às especulações teológicas inspiradas pelo profeta Davi que previu o fim do mundo após o fim do quarto império, i.e., após o fim do Império Romano que sucedeu os impérios babilônico, persa e alexandrino.

Ao mesmo tempo, a renovação do império também rompe com a ideia agostiniana de uma oposição radical entre civitas terrena e civitas Dei, que poderia ter sido entendida como significando que um império cristão seria mera quimera. De fato, Leão III tinha uma nova estratégia, um império cristão, em que o imperador seria o defensor da Cidade de Deus. O imperador derivava seus poderes do papa, cujos poderes espirituais ele reproduzia no âmbito temporal. É claro, todas as querelas sobre investiduras derivarão dessa formulação equívoca que torna o imperador um súdito na ordem espiritual, mas ao mesmo tempo faz dele a cabeça de uma hierarquia temporal cujo caráter sagrado logo será afirmado.

Após o Tratado de Verdun (843) selar a divisão do império entre os três netos de Carlos Magno (Lotário I, Ludovico o Germânico e Carlos o Careca), o rei da Saxônia, Henrique I, foi coroado imperador em 919. O império, então, se tornou germânico. Após o deslocamento do poder carolíngeo, ele foi restaurado novamente no centro da Europa com os otonianos e os francos em 962 para benefício do Rei Oto I da Germânia. Ele permaneceu a principal força política na Europa até meados do século XIII, quando ele foi então oficialmente transformado no Sacrum Romanum Imperium. Após 1442, a apelação "da nação germânica" foi acrescentada.

Não é possível retraçar a história do Sacro Império Romano da Nação Germânica aqui para além de apontar que ao longo de sua história ele foi uma composição reunindo três componentes: antiguidade, cristandade e identidade germânica.

Historicamente, a ideia imperial começou a desintegrar na Renascença, com o aparecimento dos primeiros Estados nacionais. É claro, a vitória de Pavia em 1525, conquistada pelas forças imperiais contra as tropas de Francisco II, parecia ter revertido a tendência. À época, este evento foi considerado bastante importante e causou um ressurgimento do guibelinismo na Itália. Após Carlos V, porém, o título imperial não foi para seu filho Filipe, e o imperio foi novamente reduzido a uma questão local. Após a Paz de Vestfália (1648), ele era visto menos e menos como algo dignificado e mais como uma simples confederação de Estados territoriais. O declínio continuou por mais dois séculos e meio. Em 6 de abril de 1806, Napoleão fez a revolução render frutos pela destruição do que sobrava do império. Francisco II renunciou a seu título e o Sacro Império Romano deixou de existir.

À primeira vista, o conceito de império não é fácil de compreender, considerando os usos usualmente contraditórios que são feitos dele. Em seu dicionário, Littre se satisfaz com uma definição tautológica: um império é um "Estado governado por um imperador". Isso é breve demais. Como a pólis ou a nação, o império é um tipo de unidade política; diferentemente da monarquia ou da república, ele não é uma forma de governo. Isso significa que o império é compatível a priori com diferentes formas de governo. O primeiro artigo na Constituição de Weimar afirmava "o Reich Alemão é uma república". Mesmo em 1978, a corte constitucional de Karlsruhe não hesitou em afirmar que "o Reich Alemão permanece sujeito do direito internacional". A melhor maneira de entender a realidade substantiva do império é por sua comparação com a nação ou do Estado-Nação, este representando o fim de um processo de formação de nacionalidade para a qual a França mais ou menos fornece o melhor exemplo.

Em seu significado atual, a nação aparece como um fenômeno moderno. Neste sentido, tanto Colette Beaune [1] como Bernard Guenée estão errados ao situarem o nascimento da nação cedo demais na história. Essa ideia se apoia em anacronismos; ela confunde "real" com "nacional", a formação da nacionalidade com a formação da nação. A formação da nacionalidade corresponde com o nascimento de um senso de pertencimento que começa para ir além do simples horizonte natual durante a guerra contra os plantagenetas, um senso reforçado durante a Guerra dos Cem Anos. Mas não se deve esquecer que na Idade Média a palavra "nação" (de natio, "nascimento") tinha um sentido exclusivamente étnico, as nações da Sorbonne são simplesmente grupos de estudantes que falam um idioma diferente. Da mesma maneira, a palavra "país", que só apareceu na França com os humanistas do século XVI (Dolet, Ronsard, Du Bellay), originalmente se referia à noção medieval de "pátria". Quando mais que uma mera ligação à terra do próprio nascimento, o "patriotismo" é fidelidade ao senhor ou lealdade à pessoa do rei. Mesmo a palavra "França" apareceu relativamente tarde. Começando com Carlos III (chamado o Simples), o título levado pelo rei da França era Rex Francorum. A expressão Rex Franciae só apareceu no início do século XIII, sob Filipe-Augusto, após a derrota do Conde de Toulouse au Muret, que culminou com a anexação dos países falantes da langue d'oc e com a perseguição dos cátaros.

A ideia de nação estava plenamente constituída apenas no século XVIII, especialmente durante a revolução. No início, ela se referia a um conceito de soberania oposto ao da monarquia absoluta. Ela reunia aqueles que pensavam o mesmo politicamente e filosoficamente, não era mais o rei, mas a "nação" que incorporava a unidade política do país. Finalmente, ela era o local abstrato no qual o povo podia conceber e exercer seus direitos, onde indivíduos eram transformados em cidadãos.

Em primeiro lugar, a nação é o povo soberano que, na melhor das hipóteses, delega ao rei somente o poder de aplicar a lei emanando da vontade geral; então ela é aquelas pessoas que reconhecem a autoridade de um Estado, habitam o mesmo território e reconhecem um ao outro como membros da mesma unidade política; finalmente, ela é a própria unidade política. É por isso que a tradição contrarrevolucionária, que exalta o princípio aristocrático, inicialmente se recusa a valorizar a nação. Por outro lado, o artigo 3 da Declaração de Direitos de 1789 proclama "O princípio de que toda soberania reside essencialmente na nação". Bertrand de Jouvenel até mesmo escreveu que: "Em retrospecto, o movimento revolucionário parece ter tido como seu objetivo a fundação do culto da nação"[2].

O que distingue o império da nação? Em primeiro lugar, o fato de que o império não é primariamente um território, mas essencialmente uma ideia ou um princípio. A ordem política é determinada por ele, não por fatores materiais ou pela posse de uma área geográfica. Ela é determinada por uma ideia espiritual ou jurídica. Neste sentido, seria um equívoco grave pensar que o império difere da nação primariamente em termos de tamanho no sentido de ser de alguma forma "uma nação maior que outras". É claro, um império cobre um espaço amplo. O que é importante, porém, é que o imperador possui poder por virtude de incorporar algo que vai além da mera posse. Como dominus mundi, ele é o suserano de príncipes e reis, i.e., ele governo sobre soberanos, não sobre territórios, e representa um poder transcendendo a comunidade que ele governa.

Julius Evola escreve: "O império não deve ser confundido com os reinos e nações que o consituem porque ele é algo qualitativamente diferente, anterior e acima de cada um deles em termos de seus princípios." [3] Antes de expressar um sistema de hegemonia territorial supranacional, "a velha noção romana de imperium se referia ao puro poder de comando, a força quase-mística de auctoritas". Durante a Idade Média, a distinção dominante era precisamente uma entre auctoritas (superioridade moral e espiritual) e potestas (simples poder público político exercido por meios legais). Tanto no império medieval quanto no Sacro Império Romano, essa distinção subjaz a separação entre autoridade imperial e a autoridade soberana do imperador sobre um povo particular. Por exemplo, Carlos Magno era parte imperador e parte rei dos lombardos e francos. A partir de então, a lealdade ao imperador não era submissão a um povo ou a um país específico. Da mesma maneira, no império austro-húngaro, lealdade à dinastia dos Habsburgos constituía "o elo fundamental entre povos e substituía o patriotismo" (Jean Béranger);ela sobrepujava relações de caráter nacional ou confessional.

Este caráter espiritual do princípio imperial provocou diretamente a famosa querela sobre investiduras que colocou partidários do papa e do imperador um contra o outro por muitos séculos. Carente de qualquer conteúdo militar, a noção de império originalmente adquiriu um forte matiz teológico no mundo germânico medieval, onde se podia ver uma reinterpretação cristã da ideia romana de imperium. Se considerando os executores da história sagrada universal, os imperadores deduziram daí a ideia de que o império, como instituição "sagrada" (Sacrum Imperium), deve constitir um poder autônomo em relação ao papa. Essa é a razão para a querela entre guelfos e guibelinos.

Os seguidores do imperador que negavam as pretensões do papa, os guibelinos, encontravam apoio na antiga distinção entre imperium e sacerdotium, vistas como duas esferas igualmente importantes instituídas por Deus. Esta interpretação era uma extensão do conceito romano de relações entre o imperador e o pontifex maximus, cada um sendo superior ao outro em sua respectiva ordem. A perspectiva guibelina era não sujeitar a autoridade espiritual ao poder temporal, mas reivindicar para o poder imperial uma autoridade espiritual igual face às pretensões exclusivas da Igreja. Essa renovatio, que faz do imperador a fonte essencial da lei e confere a ele o caráter de "lei viva na terra" (lex animata in terris), encapsula a reivindicação guibelina: como o papa, o império deve ser reconhecido como uma instituição sagrada em natureza e caráter. Evola enfatiza que a oposição entre guelfos e guibelinos "não era somente política...ela expressava o antagonismo de duas grandes dignitates, ambas reivindicando uma dimensão espiritual... Em seu nível mais profundo, o guibelinismo sustentava que durante sua vida na terra (vista como disciplina, combate e serviço) o indivíduo podia transcender a si mesmo...por meio da ação e sob o signo do império, segundo o caráter da instituição 'sobrenatural' garantida a ela" [4].

Daqui em diante, o declínio do império ao longo dos séculos é consistente com o declínio do papel central desempenhado por seu princípio e, correspondentemente, com seu movimento rumo a uma definição puramente territorial. O Império Romano-Germânico já havia mudado quando a tentativa foi feita tanto na Itália como na Alemanha de ligá-la a um território privilegiado. Esta ideia está ainda ausente em Dante, para quem o imperador não é nem alemão, nem italiano, mas "romano" no sentido espiritual, i.e., um sucessor de César e Augusto. Em outras palavras, o império não pode se transformar em uma "grande nação" sem entrar em colapso porque, nos termos do princípio que o anima, nenhuma nação pode assumir e exercer uma função governante superior se ela não se ergue sobre suas lealdades e interesses particulares. "O império no verdadeiro sentido", Evola conclui, "só pode existir se animado por um fervor espiritual... Se isso está ausente, só se terá uma criação forjada pela violência, imperialismo, uma simples superestrutura mecânica sem alma" [5].

De sua parte, a nação encontra sua origem na pretensão que o reino tem de dar a si prerrogativas imperiais relacionando-as não a um princípio, mas a um território. Seus primórdios podem ser localizados na divisão do Império Carolíngio após o Tratado de Verdun. Naquele ponto, França e Alemanha, se é que se pode chamá-las assim, passaram a ter destinos separados. Esta permaneceu na tradição imperial, enquanto o reino dos francos (Regnum Francorum), se separando da comunidade germânica, lentamente evoluiu na direção da nação moderna pelo intermediário do Estado monárquico. O fim da dinastia carolíngia data do século X: 911 na Alemanha, 987 na França. Eleito em 987, Hugo Capeto foi o primeiro rei que não compreendia francique. Ele também foi o primeiro soberano que se situou claramente fora da tradição imperial, o que explica o motivo para que, na Divina Comédia, Dante o faz dizer: "Eu fui o teto maligno cuja sombra escureceu toda terra cristã!".

