25/07/2021

Dmitry Shlapentokh - O Tempo de Dificuldades na Narrativa de Aleksandr Dugin

 por Dmitry Shlapentokh

(2018)


Introdução

Muitas nações apelam para a história dos países estrangeiros para definir suas próprias identidades nacionais. A Rússia, cuja elite tem estado perplexa sobre a posição civilizacional de sua nação há gerações, é uma delas. Por mais de um século, a elite russa tem estado fascinada com a Revolução Francesa.

O interesse pela Revolução Francesa como modelo explicativo não se deveu a semelhanças externas entre os acontecimentos na Rússia no século XX, e especialmente na primeira metade daquele século, e aqueles na França no final do século XVIII e início do século XIX. Ao contrário, um segmento considerável da elite russa, cada vez mais ocidentalizada nas perspectivas e comportamento nos últimos anos do regime czarista, desejava ver o país seguindo o Ocidente, de modo geral. Estes pontos de vista foram defendidos não apenas pelos liberais, mas também pelos radicais. De fato, o credo deste último, o marxismo, era de origem ocidental. A crença no Ocidente era a pedra angular da maioria dos intelectuais russos, especialmente os de uma linha dissidente ou semidissidente nas grandes cidades. E foram eles que saudaram as reformas de Gorbachev e o colapso final do regime. Situando a história russa e soviética no contexto de um 'Termidor' final e irreversível, eles tinham uma variedade de expectativas. Seria ingênuo supor que eles realmente acreditavam no triunfo da democracia como o sinal final da incorporação da Rússia na ordem ocidental. Bem poucos realmente professavam o "fukuyamismo", tão popular no Ocidente no início dos anos 90. A maioria deles desprezava profundamente as massas - 'sovki' nojentos que ou agiam em conluio com o regime soviético perseguindo a elite intelectual ou eram absolutamente estranhos aos intelectuais. Eles não viam nenhum problema nas autoridades soviéticas lidando duramente com a população, uma tradição que remonta ao início do século XIX, quando o poeta seminal da Rússia, Alexander Pushkin, comparou as massas com ovelhas que desconheciam qualquer senso de honra (chesti klich). Portanto, elas deveriam ser tosqueadas ou abatidas por causa da carne. Embora a democracia não fosse o fruto esperado do novo "Termidor", o poder e a prosperidade eram esperados. A Rússia ocidentalizada, nesta narrativa, juntar-se-ia ao concerto das potências ocidentais e manteria sua igualdade com os EUA. Seria um país rico com rápido progresso econômico. A herança imperial era vista como um entrave que impedia a Rússia de alcançar tudo isso na nova era 'termidoriana'.

Isto não aconteceu. Consequentemente, os paradigmas não ocidentais reemergiram; vale a pena lembrar que estes nunca estiveram completamente ausentes do discurso oficial e dissidente/semidissidente. Com as crescentes crises econômicas e geopolíticas, eles se tornaram cada vez mais competitivos com o modelo termidoriana e com outros modelos históricos ocidentais, embora nunca tenham eliminado completamente o modelo ocidental, pelo menos durante o final dos anos 80 e 90. Vários modelos históricos coexistiam e ocupavam seus nichos intelectuais particulares. O modelo do "Tempo de Dificuldades" surgiu como um dos mais populares. O histórico 'Tempo de Dificuldades' foi uma série de eventos turbulentos no início do século XVII, marcado por crises dinásticas, intervenções estrangeiras, guerra civil e caos geral. Este modelo abordava ou explicava muitos aspectos da Rússia Gorbachev-Iéltsin que nem o modelo 'termidoriano' nem qualquer outro modelo ocidental poderiam explicar: o colapso sociopolítico, o colapso econômico e a extrema fraqueza geopolítica que fez da Rússia de Ieltsin quase um Estado falido. Esse modelo não apenas fornecia uma explicação para a miséria da Rússia, mas também dava pelo menos alguma esperança para aqueles que a abraçaram. Ele implicava que a miséria do país não era permanente e não levaria necessariamente ao seu desaparecimento. Na verdade, ela poderia ser uma condição prévia peculiar para uma nova ascensão. Este modelo, que implica humilhação e morte como pré-requisitos para uma nova ascensão, tem profundas raízes culturais na Ortodoxia, pois considera o sofrimento como benéfico para o indivíduo e essencial para a elevação espiritual. Deve-se notar que esta tradição pode ser traçada não apenas aos primórdios do cristianismo, mas também às antigas civilizações agrícolas (por exemplo, o antigo Egito), onde a morte e o enterro estavam claramente relacionados ao plantio de sementes; o mito egípcio de Osíris é um bom exemplo. A popularidade do "Tempo de Dificuldades" no discurso público atraiu uma variedade de intelectuais russos. Aleksander Dugin, prolífico e seminal escritor e filósofo russo, foi um deles.


Dugin e o Tempo de Dificuldades: Enquadramento Filosófico


As opiniões de Dugin têm sido estudadas no Ocidente há muito tempo, mas muitas vezes elas têm sido simplificadas nas tentativas de fechá-lo em uma caixa ideológica conveniente. Os observadores têm considerado suas opiniões contraditórias, um ponto geralmente elaborado por aqueles que apresentam Dugin como apenas uma curiosidade intelectual reacionária, onde o rótulo "reacionário" serve não apenas como um marcador das opiniões políticas ou filosóficas particulares de Dugin, mas também como um meio de denegri-lo enquanto intelectual. Tentativas de localizar as fontes dos pontos de vista de Dugin invariavelmente olham para a filosofia europeia da "Nova Direita" e para o Eurasianismo. Sem uma análise da educação social ou sociocultural de Dugin, porém, nem sua filosofia em geral, nem suas opiniões sobre o "Tempo de Dificuldades" podem ser compreendidas adequadamente.

