09/06/2016

Adriano Erriguel - O Tempo dos Sargentos e dos Poetas: Gabriele D'Annunzio e as Origens do Fascismo

por Adriano Erriguel



Hoje é difícil admitir, mas em seus inícios o fascismo italiano não pressagiava o rumo funesto que terminaria tomando para a história da Europa.

Surgido do caos como uma onda de juventude, o fascismo pertencia a uma época revolucionária na qual, diante dos velhos problemas, se vislumbravam novas soluções. Em seu momento fundacional, o fascismo se apresentava como uma atitude, mais do que como uma ideologia, como uma estética, mais do que como uma doutrina, como uma ética, mais do que como um dogma. E foi o poeta, soldado e condottiero Gabriele D'Annunzio quem esboçou, da maneiras mais rotunda, esse fascismo possível que nunca pôde ser, e que acabou dando passagem para um fascismo real, que malogrou suas promessas iniciais para se encaminhar, da forma mais obtusa, ao abismo.

Poeta laureado e heroi de guerra, exibicionista e demagogo, megalômano e histrião, nacionalista e cosmopolita, místico e amoral, asceta e hedonista, drogado e erotômano, revolucionário e reacionário, talento do ecleticismo, da reciclagem e do pastiche, gênio precursor da posta em cena e das relações públicas: D'Annunzio foi um pós-moderno avant la lettre cujas obsessões nos parecem assombrosamente contemporâneas. O incêndio que ajudou a provocar tardaria a se extinguir, mas depois nada voltaria a ser o mesmo. Por que relembrar, hoje em dia, este maldito?

Talvez porque em uma atmosfera monocórdica de correção política, de transgressões amestradas e de pensamento desnatado, figuras como a sua funcionam como contramodelo, e nos lembram que, depois de tudo, a imaginação pode sim chegar ao poder.

Anos Incendiários

Houve uma época de vitalidade impossível de conter que, sobrecarregada de tensões e ideias de alta voltagem, precisou de uma guerra mundial para ventilar suas contradições. Os poucos anos que mediam entre 1900 e 1914 conheceram um extraordinário incêndio na arte e na literatura, no pensamento e na ideologia, que logo se propagou por todo o mundo. Um dos epicentros desse incêndio foi a Itália, mais concretamente o eixo entre Florença e Milão, lugar onde se acendeu "o sonho de um futuro radiante que surgiria após ter purificado o passado e o presente pelo ferro e pelo fogo". [1]

Esta piromania artístico-literária se alimentava, em seus estratos mais profundos, de uma revolução filosófica e cultural cuidadosamente incubada durante a segunda metade do século XIX: um vendaval ideológico que arremetia contra o positivismo racionalista da triunfante civilização burguesa. Frente à tabulação da existência pela economia e pela razão este novo vitalismo reivindicava o poder do irracional, do instinto e do subconsciente, e frente ao otimismo liberal em um mundo pacificado pelo progresso, opunha uma concepção trágica e heroica da existência. Neste clima intelectual surgiu uma aposta que, por sua radicalidade, bem poderia se qualificar de novo mito. Um mito destinado a cortar a história em duas metades.

O ensaista italiano Giorgio Locchi deu há três décadas o nome de "supra-humanismo" a uma corrente de ideias que encontrou sua formulação mais acabada na obra de Friedrich Nietzsche, em um plano filosófico, e na obra de Richard Wagner, em um plano artístico e mitopoético. Em sua essência, segundo Locchi, o supra-humanismo consistia em "uma consciência historicamente nova, a consciência do fatídico advento do niilismo, isto é, para dizê-lo com terminologia mais moderna, da iminência do fim da história". [2]

Essencialmente anti-igualitarista, o supra-humanismo se situava frente às correntes ideológicas que configuraram dois milênios de história: o "cristianismo enquanto projeto mundano, a democracia, o liberalismo, o socialismo: correntes todas que pertenciam ao campo igualitarista". A aspiração profunda do supra-humanismo, que para Locchi não era senão a emergência do inconsciente pré-cristão europeu ao âmbito da consciência, consistia em proceder a uma refundação da história através do advento de um homem novo. Com um método de ação: o niilismo como única via de saída do niilismo, um niilismo positivo que bebia a taça até a borra e que fazia tábula rasa para construir, sobre as ruínas e com as ruínas, o novo mundo.

Mais que uma corrente organizada, o supra-humanismo se configurou como um clima intelectual europeu que impregnou, em graus diversos, o pensamento, a literatura e a arte de princípios do século XX, com a França como laboratório ideológico e com a Itália como teatro de todos os experimentos. Na ebolução italiana daqueles anos, se agitavam sindicalistas revolucionários, vanguardistas, anarquistas e nacionalistas, e todos levavam, em graus diversos, a impressão supra-humanista. Mas o protagonista indiscutível entre todos os aspirantes a incendiários era o movimento futurista.

O futurismo foi a primeira vanguarda autenticamente global, não apenas no sentido geográfico, mas enquanto veiculava uma espiração à totalidade. [3] Longe de se limitar a ser uma proposta artística, o futurismo se estendia ao pensamento, à literatura, à música, ao cinema, ao urbanismo, à arquitetura, ao desenho, à moda, à publicidade, à política. O futurismo portava "a euforia pelo mundo da técnica, das máquinas e da velocidade" e empregava "uma nova linguagem sintética, metálica, sincopada". Não desdenhava "a apologia da violência e da guerra, exaltava a raça entendida como estirpe, não como racismo vulgar, e acima de tudo como promessa de uma supra-humanidade futura". [4] Seus inimigos eram a burguesia, o romantismo, a tradição, o clero, as famílias, todo o velho, em suma. O futurismo era a vanguarda por excelência, a teorização radical de uma vontade pirômana. Algo que parecia estar, em princípio, nas antípodas de D'Annunzio.

No momento de apogeu das vanguardas e da eclosão da Primeira Guerra Mundial, Gabriele D'Annunzio, celebrado em toda Itália como Il Vate, era o escritor mais famoso da península, para muitos seu principal poeta depois de Dante. Mas para os futuristas, seu estilo, abundante em maneirismos modernistas, decadentistas e simbolistas, em florilégios e em retórica oitocentista, podia ser considerado, por direito próprio, como a linguagem desse mausoléu ao qual eles pretendiam atear fogo.