Nos séculos XIII e XIV, o reino da França foi construído contra o império com Filipe-Augusto (Bouvines, 1214) e Filipe, o Belo (Agnani, 1303). Tão cedo quanto 1204, o Papa Inocêncio III declarou que "é publicamente sabido que o rei da França não reconhece qualquer autoridade acima dele no reino temporal". Tal como a lenda troiana foi instrumentalizada, toda uma obra de legitimação "ideológica" permitiu que o império fosse oposto pelo princípio da soberania de reinos nacionais e seu direito a não reconhecer qualquer lei além de seu próprio interesse. O papel de juristas, tão bem enfatizado por Carl Schmitt, é fundamental aqui. Em meados do século XIII foram eles que formularam a doutrina segundo a qual "o rei da França, que não vê ninguém acima dele no reino temporal, está isento do império e pode ser considerado como um princeps in regno suo" [6]. Essa doutrina foi ainda mais desenvolvida nos séculos XIV e XV com Pierre Dubois e Guillaume de Nogaret. Ao se proclamar "imperador em seu próprio reino" (rex imperator in regno suo), o rei opôs sua soberania territorial à soberania espiritual do império, seu poder puramente temporal foi oposto ao poder espiritual imperial. Ao mesmo tempo, juristas tomaram o lado da centralização contra liberdades locais, e contra as aristocracias feudais, graças especialmente à instituição do cas royal. Eles fundaram uma ordem jurídica, burguesa em caráter, na qual a lei, concebida como normal geral com atributos racionais, se tornou a base de um poder puramente estatista. A lei foi transformada em simples legalidade codificada pelo Estado. No século XVI, a fórmula do rei como "imperador em seu próprio reino" foi diretamente associada com a ideia de soberania, sobre a qual Jean Bodin teorizou. Schmitt ressalta que a França foi o primeiro país no mundo a criar uma ordem pública completamente emancipada do modelo imperial.

O que aconteceu depois é bastante sabido. Na França, a nação surgiu sob o duplo signo do absolutismo centralizador e da ascensão da burguesia. Aqui o papel principal recaiu sobre o Estado. Quando Luís XIV disse "L'Etat c'est moi", ele queria dizer que não havia nada acima do Estado. O Estado cria a nação, que por sua vez "produz" o povo francês; enquanto na idade moderna e em países com uma tradição imperial, o povo cria a nação, que então cria um Estado. Os dois processos de construção histórica estão, assim, inteiramente opostos e essa oposição está baseada na diferença entre a nação e o império. Como se tem apontado com frequência, a história da França tem sido uma luta constante contra o império. A política secular da monarquia francesa estava dirigida primariamente a desintegrar os espaços germânico e italiano. Após 1792, a república assumiu os mesmos objetivos: a luta contra a casa da Áustria e a conquista do Reno.

A oposição entre o princípio espiritual e o poder territorial não é a única. Outra diferença essencial concerne a maneira pela qual o império e a nação pensam a unidade política. A unidade do império não é mecânica, mas orgânica, que vai além do Estado. Na medida em que ele incorpora um princípio, o império só visualiza uma unidade no nível daquele princípio. Enquanto a nação engendra sua própria cultura ou encontra apoio na cultura no processo de sua formação, o império abraça várias culturas. Enquanto a nação tenta fazer o povo corresponder ao Estado, o império associa diferentes povos.

O princípio do império tenta reconciliar o um e o múltiplo, o particular e o universal. Sua lei geral é a da autonomia e do respeito pela diversidade. O império tenta unificar em um nível superior, sem suprimir a diversidade de culturas, constituições étnicas e povos. Ele é um todo cujas partes são autônomas em proporção à solidez do que as une. Estas partes são diferenciadas e orgânicas. Em contraste à societas unitária e centralizada do reino nacional, o império incorpora a clássica imagem de universitas. Moeller van den Bruck corretamente viu o império como uma unidade de opostos, enquanto Evola o definiu como "uma organização supranacional tal que sua unidade não tende a destruir ou nivelar a multiplicidade étnica e cultural que ela abraça", [7] acrescentando que o princípio imperial torna possível "recuar da multiplicidade de elementos diversos para um princípio que é, ao mesmo tempo, superior e anterior a sua diferenciação, uma diferenciação que procede somente da realidade sensível". Assim, não é uma questão de abolir, mas integrar a diferença.

No auge do Império Romano, Roma era uma ideia, um princípio, que tornava possível unir diferentes povos sem convertê-los ou suprimi-los. O princípio de imperium, que já operava na Roma republicana, refletia a vontade de realizar uma ordem cósmica sempre ameaçada. O Império Romano não demandava deuses ciumentos. Ele admitia outras divindades, conhecidas ou desconhecidas, e o mesmo é o caso na ordem política. O império aceitava cultos estrangeiros e a diversidade de códigos jurídicos. Cada povo era livre para organizar sua federação nos termos de seu conceito tradicional de direito. A jus romana prevalecia apenas em relações entre indivíduos de diferentes povos ou em relações entre federações. Era possível ser um cidadão romano (civis romanus sum) sem abandonar a própria nacionalidade.

Essa distinção (estranha ao espírito da nação) entre o que hoje é chamado de nacionalidade e cidadania pode ser encontrada no Império Romano-Germânico. O Reich medieval, uma instituição supranacional (porque animada por um princípio além da ordem política), era fundamentalmente pluralista. Ele permitia que as pessoas vivessem suas próprias vidas segundo sua própria lei. Na linguagem moderna, ele era caracterizado por um destacado "federalismo" particularmente apto em respeitar minorias. Afinal, o Império Austro-Húngaro funcionou eficientemente por séculos enquanto minorias começaram a constituir a maioria de sua população (60% do total). Ele reuniu italianos e romenos, bem como judeus, sérvios, russos, alemães, poloneses, tchecos, croatas e húngaros. Jean Béranger escreve que "os Habsburgos sempre foram indiferentes ao conceito de Estado-Nação", mesmo ao ponto de que este império, fundado pela casa da Áustria, por muitos séculos se recusou a criar uma "nação austríaca", o que realmente só tomou forma no século XX [8].

Inversamente, o que caracteriza o reino nacional é sua tendência irresistível à centralização e homogeneização. O investimento de espaço do Estado-Nação é primeiro revelado em um território no qual uma soberania política homogênea é exercida. Essa homogeneidade pode, primeiro, ser apreendida na lei: unidade territorial resulta da uniformidade de normas jurídicas. A luta secular da monarquia contra a nobreza feudal, especialmente sob Luís XI, a aniquilação das civilizações dos países nos quais a langue d'oc era falada, a afirmação do princípio da centralização sob Richelieu, tudo tendia na mesma direção. Neste sentido, os séculos XIV e XV marcaram uma transição fundamental. Durante este período o Estado emergiu como o vencedor contra aristocracias feudais e garantiu sua aliança com a burguesia ao mesmo tempo que uma ordem jurídica centralizada foi posta no lugar. Simultaneamente, o mercado econômico "nacional" apareceu. Graças à monetarização de todas as formas de troca (trocas não-comerciais, intracomunitárias não sendo taxadas antes disso), ele respondeu à vontade do Estado de maximizar suas rendas fiscais. Como Pierre Rosanvallon explica: "o Estado-Nação é uma maneira de compor e articular espaço global. Da mesma maneira, o mercado é primariamente uma maneira de representar e estrutura espaço social; apenas secundariamente ele é um mecanismo descentralizado para regular atividade econômica através de um sistema de preços. A partir dessa perspectiva, o Estado-Nação e o mercado se referem à mesma forma de socialização dos indivíduos dentro do espaço. Eles são concebíveis apenas em uma sociedade atomizada na qual o indivíduo é considerado autônomo. Tanto nos sentidos sociológico e econômico desses termos, um Estado-Nação e um mercado não podem existir em espaços em que a sociedade se desdobre como entidade global e social" [9].

Não há dúvida de que o absolutismo monárquico pavimentou o caminho para as revoluções nacionais burguesas. Após Luís XIV romper as últimas resistências da nobreza, a revolução era inevitável quando a burguesia poderia, por sua vez, ganhar sua autonomia. Mas também não há dúvida de que, em muitos sentidos, a revolução só portou e acelerou as tendências do Ancien Régime. Assim, Tocqueville escreveu: "A Revolução Francesa causou muitas coisas secundárias e subordinadas, mas ela realmente só desenvolveu o núcleo das coisas mais importantes; essas existiam antes dela... Com os franceses, o poder central já havia assumido o controle sobre a administração local mais do que em qualquer outro país do mundo. A revolução só tornou este poder mais habilidoso, poderoso e empreendedor" [10].

Sob a monarquia, como sob a república, a lógica "nacional" tentou eliminar qualquer coisa que pudesse interferir entre o Estado e o indivíduo. Ela tentou integrar indivíduos às mesmas leis de uma maneira unificada; ela não tentou reunir coletividades livres para preservar suas linguagens, culturas e leis. O poder estatal foi exercido sobre sujeitos individuais, razão pela qual ele constantemente destruiu ou limitou o poder de todas as formas de socialização intermediária: clãs familiares, comunidades aldeãs, confraternidades, corporações de ofício, etc. A lei de 1791 contra as corporações (loi Le Chapelier) assim, encontrou seu precedente na supressão, determinada por Francisco I, de "todas as confraternidades de ofícios e artesãos por todo o reino" em 1539, uma decisão que à época teve como alvo os artesãos pertencentes a sociedades ditas como de dever. Com a revolução, é claro, essa tendência se acelerou. A reestruturação do território em departamentos de tamanho mais ou menos igual, a luta contra o "espírito provinciano", a supressão de particularidades, a investida contra os idiomas regionais e os "patois", a padronização de pesos e medidas, representam uma obsessão real com por tudo em alinhamento. Nos termos da velha distinção de Ferdinand Tönnies, a nação moderna emerge quando a sociedade se ergue sobre as ruínas de velhas comunidades.

Este componente individualista do Estado-Nação é essencial aqui. O império demanda a preservação da diversidade de grupos; por sua própria lógica, a nação só reconhece indivíduos. Se é membro do império de maneira mediada por estruturas intermediárias. Inversamente, se pertence à nação de maneira imediata, i.e., sem a mediação de laços locais, corpos ou estamentos. A centralização monárquica foi essencialmente jurídica e política; ela, assim, apontava para o trabalho de construção do Estado. A centralização revolucionária, que acompanhou a emergência da nação moderna, foi ainda mais longe. Ela objetivava "produzir uma nação" diretamente, i.e., engendrar novos modos sociais de comportamento. O Estado, então, se tornou produtor do social, um produtor monopolista: ele tentou estabelecer uma sociedade de indivíduos reconhecidos como iguais a nível secular, sobre as ruínas dos corpos intermediários que ele havia suprimido [11].

Como Jean Baechler aponta, "na nação os grupos intermediários são vistos como irrelevantes em relação a cidadania e assim tendem a se tornar secundários e subordinados" [12]. Louis Dumont se pronuncia segundo linhas similares, de que o nacionalismo resulta da transferência da subjetividade característica do individualismo ao nível de uma coletividade abstrata. "No sentido mais preciso e moderno do termo, 'nação' e 'nacionalismo' (distinto do simples patriotismo) tem sido historicamente parte e parcela do individualismo enquanto valor. A nação é apenas um tipo de sociedade global que corresponde ao reino do individualismo enquanto valor. Não só a nação acompanha o individualismo historicamente, a interdependência entre eles é tão indispensável que se poderia dizer que a nação é uma sociedade global composta de pessoas que se consideram indivíduos" [13].

O individualismo, entremeado com a lógica da nação, está obviamente oposto ao holismo da construção imperial, onde o indivíduo não está dissociado de suas conexões naturais. No império a mesma cidadania é composta de diferentes nacionalidades. Na nação os dois termos são sinônimos: pertencer a uma nação é a base da cidadania. Pierre Fougeyrollas resume a situação nestes termos: "Rompendo com sociedades medievais que possuíam uma identidade bipolar, a das raízes étnicas e da comunidade de crentes, as nações modernas são constituídas como sociedades fechadas em que a única identidade oficial é aquela que o Estado confere aos cidadãos. Assim, em termos de seu nascimento e fundações, a nação tem sido um anti-império. A Holanda se originou de uma ruptura com o Império Habsburgo; a Inglaterra se originou em uma ruptura com Roma e o estabelecimento de uma religião nacional. A Espanha só se tornou castelhana escapando das garras do sistema habsburgo, e a França, que foi lentamente constituída como nação contra o Império Romano-Germânico, só se tornou uma nação combatendo forças tradicionais por toda a Europa" [14].