Dugin é um filho da sociedade soviética, e a natureza desta última - ou pelo menos as manifestações externas do falecido Estado soviético - deve ser devidamente compreendida. O mais importante - pelo menos para nossa narrativa - era a abordagem do Estado à ideologia. Sua política e as imagens por ele projetados eram contraditórias. Por um lado, o Estado era cético em relação à sociedade e não confiava muito na doutrinação ideológica. Medo, coerção e incentivos econômicos foram as principais ferramentas de governo até a era Gorbachev, e o enfraquecimento do controle do Estado levou imediatamente ao colapso do regime. Postulados ideológicos não eram muito internalizados pela maioria dos cidadãos soviéticos, ou pelo menos tiveram pouco ou nenhum papel na formação de seu comportamento. Isto explica por que o regime entrou em colapso com tão extraordinária rapidez e facilidade; o fim da URSS foi absolutamente sem sangue, pelo menos na própria Rússia. Por outro lado, e bem diferente do Ocidente moderno, onde as principais narrativas ideológicas da elite são internalizadas por segmentos consideráveis da sociedade, a elite soviética era ideologizada e várias formas de nacional-bolchevismo, com sua busca imperial messiânica de expansão infinita, permaneceram presentes em suas mentes até o fim da URSS. Ao contrário da elite ocidental, eles não se preocupavam com eleições e tinham apenas oportunidades limitadas para a corrupção. O poder absoluto e sua aplicação era um objetivo em si mesmo, não apenas um meio de conseguir lojas especiais e dachas, que eram basicamente apenas grandes incentivos para a burocracia de nível inferior.

Escusado será dizer que os dissidentes também eram ideologizados ao extremo. Para eles, a luta contra o regime tinha um profundo significado metafísico, pois o regime era a encarnação de um mal quase cósmico. Isto mostra o grande papel da ideologia, a peculiar espiritualização cultural, tanto da elite superior como de seus inimigos mais dedicados; pode-se acrescentar que a "dissida" dos semidissidentes, como era frequentemente chamada de forma desdenhosa, era paralela à burocracia de baixo nível. Lembre-se também que as tendências intelectuais/culturais e sociais do regime eram contraditórias e que havia muitas camadas, como em qualquer sociedade. Ainda assim, o grau de ideologização ou espiritualização de certos segmentos da sociedade não deve ser desconsiderado. E isto explica a abordagem de Dugin ao 'Tempo de Dificuldades'. Em sua opinião, o Estado russo tinha uma grande missão messiânica, moral e ortodoxa. Este alicerce espiritual justificava sua própria existência. Os russos privados desses atributos deixavam de ser russos, ou pelo menos essa desespiritualização seria uma manifestação de uma crise muito grave. Esta espiritualização do Estado o torna verdadeiramente "eurasiático".

Dugin declarou-se um defensor do eurasianismo, a tendência intelectual e quase política que surgiu na década de 1920 entre os emigrantes russos. A literatura sobre o eurasianismo, tanto o clássico como o mais recente, é extensa e crescente. Aqueles que estudam o eurasianismo costumam notar a visão particular de seus protagonistas sobre a Rússia e a URSS como uma civilização peculiar baseada na simbiose dos russos e outros eslavos com minorias não eslavas, em sua maioria túrquicas. Esta era de fato uma característica específica da Rússia e da URSS. Mas não era a única e, como se pode deduzir da narrativa de Dugin, nem a característica mais importante da Rússia e da URSS. Arranjos culturais e étnicos "sintéticos" podem ser encontrados em outros impérios multiétnicos, e Dugin, sem dúvida, está ciente deles. A questão é que o Império Britânico, o exemplo clássico do que Dugin chama de civilização 'atlantista', era totalmente desprovido de um ethos espiritual ou metafísico; seus residentes preocupavam-se apenas com o bem-estar econômico. O Império Britânico, junto com outras civilizações marítimas capitalistas do passado, tornaram-se os antepassados dos EUA, a civilização 'alantista' por excelência e o inimigo mortal do mundo 'eurasiático'.

A história com o Estado 'eurasianista' - e nesta narrativa a Rússia surge como o Estado eurasiático por excelência - é bem diferente. Sua essência não são os benefícios econômicos e muito menos o bem-estar de seus cidadãos, mas sim servir a um objetivo sublime. Este pode ser a Ortodoxia - o foco de Dugin na fase mais recente de sua evolução intelectual - ou qualquer credo estruturalmente semelhante, desde o marxismo em sua leitura idiossincrática soviética até o nacional-socialismo. Embora claramente não fosse um império multiétnico, a Alemanha nazista era claramente um Estado "ideocrático" que fazia de objetivo a construção de um império global. A 'ideocratização' como um quadro de existência social é mais importante na visão de Dugin da história russa, assim como a forma como o 'Tempo de Dificuldades' deve ser aplicado na compreensão de seu curso. Para ele, a Rússia teve não um, mas vários Tempos de Dificuldades. Todos foram marcados não tanto pela degradação física - anarquia, desintegração e intervenção estrangeira - mas pela degradação espiritual e decadência moral. Neste contexto narrativo, o Tempo de Dificuldades poderia continuar mesmo quando a fachada externa do Estado parecesse forte e seu território se expandisse.