Mas entre os futuristas e D'Annunzio, se tratava mais de amor e ódio. No esteio de Byron, Il Vate pensava que um poeta podia ser também um heroi. Ao eclodir a guerra, e fazendo gala da versatilidade que já havia mostrado em sua carreira literária, se tornou de poeta decadente em poeta combatente. E se investiu de uma nova missão, a de exemplarizar o ideal supra-humanista e sua aspiração máxima: a superação do mundo burguês e a chegada de um "homem novo" que encarnasse uma nova ética da ação. O estilo é o homem. Poucas figuras tão dispostas como a sua para simbolizar os novos tempos.

Florilégios para um Massacre

"A morte está aqui (...), tão bela quanto
a vida, embriagadora, cheia de promessas,
transfiguradora". - Gabriele D'Annunzio

Hoje é difícil compreender a pulsão suicida de uma civilização que, no ápice de seu poder, organizou seu próprio holocausto. O eclodir da Primeira Guerra Mundial foi celebrado como esbanjamento de vitalidade, como catarse e como regeneração moral. O entusiasmo belicista não conhecia fronteiras de ideologia ou de classe, e os artistas e intelectuais de toda Europa se apressaram para se converterem na voz da nação. Nenhuma outra voz cantou a guerra com tanto arrebato como a de D'Annunzio. Nenhuma outra oratória preparou tantos compatriotas, pela glória e sedução das palavras, para matar e morrer. Nenhum outro apóstolo da guerra se mostrou tão ávido por assumir, em sua própria carne, os efeitos do que pregava.

Quando a Itália anunciou sua entrada na guerra, Il Vate se encontrava no ápice de sua glória. Celebrado em toda Europa, rodeado de luxos e coberto de mulheres, tudo o convidava a contemplar a guerra desde uma cômoda distância. Mas com 52 anos, se alistou nos Lanceiros de Novara, unidade com a qual chegaria a participar em dezenas de ações. O exército, consciente do potencial propagandístico de sua figura, o permitiu servir da maneira qe o impacto público fosse mais notável. E lhe permitiu utilizar a que seriasua arma mais letal: a palavra.

Durante quatro anos de guerra, D'Annunzio falou e falou. Falou nas trincheiras e nas retaguardas, nos aeródromos e nas bases navais, nos funerais massivos e na hora dos ataques. Seus discursos eram sugestivos e magnéticos, destinados a conquistar não o intelecto, mas as emoções. Neles as misérias físicas mais cruas eram orladas em uma nuvem de glória, os combatentes eram herois e mártires, tão nobres quanto os herois da Antiguidade clássica ou as legiões de Roma, e a guerra era uma sinfonia heroica na qual suas palavras repicavam como "ondas hipnóticas de linguagem: sangue, morte, amor, dor, vitória, martírio, fogo, Itália, sangue, morte...". Ainda que conhecesse de primeira mão o horror da carnificina, continuava pregando sua fé nas "virtudes purificadoras da guerra e dizendo às tropas que eram sobre-humanas". Falava de bandeiras tremulando sobre o céu da Itália, de rios cheios de cadáveres, da terra sedenta de sangue. Não dissimulava a atrocidade da guerra, que descrevia como as torturas que Dante nunca imaginou para seu Inferno, mas aos soldados dizia que seu sacrifício tinha um sentido, e os elogiava de uma forma que nunca ouviram, e lhes repetia que o sangue dos mártires clamava por mais sangue, e que só pelo sangue a Grande Itália se veria redimida. [5]

Uma apologética da matança que resulta, vista cem anos depois, difícil de digerir. Acreditavam nisso?

Não é essa a questão. E parece insuficiente se conformar aqui com uma leitura "não-anacrônica", ou se limitar a assinalar que "essa era a linguagem da época". Talvez seria mais indicado proceder a uma inversão de perspectiva. Ou a uma leitura diferente, em chave supra-humanista.

A Guerra como Experiência Interior

A reputação que D'Annunzio adquiriu durante a guerra se deve mais a seus feitos que a suas palavras. Longe de ser um "soldado de papel", não desperdiçou ocasião de pôr sua vida em perigo, e ao longo de três anos chegou a combater por terra, mar e ar. Com um talento precursor para a publicidade, sabia que os pequenos atos de terrorismo tinham mais força psicológica que os ataques massivos, e se especializou em ações suicidas, aéreas e navais segundo os cânones futuristas, com valor simbólico e impacto midiático. Voou em inúmeras ocasiões sobre os Alpes, em uma época na qual isso era algo extraordinário, para bombardear o inimigo, ocasionalmente com folhas de propaganda. E quando os austríacos puseram preço em sua cabeça, liderou uma incursão suicida, em um torpedeiro com um punhado de homens, contra o porto inimigo de Buccari. [6] Em uma de suas missões aéreas perdiu a visão de um olho e parcialmente a do outro, o que ocultou durante um mês para seguir voando. Finalmente teve que permanecer vários meses imobilizado para salvar a vista.

Suspenso de costas e entre dores e pesadelos compôs seu poema "Notturno". A perspectiva da cegueira era para ele ocasião de superação, mais que de abatimento. Se confessava feliz na grandeza de sua perda, os cegos em ação eram considerados como a aristocracia dos feridos, e se recreava na agudização de seus sentidos da audição e do olfato. Se crermos nele, essa sensação de felicidade nunca o abandonaria ao longo de toda a guerra. [7]

O verdadeiro D'Annunzio se revela, mais que em suas trompeterias patrióticas, em sua correspondência e em seus diários. Neles, transparece sua atitude supra-humanista frente à guerra. Se algo chama a atenção em suas anotações é a "flutuação constante entre o espantoso e o pastoral". Tudo se faz para ele objeto de celebração, até os detalhes mais mínimos: desde as explosões e os ataques a baioneta até o brilho de uma libélula no barro ou a aparição fugaz de um pica-pau entre as árvores calcinadas. Se crermos nele, D'Annunzio foi feliz em meio a fome, sede, frio extremo, feridas e bombardeios, porque seu entusiasmo onívoro pela vida podia com tudo isso, porque tudo isso não era senão uma só coisa: a manifestação dessa vida que ele consumia com um entusiasmo voluptuoso. O que era a guerra, além de um furo na vida ordinária através do qual se manifestava algo mais elevado?...: "a vida tal e como deve ser, e que passa diante de nós, a Vida - nas palavras de Ernst Jünger - como esforço supremo, vontade de combater e dominar". [8]

O paralelismo entre D'Annunzio e Jünger não é casual, ambos manifestam uma comum atitude supra-humanista. A mesma avidez de experiências, o mesmo desafio ao azar, a mesma preocupação estética, a mesma ausência de moralismo. Contrasta no caso do prussiano, à parte a objetividade afiada de seu estilo, a ausência prática de qualquer nota patriótica. Mas cabe também pensar que em D'Annunzio a prosopopeia nacionalista não era o grão, mas a palha. Uma arma de guerra como outras muitas. Cabe pensar que o essencial para ele era essa disciplina do sofrimento da qual falava Nietzsche, esse Amor fati que não é senão um grande SIM à vida em toda sua crueza.