O império nunca é uma totalidade fechada, ao contrário da nação, que tem sido cada vez mais definida por fronteiras intangíveis. As fronteiras do império são naturalmente fluidas e provisórias, o que reforça seu caráter orgânico. Originalmente, a palavra "fronteira" tinha um significado exclusivamente militar: a linha de frente. No início do século XIV, sob o reinado de Luís X ("Luís o Obstinado") na França, a palavra frontiere substituiu marche, que havia sido comumente utilizada até então. Mas ainda levaria quatro séculos antes de ela adquirir seu significado atual de delimitação entre dois Estados. Ao contrário da lenda, a ideia de uma "fronteira natural", que juristas às vezes utilizavam no século XV, jamais inspirou a política externa da monarquia. Sua origem é às vezes equivocadamente atribuída a Richelieu, ou mesmo a Vauban. Na verdade, somente durante a revolução que foi essa ideia, segundo a qual a nação francesa teria "fronteiras naturais", usada sistematicamente. Sob a Convenção especialmente, os girondinos a utilizaram para legitimar o estabelecimento da fronteira oriental na margem esquerda do Reno e, mais geralmente, para justificar suas políticas de anexação. É também durante a revolução que a ideia jacobina de que as fronteiras de um Estado devem todas imediatamente corresponder às de um idioma, uma autoridade política e uma nação começa a se espalhar por todo lado na Europa. Finalmente, é a Convenção que inventou a noção de "estrangeiros internos" (da qual Charles Maurras paradoxalmente faria grande uso) aplicando-a a aristocratas que apoiavam um sistema político desprezado: definindo-os como "estranhos em nosso meio", Barrère afirma que "os aristocratas não tem pátria".

Mesmo com seu princípio e vocação universal, o império não é universalista no sentido atual do termo. Sua universalidade nunca significou expansão por sobre todo o planeta. Ao invés, ele está conectado à ideia de uma ordem equitativa buscando federar povos com base em uma organização política concreta. Desde esta perspectiva, o império, que rejeita qualquer objetivo de conversão ou padronização, difere de um hipotético Estado-Mundo ou da ideia de que há princípios jurídico-políticos universalmente válidos a todo momento e em todos os lugares.

Como o universalismo está diretamente ligado ao individualismo, o universalismo político moderno deve ser concebido nos termos das raízes individualistas do Estado-Nação. A experiência histórica mostra que o nacionalismo usualmente assume a forma de um etnocentrismo exacerbado a dimensões universais. Em muitas ocasiões, a nação francesa quis ser "a mais universal das nações", e é a partir da universalidade de seu modelo nacional que ela reivindicou seu direito de disseminar seus princípios por todo o mundo. À época em que a França queria ser "a irmã mais velha da Igreja", o monge Guibert de Nogent, em sua Gesta Dei per Francos, fez dos francos o instrumento de Deus. De 1792 em diante, o imperialismo revolucionário também tentou converter toda a Europa à ideia do Estado-Nação. Desde então, não tem havido falta de vozes autorizadas para garantir que a ideia francesa de nação seja ordenada à ideia da humanidade, e que é isso que a tornaria particularmente "tolerante". Pode-se questionar essa pretensão já que a proposição pode ser invertida: se a nação é ordenada à humanidade, é porque a humanidade é ordenada à nação. Com este corolário, aqueles opostos a ela estão excluídos não só de uma nação particular, mas da espécie humana como um todo.

A palavra império deve ser reservada apenas para as construções históricas merecedoras desse nome, tal como o Império Romano, o Império Bizantino, o Império Romano-Germânico ou o Império Otomano. O Império Napoleônico, o Terceiro Reich de Hitler, os impérios coloniais francês e britânico, e os imperialismos modernos de tipo americano e soviético certamente não são impérios. Tal designação só é dada abusivamente a empreendimentos ou potências meramente engajadas em expandir seu território nacional. Essas "grandes potências" modernas não são impérios, mas nações que simplesmente querem expandir, por meios militares, políticos, econômicos ou outros, para além de suas fronteiras atuais.

Na era napoleônica, o "império" (um termo já usado para designar a monarquia antes de 1789, mas simplesmente no sentido de "Estado") era uma entidade nacional-estatista tentanto se impôr na Europa como grande potência hegemônica. O império de Bismarck, que deu prioridade ao Estado, também tentou criar a nação alemã. Alexandre Kojève observou que o slogan de Hitler: Ein Volk, ein Reich, ein Führer é somente uma tradução alemão da palavra-guia nacionalista da Revolução Francesa: la Republique une et indivisible. A hostilidade do Terceiro Reich à ideia de império também é visível em sua crítica da ideologia de corpos e "estamentos" intermediários [15]. Uma visão centralista e redutora sempre prevaleceu no "império" soviético, implicando um espaço político-econômico unificado graças a um conceito restritivo de combates culturais locais. Quanto ao "modelo" americano, que tenta converter todo o planeta em um sistema homogêneo de consumo material e práticas técnico-econômicas, é difícil ver que ideia, que princípio espiritual, ele reivindicaria!

"Grandes potências" não são realmente impérios. Na verdade, os imperialismos modernos devem ser desafiados em nome do que um império realmente é. Evola não pensava de maneira diferente quando ele escreveu: "Sem um Meurs et deviens, nenhuma nação pode aspirar a uma missão imperial efetiva e legítima. Não é possível preservar as próprias características nacionais e então desejar, com base nisso, dominar o mundo ou simplesmente outro lugar" [16]. E novamente: "Se as tendências 'imperialistas' da era moderna foram abortivas porque elas usualmente aceleram a decadência dos povos que cede a eles, ou se elas tem sido a fonte de todos os tipos de calamidades, é precisamente porque elas carecem de qualquer elemento realmente espiritual, suprapolítico e supranacional; este é substituído pela violência de um poder que é maior do que o que se deseja subjugar mas que não é de natureza diferente. Se um império não é um império sagrado, ele não é um império mas um tipo de câncer atacando todas as distintas funções de um organismo vivo" [17].

Por que pensar sobre o conceito de império hoje? Não seria puramente quimérico clamar pelo renascimento de um verdadeiro império? Talvez. Mais será um acidente que, mesmo hoje, o modelo do Império Romano continua a inspirar todas as tentativas de se superar o Estado-Nação? Seria um acidente se a ideia de império (o Reichsgedanke) ainda mobiliza reflexão em uma época na qual o pensamento está em desordem? [18] E não seria essa ideia de império que subjaz todos os debates que atualmente cercam a construção da Europa? Seria o Estado-Nação insubstituível? Muitos da esquerda e da direita já o disseram. Esta é, notavelmente, a posição de Charles Maurras. Segundo ele, a nação é "o maior dos círculos comunitários temporalmente sólidos e completos" [19]. Ele declarou que "não há estrutura política maior que a nação" [20]. Thierry Maulnier respondeu: "O culto da nação não é, em si mesmo, uma resposta mas um refúgio, uma efusão mistificadora, ou pior ainda, uma distração formidável de problemas internos" [21].

O que basicamente move o mundo hoje está além do Estado-Nação. Este encontra sua estrutura de ação, sua esfera de tomada de decisões, despedaçada por muitas rupturas. A nação é desafiada tanto por cima quanto por baixo. Ela é desafiada por baixo por novos movimentos sociais: pela persistência de regionalismos e novas reivindicações comunitárias. É como se as formas intermediárias de socialização que ela outrora descartou nascessem novamente hoje sob novas formas. O divórvio entre sociedade civil e a classe política está refletido na proliferação de redes e na multiplicação de "tribos". Mas a nação também é desafiada por cima por fenômenos sociais usualmente pesados que zombam das fronteiras nacionais. O Estado-Nação é despido de seus poderes pelo mercado mundial e pela competição internacional, pela formação de instituições supranacionais ou comunitárias, por burocracias intergovernamentais, aparatos técnico-científicos, mensagens midiáticas globais ou grupos internacionais de pressão. Ao mesmo tempo, há a expansão externa cada vez mais clara de economias nacionais às custas de mercados internos. A economia está se tornando globalizada por causa de forças interatuantes, multinacionais, o mercado de ações, macro-organizações globais.

A imagética das nações também parece estar em crise e aqueles que falam de "identidade nacional" tem, geralmente, dificuldade para defini-la. O modelo nacional de integração parece ter se exaurido. A evolução da política rumo a um sistema de autoridades tecnogerenciais, que põe em efeito a implosão da realidade política, confirma que a lógica das nações não é mais capaz de integrar qualquer um ou garantir a regulação de relações entre um Estado criticado em todas as frentes e uma sociedade civil que se desintegra. Assim, a nação é confrontada com o crescimento de certas identidades coletivas ou comunitárias no mesmo momento em que os centros globais de tomada de decisão dão uma imagem sombria dela. Daniel Bell expressou isso quando falou que os Estados-Nações se tornaram grandes demais para problemas pequenos e pequenos demais para os grandes. Privado de qualquer base histórica real, o Estado-Nação no Terceiro Mundo parece ser uma importação ocidental. A viabilidade de longo praz de, por exemplo, "nações" africanas negras ou do oriente próximo, parece cada vez mais incerta. Na verdade, essas nações são o resultado de uma série de decisões arbitrárias de potências coloniais profundamente ignorantes sobre realidades históricas, religiosas e culturais locais. O desmonte dos impérios otomano e do austro-húngaro como resultado dos tratados de Sevres e Versailles foi uma catástrofe cujos efeitos ainda são sentidos hoje, como a Guerra do Golfo e conflitos renovados na Europa Central mostram.

Em tais condições, como pode a ideia de império ser ignorada? Hoje ela é o único modelo que a Europa produziu como alternativa ao Estado-Nação. As nações estão tanto ameaçadas quanto exauridas. Elas devem ir além de si mesmas se não quiserem acabar como protetorados da superpotência americana. Elas só podem fazer isso tentando reconciliar o um e o múltiplo, buscando uma unidade que não leve a seu empobrecimento. Há sinais inequívocos disso. O fascínio com a Áustria-Hungria e o renascimento da ideia de Mitteleuropa [22] estão entre eles. O clamor pelo império nascerá da necessidade. O trabalho que Kojève escreveu em 1945, só recentemente publicado, é notável. Nele ele faz um apelo fervoroso pela formação de um "Império Latino" e expõe a necessidade do império como alternativa ao Estado-Nação e à universalidade abstrata. "O liberalismo", ele escreveu, "está errado em não ver entidade política fora da nação. O internacionalismo peca porque ele não vê nada politicamente viável além da humanidade. Ele também foi incapaz de descobrir a realidade política intermediária de impérios, i.e., de uniões, mesmo fusões internacionais, de nações relacionadas, que é a própria realidade política de hoje" [23].

De modo a criar a si mesma, a Europa demanda uma unidade de tomada de decisões políticas. Mas essa unidade política europeia não pode ser construída sobre o modelo nacional jacobino se não se quiser ver a riqueza e diversidade de todos os componentes europeus desaparecerem. Ela também não pode resultar da supranacionalidade econômica sonhada por tecnocratas de Bruxelas. A Europa só pode criar a si mesma nos termos de um modelo federal, mas um modelo federal que seja o veículo para uma ideia, um projeto, um princípio, i.e., em última análise, um modelo imperial. Tal modelo tornaria possível resolver problemas de culturas regionais, minorias étnicas e autonomias locais, que não encontrarão solução verdadeira dentro da estrutura do Estado-Nação. Ele também tornaria possível repensar todo o problema das relações entre cidadania e nacionalidade à luz de certos problemas que surgem da imigração recente. Ele permitiria que se entendesse os perigos ressurgentes do irredentismo etnolinguístico e do racismo jacobino. Finalmente, por causa do lugar importante que ele dá à ideia de autonomia, ele daria espaço para procedimentos democráticos de base. Princípio imperial acima, democracia direta abaixo: é isso que renovaria uma velha tradição!

