Mostrando postagens com marcador Ernesto Milà. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Ernesto Milà. Mostrar todas as postagens

14/08/2025

Ernesto Milà - A Vertente Oculta do Peronismo - Parte III: Os Fios Soltos da Suspeita, os Cavaleiros do Fogo

 por Ernesto Milà

(2010)


 

É fácil identificar as duas vertentes destas notas sobre a Loja Anael e o papel de López Rega. Uma delas diz respeito ao General Juan Domingo Perón, líder e fundador do justicialismo argentino e, certamente, o político mais valorizado e que despertou mais entusiasmo naquele país durante o século XX. A outra está relacionada com López Rega. Ambas referem-se à sua ligação com o ocultismo. As perguntas a formular são, portanto, duas: até que ponto o general Perón, Eva Perón e Isabel Martínez de Perón acreditavam no espiritismo? E quais eram as fontes doutrinais de López Rega?

06/08/2025

Ernesto Milà - A Vertente Oculta do Peronismo - Parte II: As Duas Tríplices A

 por Ernesto Milà

(2010)


 

Geralmente, pensa-se que a chamada Tríplice A era a sigla da "Aliança Anticomunista Argentina" e que havia surgido nos esgotos do Ministério do Bem-Estar Social, dirigido por José López Rega, em uma tentativa de acabar com as chamadas "organizações armadas" da esquerda peronista. Isso é inquestionavelmente verdade. Havia uma "Tríplice A" encarregada de eliminar fisicamente os ativistas mais destacados da esquerda. Também é verdade que, na confusão da época, alguns aproveitaram para liquidar seus inimigos pessoais (tanto da esquerda quanto da direita). Hoje, ninguém duvida que a Tríplice A foi impulsionada por López Rega quando Isabel Martínez de Perón, elevada à presidência da nação devido à morte do general, assinou o decreto 2772 que autorizava "Executar as operações militares e de segurança que sejam necessárias para aniquilar a ação dos elementos subversivos em todo o território do país". Era o início da "guerra sucia". A esse decreto seguiu-se uma onda de violência generalizada que não conseguiu acabar com a violência, mas apenas eliminar alguns ativistas muito destacados e demasiadamente ingênuos para serem capturados. Em março de 1976, a repressão contra a guerrilha esquerdista adquiriria um caráter sistemático e científico, após o pronunciamento militar. Nove meses depois, o então Chefe do Estado-Maior do Exército, General Roberto Viola (que mais tarde substituiria o General Videla na presidência de facto), divulgou uma diretiva secreta de luta contra a subversão na qual ordenava "aplicar o poder de combate com a máxima violência para aniquilar os delinquentes subversivos onde quer que sejam encontrados. ... o delinquente subversivo que empunhar armas deve ser aniquilado, pois quando as Forças Armadas entram em operações, não devem interromper o combate nem aceitar rendição".

03/08/2025

Ernesto Milà - A Vertente Ocultista do Peronismo - Parte I: A Loja Anael

 por Ernesto Milà

(2010)


 

O pequeno estudo que dedicamos ao "cosmismo" despertou nossa curiosidade para trabalhar em outro tema pouco estudado, mas que frequentemente surgiu nos bastidores. Referimo-nos à Loja Anael, à qual pertenceram alguns destacados líderes peronistas, e às conexões dessa loja com sua homóloga italiana, a Loja Propaganda 2. Perón foi iniciado por Licio Gelli na Loja P-2, e este contou com o apoio de López Rega e da Loja Anael para estabelecer bases na Argentina. Se a isso acrescentarmos que a Loja Anael já mencionava a Tríplice A em alguns de seus escritos mais de vinte anos antes do início da repressão contra os grupos terroristas argentinos, liderada por López Rega à frente do Ministério do Bem-Estar Social, e que ele soube mexer com a consciência da antiga espiritista que foi Isabel Martínez de Perón, teremos um quadro extremamente rico em nuances ocultistas que permeou os últimos anos de vida do general.

Na medida do possível, tentaremos fornecer a origem das fontes utilizadas para o estudo, que demonstra que, com demasiada frequência, o pior do ocultismo interfere na política, gerando as piores políticas possíveis.