Mais que de exaltação belicista se trata de uma opção filosófica, muito distinta da postura moralizante e lastimosa de outros escritores. Quando Wilfred Owen, Erich Maria Remarque ou Ernest Hemignway denuncia e condenam a guerra, indubitavelmente tem razão, mas não por isso deixam de sublinhar uma obviedade. Ocorre que eles vivem a guerra a partir da sensibilidade horrorizada do homem moderno. Mas quando Ernst Jünger escreve: "aqueles que unicamente sentiram e conservaram a amargura de seu próprio sofrimento, em lugar de reconhecer nela [a guerra] o signo de uma alta afirmação, esses viveram como escravos, não tiveram Vida Interior, mas somente uma existência pura e tristemente material", o que faz é expressar essa sensibilidade imemorial que considera que o espírito é tudo. "Tudo é vaidade neste mundo - continua Jünger - somente a emoção é eterna. Só a muitos poucos homens é dado poder se fundir em sua sublime inutilidade". Amor fati. A linguagem "moral" não tem nada que fazer aqui. Não por acaso esta é a linguagem da Ilíada.

Outro elemento interessante é o uso que D'Annunzio faz do tempo histórico. A dicotomia novo/velho, um tema recorrente em seu pensamento, alcançaria expressão plena em suas anotações bélicas. Sempre à caça de analogias históricas, "cada soldado de infantaria lhe recordava algum episódio do glorioso passado, cada camponês esgotado a um intrépido marinheiro veneziano, a um legionário romano, a um cavaleiro medieval, a algum santo marcial recriado em um quadro renascentista. Sua visão do passado glorioso da Itália recobria o horrível conflito com um véu teatral e rodeava de glamour aos excrementos, ao lixo e às montanhas de mortos". [9] Para o poeta de Pescara o armamento podia ser moderno, mas os homens que o manejavam, os jovens recrutas que assemelhava herois míticos ou arquétipos, pertenciam a uma tradição atemporal.

Essa confusão do passado e do presente ilustra a sua maneira um elemento que Giorgio Locchi associava à mentalidade supra-humanista: a concepção "não-linear" do tempo, a presença constante do passado como uma dimensão que está dentro do presente junto à dimensão do futuro. É a ideia revolucionária, frente às concepções lineares, sejam "progressistas" ou "cíclicas", da tridimensionalidade do tempo histórico: em cada consciência humana "o passado não é outra coisa que o projeto ao qual o homem conforma sua ação histórica, projeto que trata de realizar em função da imagem que se forma de si mesmo e que se esforça por encarnar. O passado aparece, então, não como algo morto, mas como uma prefiguração do porvir".[10]

Locchi associava essa "nostalgia do porvir" à imagem "esférica" do tempo esboçada em Assim Falou Zaratustra, assim como a um dos significados canalizados pelo mitema nietzscheano do Eterno Retorno. Confusão do passado e do porvir, nostalgia das origens e utopia do futuro: a concepção supra-humanista do tempo, sentida de forma seguramente inconsciente por D'Annunzio e muitos outros, põe em primeiro plano a liberdade do homem frente a todo determinismo, porque o passado ao qual se deve religar é sempre objeto de escolha no presente, assim como objeto de interpretação mutante. O momento presente "nunca é um ponto, mas sim uma encruzilhada: cada instante presente atualiza a totalidade do passado e potencializa a totalidade do futuro". [11] De maneira que o passado nunca é um dado inerte, e quando se manifesta no futuro o faz de forma sempre nova, sempre desconhecida.

Assinala Hughes-Hallett que "a guerra trouxe a D'Annunzio a paz". Havia encontrado ma transcendental "terceira dimensão" do ser, mais além da vida e da morte. Partir em missão perigosa era para ele alcançar um êxtase comparável ao dos grandes místicos. A guera lhe trouxe "aventura, propósito, uma coorte de bravos e jovens camaradas aos quais amar com um amor mais além do qe se dedica às mulheres, uma forma de fama, nova e viril, e a intoxicação de viver em perigo mortal constante". [12]

Acabou a guerra reconhecido como um heroi e coberto e condecorações. E então ele e muitos como ele, aqueles recrutas aos quais comparava com os herois míticos do passado, deviam voltar a suas casas, a suas oficinas, a seus matrimônios de conveniência, à monotonia de suas aldeias...

Começava a nascer o fascismo.

Adeus às Armas?

A revolução vitoriosa chegará. Mas não a
farão as almas belas, como a sua, a
farão os sargentos e os poetas - Margarita Sarfatti, no filme O jovem Mussolini, 1993

Quando em 23 de março de 1919 um aglomerado de futuristas, de ex-arditi (tropas de assalto do exército italiano), de sindicalistas revolucionários e de antigos socialistas fundava na praça do Santo Sepulcro em Milão o primeiro Fasci di Combattimento, ninguém sabia em realidade o que resultaria de tudo aquilo. Sua cabeça visível era o ex-sargento Benito Mussolini, um político manobrista e possibilista recém-expulso do Partido Socialista Italiano. Mussolini afirmava que os fascistas evitariam o dogmatismo ideológico: "nos permitimos o luxo de sermos aristocráticos e democráticos, conservadores e progressistas, reacionários e revolucionários, de aceitar a lei e de ir mais além dela". E acrescentava que "antes de tudo somos partidários da liberdade. Queremos a liberdade para todos, até para nossos inimigos". [13] O primeiro programa fascista, visivelmente inclinado à esquerda, recolhia a herança intelectual do sindicalismo revolucionário.