Hoje há muito falatório sobre uma nova ordem mundial, e certamente uma é necessária. Mas sob que estandarte ela assumirá forma? O estandarte do homem-máquina, do "homem-computador", ou sob o estandarte de uma organização diversificada de povos vivos? Será a Terra reduzida a algo homogêneo por causa das tendências desculturalizadoras e despersonalizantes para as quais o imperialismo americano é, agora, o vetor mais cínico e arrogante? Ou irão as pessoas encontrar os meios para a resistência necessária em suas crenças, tradições e jeitos de ver o mundo? Essa é realmente a questão decisiva que foi levantada no início do próximo milênio.

Quem quer que diga federação, diz princípio federalista. Quem quer que diga império, diz princípio imperial. Hoje essa ideia não parece aparecer em lugar nenhum. Ainda assim, ela está escrita na história. É uma ideia que precisa ainda encontrar seu tempo. Mas ela tem um passado e um futuro. Também é uma questão de tornar cara uma origem. À época da Guerra dos Cem Anos, o mote de Louis d'Estouteville era, "Onde a honra estiver, onde a lealdade estiver, lá estará meu país". Nós temos nossa nacionalidade e temos orgulho dela. Mas também é possível ser cidadãos de uma ideia na tradição imperial. É isso que Evola defende: "Apenas a ideia deve representar o país... Não é o fato de pertencer ao mesmo solo, falar a mesma língua, ou ter a mesma linhagem sanguínea que deve nos unir ou dividir, mas o fato de apoiar ou não apoiar a mesma ideia" [24]. Isso não significa que as raízes não são importantes. Ao contrário, elas são essenciais. Só significa que tudo deve ser posto em perspectiva. Essa é toda a diferença entre origem enquanto princípio e origem enquanto pura subjetividade. Somente a origem concebida como um princípio torna possível defender a causa dos povos, de todos os povos, e compreender que, longe de ser uma ameaça à própria identidade, a identidade dos outros, na verdade, desempenha um papel no que nos permite defender nossa identidade contra um sistema global que almeja destruí-las. É necessário afirmar a superioridade da ideia que preserva a diversidade para o benefício de todos. É necessário afirmar o valor do princípio imperial.

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[1] Naissance de la nation France (Paris: Gallimard, 1985).
[2] Les débuts de l’État moderne. Une histoire des idées politiques au XIXe siècle (Paris: Fayard, 1976) p. 92.
[3] Révolte contre le monde moderne (Montreal: L’Homme, 1972) p. 121.
[4] Les hommes au milieu des ruines (Paris: Sept Couleurs, 1972) p. 141.
[5] Essais politiques (Puiseaux: Pardès, 1988) p. 86.
[6] Robert Folz, Le coronnement impérial de Charlemagne (Paris: Gallimard, 1964).
[7] Essais politiques, op. cit., p. 83.
[8] Histoire de l’empire des Habsbourg 1273-1918 (Paris: Fayard, 1990).
[9] Le libéralisme économique. Histoire de l’ldée de marché (Paris: Seuil, 1989) p. 124.
[10] L’Ancien Régime et la Révolution, Vol. I (Paris: Gallimard, 1964) p. 65. (First edition 1856).
[11] Cf. Pierre Rosanvallon, L’État en France de 1789 à nos jours (Paris: Seuil, 1990).
[12] ‘Dépérissement de la nation?’ in Commentaire (Spring, 1988) p. 104.
[13] Essais sur l’individualisme (Paris: Seuil, 1983) pp. 20-1.
[14] La nation, essor et déclin des sociétés modernes, (Paris: Fayard, 1987) p. 931.
[15] Cf. Justus Beyer, Die Standeideologien der Systemzeit und ihre Uberwindung (Darmstadt, 1942).
[16] Essais politiques, op. cit., p. 62.
[17] Révolte contre le monde moderne, op. cit., p. 124.
[18] Durante a República de Weimar, houve um crescimento real em publicações sobre a ideia de império e do "pensar sobre o Reich" (Reichsgedanke). Sobre este tema, ver Fritz Buchner, ed., Was ist das Reich? Eine Aussprache unter Deutschen (Oldenburg: Gerhard Stalling, 1932); Herbert Krüger, ‘Der Moderne Reichsgedanke’, in Die Tat (December 1933) pp. 703-15 and (January 1934) pp. 795-804; Edmund Schopen, Geschichte der Reichsidee, 8 Volumes, (Munich: Carl Rohrig, 1936); Peter Richard Rohden, Die Idee des Reiches in der Europäischen Geschichte (Oldenburg: Gerhard Stalling, 1943); Paul Goedecke, Der Reichsgedanke im Schriftum von 1919 bis 1935 (Marburg: Doctoral thesis, 1951). Os autores que trabalham este tema geralmente discordam do significado da ideia de império e da relação entre o Reich germânico medieval e o imperium de Roma. Nos círculos católicos, a apologia do império usualmente expressa nostalgia pela unidade cristã medieval antes das guerras religiosas. O conceito do Reich como "Santa Aliança" ou como uma "realidade sacramental" frequentemente aponta ao romantismo (Novalis, Adam Müller) mas também a Constantin Franz. Em outros sentidos, a ideia de um "terceiro império" porta representações quiliásticas do fim da Idade Média (a anunciação do Reinado do Espírito por Joachim de Fiore). No lado protestante, se encontra os "teólogos do Reich", especialmente em Friedrich Gogarten’s Politische Ethik(Jena: Eugen Diederichs, 1932), Wilhelm Stapel’s Der Christliche Staatsmann: Eine Theologie der Nationalismus (Hamburg: Hanseatische Verlagsanstalt, 1932) ou Friedrich Hielscher’s Das Reich (Berlin: Reich, 1931), mas desde uma perspectiva diferente. Em Stapel, a ideia principal é a de um Reich nacional tendo seu próprio "nomos" com um caráter pluriétnico destacado, mas santificando a hegemonia alemã. Ver sua resposta aos defensores do Reich Católico, ‘Der Reichsgedanke zwischen den Konfessionen’, em Deutsches Volkstum, (15 November 1932) pp. 909-16. Em Moeller van den Bruck, este conceito secularizado e estritamente alemão de império é ainda mais enfatizado. Muito crítico do Sacro Império Romano, Moeller acusa Staufen de ter sido tomado pela "miragem italiana", e de querer fazer o imperium romanum (a "periferia") viver novamente, ao invés de tentar unificar o povo alemão (o "centro"). Essa é a razão para sua estranha simpatia para com os guelfos e para sua preferência pelo Deutsches Reich deutscher Nation em oposição ao Heiliges römisches Reich. Após 1933, a discussão sobre a ideia de Reich (Reichsidee) foi realizada fora de círculos oficiais. Para Carl Schmitt, a noção de império é a representação central de uma nova ordem política de direita de povos associados com a noção de "grande espaço (Grossraum), uma ideia fortemente criticada pelos apoiadores de uma noção puramente alemã e völkisch de império. Estes apoiadores viam no Reich a força organizadora de um "espaço vivo" fundado na substância "biológica" dos povos alemães. Este argumento é usado por Reinhard Höhn (‘Großraumordnung und völkisches Rechtsdenken’: in Reich, Volksordung, Lebensraum, 1943, pp. 216-352). Ver também Karl Richard Ganzer, Das Reich als europäische Ordnungsmacht (Hamburg: Hanseatische Verlagsanstalt, 1941-2); and Oswald Torsten, Rîche. Eine Geschichtliche Studie bet die Entwicklung der Reichsidee (Munich and Berlin: R. Oldenburg, 1943).
[19] Mes idées politiques (Albatros, 1983) p. 281.
[20] Enquête sur la monarchie 1900-1909, 1st ed. (Nouvelle Librairie Nationale, 1909) p. XIII.
[21] Au-delà du nationalisme (Paris: Gallirnard, 1938).
[22] Cf. Karlheinz Weissmann, ‘Das Herz des Kontinents: Reichsgedanke und Mitteleuropa-ldee’, in Mut (January 1987) pp. 24-35.
[23] ‘L’empire latin’, in La Règle du jeu (1 May 1990) p. 94.
[24] Les hommes au milieu des ruines, op. cit., p. 41.

08/12/2016

Aleksandr Dugin - Dia de Solidariedade com a Palestina

por Aleksandr Dugin



(29 de Novembro)

Hoje é o Dia Internacional de Solidariedade com a Palestina - uma ocasião para falar do futuro do povo palestino e do Estado de Israel.

A Palestina é uma terra sacra onde os principais santuários do Cristianismo, do Judaísmo e do Islã podem ser encontrados. Não apenas paixões políticas, mas paixões religiosas queimaram sobre a Palestina por milhares de anos. Esta terra foi deixara por Deus para Abraão, que veio de Ur, na Caldeia, para a Mesopotâmia. Moisés e Josué a reconquistaram do domínio egípcio, após o qual o Reino de Israel e da Judéia foi formado ali.

"Depois, a Palestina foi incorporada aos impérios globais - o Assírio, o Caldeu, o Persa, Grego, Romano, Islâmico e Otomano. Depois do colapso do Império Otomano, estes territórios caíram sob domínio Britânico".

Hoje, cada vez mais pessoas compreendem que as explicações materialistas, econômicas e evolucionárias da história são nada mais que um mito pobre da Modernidade. Os fatores da religião e do ethnos estão começando, novamente, a serem levados a sério e se tornando uma chave importante para o entendimento dos eventos mundiais. Portanto, a questão palestina deveria ser vista através destas lentes.

A população da Palestina é misturada. Centenas de povos habitaram, passaram por e se misturaram uns com os outros nestas terras. Os judeus a deixaram em massa após a ascensão falha do falso messias Simon bar Kokhba, em 135 d.C. Isso significou o quarto período de exílio, o Galut. O Talmude proíbe os judeus de retornarem a estas terras até a chegada do Messias. Este é um dos três principais mandamentos talmúdicos, que são: não se deve retornar a Israel, os povos entre os quais vive a Diáspora Judaica não devem ser feridos, e a construção do Terceiro Templo não deve começar até a vinda do Messias.

Durante o período da expansão do Islã, a Palestina foi conquistada dos Bizantinos romanos pelos Árabes, seguido de profunda arabização e islamização. Antes disso, a maioria da população era cristã. Na época das Cruzadas, os cruzados ocidentais tomaram de volta Jerusalém dos Sarracenos por um tempo, apenas para perdê-la novamente. Mais tarde, no começo do séc. XVI, a Palestina foi conquistada pelos Turco-otomanos.

Começando no final do séc. XIX, sob a influência da ideologia racista e nacionalista do Sionismo, um nacionalismo judeu que copiava o nacionalismo europeu, os judeus europeus começaram a migrar para a Palestina em massa e, portanto, violando os mandamentos talmúdicos.

"Os sionistas decidiram: se o Messias não está com pressa de voltar, então nós tomaremos a iniciativa nós mesmos e forçaremos o seu retorno. Nem todos os judeus concordaram com isso, então o movimento judeu antissionista conhecido como Neturei Karta se levantou, pregando que o Sionismo era uma heresia diabólica".

Em 1947, seguindo o final da Segunda Guerra, o Estado de Israel foi fundado sob a influência dos Sionistas. Na medida em que a religião judaica em sua versão sionista representa uma doutrina estritamente racista, a população palestina local - largamente árabe e muçulmana, embora também incluísse muitos cristãos - foi submetida a um verdadeiro genocídio, apartheid e limpeza étnica. Os judeus, tendo acabado de sofrer uma perseguição sem precedentes pelos nazistas no Terceiro Reich, pareciam estar descontando sua dor e ódio nos palestinos que não eram, aliás, culpados de nada. Milhões de palestinos foram deportados das terras nas quais eles viveram por anos.