19/03/2013

Ernesto Milà - A Formação da Mentalidade Americana

por Ernesto Milà



Foi assim como, pouco a pouco, cobrou forma o que hoje se conhece como "american way of life", o estilo de vida americano. A "Terra Prometida" só se podia alcançar através do sofrimento e do trabalho. Persistir nessa linha levaria gradualmente a um progresso indefinido cuja meta lógica era a reconstrução do Paraíso original.

Quando os impulsos religiosos iniciais se atenuaram, persistiu a idéia laica de progresso indefinido e de trabalho. O enraizamento do calvinismo nos EUA foi imediato; para essa doutrina a fortuna e o êxito constituíam o signo inequívoco com o que a divindade marcava aos escolhidos. O justo era o multimilionário, o homem de êxito, e o pária, em sua miséria aparecia como culpável contra a lei de Deus.

Tais conceitos não podiam senão terminar por fazer dos colonos algo radicalmente diferente à Metrópole. O problema teológico consistiu em explicar como o mal havia aparecido no Novo Mundo, considerado reedição do Paraíso, e inclusive como o próprio Paraíso. A explicação, de um maniqueísmo exasperante, relacionava a entrada do mal na América com a presença de colonos católicos, franceses e espanhóis, fundamentalmente. Eram eles que haviam armado os indígenas e lhes haviam incrustado seus maus hábitos. Eram eles que haviam trazido o Anticristo para a América. Os "pais peregrinos" deviam alçar um muro contra a maldade: deviam terminar a história e começar algo novo.

É desde esse ponto de vista que se pode entender a inclusão do adjetivo "Novo" em boa parte de suas fundações: "Nova Iorque", "Nova Inglaterra", "Novo Porto", "Nova Escócia", etc. Isso não era senão a traslação de um impulso interior bem arraigado na mentalidade dos colonos: se tratava de renovar o mundo.

Logo, quando cedeu o impulso religioso originário, ao se secularizar o ideal escatológico, tomaram forma as concepções de progresso indefinido e o culto à juventude. O slogan psicológico associado à sociedade americana desse século é "o país onde qualquer um pode chegar a Presidente". Por acaso Harry S. Truman não era um vendedor de camisas? E Clinton? Não é um filho de honestos burgueses médios?

Como vemos, um dos motores organizativos do americanismo foi a maçonaria, instituições que se viu também influenciada por este espírito. Ali cobraram forma lendas maçônicas especificamente americanas que destilavam idêntico espírito messiânico e regenerador do mundo. Uma delas - todavia em uso nas lojas americanas - afirma que um grupo de cavaleiros templários conseguiu alcançar as costas americanas depois da perseguição de Felipe o Belo. Levaram ali tesouros, relíquias e ritos que passariam à maçonaria local. Se chega a afirmar que os templários levaram o Graal ao Novo Mundo. Os índios não compartilhavam dessa versão...

Do Bom Selvagem e o Homem Natural

O choque com os índios foi imediato: desde os primeiros momentos da colonização existiram enfrentamentos com os "pagãos". Os índios, bem enraizados em sua concepção do mundo, não estavam dispostos a abraçar o puritanismo; seus princípios religiosos estavam fortemente enraizados em sua vida social, a conversão não teria representado só abraçar uma nova fé, mas renunciar à totalidade de seu estilo de vida.

Em 1624, Thomas Morton, advogado inglês, um dos fundadores de Massachusetts, vendia já armas para os nativos em nome do velho paganismo. Em 1629 os puritanos o prenderam depois de ter organizado uma festa do "mastro de maio", equivalente aos ritos pagãos de consagração da Árvore da Vida. Os frequentadores da festa levavam chifres de cervo e praticaram ritos orgiásticos. Queimada sua casa e preso, foi deportado para a Inglaterra; regressou em 1643 à América e preso de novo, morreu em 1647.