A Crise Primeva


Dugin considera a Rússia como tendo nascido no seio da Rus de Kiev. Aqui, é claro, ele segue a maioria dos historiadores russos. Dugin acredita que a Rus de Kiev já era implicitamente 'eurasiática', não porque incluísse vários grupos étnicos, mas porque se tornou uma sociedade espiritualizada devido à herança religiosa e cultural do Império Bizantino. A desintegração da Rus de Kiev foi o primeiro 'Tempo de Dificuldades'. Ainda assim, isso foi um pré-requisito para uma nova grande ascensão e estava diretamente relacionado com a invasão mongol do século XIII. Esta invasão foi um dos maiores eventos da história russa e, na verdade, de toda a Eurásia. A maioria dos historiadores russos, e não apenas eles, consideram a investida mongol como uma das maiores calamidades que a Rússia já sofreu. Tanto os eurasianistas clássicos pré-Segunda Guerra Mundial quanto o famoso historiador russo Lev Gumilev (1912-1992), no entanto, viam a invasão mongol de maneira diferente. Eles minimizam a destrutividade da invasão mongol e enfatizam as características positivas do evento. Para os eurasianistas pré-guerra e Gumilev, o benefício mais importante que os mongóis trouxeram à Rússia foi o dom da tolerância: os mongóis ensinaram os russos a viver em paz com povos de diferentes etnias e credos. Os mongóis também legaram aos russos uma forte tradição de poder sem a qual a Rússia não teria sido capaz de sobreviver.

Dugin não desconsidera estes aspectos do domínio mongol. Ainda assim, para ele, o legado mais importante dos mongóis é que eles solidificaram a natureza "ideocrática" do objetivo metafísico da conquista global como transcendendo a história humana, tal como geralmente é entendida. O mongolismo também reforçou a essência cultural do povo russo que havia sido moldada durante o período kievano. Neste contexto social-existencial, uma pessoa não vivia para si mesma, mas para um objetivo que transcendia seu ser fenomenológico. A conquista e domínio mongol poderia assim ser interpretada como o fim de um Tempo de Dificuldades, levando finalmente à transição do domínio mongol para o Estado russo dos séculos XV e XVI. Este último poderia então ser visto como a encarnação perfeita do mongolismo espiritualizado e do bizantinismo ortodoxo eternizado e permeando a vida de todo russo com religiosidade espiritualizada, independentemente da posição social.

O início do século XVII, o 'Tempo de Dificuldades' histórico, desempenha um papel relativamente pequeno na visão geral de Dugin. Ele o deplora não apenas pela desintegração do Estado e pelo papel dos poloneses que estavam prontos para assumir o controle da Rússia. Na narrativa de Dugin, os problemas não residiam apenas no perigo de o Estado russo ser tomado por estrangeiros e no sofrimento dos russos comuns. Os russos sofreram muito mais sob os mongóis, senhores do país por mais de 200 anos. O problema era bem diferente. A perspectiva cultural e existencial mongol era bastante semelhante à dos ortodoxos e bizantinos abraçados pelos russos séculos antes. Consequentemente, os mongóis e os russos se engajaram em uma simbiose espiritual e cultural benéfica para a sociedade russa. Os poloneses, entretanto, já estavam envenenados pela Renascença e pela Reforma, um produto culturalmente estranho com ênfase no materialismo e no individualismo. Eles eram, assim, os portadores de um "protoatlantismo", e seu triunfo teria significado o fim da civilização ortodoxa russa e a inevitável dessacralização e desespiritualização da alma do país. Entendendo esta ameaça, os russos e os tártaros aliados - com uma constituição espiritual próxima à dos russos - lutaram contra os poloneses alienígenas. Dugin implica que eles lutaram contra os poloneses ainda mais decisivamente do que contra os mongóis, pois eles entenderam que nenhuma simbiose seria possível no caso de uma vitória dos poloneses. Os russos finalmente prevaleceram. O mais importante aqui não era tanto o fato de que o Estado russo havia preservado sua independência, mas sim que a Rússia permaneceu uma civilização espiritualizada ortodoxa e escapou dos germes materialistas da Europa renascentista e reformada, que haviam destruído o tecido espiritual da saudável Idade Média europeia. Este triunfo foi, no entanto, de curta duração. Após o final do século XVII, o tecido espiritual da sociedade russa estava novamente ameaçado pelas reformas introduzidas pelo patriarca Nikon de Moscou (1605-1681; patriarca 1652-1666). Estas reformas não colocaram em perigo o Estado enquanto instituição, mas em alguns lugares foram muito mais prejudiciais do que as invasões mongóis, pois puseram em perigo a composição espiritual do país. Elas realmente formaram o início de novos e longos períodos de "Tempos de Dificuldades" que só terminaram com o estabelecimento do regime soviético.