Isso não aconteceu sob as conquistas árabes ou sob os Cruzados. Os sionistas não reconheceram qualquer resolução sobre o estabelecimento de um Estado Palestino nem o status internacional de Jerusalém. Constantemente citando o seu sofrimento nas mãos dos nazistas, os judeus usam isso como um pretexto para recusar a prestar atenção aos protestos dos árabes e as petições das Nações Unidas e da comunidade internacional. Afinal, por violar os mandamentos talmúdicos, os líderes sionistas essencialmente identificaram a si mesmos como o Messias. Tudo o que restou foi prosseguir e construir o Terceiro Templo. Para tal, os árabes precisam ser expulsos do Monte do Templo e o santuário Islãmico, a Mesquita de al-Aqsa, precisa ser destruída. A plenitude do genocídio dos palestinos é parte dos planos sionistas. Então, na opinião deles, o período de domínio judeu em uma escala global chegará - a Quinta Monarquia, sob a qual as nações da Terra, os gentios, reconhecerão a supremacia dos judeus e se submeterão a eles. Este é o credo pelo qual o Estado de Israel vive.

"Nesta situação, o Dia de Solidariedade com os povos da Palestina é celebrado por aqueles que não compartilham deste tipo de ideologia mística-política, racista e escatológica do Sionismo".

Para um ortodoxo, isto é claramente um reminiscente do Anticristo. Nós, igualmente, não podemos nos deleitar com a conquista islâmica da Palestina. Afinal, esta era parte da nossa terra ortodoxa, uma parte do nosso Império.

Talvez o mais justo seja devolver a Palestina para nós, cristãos. Nós não somos racistas ou fanáticos, e não queremos exclusividade. Nós garantimos o direito de ambos muçulmanos e judeus em nossa terra sagrada. Portanto, encontremo-nos na Jerusalém ortodoxa.

26/11/2016

Andrea Virga - Geração Donbass

por Andrea Virga



No rio de infantis banalidades arrojadas pelos gurus do pensamento único liberal-progressista, que resultam francamente ofensivas, sem levar em conta sua opinião, para qualquer pessoa com um mínimo de inteligência, a pior dessas banalidades é, quiçá, a do mito da chamada "Geração Erasmus", anunciada e enfurecida como se fosse um dos diversos e com que os apátridas tentam preencher o vazio de suas almas. Um culto que agora tem seus mártires: desde os frequentadores do Bataclam às estudantes mortas no acidente de ônibus em Tarragona (e ninguém se importa com o motorista sexagenário obrigado a trabalhar turnos esgotadores por uns poucos euros).

Os muezzins progressistas chamam à oração, Saverio Tommasi e Roberto Saviano à frente, e os salafistas dos gizes coloridos respondem: há uns 2 dias (juro!), vi exibida com orgulho no facebook uma tese de doutorado dedicada a Giulio Regeni e a Valeria Solesin. É objetivamente surpreendente como pessoas formalmente equipadas com conhecimentos especializados (bachareis, doutores, investigadores) podem adotar acriticamente essa mistura de coletivismo individualista e cosmopolita, que nega qualquer diferença para afirmar somente uma massa de átomos humanos desenraizados e nômades, feliz de ser forçado pelo peristaltismo do Capital a se mover constantemente para trabalhar, estritamente mal pagos e sem garantias, não importando onde e como.

Não obstante, aqui, como em todas as mentiras, há um núcleo positivo: "caminhos da Europa, cansados, sujos, mas felizes" cantava uma nossa velha canção. Claro, não é uma novidade: precisamos lembrar que Codreanu estudou em Weimar, Jena e Genebra? Que a Falange Espanhola tinha uma seção em Milão já em 1935? Que Lênin e o jovem Mussolini passaram muito tempo na Suíça? Agora, não obstante, se poderia dizer, é muito mais fácil: uma moeda comum, nem visto, nem passaporte, passagens de avião baratas; com umas centenas de euros se gira pela Europa.

Os horrendos carniceiros de Marne e da Polônia já haviam ensinado a nossos avós a sangrente inutilidade do chauvinismo fratricida, impulsionado pelo provincialismo burguês em benefício dos barões do carvão e do aço. "No more brother wars" era a palavra de ordem a partir de 1945. Segue sendo a mesma, para os que bem sabem que Erasmo era um holandês "bárbaro" que tratava de teologia dogmática e direito romano em latim e grego clássicos, e não um semestre de alcoolismo, maconha e putaria. E então é justo recordar que existe hoje outra geração de jovens europeus, que viaja levando suas próprias raízes no coração, para conhecer e amar à grande Mãe da qual sua pequena pátria não é mais que uma peça: a Europa de cinco mil anos de história, da qual a sexagenária UE é só uma paródia.

O autor, como simples exemplo nada excepcional, viveu pelo menos dois meses em Dresden, Lyon, Berlim, Madri: 21 meses no estrangeiro com várias bolsas, sem a necessidade de programas Erasmus. Bebeu da fonte Castalia de Delfos e se banhou nos lagos alpinos. Foi de carona até a tumba de Nietzsche nas planícies da Saxônia e entrou nas catacumbas abaixo de Paris. Rezou sob a Cruz no Vale dos Caídos e saudou à loba romana na costa do Mar Negro. Ele escreveu poemas para Jan Palach e rendeu homenagem aos soldados do Exército Vermelho em Treptower Park.

Pulsou seu coração em uníssono com os tambores da Guarda Real britânica e do Tercio espanhol. Admirou ao vivo as armas de nossos antepassados: as armaduras dos hussardos alados de Jan Sobieski e as espadas de ferro da antiga Micenas, as armaduras equestres de Carlos V e os caças da Luftwaffe. Bebeu cerveja com jovens patriotas nas vielas da parte antiga de Lyon e marchou para a Revolução no primeiro de maio em Kreuzberg. Desceu pelas ruas com bandeiras dos povos atacados e marchou com tochas e a Tricolor em memória dos caídos. Cruzou antebraço com os que haviam abandonado seus lares para lutar no Donbass, junto a seus irmãos da Eurásia.

Essa é a geração a que pertencemos, que apesar de tudo e todo, não nos resignamos ao pensamento único liberal-democrata, aos defensores do politicamente correto baixados de cima para baixo para justificar o capital-consumismo pós-moderno da atualidade, como se fosse o melhor dos mundos possíveis. E a luta contra a opressão da junta de serviço atlantista ucraniana conduzida pelas populações de Donetsk e Lugansk com o apoio de voluntários europeus e eurasiáticos, é um dos casos mais próximos e evidentes dessa resistência.

Isso se aplica aos que foram lutar em pessoa, mas também para aqueles que apoiam essa luta com artigos ou demonstrações de solidariedade; para aqueles que viajam a Europa saboreando a diversidade de tradições locais e evitando McDonald's e Starbucks como se tratasse da peste; para os que, obrigados a emigrar, não se esquecem de sua própria terra e de seu próprio sangue. Somos nós, irredutíveis aos modelos semicultos ocidentais, a Geração Donbass.

23/11/2016

Eric Toussaint & Maud Bailly - A Reestruturação, Auditoria, Suspensão e Abolição da Dívida

Entrevista com Eric Toussaint por Maud Bailly



Eric Toussaint é um historiador e cientista político com Ph.D. das universidades de Paris VIII e Liège. Ele é o Representante da CADTM Internacional onde ele tem sido ativo por muitos anos nas lutas pela abolição das dívidas dos países meridionais e das dívidas ilegítimas dos países setentrionais. Ele foi membro do comitê de auditoria da dívida do Equador criado em 2007 pelo presidente Rafael Correa e durante o mesmo ano aonselhou o presidente equatoriano e o ministro de finanças sobre a criação do Banco do Sul. Ele também aconselhou o secretariado da ONU sobre o mesmo assunto em 2008. No mesmo ano Fernando Lugo, presidente do Paraguai, convocou sua experiência para lançar uma auditoria na dívida pública de seu país.

Ele apoia e está envolvido nas diferenças iniciativas para auditorias populares da dívida na Grécia, Portugal, Espanha, França e Bélgica. Em 2011 ele foi consultado pela CPI da Dívida no Brasil e em 2013 pela Comissão Econômica Senatorial do Brasil. Em 2012 e 2013 ele participou, com Alexis Tsipras, presidente do Syriza, de discussões sobre a dívida grega. Em novembro de 2014, ele foi um convidado da maioria presidencial no Congresso argentino, ávido por dar início ao processo de auditoria garantido pela lei de "pagamentos soberanos" adotada em setembro de 2014. Desde abril de 2015, Eric Toussaint é o coordenador científico do Comitê da Verdade sobre a Dívida Pública Grega criado pelo presidente do Parlamento helênico. Eric Toussaint é o autor de várias obras de referência sobre os problemas da dúvida e sobre as Instituições Financeiras Internacionais e editou dois manuais populares sobre a dívida. Sua última obra em inglês, Bancocracia, aparecerá em julho de 2015.

Segundo Eric Toussaint, a reestruturação da dívida sempre foi o resultado de cálculo econômico e geopolítico, raramente produzindo um resultado favorável a longo prazo para os devedores; a não ser que os credores vissem uma vantagem estratégica para eles nisso. A "reestruturação" soberana da dívida, como ela é agora chamada pelo FMI, pelo Clube de Paris e pelas grandes corporações bancárias, e mais recentemente pela esquerda na Grécia, Portugal e Espanha, não é uma expressão satisfatória, na verdade usar o termo "reestruturação" é perigoso, porque os credores o carregaram com o que eles querem que o termo signifique. O representante da CADTM Internacional recomenda que governos progressistas ponham grande ênfase em realizar amplas auditorias da dívida (com participação popular), associadas onde necessário a suspensão de pagamentos. Essa auditoria deve levar à abolição da parte da dívida que seja ilegal, ilegítima, odiosa e/ou insustentável e a impor uma redução no montante do restante. Este restante pode ser reestruturado, mas de nenhuma maneira uma reestruturação pode ser considerada, por si mesma, suficiente.

P: Assim, o que é "reestruturação" da dívida?


R: Segundo definições vistas em documentos oficiais publicados pelo FMI [1] e pelo Clube de Paris, uma reestruturação de dívida soberana pressupõe, na vasta maioria dos casos, trocar um conjunto de dívidas por um novo conjunto de dívidas ou liquidezes em minúsculas quantidades. Em geral, uma reestruturação de dívida é o resultado de negociações entre países devedores e diferentes tipos de credores.


A reestruturação de uma dívida soberana pode assumir uma de duas formas principais: [2]

1 - Uma nova agenda de pagamentos: pela redução das taxas de juros de modo a reduzir o nível de repagamentos e/ou prolongar o período de repagamento;

2 - A reestruturação pode incluir uma redução da quantidade de dívida (pela renúncia de somas devidas). Na maioria das vezes trata-se de velhas obrigações ou contratos que são substituídos por novos. Uma redução de dívida pode ser implementada por uma recompra de obrigações com liquidezes disponíveis.

Uma recompra de dívida é algo raro. Aproximadamente 600 reestruturações ocorreram entre 1950 e 2012, mas apenas 26 envolveram recompras com liquidezes. Essa é uma pequena minoria de reestruturações as quais, de modo geral, estavam ligadas a acordos HIPC nos quais uma parte dos credores de um país eram reembolsados pelos outros credores. [3]

Dívidas soberanas são reestruturadas em épocas de crise, geralmente após uma situação de inadimplência de repagamento, ou em uma situação de verdadeiro perigo de inadimplência (suspensão total ou parcial de pagamentos). Quando o FMI, o Clube de Paris ou a Troika interferem para organizar uma reestruturação da dívida sua primeira consideração é recriar uma situação de dívida solvível em um país suavizando o fardo dos repagamentos. Muito comumente, em troca da reestruturação eles impõem condições que correm contra o interesse do país endividado e seu povo. [4] Ademais, as estratégias geopolíticas do credor desempenham um papel decisivo na escolha de que países podem se qualificar para a reestruturação de sua dívida e as condições que são impostas em retorno.