Thomas Morton nos põe na senda de um novo elemento que aparece em alguns coletivos da sociedade americana das origens: restos deformados de paganismo europeu, provavelmente cultos telúricos e gineocráticos que, sobreviventes durante a Idade Média, foram assimilados a ritos satânicos no velho continente. Clandestinos e ocultos na Europa, puderam se expressar com uma maior liberdade e confiança no Novo Mundo.

Os pontos de vista de Morton não variam em relação aos que deram vida aos EUA: para Morton se tratava também de recuperar em terra americana a pureza das origens. A América era a pátria do "bom selvagem" ou se se quer do "homem natural".

Apesar das atividades de Morton em favor dos índios, os quais considerava "bons selvagens", estes tiveram nos puritanos, tendência dominante da sociedade americana, a seus inimigos mais impiedosos. Os puritanos não podiam admitir que os "bons selvagens", não só desconheciam a mensagem de Cristo, senão que ademais eram impermeáveis a sua pregação.

Desde princípios do século XVII, paralela à colonização, os índios resultaram dizimados; porém não foi assim em todo o território. Só no Norte e Noroeste. É curioso constatar que durante a guerra civil, as tribos indígenas mais combativas constituíram unidades regulares de cavalaria que lutaram junto aos Confederados do sul entre os quais o puritanismo estava quase completamente ausente. Índios cherokees, seminoles, choctaws, creeks, não só aportaram seu sangue e seu valor à Confederação, senão que foram as últimas tropas confederadas a se renderem. Se sabe que as duas brigadas de cavalaria ligeira, comandadas pelo chefe cherokee Stan Watie, depuseram as armas dois meses depois que se rendeu o General Lee.

Os puritanos quiseram se adaptar ao esquema que havia criado seu fanatismo religioso: eles e não outros eram os "homens naturais", os "bons selvagens". Se rendia culto à simplicidade e se tinha à inteligência como um traço diabólico: "Quanto mais se cultiva a inteligência, mais se trabalha para Satã" expressou John Cotton. Ali onde existia um granjeiro puritano vivendo nas planícies, ali havia um homem justo. As cidades eram anatemizadas como focos de corrupção das quais os portos do velho continente eram sua visão mais extrema e decadente.

Essa concepção constitui uma das origens do antagonismo entre os Estados do Norte e do Sul que desembocaram, primeiro na guerra de independência e logo na guerra de secessão. Os colonos puritanos pensaram primeiro que a condição sine qua non para o advento do "milênio" era o retorno à pureza do cristianismo primitivo, que chocava com as forças demoníacas procedentes da Europa, com seus "cavalheiros" ociosos e viciosos, urbanos, em definitiva; se tinha à prática religiosa inglesa como o culto do anticristo.

Mircea Eliade reconhece que na marcha rumo à independência "a Inglaterra ocupa o lugar de Roma", como logo o Sul será considerado o inimigo por seu refinamento, perante o Norte que não duvidava em proclamar sua superioridade moral reconhecendo jubilosos sua inferioridade cultural. Chama a atenção como durante a guerra civil americana, as tropas de Grant, Sherman e Sheridan saquearam com singular sanha as grandes cidades do Sul. E não obstante, é rigorosamente certo que o espírito missionário, puritano e messiânico estava presente em certa medida nos estados e nas gentes do Sul. O maior dos generais sulistas, Jonathan Jackson fazia eco do mesmo espírito quando escrevia a sua esposa: "Deus quis conceder a minha brigada o papel mais importante. O digo somente para lhe informar de onde procede minha glória". E é que um dos motivos da vitória do Norte sobre o Sul foi sua homogeneidade: em efeito, o Sul era um agregado de tendências, em ocasiões, contrapostas que tinham como único elemento cimentador o ter nascido sobre um mesmo território.

A vida urbana não foi considerada com respeitabilidade senão até os últimos anos do século XIX. E ainda então a vida urbana estava sob suspeita. Quando triunfou a revolução industrial nos EUA e se criaram grandes cidades, os magnatas da indústria realizaram atividades e doações filantrópicas em uma tentativa de demonstrar que a ciência e a técnica também podiam contribuir para fazer triunfar os valores espirituais.