A Crise do Século XVII


Pode-se considerar o fim do histórico "Tempo de Dificuldades" como o triunfo final do país. A Rússia não apenas preservou sua independência, mas partiu para uma nova rodada de expansão territorial, tanto no Ocidente como no Oriente. Mas, para Dugin, o fortalecimento do Estado em si não tinha muito valor, a menos que correspondesse ao fortalecimento dos valores tradicionais russos e eurasiáticos. O final do século XVII anunciava o início de um Tempo de Dificuldades espirituais mais perigoso do que qualquer outra doença que o país havia vivido. De acordo com Dugin, no final do século XVII a Rússia começou a experimentar uma degeneração espiritual muito mais séria e prejudicial do que havia experimentado no passado. A Rússia havia se preservado com a saudável tradição bizantina por muito tempo, mas as reformas Nikon foram um ponto de virada pois Nikon empurrou a igreja russa ao longo do caminho da verdadeira degeneração. [1] Dugin insinua que estas reformas estabeleceram o padrão para outros desastres semelhantes até a era Gorbachev. A cola espiritual do cristianismo ortodoxo, a tradição sagrada "paradigmática" da Rússia que indica que os russos são messiânicos, foi abalada não por baixo - durante a maior parte da história do país, as massas estiveram profundamente apegadas a suas crenças - mas pela elite degenerada e até mesmo por seus governantes. As reformas da Nikon levaram a uma verdadeira crise na Rússia. Com a divisão religiosa resultante (raskol), a Igreja Ortodoxa Russa e a sociedade russa em geral se aproximaram cada vez mais do modelo ocidental, o que era o caminho errado para o país seguir porque o individualismo pragmático do Ocidente pós-renascentista era absolutamente estranho à sociedade russa. [2] Os passos de Nikon abriram o portão para o "Tempo de Dificuldades" mais sério e prejudicial - as reformas petrinas do Czar Pedro, o Grande (1672-1725). Estas poderiam ser consideradas, na narrativa de Dugin, como a segunda etapa do "Tempo de Dificuldades" inaugurado pela Nikon. Elas eram diferentes das calamidades anteriores de várias maneiras. Não trouxeram nenhum benefício, como foi o caso da investida e da dominação dos mongóis. Elas também trouxeram mais danos do que o "Tempo de Dificuldades" histórico, pois minaram a espinha dorsal espiritual da civilização russa. Esta abordagem das reformas petrinas tem muito em comum com aquela proposta pelos eslavófilos e neoeslavóficos desde o século XIX, bem como pelos euraasiáticos pré-Segunda Guerra Mundial.


Rússia Petrina


De acordo com Dugin, o século XVIII levou à degeneração da sociedade russa. Vários problemas surgiram. Primeiro, o abismo entre as massas e a elite se aprofundou. As massas continuaram a seguir as tradições saudáveis do século XVII, enquanto a elite adotou costumes e cultura europeus e abandonou Gengis Khan como modelo a seguir. [3] Esta separação implicou na desespiritualização ou desmessianização do processo de construção do império. O afastamento da Rússia petrina em relação ao mongolismo ortodoxo e ao messianismo implícito levou, segundo Dugin, a uma profunda degeneração espiritual da sociedade e do Estado russos. O estatismo autônomo é absolutamente estranho para Dugin e, segundo ele, para as massas russas, pelo menos quando as massas seguem a tradição russa. Ele rejeita totalmente a moderna visão europeia do Estado. A entidade "Estado dessacralizado" não é nada mais que uma "construção pragmática artificial". A noção de um Estado pragmático dessacralizado é absolutamente estranha à tradição russa, mas prevalece nas narrativas de pensadores europeus como Jean Bodin, Maquiavel e Hobbes. Nessas construções ideológicas, a dessacralização do Estado está relacionada à alienação da elite em relação à maioria; a elite são os representantes das minorias étnicas, religiosas e culturais estrangeiras para o resto da população. De acordo com Dugin, isto é de fato o que aconteceu na Rússia do século XVIII. [4] Esta visão do século XVIII é compartilhada pelos aliados ideológicos de Dugin. [5]


O Renascimento Parcial do Século XIX


A degeneração espiritual do século XVIII levou a um novo renascimento, pelo menos nos domínios cultural e espiritual, mas este renascimento não foi firme e, portanto, só retardou o Tempo de Dificuldades.

O período romântico na Rússia para Dugin é marcado por reações saudáveis, sendo o eslavofilismo russo uma delas. Isto não significava que o ocidentalismo geral da elite russa fosse descartado, mas um certo ceticismo surgiu em relação à capacidade russa de adotar o modelo civilizacional ocidental sem levar em conta a especificidade da Rússia. A ênfase na especificidade nacional foi um resultado direto da influência do romantismo europeu, que levou a um tipo peculiar de eurasianismo europeu, ou pelo menos a uma ideologia que continha as sementes do eurasianismo. O eurasianismo aqui foi interpretado não como uma simbiose de eslavos e muçulmanos de várias etnias ou mesmo como a integração de povos de diferentes culturas ou etnias, mas como um ensino que enfatizava as especificidades nacionais e culturais. A era romântica também santificou a noção de que cada nação tem seu objetivo messiânico, e este aspecto do romantismo é claramente agradável a Dugin. De fato, Dugin elogia os eslavos que desenvolveram plenamente a noção da especificidade da civilização russa e o papel messiânico que os russos devem desempenhar na história humana. Ele também observa que não foram apenas os pensadores conservadores, mas também os radicais que se imbuíram de ideias nacionalistas e de uma compreensão da especificidade da Rússia. 

Embora a ascensão da eslavofilia tenha demonstrado algum reavivamento espiritual, ela não foi forte o suficiente para reverter a degeneração do século XVIII, e a crise russa continuou. A influência eslavófila era limitada entre a elite. Não era a aristocracia degenerada ou os membros da família czarista, mas os camponeses russos, mais do que outros grupos, que preservavam as "nobres tradições arianas". [6] O apelo de Dugin ao "arianismo" não está relacionado apenas com algumas declarações da Nova Direita Europeia, mas também com as ideias de eslavos como Aleksey Khomiakov (1804-1860), que considerava a Rússia como participante da linhagem racial europeia, independentemente de todos os conflitos com a Europa. Na opinião de Khomiakov, os russos são na verdade mais ário-iranianos do que europeus, que sofrem com a dominação 'cuxita'. "Cuxita" é um termo genérico para alguém que não é puro indo-europeu e que está relacionado a asiáticos e negros. Na interpretação de Khomiakov e Dugin, o 'arianismo' denota uma categoria espiritual e não biológica e se apresenta como um símbolo de espiritualismo elevado e messianismo. Desta perspectiva, pode-se dizer que Dugin vê o cristianismo ortodoxo e o 'arianismo' como forças cognatas.