P: Já houve alguma vez reestruturação por credores que foi benéfica, a longo prazo para devedores?


R: Sim, há o caso particular da Alemanha. [5] Em uma conferência realizada em Londres em 1953, os credores da Alemanha Ocidental, EUA, Reino Unido, França, Bélgica e Holanda, [6] concordaram com uma importante redução da enorme dívida da Alemanha. Quantias tomadas emprestado entre as guerras e imediatamente depois foram reduzidas em 62.5%. Uma moratória de cinco anos também foi concedida e reivindicações de dívidas e danos de guerra, causados pela invasão e ocupação nazista, foram adiados sine die. É estimado que a dívida total reivindicada pelas potências aliadas da Alemanha foi reduzida em 90%. [7] Além disso, os termos de repagamento para o remanescente foram reestruturados para permitir à Alemanha se reconstruir e reconstruir sua economia rapidamente.


P: Quais foram estes termos favoráveis?


R: 1 - A Alemanha foi capaz de repagar a maior parte de sua dívida em sua própria moeda, apesar do marco alemão ter pouco valor. Como um país derrotado e destruído, o dinheiro da Alemanha era considerado como de pouco interesse nos mercados de câmbio. O marco alemão não era nem uma moeda segura, nem uma moeda forte. Essa possibilidade foi bastante benéfica. Deve ser apontado que é muito raro que credores aceitem que um país repague em sua própria moeda se esta for uma moeda fraca. [8] Normalmente demanda-se moeda forte (euro, dólar, libra, iene, etc.)


2 - Os países credores prometeram comprar bens alemães para poder criar um mercado de exportação que, por sua vez, produzisse renda comercial, reservas de câmbio e uma boa balança de pagamentos.

3 - Os credores aceitaram que, em caso de litígio com a Alemanha, cortes alemães seriam as competentes.

4 - Foi decidido que a Alemanha não usaria mais que 5% de sua receita de exportação para repagar dívida.

5 - Taxas de juros não seriam maiores que 5% e, em alguns casos, poderiam ser renegociadas e revisadas para baixo.

Essas condições permitiram que a Alemanha se erguesse rapidamente a partir dos escombros. Devemos ter consciência de que os Acordos de Londres só diziam respeito ao que era, à época, a Alemanha Ocidental. O país foi dividido em Alemanha Oriental (República Democrática Alemã - RDA) alinhada com o bloco soviético, e Alemanha Ocidental (República Federal da Alemanha - RFA) alinhada com o Ocidente. Se os credores da Alemanha Ocidental fizeram tamanhas concessões foi porque, no contexto da Guerra Fria com a URSS, eles precisavam de uma Alemanha estável. Eles temiam que se grandes movimentos sociais surgissem em uma Alemanha abalada isso seria uma ameaça a seus interesses. Também, eles não queriam cometer o mesmo erro cometido no Tratado de Versalhes em 1919 que impôs condições insustentáveis sobre a Alemanha. [9] Finalmente, não deve ser esquecido que desde o fim do século XIX, a Alemanha havia se tornado a força militar e econômica mais poderosa na Europa.

Para resumir, não só o fardo da dívida foi bastante aliviado e bastante ajuda econômica foi concedida à Alemanha (o equivalente a 10 bilhões de dólares americanos foi canalizado para a Alemanha Ocidental através do Plano Marshall entre 1948 e 1952 [10]), mas especialmente, o país teve permissão para empregar uma política econômica que favorecia seu crescimento. As grandes corporações industriais foram consolidadas, incluindo as mesmas que haviam desempenhado papeis fundamentais na aventura militar da Primeira Guerra Mundial e haviam apoiado os nazistas e o genocídio de judeus e ciganos, o saque dos países ocupados e anexados e o enorme esforço logístico e de produção militar da Segunda Guerra Mundial. A Alemanha foi capaz de construir uma infraestrutura pública impressionante; o país apoiava suas indústrias para satisfazer a demanda interna e conquistar mercados estrangeiros.

As condições nas quais a dívida da Alemanha Ocidental foi abolida são claramente difíceis de imaginar hoje. Seria muito difícil para países como Grécia, Chipre, Espanha e Portugal obter, por meio de um processo de reestruturação de dívida, condições similares às concedidas à Alemanha na década de 50. Pareceria impossível por causa da composição e políticas de autoridades europeias, dos governos dos países europeus mais fortes, das políticas do FMI e do contexto atual.

P: Que exemplos há, além dos da Alemanha Ocidental, de reestruturação de dívida favorável aos devedores?


R: Outro caso de reestruturação de dívida favorável foi o da Polônia em 1991. O país recebeu uma grande redução, de aproximadamente 50% de sua dívida bilateral aos credores do Clube de Paris. Eles queriam ajudar o governo pró-ocidental de Lech Walesa que havia acabado de sair do Pacto de Varsóvia, a aliança militar entre países do bloco soviético. Essa redução de dívida foi certamente menos significativa que a concedida à Alemanha Ocidental em 1953, mas o contexto era razoavelmente parecido. A Polônia foi um dos países mais importantes a passar ao lado ocidental, adotando as medidas econômicas neoliberais e políticas de privatização demandadas, que levaram a Polônia a se unir à UE poucos anos depois.


Foi durante a mesma cúpula de G7 em Londres de 1991 que o Egito recebeu uma redução de 50% de sua dívida bilateral com membros do Clube de Paris. Os EUA e seus aliados estavam querendo apoio para sua primeira Guerra do Golfo do presidente egípcio Mubarak.

Podemos relembrar que o Iraque, também, se beneficiou de uma redução de dívida em 2004, [11] após os EUA e seus aliados invadirem o país em 20 de março de 2003. Poucos dias depois o Secretário do Tesouro dos EUA convidou seus análogos do G7 a um encontro em Washington, no qual ele declarou a dívida incorrida por Saddam Hussein como odiosa. Ele pressionou os credores do Iraque a conceder uma grande redução de dívida, de modo que as novas autoridades apontadas pelos ocupantes pudessem reconstruir rapidamente o país. Os credires bilaterais principais do Iraque reduziram suas demandas em 80%, os outros credores (privados, Banco Mundial e FMI) se seguiram.

P: Quais são as similaridades e diferenças entre os casos acima?


R: O que estes exemplos tem em comum é que eles todos ocorreram em situações de conflito armado ou tensão extrema entre blocos. Isso trouxe a potência hegemônica, neste caso os EUA, a conseguir que seus parceiros concordassem com uma significativa redução de dívida, servindo assim a seus interesses estratégicos. Não obstante, o acordo de 1953 em favor da Alemanha é um caso excepcional: as condições postas em lugar realmente objetivavam transformar um país em uma potência mundial novamente. Enquanto os outros países foram agraciados por sua lealdade, o objetivo não era criar potências econômicas. Os gestos feitos frente a estes países são comparáveis ao tratamento que senhores medievais poderiam ter reservado a Estados vassalos fieis.


P: Já houve casos em que Estados que tiveram suas dívidas reestruturadas não continuaram a expressar lealdade?


R: Só sei de um caso que não resultou no que os credores haviam planejado. Este foi o caso da Bolívia que, em 2005, se beneficiou de uma redução de sua dívida multilateral dentro do esquema da MDRI (Iniciativa de Alívio de Dívida Multilateral) criado pelo G8, pelo Banco Mundial, pelo FMI e outros prestamistas multilaterais, como prolongamento da iniciativa HIPC (Países Pobres Altamente Endividados). Aqui também, os prestamistas pensavam estar lidando com as autoridades de um país dócil. A Bolívia havia sido exposta à "estratégia de choque" em 1985, na forma de um impenso programa de privatização planejado com a colaboração ativa do FMI, do Banco Mundial, do Clube de Paris e dos EUA. Após 12 anos de políticas de ajuste estrutural a economia boliviana estava de joelhos. Assim ela foi aceita na iniciativa HIPC. A Bolívia concordou com continuar o programa de ajuste estrutural e em retorno recebeu alívio de dívida. [12] Porém, Evo Morales, que não era parte da elite dócil, foi eleito como candidato do partido MAS (Movimento ao Socialismo). Quando isso ocorreu, o alívio da dívida já havia sido concedido e era tarde demais para os credores recuarem.


Essa reestruturação foi, neste caso, benéfica para o país e sua população. Ao mesmo tempo que a redução de dívida aconteceu, o governo inverteu sua política econômica e se recusou a atender às medidas impostas pelos credores. Isso é importante, porque muitos países que obtiveram alívio de dívida comparável continuaram com mais 5 ou 10 anos de políticas de ajuste estrutural e as economias e as populações não se beneficiaram. Observe que sempre que os credores concederam alívio de dívida significativo foi em seu interesse estratégico fazê-lo.

P: E a Argentina? Após a maior suspensão de pagamentos na história, em 2001 o governo argentino renegociou sua dívida soberana. Quais foram as condições?


R: Sim! Em 2005 e 2010 a dívida argentina foi reestruturada através de uma troca de títulos: títulos velhos foram trocados por novos. Foi essa a situação: em dezembro de 2001, as autoridades argentinas, sob o presidente interino Adolfo Rodríguez Saá, suspendeu unilateralmente os repagamentos da dívida em um total de 80 bilhões de dólares para credores privados e o Clube de Paris (6.5 bilhões de dólares). Observe que eles não suspenderam os pagamentos a organismos multilaterais como o Banco Mundial, o FMI e outros. Essa ação foi tomada em uma situação de crise econômica e revolta popular contra as políticas que foram seguidas por anos por sucessivos governos neoliberais, dos quais Fernando de la Rua foi o mais recente. Foi assim, sob pressão das ruas em uma época em que o tesouro estava vazio, que as autoridades argentinas suspenderam os repagamentos da dívida.


A suspensão argentina de pagamentos de títulos da dívida soberana durou de dezembro de 2001 a março de 2005. Isso foi benéfico para a população e economia argentinas. Entre 2003 e 2009, o crescimento econômico argentino foi entre 7% e 9%. Alguns economistas afirmam que este crescimento se deveu ao aumento de preços nas exportações de matéria-prima da Argentina, mas é claro que se a Argentina tivesse continuado pagando sua dívida, a renda aumentada das exportações (em outras palavras, os impostos cobrados sobre empresas de exportação) teria sido utilizada para repagamentos de dívida.

Entre 2002 e 2005 as autoridades argentinas negociaram com seus credores para convencer uma maioria deles a concordarem com trocar os títulos que eles tinham por novos, reduzidos em 60%, mas com uma garantia mais forte e uma taxa de juros favorável indexada pelo crescimento do PIB argentino. Essa foi uma reestruturação da dívida por troca de títulos: até março de 2005, 76% dos títulos haviam sido trocados, uma maioria que foi considerada proteção suficiente contra os 24% que recusaram a troca. As autoridades anunciaram, à época, que aqueles que recusassem a troca não teriam outra ocasião para negociar.

P: Então, por que a Argentina reestruturou sua dívida de novo, em 2010?


R: De fato, em contradição com declarações prévias e apesar dos protestos de Roberto Lavagna, o Ministro da Economia que havia participado nas negociações de 2005, o governo argentino abriu uma nova fase de negociações com os outros 24% dos credores. Um novo acordo foi alcançado com 67% daqueles 24% em 2010. Ao todo, 8% de todos os títulos cujo pagamento havia sido suspenso desde 2001 "sobraram" contra ambos acordos. Ambos acordos continham cláusulas estipulando que em caso de litígio envolvendo as novas questões, cortes americanas seriam a jurisdição competente. [13]


P: No fim das contas, essa reestruturação pode ser considerada um sucesso? Outros governos podem seguir a estratégia argentina?