Visto em perspectiva não cabe dúvida hoje de que o fascismo histórico foi um fenômeno ideológico completo. Mas em seus inícios parecia o fruto de um grande improviso. Mussolini proclamava então: o fascismo é a ação e nasce de uma necessidade de ação. Em primeiro lugar, reunia muitas das aspirações urgentes da "geração perdida" que havia feito a guerra, e que considerava que o estado da Itália, um país pobre e atrasado, com desigualdades crônicas, sem comberturas sociais, com uma vitória "mutilada" pelos aliados e à beira da guerra civil, tornava impensável uma volta à era dos partidos burgueses e a suas danças eleitorais. Mas em um sentido mais profundo, tal e como assinala o historiador Zeev Sternhell, antes de se converter em força política o fascismo foi um fenômeno cultural, uma manifestação extrema, ainda que não a única possível, de um fenômeno muito mais amplo. [14]

O antecedente intelectual mais imediato do fascismo era a revisão do marxismo realizada pelo sindicalismo revolucionário, uma revisão em um sentido antimaterialista. O que estes hereges do marxismo recusavam da doutrina era sua pretensão científica, sua infravaloração dos fatores psicológicos e nacionais, sua visão do socialismo como uma mera forma racional de uma organização econômica. Outra de suas motivações era o desencanto diante do valor do proletariado como força revolucionária: os proletários eram normalmente refratários a tudo que não afetasse seus interesses materiais, ou seja a sua aspiração a se converterem em pequenos burgueses. Algo que os primeiros fascistas constataram, assim como também constataram que, entre o socialismo e o proletariado, a relação era meramente circunstancial. Do que se deduzia que a revolução não era já questão de uma única classe social (...), o que por sua vez quebrava o dogma da luta de classes. A revolução passaria a ser, assim, uma tarefa nacional, e o nacionalismo seu fio condutor". [15]

Mas que revolução? Uma revolução de motivos puramente econômicos resultava insuficiente para a cultura política que se estava gestando: uma cultura política comunitária, anti-individualista e anti-racionalista e que aspirava a remediar a desagregação social ocasionada pela modernidade. De fato, na economia, o fascismo se manfiestava como possibilista e declarava querer aproveitar o melhor do capitalismo e do progresso industrial, sendo o essencial que a esfera econômica ficasse sempre subordinada à política. A questão subjacente era outra.

O essencial, seguindo Zeev Sternhell, era "instaurar uma civilização heroica sobre as ruínas de uma civilização rasteiramente materialista, moldar um homem novo, ativista e dinâmico". O fascismo oridinário exibia um caráter moderno e sua estética futurista ferroava a imaginação dos intelectuais, o que explica a atração que exercia sobre a juventude, assim como pregava que uma elite não é uma categoria definida pelo lugar que ocupa no processo de produção, mas a expressão de um estado de ânimo: a aristocracia forjada nas trincheiras era uma prova disso. [16] E do marxismo tomava a ideia da violência como instrumento de mudança. Alguém definiu uma vez o fascismo como nosso mal do século: uma expressão que evoca uma aspiração à superação do mundo burguês. Mais que um corpo dotrinário o fascismo original era uma nebulosa, uma força rupturista de caráter inédito que aspirava à construção de uma "solução de mudança total".

O que ocorria, seja dito em termos locchianos, é que o princípio supra-humanista estava passando, de forma acelerada, de sua fase mítica a sua fase ideológica e política. [17] No plano ideológico a chamada Revolução Conservadora alemã era uma de suas manifestações. E no plano político o fascismo de Mussolini foi o broto que fez fortuna. Mas não o único.

É aqui que entra D'Annunzio.

A Rota rumo ao Rubicão

No início de 1919, Mussolini era apenas um líder político em processo de amadurecimento, enquanto que D'Annunzio era o homem mais célebre da Itália. Finalizada a guerra com uma "vitória mutilada", os aliados ignoraram as promessas territoriais feitas à Itália, o país se afundou em uma espiral de caos político e social. E então muitos dos que esperavam que um "homem forte" tomasse as rédeas começaram a olhar para D'Annunzio. De sua parte, o poeta-soldado descobria o difícil que lhe resultava viver sem a guerra, e assim como muitos outros italianos ruminava sua amargura pela traição dos aliados.

"Vossa vitória não será mutilada", escreveu D'Annunzio em outubro de 1918. Um slogan que fez sucesso (como tantos outros que cunhou) e que era música nos ouvidos de todos que esperavam um novo chamado às armas. A Itália transbordava de homens acostumados à violência e que, ao invés de receber uma saudação como herois, eram tratados como hóspedes indesejáveis quando não como feras selvagens, destinados ao desemprego e aos insultos dos agitadores de uma revolução bolchevique que amadurecia. Entre esses homens destacavam-se os arditi, os soldados de elite, ferozmente indisciplinados, acostumados à luta corpo a corpo e com adagas e granadas, ataviados com uniformes negros e com jubas às vezes tão grandes quanto crinas de cavalo, os dândis da guerra. [1] Sua bandeira era negra e seu hino a Giovinezza. Todos olhavam para D'Annunzio como símbolo, e alguns deles começaram a se denominar dannunzianos. Um heroi de guerra e um exército de volta ao lar: uma conjunção fatídica para qualquer governo civil. As autoridades começaram a temer D'Annunzio. O Rubicão nunca havia sido verdadeiramente esquecido na Itália.

O poeta-soldado começou a multiplicar suas aparições públicas, a escarnecer do governo que havia aceito a humilhação de Versalhes, a incitar os italianos a rechaçar as autoridades. Em muito pouco tempo se viu no centro de todas as conspirações, e todos os grupos de oposição começaram a utilizar seu nome. Com os fascistas manteve distância. D'Annunzio os considerava como "vulgares imitadores, potencialmente úteis, mas lamentavelmente brutos e primários em sua forma de pensar". [2] E entre todos os que voltavam seu olhar para D'Annunzio se destacavam as comunidades italianas na costa do Adriático que esperavam ser "redimidas" mediante sua incorporação à pátria mãe. D'Annunzio, de sua parte, prometeu que estaria com eles "até o fim".

A cidade de Fiume, porto principal do Adriático, contava com uma maioria de população italiana que em outubro de 1918 reclamou sua incorporação à Itália. [3] Mas os aliados reunidos em Versalhes situaram a cidade sob uma administração internacional. A cidade se converteu, então e, um símbolo para todos os nacionalistas italianos, e grupos de ex-arditi, ao grito de "Fiume ou morte", começaram a formar a "Legião de Fiume" dispostos a "libertar" a cidade. E em meio a uma espiral de violência, os italianos de Fiume ofereceram a D'Annunzio a liderança da cidade.

O poeta-soldado havia encontrado seu Rubicão. E sua nova encarnação: a de condottiero.

Fiume era uma Festa

"O contágio da grandeza é o maior
perigo para qualquer um que viva em Fiume,
uma loucura contagiosa, que impregnou
a todo mundo". - o bispo de Fiume, em uma entrevista

Quando em 11 de setembro de 1919, D'Annunzio chegou a Fiume em um Fiat 501, seguramente não sabia que dava início a um dos experimentos mais extravagantes da história política do Ocidente: o sonho platônico do príncipe-poeta ganhava vida com dois milênios de atraso. Um vendaval de libertação dionisíaca se desencadeou sobre a cidade adriática, uma farra nietzscheana na qual davam as mãos a política e o misticismo, a utopia e a violência, a revolução e Dadá. A era da política-espetáculo havia começado, e D'Annunzio levantava a cortina.