A noção de que existiam profundas diferenças culturais entre os diferentes segmentos da sociedade russa é uma boa observação. As grandes cidades russas, especialmente as capitais, não eram muito diferentes das cidades europeias. Ao mesmo tempo, elas eram absolutamente diferentes das zonas rurais russas. Estas últimas ainda estavam na era pré-capitalista: a propriedade privada camponesa de terras só foi legitimada após a Revolução de 1905-1907 pelas reformas de Stolypin. A perspectiva camponesa Gemeinschaft - para usar a famosa terminologia de Ferdinand Tönnies - estava em nítido contraste com a vida capitalista urbana, que era absolutamente estranha aos camponeses e evocava em suas mentes nada mais do que profunda repulsa. Estava também relacionada à vida da elite da aldeia, especialmente dos proprietários, e explica os atos de brutalidade gratuita e destruição de qualquer símbolo de uma sociedade estrangeira, dos livros às imagens. Assim, as explicações apresentadas por Dugin e seus predecessores intelectuais não estão completamente fora do comum. Consequentemente, ao mesmo tempo em que desenvolve os problemas da Rússia czarista tardia, ele observa que o conflito entre a elite ocidentalizada - absolutamente estranha à tradição russa - e o "nobre" "arianismo-mongolismo" e o bizantinismo ortodoxo - todos estruturalmente semelhantes - levou a uma profunda crise na Rússia imperial, e finalmente a um novo Tempo de Dificuldades e ao surgimento do regime soviético.

A Revolução Bolchevique e a Ascensão da Ideocracia Soviética

A visão de Dugin sobre a Revolução Bolchevique e o regime soviético mudou ao longo do tempo. Ainda assim, é claro que dos anos 90 até o início dos anos 2000 ele o considerou não apenas legítimo, mas realmente melhor do que qualquer outro regime da história russa, exceto possivelmente o da Rússia dos séculos XV a XVII. E, previsivelmente, Dugin considerava o regime soviético, especialmente em sua variação stalinista, como o retorno ao Estado ideocrático original do mongolismo misturado com o bizantinismo, recordando a Rússia pré-petrina e até mesmo pré-nikoniana. De fato, após a turbulência da Revolução e da Guerra Civil, a Rússia voltou à posição que ocupava nos séculos XV a XVII. O governante detém o poder absoluto e o Estado é onipresente. Os apetites individuais são restringidos e aproveitados para os interesses do Estado. O próprio Estado também era "ideocrático". Seus interesses eram a difusão de sua influência e a profissão de um credo que era essencialmente eurasiático, apesar da folha de figueira marxista. Finalmente, o Estado havia criado uma barreira entre a Rússia/Eurásia e o Ocidente, mais notadamente os EUA com seu corrosivo 'atlantismo' desespiritualizante. Após a morte de Stalin, a URSS, para Dugin, começou a degenerar, principalmente devido ao fato de que seus líderes sucumbiram aos desejos das massas; eles se tornaram de certa forma "democráticos". A noção de uma reorientação "democrática"/popular do Estado soviético era amplamente compartilhada no Ocidente, especialmente nos anos 60 e 70, quando o estudo da URSS estava nas mãos de grupos de estudiosos conhecidos como "revisionistas". Eles descartavam completamente as noções de historiadores mais conservadores que consideravam a URSS como um Estado totalitário que dominava sobre as massas infelizes. Para eles, os governantes soviéticos eram verdadeiramente eleitos e, portanto, representavam a vontade do povo. Dugin também acreditava que a elite soviética estava próxima das massas. Na verdade, eles não eram elite alguma, mas não porque as pessoas no Kremlin eram eleitas pelo povo comum. A questão aqui era que as pessoas no Kremlin eram semelhantes às massas e faziam suas vontades. A visão de Dugin sobre as massas era, de certa forma, contraditória. Por um lado, em sua narrativa, as massas eram profundamente "ideocráticas" e dispostas a se sacrificar pela causa superior que transcendia seus interesses pessoais e suas próprias vidas. Por outro lado, as mesmas massas se entregariam e seguiriam seus instintos básicos animalescos, a menos que fossem coagidas pelo Estado a seguir o caminho "ideocrático". E aqui os problemas vieram à tona. Os últimos governantes soviéticos queriam representar, de fato, os interesses das massas que, a menos que fossem restringidos ou cooptados pelo Estado "ideocrático", eram de natureza básica. Os interesses das massas estavam limitados ao desejo de melhorar seu padrão de vida e as pessoas no Kremlin começaram a seguir o impulso da população. Ao mesmo tempo, o aspecto espiritual 'ideocrático' do regime estava em declínio. Esta progressiva desespiritualização do regime e da sociedade como um todo levou ao declínio do calibre intelectual e da vontade das pessoas no Kremlin, e eles começaram a se parecer com seus súditos - uma ralé cada vez mais degenerada. Ainda assim, o processo de degeneração poderia ter sido facilmente revertido. A elite poderia ter sido substituída pelos duros "ideocratas" espiritualizados que poderiam ter levado as massas a uma restauração de seu verdadeiro eu, seu núcleo ideocrático arcaico.