R: As autoridades argentinas afirmam sucesso por causa da redução em 50-60% da dívida. Mas, em retorno, foram feitas grandes concessões: altas taxas de juros; indexação ao crescimento do PIB argentino, o que significa que na prática o governo concordou em entregar parte dos lucros do crescimento aos credores; renúncia a soberania em caso de litígio.


Na verdade, o exemplo argentino não deve ser seguido, mas ele é uma possível fonte de inspiração. Ele mostra o interesse em suspender pagamentos e os limites de um acordo negociado que dá grandes concessões aos credores. A situação atual é evidência suficiente. Primeiro, as quantias efetivamente reembolsadas aos credores são consideráveis; a própria Argentina reconhece que ela reembolsou 190 bilhões de dólares desde 2003; segundo, apesar de a dívida argentina ter sido certamente menor entre 2005 e 2010, hoje a quantidade de dívida argentina é maior do que era em 2001. Terceiro, a Argentina está sob forte pressão para reembolsar os fundos abutres que se recusaram a aceitar as ofertas de troca, após não só um juiz nova iorquino, mas a Suprema Corte dos EUA decidir a favor dos fundos abutre. [14]

P: A dívida pública do Equador não foi reduzida em 2009 após a auditoria de 2007-2008? Isso pode ser chamado de "reestruturação"?


R: Não, no caso do Equador não se tratou de uma reestruturação genuína. [15] Não houve troca de títulos, especialmente já que não houve negociação com credores. Isso foi uma coisa muito boa. Títulos antigos não foram substituídos por títulos novos. O Equador suspendeu unilateralmente o repagamento de sua dívida pública e disse a credores privados em posse dos títulos, chamados bônus Global 2012-2030, [16] que eles seriam recomprados com um corte de 65% e a prazo fixo. Esses títulos não existem mais. O Equador não reestruturou sua dívida: ele nunca negociou taxas de juros ou reagendamento de repagamentos de novos títulos com seus credores.

O Equador combinou isso com uma auditoria integral de sua dívida pública, que precedeu sua suspensamento de repagamento. Em julho de 2007 uma Comissão para uma auditoria integral, na qual participei, foi criada. Ela trabalhou até setembro de 2008, ou seja, por 14 meses, durante os quais houve diálogo constante entre governo e os membros da comissão. Eles submeteram suas recomendações ao governo e ao presidente. Com base nisso, o poder executivo do Equador decidiu suspender o repagamento de parte de sua dívida, como explicado acima. Apenas depois, em 2009, ele forçou os credores a aceitarem um corte significativo.

Alguns números: O Tesouro Público do Equador comprou títulos que valiam 3.2 bilhões de dólares por menos de 1 bilhão de dólares. Ele economizou, assim, 2.2 bilhões de dólares do principal de sua dívida, ao qual deve-se acrescentar 300 milhões de dólares em juros anuais para 2008-2030. Ao todo, o Equador economizou mais de 7 bilhões de dólares. Isso libertou novos recursos financeiros para o governo aumentar seus gastos sociais nos campos da saúde, educação, assistência social e no desenvolvimento de infraestrutura de comunicação.

P: Podemos dizer que essa abordagem é mais benéfica do que a escolhida pela Argentina?

R: Claramente sim. Pode-se, também, imaginar se a posição determinada do Equador impediu o país de conseguir acesso renovado aos mercados financeiros. A resposta é não. Enquanto em 2009, o Equador forçava seus credores a aceitarem a redução que acabei de mencionar, apenas 5 anos depois, o país lançava novos títulos nos mercados financeiros, a uma taxa de juros de 7%, abaixo da taxa paga pela Argentina ou pela Venezuela (a Venezuela tem pago regularmente suas dívidas desde 1990 a taxas que variam entre 12 e 15%). Isso mostra que posições radicais não fecham necessariamente o acesso a recursos financeiros. 

Assim, no caso do Equador, podemos dizer que houve um ato soberano unilateral suspendendo o repagamento e recomprando dívida sem negociação, combinado com uma auditoria da dívida que foi mais benéfica para a população.

P: E quanto à Islândia após o colapso do sistema bancário em 2008?

R: No caso da Islândia, não houve reestruturação também. O que aconteceu? O sistema bancário privado da Islândia entrou em colapso em 2008, por causa de suas aventuras financeiras fraudulentas. No papel, o valor dos bancos islandeses equivalia a mais de dez vezes a produção anual de riqueza da Islândia! Os bancos haviam crescido fora de toda proporção, como na Irlanda ou na Bélgica ao mesmo tempo. Após o colapso do sistema bancário, o governo islandês não pagou o que era devido àquelas instituições bancárias privadas e se recusou a pagar os 3.5 bilhões de euros que o Reino Unido e a Holanda demandavam para equilibrar as compensações que eles tiveram que pagar a seus cidadãos que tinham dinheiro naqueles bancos. Deve ser enfatizado que essa medida foi tomada sob pressão popular: a mobilização social foi bastante poderosa e teve sucesso em influenciar as intenções do governo do país em várias ocasiões. Dois referendos foram organizados, também graças a pressão popular. No primeiro, mais de 90% votou contra compensar o Reino Unido e a Holanda. [17] Negociações resultaram em um novo plano de compensação, que foi novamente derrubado por 2/3 dos eleitores em um segundo referendo. Essa recusa de compensar foi combinada com outra medida forte tomada pelo governo, nomeadamente um controle estrito sobre fluxos de capital. [18] De fato, como resposta a uma situação de crise na qual o país era ameaçado com evasão massiva de capital por grandes corporações nacionais e estrangeiras, o governo islandês proibiu transferências de capitais. É notável que o FMI, neste caso, deu as costas a sua posição usual e até apoiou essas medidas!

Essas várias medidas foram benéficas para a Islândia, cuja economia se recuperou muito mais rápido do que em países europeus que utilizaram outra abordagem, como a Irlanda e a Grécia, que resgataram seu setor bancário privado, aceitaram empréstimos da Troika, bem como uma reestruturação de suas dívidas, e pagaram seus credores.

É interessante acrescentar que no caso da Islândia em janeiro de 2013, a Corte de Justiça dos Estados Associados para o Livre-Comércio Europeu (mais comumente conhecida como Corte EFTA), que também inclui Liechtenstein, Noruega e Islândia, recusaram o pedido do Reino Unido e da Holanda de que a Islândia fosse ordenada a pagar a compensação pedida. A Corte de Justiça considerou que não havia elemento que pudesse compelir um governo a assumir os deveres de instituições privadas. Essa conclusão é importante de levar em conta já que ela pode fornecer jurisprudência para outras disputas. [19]

No caso da Islândia, não houve reestruturação de dívida também mas sim, repetimos, uma decisão soberana unilateral de não pagar a compensação demandada por duas potências econômicas muito mais fortes.

P: Em 2012, a Troika realizou uma reestruturação da dívida grega: o que deu errado?

R: O contexto foi o seguinte: desde o início de 2010, a Grécia foi sujeita a ataques especulativos pelos mercados financeiros que exigiam taxas de juros excessivamente altas para empréstimos rotativos. A Grécia estava prestes a declarar falência porque não conseguia refinanciar sua dívida a taxas razoáveis. A Troika interferiu com um memorando de ajuste estrutural. Ele concederia novos empréstimos para que a Grécia repagasse seus credores, ou seja, essencialmente os bancos privados europeus. [20] Aqueles novos empréstimos estavam acompanhados de medidas de austeridade que tiveram um impacto brutal, até desastroso, sobre as condições de vida da população e sobre a atividade econômica.

Em 2012, a Troika reestruturou a dívida grega devida apenas a credores privados, nomeadamente os bancos privados, dos países da UE, que já haviam majoritariamente sacado apesar de ainda possuírem algumas dívidas gregas, e outros credores privados como fundos de pensão de trabalhadores gregos. Essa reestruturação envolveu cortar as dívidas gregas com credores privados em 50 a 60%. A Troika, que tem emprestado dinheiro à Grécia desde 2010, reestruturou a própria dívida grega mas se recusou a reduzir o montante a ser pago. A operação foi apresentada como um sucesso pela mídia de massa, pelos governos ocidentais, pelo governo grego e pelo FMI e a Comissão Europeia. Eles tentaram enganar a opinião internacional pública e a população grega para que acreditassem que credores privados haviam se esforçado para alivar a situação dramática da Grécia. Na realidade, a operação não foi nem um pouco benéfica para o país em geral, e menos ainda para sua população. Após um recuo temporário em 2012 e no início de 2013, a dívida grega tem aumentado constantemente e está agora acima do ponto mais alto atingido em 2010-2011. As condições impostas pela Troika resultaram em uma queda dramática na atividade econômica do país: o PIB caiu mais de 25% entre 2010 e o início de 2014. As condições de vida da população deterioraram dramaticamente: violação de direitos sociais e econômicos, retrocesso no sistema de aposentadoria, redução drástica nos serviços de saúde e educação públicas, desemprego em massa, queda no poder de compra... Ademais, uma das condições para qualquer alívio de dívida era uma mudança na lei aplicável e na jurisdição relevante em caso de disputa com credores. Resumindo, essa reestruturação da dívida vai contra os interesses da população grega e da Grécia enquanto país.

P: Como essa reestruturação da dívida grega se compara ao Plano Brady que foi implementado em países do sul como consequência da crise da dívida de 1982?

R: O Plano Brady [21] foi implementado em aproximadamente vinte países endividados ao fim dos anos 80. Ele foi uma maneira de reestruturar dívidas por meio de uma troca com títulos assegurados pelos EUA sob condição de que os bancos credores reduzissem o montanto do que lhes era devido e que eles utilizassem o dinheiro na economia. Em alguns casos a dívida foi reduzida em 30%, e os títulos Brady garantiram uma taxa de juros fixa de aproximadamente 6%, que é bastante favorável para os banqueiros. O problema foi, assim, resolvido para os bancos e apenas adiado para os países endividados.

Nós encontramos os mesmos componentes na reestruturação da dívida imposta à Grécia, Irlanda, Portugal e Chipre que no Plano Brady.

1 - No Plano Brady, tal como no Memorando imposto aos países na "periferia" da UE, governos das grandes potências e instituições internacionais substituíram bancos privados como principais credores. Todos aqueles planos objetivam, portanto, tornar possível para bancos privados se retirarem como credores principais dos países em questão sem grandes perdas, já que eles são substituídos por governos e instituições multilaterais como o FMI. Isso foi o que aconteceu com o Plano Brady. Na Europa, a Comissão Europeia, o Mecanismo de Estabilidade Europeia, o ECB e o FMI substituíram gradativamente bancos privados e instituições financeiras privadas como credores.

2 - Todas aquelas operações são obviamente acompanhadas por condicionalidades que impõem a implementação de medidas de austeridade e políticas neoliberais.

3 - O outro ponto comum jaz na falha fatídica dessas reestruturações para países endividados. Mesmo economistas neoliberais como Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart [22] reconhecem que o Plano Brady não foi benéfico para os países envolvidos: a redução de dívida foi muito mais limitada do que havia sido anunciada e a longo prazo o montanto da dívida aumentou e as quantias sendo pagas eram bem altas. Podemos agora dizer o mesmo sobre Grécia, Chipre, Portugal e Irlanda.

P: Se reestruturar a dívida não é uma solução, o que deve ser feito para ajudar esses países a solucionar a questão da dívida?

R: Esses países devem unilateralmente: 1) organizar uma auditoria integral da dívida, com a participação ativa dos cidadãos; 2) suspender o repagamento da dívida; 3) se recusar a pagar a parte ilegal ou ilegítima dela; e 4) demandar uma redução do remanescente. A redução do que sobrar após o cancelamento da parte ilegítima e/ou ilegal pode ser vista como uma forma de reestruturação, mas ela não pode ser isolada como resposta suficiente.

P: O que ocorre se um governo começar a negociar com os credores sem suspender os repagamentos?