Enquanto isso a Europa languidescia nas convulsões prévias à derrubada do antigo regime absolutista. Os americanos eram considerados desde a Europa, especialmente pela Ilustração, como homens simples, parecidos em sua essência ao estado de infância e ingenuidade primitivas. Sua situação e hábitos contrastava com a sofisticada decadência da nobreza dos pós, peruca e rapé que detinha o poder na Europa. Essa era precisamente a virtude mais apreciada pelos puritanos: a rústica simplicidade de gentes que rechaçavam a cultura por considerá-la como demonstração de um titânico satanismo. Pode-se entender assim o ódio puritano pelos jesuítas, grandes cultivadores da inteligência posta ao serviço do Papado. Os "bons selvagens" gozavam no velho continente de uma reputação exótica alheia à mentalidade norteamericana.

Era precisamente essa opinião a que punha a salvo a Europa da influência da mentalidade americana. Ao longo do século XVIII e após uma longa guerra de emancipação, as colônias do Novo Mundo se foram libertando da metrópole. A nova sociedade ali criada, despertava certa admiração nos ambientes intelectuais europeus, não obstante, precisamente essa simplicidade primitiva constituía uma barreira incontornável para que essas concepções influíssem sobre a Europa. Eram vistos como gentes simples e piedosas, tolerantes, e os tinha como granjeiros-filósofos, homens justos que haviam erradicado o luxo, o privilégio e a corrupção; porém, contudo, não deixavam de ser algo impossível de traduzir na Europa.

Teve que chegar um homem providencial para estabelecer uma ponte entre o Novo Mundo e a Velha Europa. Esse homem foi Benjamin Franklin.

Franklin chegou à Europa com fama de homem justo, simples e sábio. A maioria de quados o retratam no último quarto do século XVIII, moderadamente calvo, ralo o pouco cabelo restante; um bom dia enquanto viajava a bordo do "Reprisal", lançou sua peruca pela borda e não a voltou a utilizar. Este fato, aparentemente banal, causou grande sensação na sociedade francesa, na qual inclusive seus representantes mais progressistas, eram incapazes de prescindir desse inútil enfeite. Viram nesse gesto uma mostra de simplicidade e pragmatismo. A anedota repetida mil vezes nos cenáculos intelectuais franceses suscitou uma corrente de simpatia pelo personagem; Franklin soube canalizar essa enxurrada de adesões em benefício dos interesses da nova nação americana e de seus ideais que difundiu na Europa com zelo missionário.

Condorcet escreveu sobre Franklin: "Era o único homem da América que tinha na Europa grande reputação... A sua chegada se converteu em objeto de veneração. Se considerava uma honra tê-lo visto: se repetia tudo o que se ouvia dizer por ele. Cada festa a que tinha por bem aceitar, cada casa onde consentia ir, esparzia na sociedade novos admiradores que resultavam outros tantos partidários da revolução americana". Voltaire disse dos quakers - uma derivação puritana - americanos que "estes primitivos são os homens mais respeitáveis de toda a humanidade". Immanuel Kant, o filósofo alemão escreveu a propósito de Franklin que "é o novo Prometeu que roubou o fogo do céu". Em 1767 conheceu Mirabeau, no curso de sua primeira viagem à Europa, um dos grandes animadores da futura Revolução Francesa. Mirabeau o elogiou calorosamente: "Franklin é o homem que mais contribuiu a estender a conquista dos direitos do homem sobre a terra". O historiador Bernard Fay reconhece a importância que teve na gestação da Revolução Francesa: "Todo o grupo de futuros revolucionários se encontra em torno a ele: Brissot, Robespierre, Danton, La Fayette, Marat, Bailly, Target, Petion, o Duque de Orleans, Rochefoucauld". Van Doren, igualmente, lhe reconhece este papel: "Para os franceses é o líder de sua rebelião: a do Estado de Natureza contra a corrupção da ordem antiga".