O Estado Soviético e sua Queda: A Nova Rodada do Tempo de Dificuldades

Embora o Estado soviético tivesse sérios problemas, ainda era um corpo político basicamente saudável com um núcleo espiritual tradicional dos séculos XVI e XVII, e Dugin entendeu muito bem que o fim deste Estado seria uma catástrofe para o povo russo. Por esta razão, Dugin desejou aos membros do GKChP (Gosudarstvennyi Komitet po Chrezvychainomu Polozheniiu [Comitê de Estado para uma Situação Extraordinária]) - o órgão que tentou evitar o colapso da URSS - sucesso em lidar com a oposição. Mais tarde, Dugin recordu seus sentimentos quando, em 19 de agosto de 1991, acordou com as palavras de Anatoli Lukianov de que "o país está sob a ameaça de desmoronamento e foi criado um Comitê Extraordinário para um Estado de Emergência". [7] Após ouvir isto, Dugin se juntou ao grupo 'União', liderado pelo Coronel Viktor Alksnis, 'que era conhecido naquela época como um duro defensor da preservação da URSS e inimigo dos reformistas'. Ele se lembrou bem do que viu naquela época:


"Ao longo de Novyi Arbat, na direção do Kremlin da Casa Branca, o fluxo de pessoas seguia em frente. Observando os rostos nervosos, vi que esta enorme massa de pessoas tinha apenas um desejo - eles queriam destruir, decompor, e ser liberados do controle e das obrigações, de quaisquer responsabilidades. Era um exército de caos que foi mobilizado não tanto para apoiar a ideia 'a favor', mas para apoiar a ideia 'contra'. A maioria daqueles que participaram desses eventos naquela época provavelmente lamentam profundamente o que fizeram ou gostariam de esquecer. Somente pessoas absolutamente loucas ou inimigos abertos da Rússia poderiam insistir agora que tudo o que foi feito na época estava certo."


Dugin via Vladimir Zhirinovsky (1946-), um influente político nacionalista russo, como se comportando como se fosse "louco". Ainda assim, Dugin insinuou, ele pregava a mensagem certa, pois exigia ordem e que as massas obedecessem ao GKChP. Ninguém lhe prestou atenção e "todos amaldiçoaram os conspiradores". O GKChP não tinha como segurar a situação. O império desmoronou e as muitas etnias que haviam vivido juntas por séculos se tornaram inimigas umas das outras. O fim da URSS foi o triunfo dos EUA, que tinham destruído seu maior inimigo. Por um lado, o GKChP podia ser elogiado por tentar salvar o Estado. Por outro lado, não ousou derramar sangue para salvar o país e desistiu muito rapidamente, transformando-se em "pessoas que mereciam ser desprezadas". O próprio fato de o GKChP ter medo de derramar sangue não os exonerou. É preciso pagar por tudo e lembrar que o fato de a GKChP se abster da violência não impediu o derramamento de sangue mais tarde. Após seu desastre, o sangue não parou de ser derramado em Karabakh ou na Abkhazia, na Ossétia do Sul. E as nuvens já começavam a se acumular em torno da Chechênia. E, em 1993, o regime de Iéltsin não hesitou em usar a violência contra as pessoas que se opunham a sua política pró-americana. 

O colapso da URSS e o início de um novo Tempo de Dificuldades, ou pelo menos uma aceleração dos eventos iniciados por Gorbachev, foi uma grande catástrofe. Como em outros grandes Tempos de Dificuldades - as reformas de Nikon e Pedro - ela foi iniciada de cima e é Gorbachev e Iéltsin que devem ser culpados pelo declínio da URSS. Afirma-se que a URSS era basicamente um corpo político saudável assassinado por Gorbachev e Iéltsin. Ainda assim, não se deve ver em Gorbachev e Iéltsin a única razão do desastre, pois as sementes de problemas futuros também podiam ser encontradas durante a era soviética.

Dugin ficou bastante animado com a chegada de Putin. Ele acreditava, e estas crenças eram especialmente fortes logo no início da posse de Putin, que o ethos materialista grosseiro da era Iéltsin seria expulso pelo terror e que o império seria ressuscitado. Seria o fim do último e mais traumático Tempo de Dificuldades do país. A ressurreição do Estado e seu império não seria apenas um objetivo em si mesmo. A Rússia pós-Iéltsin não seria apenas um Estado poderoso semelhante aos EUA - e estes eram os sonhos de muitos membros da elite pós-soviética - mas uma civilização peculiar onde a maior preocupação seria a preservação de sua identidade cultural e salubridade espiritual firmemente ancorada nos arquétipos nacionais arcaicos. Os EUA 'atlantistas' voltariam a emergir como o inimigo mortal dos russos e, de fato, de todos os povos da Eurásia, e eles entenderiam que o desaparecimento dos EUA é sua única salvação. Muitos destes aspectos do programa de Dugin faziam lembrar a ideologia soviética e o desenho do que os críticos geralmente chamam de oposição "vermelho-marrom", a frente mista de nacionalistas e comunistas de orientação nacionalista. Ainda assim, havia uma clara diferença entre eles e o programa de Dugin. Enquanto os "vermelho-marrons" defendiam a nacionalização, Dugin mal tocava no assunto; ele era bastante marginal para ele. E foi isto que fez do duginismo um credo útil para Putin no início de seu mandato, onde os sonhos de restauração soviética eram populares entre as massas. Os sonhos de Dugin não se materializaram e Dugin começou a perder sua crença em Putin pelo segundo mandato de Putin. Consequentemente, sua crença de que o novo "Tempo de Dificuldades" iniciado por Gorbachev estava prestes a terminar foi cada vez mais posto em dúvida. A crise ucraniana era sua última esperança.