R: Se não há suspensão do repagamento ou auditoria pública, os credores estão em uma posição de vantagem. Não devemos subestimar suas habilidades de manipulação que podem levar governos a compromissos inaceitáveis. Suspender o repagamento da dívida como decisão soberana unilateral cria uma nova relação de poder com os credores. Ademais, com uma suspensão, os credores tem que sair de seus buracos. De fato, se você lidar com possuidores de títulos sem supensão de pagamentos eles permanecem anônimos, já que os títulos não são nominais. Só se essa relação de poder for derrubada os governos podem criar as condições necessárias para impor medidas que legitimem sua ação no direito doméstico e internacional. Nos casos da Grécia, Portugal, Irlanda e Chipre a troia é o principal credor e seria obrigada a ir à mesa de negociação.

P: Neste caso poderiam os governos iniciar negociações para mostrar à opinião pública que os credores tem uma posição inaceitável e que eles não terão escolha a não ser se voltar para ações unilaterais?

R: Sim, mas tal abordagem tem suas desvantagens. Os credores podem criar confusão nas mentes do povo afirmando que os governos são intransigentes e atrasam negociações. Ao mesmo tempo que os países precisam de soluções urgentes e não podem arcar com usar a renda de seus impostos para repagar suas dívidas.

O momento adequado para suspender o repagamento da dívida deve ser definido segundo as condições específicas de cada país: o grau de consciência do povo, a urgência, as chantagens dos credores, a situação econômica geral do país... Em algumas circunstâncias a auditoria pode ocorrer antes; em outras, os dois devem ocorrer simultaneamente. 


Notas:

|1| O FMI produziu uma grande quantidade de memorandos, trabalhos e proposições sobre reestruturação de dívida. Ver o site do FMI: https://www.imf.org/external/np/exr/facts/fre/sdrmf.ht, IMF working paper WP/12/203, August 2012.ps://www.imf.org/external/np/exr/… Debt Restructurings 1950–2010: Literature Survey, Data, and Stylized Facts Particularly: U.Das, M.Papaioannou and C.Trebesch

|2| "Reescalonar deve ser diferenciado de "reestruturar", que é uma redução de dívida incluindo um montante descartado. Essa definição limitada não é a usada aqui.

|3| Uma reestruturação típica foi realizada para preparar a República Democrática do Congo, em 2002, para a iniciativa da HIPC. A situação financeira foi regularizada e as condições criadas que permitiram que repagamentos fossem feitos. Após 32 anos da ditadura Mobutu (1965-1997) a RDC havia acumulado dívidas importantes. A dívida que o regime Mobutu deixou para trás, após sua queda, deveria ter sido apagada, era uma dívida odiosa. Os credores que haviam financiado Mobutu por tanto tempo concordaram com a reestruturação. Na primeira fase, quatro países (Bélgica, França, África do Sul e Suécia) adiantaram empréstimos que permitiram ao Congo repagar suas principais dívidas antigas com o FMI. Esse foi um arranjo de consolidação que substituiu as velhas dívidas com dívidas novas na taxa de juros "concessional" de 0.5%. Então, o FMI emprestou $522 milhões ao governo congolês de modo que ele pudesse pagar os quatro países de volta. Ao mesmo tempo, o Banco Mundial emprestou $330 milhões ao Congo para que o Congo pudesse pagar dívidas mantidas com o próprio Banco Mundial. Na segunda fase, a dívida do Congo devida aos catorze países do Clube de Paris foi reestruturada: uma parte da dívida foi cancelada e o restante estendido por um período mais longo. No final as duas fases juntas somaram um 60% de reestruturação da dívida congolesa. Essa reestruturação foi anunciada como sucesso, mas o resultado final foi uma troca de velhas dívidas impagáveis por dívidas novas, mais modestas, pagáveis, e então os pagamentos voltaram. Ao invés de ser descartada, a dívida congolesa foi consolidada. Ela renasceu em uma nova estrutura que agora não é mais "odiosa".
Ver: Éric Toussaint, Arnaud Zacharie, “La République démocratique du Congo”, 2002,http://cadtm.org/La-Republique-democratique-du ; Arnaud Zacharie, “La restructuration de la dette congolaise”, 2002, http://cadtm.org/La-restructuration-de-la-dette.

|4| Este foi o caso da reestruturação da dívida grega de 2012 (ver abaixo) e de centenas de outras gerenciadas pelo FMI e/ou Clube de Paris.

|5| Ver Éric Toussaint: http://cadtm.org/The-cancellation-of-German-debt-in August 2014

|6| Ao todo, 21 países. Ver http://www.monde-diplomatique.fr/2013/02/TSIPRAS/48724 (French)

|7| A Alemanha Ocidental, antes da reunificação de 1990 e depois, a Alemanha reunificada mal foi obrigada a pagar danos e dívidas de guerra (após a SGM) em proporção ao dano humano e econômico causado. A maior parte do que foi pago foi para Israel por causa da perseguição dos judeus. Em março de 2014, o governo grego pediu compensação por danos de guerra causados na Grécia durante a SGM. Naturalmente, o governo alemão recusou. Ver Le Monde, “La Grèce exige des réparations de guerre de l’Allemagne”, 6 March 2014, http://www.lemonde.fr/europeennes-2014/article/2014/03/06/la-grece-exige-des-reparations-de-guerre-de-l-allemagne_4378951_4350146.html.

|8| Isso é permitido pela França para países em desenvolvimento no esquema do "C2D". O Contrat de Désendettement et de Développement (contrato de dívida e desenvolvimento) é um tipo particular de reestruturação por meio da qual a França opera um sistema de concessão de reestruturações. No caso do contrato camaronês, por exemplo, a França retorna diretamente montantes da dívida paga para o pobre país devedor para financiar, por assim dizer, programas de desenvolvimento, assim fingindo auxiliar no desenvolvimento do país. A verdade é bem diferente: por um lado a Agência Francesa de Desenvolvimento decide o uso que deve ser feito do recurso, assim, as escolhas estão claramente no interesse da ex-potência colonial. Ademais, a AFD supervisiona os projetos e pode vetar decisões tomadas pelo governo camaronês emitindo um "memorando de não-objeção". Dessa maneira, a França mantém um domínio político e econômico flagrante sobre a soberania nacional camaronesa.
Ver Owen Chartier, Jean-Marc Bikoko, “Pourquoi faut-il réaliser un audit citoyen de la dette du Cameroun?”, August 2014, http://cadtm.org/Pourquoi-faut-il-realiser-un-audit (French)

|9| Em As Consequências Econômicas da Paz (1919) John Maynard Keynes denunciou as condições que foram impostas à Alemanha ao fim da Primeira Guerra Mundial; ele havia previamente se demitido da delegação britânica de negociação em protesto. Depois, em 1920, houve um grande debate entre ele e outro economista, Bertil Ohlin, sobre as consequências econômicas das compensações de guerra demandadas pelos Aliados. Keynes afirmou que para poder pagar a quantia pedida a Alemanha teria que exportar mais e importar menos, o que inevitavelmente levaria a uma deterioração de sua balança comercial e aumentaria o peso da dívida. Ohlin respondeu que pagara compensação resultaria em um aumento na demanda em outros países, que se voltaria ao menos parcialmente para produtos alemães. Isso limitaria a deterioração da balança comercial alemã. Ohlin defendia que se apoiasse este mecanismo por meio de um acordo comercial internacional permitindo que a Alemanha erguesse suas tarifas, ao mesmo tempo que se reduzisse as mesmas nos países receptores. O resultado teria sido uma balança comercial positiva. (Ver http://perso.univ-rennes1.fr/denis.delgay-troise/CI/Cours/REI223.pdf (French)

|10| Ver Éric Toussaint, “Why the Marshall Plan?”, August 2014, http://cadtm.org/Why-the-Marshall-Plan

|11| Sobre o Iraque ver: Éric Toussaint, « Irak : la dette odieuse », in La finance contre les peuples, pp. 435-451, éditions Syllepse/CETIM/CADTM, 2004.updated version 2006 : « La dette odieuse de l’Irak », May 2006, http://cadtm.org/La-dette-odieuse-de-l-Irak.

|12| O alívio da dívida veio em fases: a primeira, no esquema da HIPC em 1998 e em 2001; em 2005, o alívio final da dívida foi no esquema da Iniciativa Multilateral de Alívio da Dívida (IMAD), a extensão do HIPC para os países mais dóceis. (ver Frédéric Lévêque, “La dette de la Bolivie” , June 2006, http://cadtm.org/La-dette-de-la-Bolivie#nh6

|13| Essa renúncia da soberania começou com a ditadura militar de 1976.

|14| Sobre a Argentina e os fundos abutres, ver: Renaud Vivien, “Un vautour peut en cacher d’autres”, carte blanche, Le Soir, 23 June 2014 ; Jérôme Duval, Fatima Fafatale, “The vulture funds that corner Argentina also comes for you”, July b2014, http://cadtm.org/The-vulture-funds-that-corner; Éric Toussaint, “How to resist vulture funds and financial imperialism?”, September 2014, http://cadtm.org/How-to-resist-vulture-funds-and; Julia Goldenberg , Éric Toussaint, “Vulture funds are the vanguard”, October 2014,http://cadtm.org/Vulture-funds-are-the-vanguard

|15| Sobre o Equador, ver Éric Toussaint, « Les leçons de l’Équateur pour l’annulation de la dette illégitime », 29 May 2013, http://cadtm.org/Les-lecons-de-l-Equateur-pour-l(in French only), also U. Das, M. Papaioannou and C. Trebesch, Sovereign Debt Restructurings 1950–2010: Literature Survey, Data, and Stylized Facts, FMI working paper WP/12/203 http://www.imf.org/external/pubs/ft/wp/2012/wp12203.pdfp. 25 et 78
Ver ‘Islande : le CADTM salue le Non massif au référendum sur la loi Icesave’, 8 March 2010, http://cadtm.org/Islande-le-CADTM-salue-le-Non

|16| O bônus Global é resultado da reestruturação da dívida comercial externa do Equador que ocorreu em 2000 no contexto de uma operação de resgate após a crise financeira de 1999. Títulos Brady foram trocados por novos títulos (bônus Global A e B) em condições que eram extremamente vantajosas para credores (notavelmente a altas taxas de juros de 10 a 12%). Os próprios títulos Brady haviam sido o resultado de uma troca de dívidas bancárias de 1995 que haviam se tornado impossíveis de pagar com uma nova dívida na forma de títulos garantidos pelo Tesouro americano (sobre o Plano Brady ver a resposta para uma outra pergunta posterior). Essas duas ações sucessivas de reestruturação haviam sido apresentadas tanto por credores como pelo governo. Na verdade, elas foram afetadas por irregularidades e atos ilegais que a comissão de auditoria pôde identificar. Ver pp. 46-47 do Relatório Final http://cadtm.org/IMG/pdf/Informe_Deuda_Externa.pdf

|17| Ver : CADTM, “Islande : le CADTM salue le Non massif au référendum sur la loi Icesave (Iceland! The CADTM welcomes the massive non in Iceland ’s “Icesave” referendum)”», Press release 8 March 2010, http://cadtm.org/Islande-le-CADTM-s…(French)

|18| O FMI também sancionou os controles rígidos de movimentação de capital introduzidos no Chipre em março de 2013. Se um país da UE pode fazer isso, por que não os outros?

|19| Ver http://cadtm.org/EFTA-court-dismisses-Icesave

|20| Bancos franceses, alemães, italianos e belgas, principalmente.

|21| O plano foi batizado por causa de Nicholas Brady que foi o Secretário do Tesouro dos EUA entre 1988 e 1993, http://www.treasury.gov/about/history/pages/nfbrady.aspx

|22| Kenneth Rogoff foi o principal economista com o FMI e Carmen Reinhart, professor universitário, é  was chief economist with the IMF and Carmen Reinhart, university professor, é assessor com o FMI e o Banco Mundial.