A época de Fiume foi descrita como um microcosmo do mundo político moderno: tudo se prefigurou ali, tudo se experimentou ali, todos somos em grande parte os herdeiros. Um momento mágico, uma bacanal de sonhadores, uma sinfonia supra-humanista e heroica na qual uma sociedade faminta de maravilhas, galvanizada pela guerra, cansada da insipidez de um século de positivismo, se encontrava com um líder a sua altura e secundava, a ritmo de desfiles multicoloridos e multidões enfervorizadas, suas quimeras de César visionário.

A trajetória política da cidade durante esses dezesseis meses foi, como não podia deixar de ser, errática. O primeiro programa, a anexação à Itália, era simples e realistas, mas naufragou em pélago de indecisões e puritanismos diplomáticos. O segundo programa era de caráter subversivo: provocar a fagulha que desencadeasse uma revolução na Itália. Mas havia um terceiro programa, incontrolável e radical: Fiume como primeiro passo, não para uma Grande Itália, mas para uma nova ordem mundial.

Um programa que ganhava força a medida que se dissipava, pela pressão dos aliados e pela indecisão do governo italiano, a perspectiva da incorporação à Itália. Impulsionada pelos revolucionários sindicalistas que rodeavam D'Annunzio, a "Constituição de Fiume" (a Carta del Carnaro) é o aspecto mais interessante do legado de Fiume, pelo que aporta de contribuição original à teoria política. [4] A Carta del Carnaro continha elementos pioneiros: a limitação do (até então sacrossanto) direito à propriedade privada, a completa igualdade das mulheres, o laicismo na escola, a liberdade absoluta de culto, um sistema completo de seguridade social, medidas de democracia direta, um mecanismo de renovação contínua da liderança e um sistema de corporações ou representação por seções da comunidade: uma ideia que faria fortuna. Segundo seu biógrafo Michael A. Leeden, o governo de D'Annunzio, composto por elementos muito heterogêneos, foi um dos primeiros a praticar um tipo de "política do consenso" segundo a ideia de que os diversos interesses em conflito podiam ser "sublimados" dentro de um movimento de novo cunho. O essencial era que a nova ordem estivesse baseada nas qualidades pessoais do heroísmo e do gênio, mais que nos critérios tradicionais de riqueza, herança e poder. O objetivo final, basicamente supra-humanista, não era outro senão a forja de um novo tipo de homem.

A Carta del Carnaro continha toques surrealistas como designar à "Música" como princípio fundamental do Estado. Mas o mais original, o mais especificamente dannunziano, era a inclusão de "um elaborado sistema de celebração de missas e rituais, designados para garantir um alto nível de consciência política e de entusiasmo entre os cidadãos". [5] Em Fiume, D'Annunzio, agora denominado "o Comandante", começou a experimentar com um novo meio, criando "obras de arte nas quais os materiais eram colunas de homens, chuvas de flores, fogos artificiais, música eletrizante, um gênero que posteriormente seria desenvolvido e reelaborado durante duas décadas em Roma, Moscou e Berlim". [6] O comandante inaugurou uma nova forma de liderança baseada na comunicação direta entre o líder e as massas, uma espécie de plebiscito quotidiano no qual as multidões, congregadas diante de sua varanda, respondiam a suas perguntas e secundavam suas invectivas. Todo o ritual do fascismo já estava ali: os uniformes, os estandartes, o culto aos mártires, os desfiles de tochas, as camisas negras, a glorificação da virilidade e da juventude, a comunhão entre o líder e o povo, a saudação com braço ao alto, o grito de guerra: Eia Eia Alalá! [7] Assinala Hughes-Hallett que D'Annunzio nunca foi fascista, mas que o fascismo foi inequivocamente dannunziano. Alguém escreveu que, sob o fascismo, D'Annunzio foi a vítima do maior plágio da história.

Outro elemento pioneiro foi a criação de uma Liga de Nações anti-imperialistas: a "Liga de Fiume", projeto de aliança de todas as nações oprimidas que desenvolvia o conceito de revolução mundial e de "nação proletária" teorizado por Michels, e que aspirava a reunir desde o Sinn Fein irlandês até os nacionalistas árabes e indianos. Algém quis ver o Comandante como um profeta do terceiro-mundismo, se bem seria mais correto ver aqui "a primeira aparição da temática dos direitos dos povos". [8] As potências aliadas começaram a se alarmar. A empreitada de Fiume perdia seu caráter nacionalista e acentuava seu conteúdo revolucionário...

Fazei Amor e fazei Guerra!

"Giovinezza, Giovinezza, Primavera di 
Bellezza!..." - Canção dos Arditi

Um Estado regido por um poeta e com a criatividade convertida em obrigação cívica: não era estranho que a vida cultural adquirisse um viés anticonvencional. [9] A Constituição estava sob a guarda da "Décima Musa", a Musa, segundo D'Annunzio, "das comunidades emergentes e dos povos em gênese (...), a Musa da Energia", que no novo século deveria conduzir a imaginação ao poder. Fazer da vida uma obra de arte. No Fiume de 1919, a vida pública se converteu em uma performance de 24 horas em que "a política se fazia poesia e a poesia sensualidade, e na qual uma reunião política podia terminar em um baile e um baile em uma orgia. Ser jovem e ser apaixonado era uma obrigação". [10] Entre a população local e os recém-chegados se propagou uma atmosfera de liberdade sexual e de amor livre, incomum para a época. Começava a revolução sexual. Assim o queria o novo "Príncipe da Juventude", caolho e de cinquenta e seis anos.

Não é de estranhar que a cidade se convertera em um pólo magnético para toda a confraria de idealistas, rebeldes e românticos que pululava pelo mundo. Uma Cocanha na qual se acotovelavam protofascistas e revolucionários internacionalistas sem que a ninguém ocorresse algo tão vulgar quanto "entrar em diálogo". Um laboratório contracultural no qual brotavam grupos heterogêneos como o "Yoga" (inspirado pelo hinduísmo e pelo Bhagavad Gita), os "Lótus Castanhos" (proto-hippies partidários de um retorno à natureza), os "Lótus Vermelhos" (defensores do sexo dionisíaco), ecologistas, nudistas, dadaístas e outros espécimes de variada índole. O componente psicodélico estava assegurado por uma generosa circulação de drogas sob o olhar tolerante do Comandante, consumidor mais ou menos ocasional do pó branco. [11] Os anos 60 começaram em Fiume. Mas diferentemente dos hippies californianos, os hippies do Comandante estavam dispostos não só a fazer o amor, mas também a fazer a guerra.