No início dos eventos de 2014, Dugin estava convencido de que Putin deslocaria abertamente as tropas para a Ucrânia Oriental, o que implicaria um confronto direto com o Ocidente. Naquele momento, ele implicitamente esqueceu sua crença inicial de que a Europa Central e Ocidental eram potências eurasiáticas benignas. Em sua nova percepção, a Europa reemergiu como uma força hostil, seguindo a clássica teoria eurasianista pré-Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, Dugin finalmente abandonou seu eurasianismo. De fato, não havia nenhuma menção a uma simbiose entre russos e outros grupos étnicos do espaço eurasiático. Havia apenas o "mundo russo", que incluía tanto os russos étnicos quanto as minorias assimiladas; de fato, os russos foram definidos aqui como todos aqueles que falam russo e são absorvidos pela cultura russa. O conflito com o Ocidente não acabaria apenas com o domínio dos liberais sobre a Rússia. A "quinta e sexta" colunas - a última representando aqueles que, na opinião de Dugin, ao mesmo tempo que professavam seu apoio a Putin eram na verdade seus inimigos - seriam expurgadas. Sustentar a ortodoxia e a identidade nacional seria o principal objetivo do regime. A economia ficaria em segundo plano na tomada de decisões e, de qualquer forma, seria subserviente ao objetivo primordial da espiritualização e, ao mesmo tempo, arcaização da sociedade russa, devolvendo-a ao seu arquétipo primordial. A sociedade ortodoxa, o universo das interações sociais e pessoais, não absorveria o indivíduo ao ponto de sua personalidade se dissolver na totalidade da comunidade ortodoxa. Isto não aconteceria, não apenas porque entraria em contradição com a doutrina ortodoxa, mas também porque impediria os indivíduos - especialmente os ortodoxos - de estarem preparados para a morte - o destino final de todos. A preparação para a morte seria a tarefa tanto do indivíduo quanto da sociedade, o vínculo que cimentaria a Comunidade Ortodoxa e lhe daria seu significado último. Neste ponto, a Rússia poderia finalmente deter seu longo Tempo de Dificuldades, o processo de decadência espiritual.

Dugin dava muita importância à experiência transformadora que ele pensava que a crise ucraniana traria, mas seus planos foram frustrados. A anexação da Criemai e o envolvimento russo na Ucrânia Oriental foram, em sua maioria, reativos. Isto se deveu basicamente a duas razões. Primeiro, houve a pressão ocidental, principalmente americana. Segundo, havia o entendimento de que os EUA, e o Ocidente em geral, não são tão formidáveis agora como no início da era pós-Guerra Fria. Ainda assim, Putin, e naturalmente, a elite russa que estava por trás dele, quase nunca sonhou com o confronto direto com o Ocidente, o que teria exigido um crescente controle governamental dos recursos como apenas uma de muitas outras complicações. Além disso, deve-se lembrar que o nacionalismo russo, em algumas de suas manifestações, pode ser bastante perigoso para o regime. O regime pode não apenas tolerar, mas até mesmo encorajar o nacionalismo imperial, se ele se limitar a expressões verbais da grandeza eterna da Rússia ou a lamentos sobre sua glória perdida. O Kremlin também pode apoiar aqueles nacionalistas imperiais que exigem algumas ações práticas limitadas, tais como um aumento do orçamento militar. A história é bem diferente quando se trata de nacionalismos radicais de cunho racial e étnico. Estes tipos de nacionalismos não apenas enfatizam que apenas aqueles que são russos por sangue ou etnia podem ser chamados de verdadeiros russos, mas também fazem outras reivindicações. Na opinião dos nacionalistas radicais, o regime atual não pode ser chamado de verdadeiramente russo. A razão é que os russos étnicos, a maioria da população, vivem na miséria, enquanto a elite, na sua opinião representada principalmente por minorias étnicas, vive muito melhor. O regime "verdadeiramente" russo deveria estar engajado na redistribuição da riqueza, na nacionalização de recursos e na ampliação da rede de previdência social. Em resumo, os nacionalistas radicais não são apenas nacionalistas, mas também "socialistas", embora, é claro, seu "nacional-socialismo" se encaixe em uma estrutura isolacionista peculiar. Salvar os separatistas da Ucrânia Oriental e, mais ainda, a invasão aberta da Ucrânia poderia dar um grande impulso a esses 'nacionalistas-socialistas', a ponto de colocar em perigo o regime atual. Não é surpreendente, então, que os planos de Dugin de confronto direta, e não apenas verbal, com o Ocidente dificilmente correspondam ao que o Kremlin queria. De fato, o Kremlin logo começou a ver Dugin não como um ativo, mas como um passivo. Ele foi demitido de sua posição como professor na Universidade Estatal de Moscou e seus comentários sobre a política interna do país foram quase completamente silenciados. E quando ele faz tais comentários hoje, geralmente é de uma perspectiva pessimista. Sua visão do processo histórico também mudou; mais notadamente, sua visão sobre a Revolução Bolchevique e o regime soviético. No passado, ele assumia que o regime soviético, pelo menos em sua forma stalinista, era quase uma "ideocracia" ideal e precisava de poucas mudanças para ser tão perfeito quanto a Rússia dos séculos XV e XVI. Nesta interpretação, os soviéticos haviam detido o "Tempo de Dificuldades", que havia começado séculos antes. Nesta nova interpretação, o regime ateu soviético nada tinha a ver com a verdadeira "ideocracia". Assim, o 'Tempo de Dificuldades', o processo de desespiritualização e 'dessacralização' que começou no final do século XVII, continua até o presente. Nesta interpretação, não há fim à vista para o Tempo de Dificuldades, e independentemente dos sucessos geopolíticos do Estado russo, o verdadeiro núcleo arcaico do país está em perigo de destruição total.