Benjamin Franklin foi, sem dúvida, o difusor da Revolução Americana na Europa. Certamente alguns de seus valores coincidiam com os do Enciclopedismo, porém este não deixava de ser uma idéia filosófica, pelo demais muito bem considerada pela monarquia (D'Holbach, um dos grandes enciclopedistas franceses chamava Luis XVI - posteriormente guilhotinado - "Monarca justo, humano, benéfico; pai de seu povo e protetor do pobre"). Ao enciclopedismo faltava um modelo de sociedade alternativo ao "antigo regime", algum lugar onde se tivesse ensaiado e mostrasse sua capacidade para vertebrar um novo modelo de organização social. A partir da chegada de Franklin a Europa, o fermento revolucionário adquiriu um modelo e um exemplo a seguir.

Porém a prontidão com a que foi conhecido Franklin nas Gálias é inconcebível se fazemos abstração de um elemento capital: a pertença do missionário americano à franco-maçonaria e a excepcional importância que tiveram as lojas maçônicas no fermento de idéias intelectuais e nos primeiros momentos da Revolução Francesa.

O partido maçônico é tanto o partido da revolução americana como o da revolução francesa.


11/10/2012

Ideologia do Neocapitalismo Americano

por Ernesto Milà



Até aqui temos revisado os componentes do campo neoconservador. Identificamos os mitos fundacionais da nação americana (sua concepção de ser o "povo eleito da modernidade"), as linhas estratégicas fundamentais do expansionismo norteamericano (a Doutrina Monroe e a noção do Destino Manifesto), o núcleo central do neoconservadorismo (o grupo straussiano e seus dois think-tanks, o PNAC, o AIE) presente na administração e, como este núcleo de "filósofos" atua sobre a opinião pública através do grupo de "gentios" presentes nos movimentos religiosos fundamentalistas cuja trajetória seguimos. Porém este é somente um setor da América moderna: o neoconservador. Resta o setor democrata.

É aqui onde encontramos a outro personagem, tão inquietante, no mínimo, quanto Leo Strauss e sua coorte: Ayn Rand.

Ayn Rand: do satanismo às multinacionais. Sandor LaVey, fundador da Igreja de Satã, considerou Ayn Rand como sua principal fonte de inspiração. Vladimir Putin reconheceu que na cabeceira de sua mesa se encontra "A Revolta de Atlas", um dos romances mais famosos de Ayn Rand. Alan Greenspan, "senhor do crescimento econômico", o homem mais poderoso da economia estadounidense, foi amigo seu e compartilhou de todas as suas ideias...como milhões de leitores.

Quando três pessoas tão diferentes como LaVey, Greenspan ou Putin leram essa autora desconhecida na Espanha, isso implica que estamos diante de um pensador influente. De fato ela já foi considerada como a filósofa do capitalismo. Diferentemente de Leo Strauss, a Ayn Rand não interessa outra coisa além do fato econômico. É aí onde o "homem superior" pode demonstrar sua valia em termos objetivamente mensuráveis. Em seu romance "A Revolta de Atlas", escreve: "O que constitui o monumento ao triunfo do espírito humano sobre a matéria?...As choças roídas por insetos nas margens do Ganges ou a silhueta dos arranhacéus de Nova Iorque sobre o Atlântico?". Porém, assim como para Strauss, para Ayn Rand existe um "homem superior", o empresário, quer dizer, aquele que arrisca e vence com seu esforço; escreve: "O homem racional não quer 'o não conquistado', o homem racional diz NÃO ao sacrifício e SIM ao esforço pessoal de si mesmo". O empresário, graças a seu triunfo, obtém a maior das recompensas: "Não há valor mais alto que a própria estima", havia escrito. Lhe resulta impossível e injustificável negar a cobiça do benefício ("Aqueles que negam o incentivo capitalista querem como recompensa o nada"). A ausência de benefício supõe para ela o afundamento de qualquer forma de civilização e de qualquer ética que valha a pena assumir: "O culto ao zero - símbolo da impotência - busca eliminar da raça humana o herói, o pensador, o inventor, o produtor, o persistente, o puro. Para os apóstolos do zero é como se sentir fosse humano e pensar não. Como se fracassar fosse humano e não triunfar, como se fosse humano a corrupção, mas não a virtude".