Enquanto isso Roma olhava para Fiume com uma mistura de consternação e pavor. Nas palavras dos socialistas italianos, "Fiume estava sendo transformada em um bordel, refúgio de criminosos e prostitutas". O certo é que todo mundo ia para Fiume: soldados, aventureiros, revolucionários, intelectuais, espiões aliados, artistas cosmopolitas, poetas neopagãos, boêmios com a a cabeça nas nuvens, o futurista Marinetti, o inventor Marconi, o diretor de orquestra Toscanini...

Proliferavam a eloquência e o dandismo, a personalidade do Comandante era contagiosa. Condecorações, uniformes, títulos, hinos e cerimônias para todos! O estilo ornamental era de rigor. E por sua vez os novos visitantes se iam fazendo cada vez mais marginais: menores fugitivos, desertores, criminosos e outras pessoas com assuntos a tratar com a justiça... Muitos desses elementos foram recrutados para formar a guarda do Comandante: a "Legião Disperata", de uniformes esplendorosos. D'Annunzio observava seus arditi comendo cordeiro nas praias, em seus fantásticos uniformes resplandecentes à luz das fogueiras, e os comparava a Aquiles e seus mirmidões de volta a seu acampamento frente a Troia. É essa mistura eletrizante de arcaísmo e futurismo, tão própria da sensibilidade supra-humanista. Soava tão antigo, e não obstante era tão novo...

Pressionado por seus compromissos internacionais, o governo de Roma decretou um bloqueio contra Fiume, e a cidade encontrou um método para assegurar sua subsistência: a pirataria. Organizados por um antigo ás da aviação italiana, Guido Keller, os barcos de Fiume passaram a se apossar de qualquer buque que transitasse entre o estreito de Messina e Veneza. E cada captura realizada pelos uscocchi, assim chamados por D'Annunzio em honra aos piratas adriáticos do XVI, era recebida na cidade como uma festa. As atividades ilícitas se ampliaram ao sequestro, um comando de Fiume capturou um general italiano que passava por Trieste, e às expedições para tomar provisões em territórios vizinhos. Também às ocupações simbólicas de outras cidades próximas. O Comandante mandou bordar seu lema Me Ne Frego (algo como: "Não dou a mínima") em uma bandeira que pendurou sobre sua cama. [12] Fiume era um Estado fora-da-lei, o que hoje chamaríamos um Estado ilegal. Assinala sua biógrafa que D'Annunzio, como um novo Peter Pan, havia constrído uma "Terra do Nunca, um espaço liberado das relações causa-efeito onde os garotos perdidos poderiam desfrutar para sempre de suas perigosas aventuras sem se sentirem incomodados pelo senso comum". [13]

Mas o problema da infância é que ela acaba, e chega a hora dos adultos. O Tratado de Rapallo, assinado em novembro de 1920, estabelecia as fronteiras ítalo-iugoslavas e chegava a um compromisso sobre Fiume. D'Annunzio ficou isolado, e até os fascistas de Mussolini retiraram seu apoio. Após uma intervenção da Marinha italiana e da resistência de um punhado de arditi, que findou com várias dezenas de mortos, D'Annunzio foi obrigado a abandonar Fiume ao fim de dezembro de 1920. Em uma cerimônia de despedida seu último grito foi: Viva o amor!

O poeta havia concluído sua revolução. Chegava a vez do ex-sargento.

O Fascismo sem D'Annunzio

Passados os anos, um Mussolini já no poder celebraria Gabriele D'Annunzio como o "João Batista do fascismo". Convertido em lenda, o poeta passaria suas últimas duas décadas recolhido em sua mansão do Vittoriale nas margens do lado de Garda, onde Mussolini o visitava ocasionalmente para encontrar-se com ele.

Hoje se considera D'Annunzio como um personagem do Regime, mas o certo é que nunca foi membro do Partido Fascista e suas relações com o Duce foram muito mais ambivalentes do que se pensa. Em privado, Mussolini se referia a D'Annunzio como a "uma cárie, que se tem que arrancar ou cobrir com ouro", e se referia também ao "fiumismo mal entendido" como sinônimo de atitude anarquizante e de pouca confiança. Em realidade, ambos personagens se observavam com mútua suspeita: Mussolini considerava que D'Annunzio era muito influente e imprevisível, e este se abstinha de prestar apoio expresso ao Duce. Em realidade, o poeta havia recomendado a seus arditi que se mantivessem à margem de qualquer formação política, ainda que muitos acabassem no fascismo e alguns na extrema esquerda, inclusive na Espanha nas Brigadas Internacionais. [14] As únicas ocasiões em que D'Annunzio tratou de influenciar politicamente Mussolini foram para lhe aconselhar a que se mantivesse longe de Hitler ("esse palhaço feroz", "esse rosto engomado e pouco nobre").

O poeta-soldado faleceu em 1938 em sua mansão do Vittoriale, em uma atmosfera tão barroca quanto claustrofóbica, rodeado de espiões italianos e alemães. Com sua morte desapareceu toda uma época: a dos albores desse fascismo que não pode ser. O fascismo real recolheu a encenação e a liturgia de Fiume, mas as esvaziou de liberdade e as transformou em uma coreografia burocratizada a serviço de um projeto que levou a Itália à catástrofe. A história é bem conhecida. Não obstante, é necessário mencionar certas coisas por alto...

Normalmente se passa por alto que esse primeiro fascismo formava parte de um clima cultural vanguardista, sofisticado e plural, muito diferente do provincianismo obtuso que caracterizava os nazistas e sua breguice völkisch. De fato, o pluralismo cultural da Itália fascista, um país onde praticamente não houve qualquer êxodo intelectual, não tem comparação com o dirigismo imposto sobre a cultura na época nazista. Estudiosos como Renzo de Felice ou Julien Freund contrapuseram o caráter otimista e "mediterrâneo" do fascismo, com sua tendência a exaltar a vida dentro de um certo espírito de medida, frente ao caráter sombrio, trágico e catastrófico do nazismo, com sua inclinação germânica ao Ragnarök. [15] Igualmente se poderia destacar o caráter antidogmático, inclusive artístico e boêmio, desse primeiro fascismo, em contraposição às ínfulas "científicas" da dogmática nazista, baseada no racismo biológico e no darwinismo social.