Conclusão

O interesse em algum período histórico particular está muitas vezes relacionado não tanto às semelhanças externas entre os fluxos de eventos passados e atuais, mas às percepções desta ou daquela civilização. Ao longo da maior parte da história russa moderna, um número crescente da elite russa olhou para o Ocidente como se fosse a região mais poderosa e, portanto, mais atraente. Mesmo quando os governantes russos se voltaram para o Oriente, suas conquistas foram de certa forma informadas pelo Ocidente; eram uma forma de pressionar o Ocidente, como Vadim Tsimbursky observou. [8] Consequentemente, a Revolução Francesa emergiu como um dos modelos dominantes por várias gerações. Mesmo mais tarde, quando o regime totalitário stalinista ossificado evocou imagens da história russa ou do antigo Oriente, imagens do Ocidente continuaram a competir com sucesso no discurso público, pelo menos para intelectuais dissidentes ou semidissidentes. A popularidade da Revolução Francesa ressurgiu logo após o início da era pós-soviética. Mas o 'Termidor' ou 'Brumário' não estiveram relacionados com os resultados esperados: poder e prosperidade. E imagens não ocidentais reapareceram na mente do público, incluindo as da própria história da Rússia. E o 'Tempo de Dificuldades' foi um desses problemas. O evento assumiu significados diferentes para vários intelectuais russos. Para alguns, foi um símbolo poderoso da degradação do país. Para outros, era uma chance para uma nova ascensão. A noção de "ascensão" tinha significados diferentes. Em algumas narrativas era apenas um retorno à grandeza anterior, em outras a nova Rússia seria ainda mais poderosa do que a encarnação anterior do Estado. Aqueles que acreditavam na ressurreição geopolítica eram informados pelas tradições do Estado soviético, ou pelo menos por um aspecto dessas tradições, isto é, quando o regime soviético, a URSS, era uma superpotência poderosa igual aos EUA e o conflito entre os EUA e a URSS podia ser colocado no contexto de conflitos entre grandes Estados. Outros foram informados por outro aspecto do Estado soviético, a importância da ideologia em sua peculiar variação "meta-histórica" tanto para a elite soviética quanto para os intelectuais dissidentes/semidissidentes que se opunham ao regime nesta ou naquela forma.

Deve ficar claro aqui: a ideologia desempenhou pouco papel no governo real da sociedade. Até quase seu fim, o regime da URSS dependia da repressão e do controle, assim como de incentivos econômicos. A ideologia como instrumento para governar ou como cola para amplas interações sociais desempenhou muito menos um papel do que no Ocidente moderno, e especialmente nos EUA. O cotidiano e as interações entre a pessoa e o Estado eram muito menos "bizantinas", pelo menos na URSS de Brezhnev, do que as interações no Ocidente, embora para muitos observadores ocidentais tudo parecesse muito o contrário. Mas enquanto elamarginalizava a ideologia como forma de governar, a elite soviética - e aqui quero dizer o escalão superior dos governantes - era profundamente ideologizada. Na verdade, eles estavam livres da preocupação com reeleições, não tinham meios reais de enriquecimento e oportunidades limitadas para transferir suas posições para seus filhos, e por esta razão, pela natureza de seu ambiente, eles começaram a agir ou pelo menos pensar como "reis filosóficos". Seu desejo de preservar o status quo 'sagrado' ou expandir o império - também relacionado ao status quo 'sagrado' - não era uma farsa, ou pelo menos não era completamente uma farsa.

Vários dissidentes russos eram informados por esta autopercepção da elite soviética. Para muitos deles, a URSS não era apenas um Estado regular ou comum, embora bastante poderoso, mas um Estado com uma missão especial. A destruição do que eles viam como a encarnação do mal era seu objetivo sagrado. Eles subscreveiam implicitamente à noção de messianismo "negativo", que era algo como uma imagem espelho do messianismo nacional-bolchevique especial. Dugin aparentemente compartilhava a visão destes intelectuais e isto está subjacente a sua visão do "Tempo de Dificuldades", a noção de declínio e ressurreição. Para ele, o "Tempo de Dificuldades" - tanto na era pós-soviética quanto no passado - não era apenas o desaparecimento físico do Estado, mas também o processo de sua peculiar desespiritualização, a perda de seu peculiar significado metafísico. A ressurreição da Rússia não podia, a seu ver, ser reduzida apenas a um renascimento geopolítico e a expansões. A Rússia ideal era a do século XVI e início do século XVII (após o histórico "Tempo de Dificuldades"), mas não a do final do século XVII e muito menos a do século XVIII, apesar do fato de que a Rússia se expandiu rapidamente naquela época e surgiu como uma das potências mais fortes da Europa. Na opinião de Dugin, este aparente sucesso não significou um fortalecimento, mas sim uma degeneração, porque a Rússia se traiu e abandonou seu papel "paradigmático". Este aspecto da mentalidade de Dugin - e nisto ele não é muito diferente de muitos outros intelectuais russos de sua geração - pode explicar não apenas sua visão sobre o "Tempo de Dificuldades", mas sua crescente decepção com Putin que, embora represente os interesses dos magnatas do Iéltsin e da classe média emergente, se preocupa menos com o papel "messiânico" "paradigmático" do Estado russo. É claro que, na visão mais recente de Dugin, o Tempo de Dificuldades russo que começou há quase 400 anos continua e o resultado deste processo para a Rússia e para o mundo inteiro ainda não está claro.

Notas


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