Os filhos de Homer Simpson vão a uma escola de Springfield que leva o nome de "Ayn Rand"... Hoje ninguém duvida nos EUA que se trata da pensadora mais influente dos últimos 30 anos. Sua influência se trasladou aos países nórdicos e é relativamente conhecida na Alemanha e na Inglaterra. Na Espanha, os livros traduzidos de Ayn Rand passaram desapercebidos.

Uma Judia de São Petersburgo

Em 2 de fevereiro de 1905, quando fervia a primeira revolução russa, nasceu Alissa Rosembaum, filha de um matrimônio de judeus burgueses de São Petersburgo. Ao cumprir 21 anos, após concluir seus estudos de filosofia, obteve permissão para viajar aos EUA com a desculpa de visitar uns parentes. Jamais voltou.

Poucos meses depois apareceu em Hollywood. Cecil B. DeMille lhe ofereceu trabalho como extra em um de seus primeiros filmes. Mais tarde aceitou contratá-la como roteirista. Foi então quando adotou o pseudônimo "Ayn Rand".

Em 1929 contraiu matrimônio com o ator Frank O'Connor. Seu matrimônio durou os próximos 50 anos. Em 1934 - data em que apareceu "Os que vivemos" - começava já a ser conhecida como escritora. O romance resultou um fracasso, porém o caráter anticomunista do livro lhe deu certo relevo. A consagração veio com "O Manancial" (1943). O diretor King Vidor o converteu em um filme protagonizado por Patrícia Neal e Gary Cooper que encarnava o típico herói americano redefinido por Ayn Rand, individualista e obstinado, que resiste a alterar seus princípios.

Em 1957 publicaria seu romance mais ambicioso, "A Revolta de Atlas". A partir desse momento julgou que já havia dito tudo o que tinha para dizer como romancista; de agora em diante não escreveria mais que ensaios filosóficos que contribuiriam para definir o objetivismo.

No último terço do século XX sua fama foi crescendo nos meios intelectuais estadounidenses. Faleceu em Nova Iorque em 6 de março de 1982.

A Revolta de Atlas

"A Revolta de Atlas" representou um ponto de inflexão em sua carreira. Certamente o êxito já lhe era conhecido quando publicou essa estranha obra, porém seu argumento conseguiu seduzir à intelligentsia liberal americana.

O livro profetiza a decadência dos EUA devido ao intervencionismo estatal. O país fica dividido em duas classes: a dos saqueadores e a dos não-saqueadores. A classe política e dirigente está formada pelos primeiros que pensam que qualquer atividade deve estar regulada e submetida a uma forte imposição fiscal. Os segundos são os homens empreendedores, os dirigentes políticos, religiosos e sindicais, os capitais de empresa e os intelectuais que pensam que a solução está justamente no contrário. Desses últimos, e mais em concreto, dos patrões, surge um movimento que protesta que se realize uma greve de empresários acompanhada de sabotagens e desaparecimentos. O líder do movimento é "John Galt", ao mesmo tempo filósofo e cientista.

Galt, escondido nas Montanhas Rochosas, dita ordens, sugere iniciativas e move os fios. Com ele se refugiam os principais empresários. Durante o tempo que dura a greve e o desaparecimento dos empresários, o sistema americano afunda sob o peso do intervencionismo estatal. O romance termina quando a patronal decide abandonar seu refúgio das Montanhas Rochosas de Colorado e regressar a Wall Street e aos centros de decisão; marcham encabeçados pelo dólar, símbolo que Galt escolheu como símbolo de sua rebelião particular.

Rand queria chamar seu romance simplesmente "A Greve"; o título de "A Revolta de Atlas" foi sugerido por seu marido. Se equipara o empresário ao titã mítico que carrega em suas costas os destinos do mundo. Quando apareceu a obra em 1956, chamou a atenção a ousadia da proposta. Até esse momento, nem mesmo nos EUA, ninguém se havia atrevido a realizar uma exposição na qual os empresários eram os bons, o Estado o malvado, e as massas nem mesmo contavam. 