Ao que se há que acrescentar que o primeiro fascismo não tinha qualquer traço de antissemitismo, mas até o contrário: muitos judeus foram fascistas de primeira hora e inclusive tiveram cargos importantes, tais como a publicista Margaritta Sarfati, amante judia do Duce e prima donna da vida cultural do regime. De fato, a política externa do regime manteve contatos frequentes com o movimento sionista. E após a chegada de Hitler ao poder eminentes exilados judeus encontraram acolhida na Itália.

Se passa também por alto que após a "Marcha sobre Roma" em 1922 Mussolini se apresentou perante o Parlamento e obteve um amplo voto de confiança da maioria não-fascista. Se tende a esquecer que a violência das esquadras fascistas, ainda que verdadeira, não era exclusiva do fascismo: essa era a linguagem política em boa parte da Europa. E na Itália foi o fascismo, melhor organizado, o que finalmente se impôs. Se omite também que o fascismo colaborou com os socialistas e com outras forças de oposição, e que ganhou uma maioria de votos nas eleições de 1924. Somente então, após o brutal assassinato do deputado socialista Matteoti e a negativa da oposição de permanecer no Parlamento, os energúmenos do fascismo ganharam a mão e se institucionalizou a ditadura.

Em realidade, 1924 marca o começo do declive. Os anos posteriores são os das grandes realizações do regime: a edificação de um Estado social, as grandes obras públicas e a modernização do país. Logros que conquistaram a adesão de boa parte da população. Mas o fascismo já estava mortalmente ferido. Ao trair aquela promessa de 1919 na Praça do Santo Sepulcro de Milão ("Queremos a liberdade para todos, até para nossos inimigos") o fascismo se transformou em uma burocracia complacente e satisfeita, e Mussolini se foi apartando da realidade para se encerrar em uma megalomania que resultou funesta.

Ainda assim, durante alguns anos o fascismo impulsionou uma política favorecedora da paz e da cooperação internacional, como o provam os Acordos de Latrão em 1929 e as propostas de desarmamento na Sociedade das Nações em 1932. Em relação à Alemanha nazista há algo que também se tende a esquecer: Mussolini foi o impulsionador da chamada "Frente de Stressa", uma iniciativa diplomática que em abril de 1935, junto a França e Grã-Bretanha, tratava de garantir a independência da Áustria e o respeito ao Tratado de Versalhes, e por conseguinte frear Hitler quando todavia era possível fazê-lo. Dois meses depois, em junho de 1935, Grã-Bretanha assinava com a Alemanha nazista um acordo naval que representou a primeira violação desse tratado. Mussolini ficou sozinho.

O isolamento se consumou a partir da invasão da Abissínia e das sanções que foram impostas à Itália, e que levaram Mussolini a uma aliança com Hitler. A partir de então, prisioneiro de uma mistura de temor e fascínio pelo ditador alemão, o Duce se viu arrastado para o abismo. Em 1938 caiu inclusive na abjeção de importar a legislação antissemita do Terceiro Reich.

Teroa sido possível outro rumo, menos ditatorial e mais "dannunziano"? Mussolini, ao contrário de Hitler, nunca teve domínio absoluto sobre o Partido, e dentro do fascismo sempre houve linha contrária aos nazistas e favorável a um entendimento com França e Grã-Bretanha. Sua principal figura era o Ministro da Aviação Ítalo Balbo, heroi de guerra e esquadrista de primeira hora: o autêntico protótipo do "novo homem" exaltado pelo fascismo. Mas um ciumento Mussolini o nomeou Governador da Líbia para apartá-lo dos centros de poder. Ali faleceu em 1940, em um acidente de aviação pouco claro. Os últims restos da oposição fascista foram liquidados em 1944 no processo de Verona, com o ex-ministro de Relações Exteriores Galeazzo Ciano e outros hierarcas executados por insistência dos alemães.

Um Fascismo Democrático?

Há quase cem anos, D'Annunzio e sua aventura em Fiume ainda apresentam interrogações. Há uma especialmente provocadora: poderia ter sido possível um fascismo democrático?

Uma pergunta que só tem o valor que queiramos dar à história-ficção. Porque a história é o que é, e não é possível mudá-la. Falar em "fascismo democrático" é hoje um oxímoro, e isso parece irrebatível. Não obstante, demasiadas vezes nos refugiamos em posturas intelectualmente confortáveis e moralmente irrepreensíveis, e isso dificulta a compreensão de certos fenômenos. Neste caso, o da natureza do fascismo. A interpretação marxista clássica do fascismo como um instrumento defensivo do Capital se condena a não compreender nada, e deixa sem explicação a ampla adesão que obteve um sistema que só foi extirpado pela guerra, uma guerra na qual os marxistas se aliaram com...o capitalismo. Essa interpretação foi superada há tempos, e hoje tende a se admitir que, como assinala Zeev Sternhell, o fascismo era uma manifestação extrema de um fenômeno muito mais amplo, esse que Giorgio Locchi denominava de supra-humanismo, e como tal é parte integral da história da cultura europeia.

D'Annunzio não foi um ideólogo sistemático, mas seu empenho prometeico e nietzscheano simboliza esse clima cultural supra-humanista do qual brotou o fascismo. Fiume foi um momento mágico e necessariamente fugaz: não se pode ser sublime durante vinte anos. Mas Fiume nos recorda que a história poderia ter sido diferente, e que talvez essa rebelião cultural e política, vamos chamá-la de "fascismo", poderia ter sido compatível com um maior respeito pelas liberdades, ou pelo menos evoluir distante das aberrações já conhecidas... Claro que, então, talvez isso não fosse mais fascismo, mas outra coisa...

Se não temos em conta o fenômeno cultural do supra-humanismo, não se pode entender o fascismo. Mas este não foi seu único rebento. Historicamente houve outros dois. O primeiro foi um broto intelectual de grande altura, e que segue falando ao homem de nossos dias: a chamada "revolução conservadora" alemã. E o segundo foi uma planta venenosa: o nazismo. A questão que hoje se poderia apresentar é a de saber se esse humus cultural supra-humanista está definitivamente esgotado, ou se ainda poderia dar lugar a derivações inéditas. Ao fim e ao cabo, e segundo a concepção "esférica" do tempo, a história sempre está aberta, e quando a história se regenera o faz de forma sempre nova, de forma sempre imprevista.

Anarquismo de Direita

"Denunciamos a falta de gosto da representação parlamentar. Nos recriamos na beleza, na elegância, na cortesia e no estilo (...) queremos ser dirigidos por homens milagrosos e fantásticos". - Filippo Tommaso Marinetti

"A arte de mandar consiste em não mandar". - Gabriele D'Annunzio

Mas o interesse de revisitar D'Annunzio vai muito mais além da pergunta sobre a natureza do fascismo. O poeta-soldado prefigura uma forma de fazer política vigente até a atualidade: a política-espetáculo, a fusão de elementos sacros e profanos, a intuição de que em último termo tudo é política. A Carta del Carnaro é um documento visionário na medida em que reune preocupações, liberdades e direitos até então relegados fora do âmbito político, e que durante as décadas seguintes passariam a ser integrados no constitucionalismo moderno. De alguma forma, D'Annunzio parecia possuir a chave de tudo o que viria depois. Todos somos em boa parte seus herdeiros, para o bem e para o mal.

Por isso seria um erro menosprezar D'Annunzio como um esteta diletante metido a revolucionário. Ou despolitizá-lo e considerar, como parece apontar seu perspicaz biógrafo Michael A. Leeden, que o importante de Fiume não é o conteúdo, mas o estilo, e que nenhuma posição ideológica concreta pode se deduzir de Fiume. Pensamos que muito mais acertado esta Carlos Caballero Jurado quando assinala que: "Fiume não era um pedaço de terra. Fiume era um símbolo, um mito, algo que quiçá não possa se entender em nossos dias, em uma época tão refratária ao mito e aos ritos. A empreitada de Fiume tem mais de rebelião cultural do que de anexação política". [16] Que mensagens pode extrair o homem de hoje em dia, não só de Fiume, mas de toda a trajetória de D'Annunzio?

Em primeiro lugar, a ideia de que a única revolução verdadeira é a que busca uma transformação integral do homem. Isto é, a que se apresenta antes de tudo como uma revolução cultural. Algo que os revolucionários de maior de 1968 pareceram entender bem. Mas o que desconheciam é que, em realidade, quase tudo o que propunham já estava inventado. A imaginação já havia chegado ao poder, cinquenta anos antes, na costa do Adriático. A grande surpresa é que o que assim decidiu, e essa é a segunda grande lição de Fiume, não era um progressista utópico, libertário e mundialista, mas um patriota, um elitista praticante de uma ética heroica. Fiume é a demonstração de que ideias como a liberação sexual, a ecologia, a democracia direta, a igualdade entre homens e mulheres, a liberdade de consciência e o espírito de festa podem se apresentar não só desde posições igualitaristas, pacifistas, hedonistas e feministas, mas também desde valores aristocráticos e diferencialistas, identitários e heroicos.

O gesto de D'Annunzio implica ademais algo muito atual: foi o primeiro grito de rebeldia contra um sistema americanomorfo que naqueles anos começava a estender seus tentáculos, é o grito de defesa da beleza e do espírito frente ao reino da vulgaridade e o império do dólar.

O gesto de D'Annunzio foi também a reivindicação, surrealista e heroica, de uma regeneração política baseada na liberação da personalidade humana, e um grito de protesto frente ao mundo de burocratas anônimos que avançava. [17]

Fiume é, ademais, a demonstração de que é sim possível transcender a divisão direita/esquerda, de que a transversalidade é possível. Valores de direita e ideias de esquerda. A primeira síntese genuinamente pós-moderna. Fiume é o único experimento conhecido até a data do que poderia ser um anarquismo de direita levado a suas últimas consequências.

Há uma última questão, e que tem a ver com a atividade de D'Annunzio como pregador e exaltador da guerra. Isso é algo que hoje nos parece indefensável, ainda que não fosse tanto naqueles anos nos quais a guerra ainda podia ser vivida como uma aventura épica. Mas hoje sabemos que por trás daquela retórica inflamada não havia nenhuma causa real que justificasse tanto sacrifício. E ainda assim...

Sem embargo, é possível que aqueles homens de retórica inflamada, no fundo, também soubessem disso. É muito possível que D'Annunzio e outros como ele, por destilação de um niilismo positivo, soubesse que ao final de contas é muito melhor o patriotismo ao Nada, e desde logo temos menos mortos. Mas cabe se perguntar se graças a isso, em comparação com aqueles homens, estamos também mais vivos.

A era dos anos incendiários ficou submersa no tempo. Passou a época na qual sargentos e poetas faziam revoluções. E como se costuma dizer, o tempo devorou os corpos, a história devorou os sonhos e o esquecimento engoliu a história. Também dizem que os velhos guerreiros nunca morrem, que só desaparecem fisicamente. Depois da catástrofe nos fica a lembrança da grandeza, e dos homens que a sonharam.

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[1]Lucy Hughes-Hallett, Gabrielle D’Annunzio. Poet, seducer and preacher of war. Fourth State, edición Kindle, 2013.

[2]Lucy Hughes-Hallett, Obra citada.

[3] Fiume es la actual Rijeka, en Croacia.

[4]Fiume es la actual Rijeka, en Croacia.

[5]Michael A. Ledeen: D Annunzio, The first Duce. Transaction Publishers 2009, pags XIV y XV.
[6]Lucy Hughes-Hallett, Obra citada

[7]¡Eia Eia, Alalá! era, segundo a lenda, o grito com o qual Aquiles chamava seus cavalos. D'Annunzio o cunhou durante la guerra como substituto grecorromano ao ¡hip hip, hurra! anglo-saxão.

[8]Carlos Caballero Jurado: El Comandante y la décima musa. La fascinante historia de D'Annunzio en Fiume.

[9]O Ministerio de Assuntos Exteriores de Fiume era dirigido também por dois poetas: León Kochnitzky e Henry Furst.

[10]Lucy Hughes-Hallett: Obra citada

[11]Nos anos anteriores à guerra a cocaína, cujos autênticos efeitos não eram ainda bem conhecidos, era considerada como un suplemento para a resistência e a corage. Personagens como Shackleton ou Scott a levaram em suas expedições, e tampouco era infrequente entre os pilotos de guerra. (Lucy Hughes-Hallett: Obra citada).

[12]Anos depois Mussolini adotou este lema como expressão do “estilo de vida” fascista.

[13]Lucy Hughes-Hallett: Obra citada.

[14]Muito significativamente o líder nacional-sindicalista e principal redator da Carta del Carnaro, Alceste de Ambris, passou à oposição radical contra o fascismo. Privado da nacionalidade italiana, murreu no exilio na França em 1934.

[15]É curiosa a este respeito a excelente série de televisão da RAI “O jovem Mussolini” (Gian Luigi Calderone, 1993), na qual o futuro Duce (interpretado por Antonio Banderas) aparece retratado, mais que como un futuro ditador sanguinario, como un simpático destrambelhado.

[16]Carlos Caballero Jurado: El Comandante y la décima musa. La fascinante historia de D’Annunzio en Fiume.

[17] “Una Historia de Europa: De D’Annunzio a Van Rompuy”.