Para Ayn Rand, o fato de que uma greve afunda no caos aos EUA é o sinal de que esse país não pode viver sem sua classe empresarial, que a política deve se subordinar às necessidades da economia empresarial e, finalmente, que é preciso voltar ao espírito dos primeiros colonos que se sublevaram contra a Inglaterra no século XVIII: lutaram contra o intervencionismo estatal e em defesa de seus direitos individuais. O que propõe Rand é voltar à origem da tradição americana, somente que o "herói" não é o granjeiro que se subleva contra os ingleses, senão o patrão que luta contra o intervencionismo estatal e cujo esforço cria riqueza.

Em pouco tempo se esgotaram quatro milhões de exemplares da obra. A partir desse momento somente escreveria ensaios que aprofundariam nas linhas apontadas nesse romance, como "A Virtude do Egoísmo" que pode ser considerado um dos manifestos da corrente filosófica inaugurada por Rand, o objetivismo.

Os Fundamentos Filosóficos do Capitalismo

Da mesma forma que Zbigniew Bzezinsky e seu livro A Era Tecnotrônica constituíram o manifesto fundacional da Comissão Trilateral que abriu a era da globalização, a obra de Ayn Rand constituiu o suporte moral da intelligentsia neocapitalista mundial.

Desde princípios do século até 1973, a elite da alta finança mundial havia tido o pensamento da Sociedade Fabiana como o núcleo ideológico de sua interpretação da realidade. Em realidade, a Sociedade Fabiana, fundada na Inglaterra pouco antes da Primeira Guerra Mundial, constituía um apêndice do Partido Trabalhista na Inglaterra e do Partido Democrata nos EUA. Havia logrado impregnar às elites capitalistas através de seus centros de ensino, em particular da London Economic School e das Universidades Fabianas dos EUA.

A doutrina fabiana era gradualista e altruísta. Tal como o matrimônio Web, H.G. Wells, Bernard Shaw e outros destacados membros desse grupo de poder teorizaram, era preciso melhorar as condições das classes proletárias nas quais adivinhavam o núcleo central de consumidores do futuro. Não em vão "proletário" deriva de "prole"; os proletários seriam pois, os que tem maior descendência e até eles tinha necessariamente que tender o capitalismo em um momento em que os problemas de mecanização e produção em cadeia se haviam resolvido.

Os dois eixos do "socialismo" fabiano consistiam em chegar a um regime de bem-estar para as massas trabalhadoras através de um processo gradual de conquistas sociais que tenderia a transformar o proletário em burguês. Para isso era preciso que o processo fosse liderado pelos detentores do capital - os únicos que podiam dar coerência e viabilidade a um processo desse tipo - e que estes tivessem a capacidade de impor suas decisões aos detentores do poder político.



Esse processo se realizou por etapas. Inicialmente os dirigentes fabianos de ambos os lados do oceano criaram associações nas quais magnatas dos grandes consórcios industriais e bancários, os intelectuais orgânicos a seu serviço e os políticos comprometidos com eles, formaram grupos de pressão: assim surgiram o Instituto Inglês de Estudos Internacionais, o Conselho de Relações Exteriores, o Clube de Bilderberg e, finalmente, a Comissão Trilateral.

Porém quando Brzezinski cria a Trilateral resulta evidente que o socialismo fabiano já não responde às necessidades do capitalismo de sua época. Se os fabianos haviam sustentado uma espécie de cínico despotismo ilustrado - "tudo para o povo, porém sem o povo" - o que se achava em falta era, não tanto um projeto global, como uma norma moral para uso e desfrute da intelligentsia neocapitalista; algo assim como um embasamento ético que tranquilizasse as consciências e desse sentido à vida dos magnatas do capital. E ali estava Ayn Rand para oferecê-lo.

Havia algo que jogava a favor de Rand. Em diferença ao socialismo fabiano que compartilhavam as elites financeiras liberais inglesas e estadounidenses, Rand, longe de questionar finalmente o sistema capitalista - como faziam os fabianos, os quais acreditavam que através da melhora do sistema capitalista se chegaria a um regime mais justo e a algo que, apenas sem se dar conta, seria diferente do capitalismo - considerava que o capitalismo era a melhor, senão a úncia forma racional e "objetiva" de guiar os destinos da economia e das comunidades humanas. "O merecido pertence ao universo egoísta e comercial do proveito mútuo", havia escrito, não precisamente para censurá-lo senão para identificar o valor central de seu sistema: a necessidade do egoísmo.

"A recompensa para o indivíduo, segundo o objetivismo, é nessa vida e na terra e é minha própria felicidade. A recompensa dos místicos do espírito será outorgada mais além da tumba". Assim como Strauss, para Ayn Rand resulta impossível conceber a figura de Deus, porém em diferença dele, não admite nem ao menos que a religião possa ser benéfica para o "ser superior" em sua necessidade de controlar as massas; é impiedosa em sua crítica à religião; havia dito: "Para a religião: o que o homem conhece não existe e o que existe o homem não pode conhecer". Os ideais do místico são os contrários aos do "egoísta": "Os místicos se comprazem com o sofrimento, com a pobreza, com a submissão e com o terror porque eles necessitam da derrota da realidade racional. Seu ideal é a morte". "A ideia de Deus é a ideia de um grande burocrata do Universo". Inclusive as relações entre pessoas são para Ayn Rand uma questão de calculadora: "Não pode existir amor sem causa, amor é avaliar".

Porém onde Ayn Rand se mostra mais distanciada das religiões é no desprezo habitual com que essas consideram o indivíduo: "Deus e as religiões em geral, perdoam, sentem piedade e misericórdia, porém jamais admiram o indivíduo. A causa? Consideram o indivíduo como um ente carente de valores".

O egoísmo conduz diretamente à necessidade de que o capitalismo não perdesse de vista os valores que lhe deram origem: o individualismo, a livre iniciativa, a vontade de uns poucos de se imporem à maioria e a guiá-la, a abstinência por parte do Estado de qualquer intervencionismo e uma mescla de egoísmo e altruísmo que constituem o pólo ético da norma moral proposta por Ayn Rand. De fato, tudo deriva do individualismo, primeira ramificação do egoísmo: "Cada homem constitui um fim em si mesmo, existe por si mesmo e a consecução de sua própria felicidade constitui seu mais alto propósito moral".

Assim como os fabianos do primeiro terço do século, os partidários de Ayn Rand se organizaram em círculos, escolas e institutos com um propósito missionário, educativo e militante. Espalhados, sobre tudo pelo mundo anglo-saxão, em apenas duas décadas substituíram o pensamento fabiano na educação das elites neocapitalistas. O fato de que Alan Greenspan, presidente da Reserva Federal e o presidente russo Vladimir Putin, reconheçam publicamente seu tributo com Ayn Rand é suficientemente significativo do impacto que tem seu pensamento.

Objetivismo - Egoísmo - Satanismo

Ayn Rand chamou sua filosofia de "objetivismo"; disse dela que era uma norma de conduta para "viver na terra". O nome deriva da intenção da autora de ver a realidade tal qual é sem prismas deformadores ou apriorismos. Para Massimo Introvigne, diretor do CESNUR, entidade italiana que estuda as novas religiões "o objetivismo é uma filosofia política radicalmente individualista que faz apologia do capitalismo e do homem egoísta que, em lugar de se sacrificar pelos outros, afirma - contra todos os obstáculos que constituem o estatismo, o moralismo e as religiões - sua absoluta liberdade e que, obrando assim, termina por construir uma sociedade melhor e mais livre para todos".

Rand se define como ateia, considera à religião como uma "forma primitiva de filosofia" e propõe substituí-la por um "culto do homem" como meio para "elevar ao mais alto nível das emoções humanas resgatando-as do barro do misticismo e dirigi-las de novo até seu objeto próprio: o homem mesmo". Rand propunha, assim como os positivistas de inícios do século, constituir um "culto ao homem".

Rand é perfeitamente consciente de que o egoísmo em si mesmo pode desequilibrar completamente à sociedade e precisa de uma contrapartida capaz de equilibrá-lo. Encontra esse contrapeso no altruísmo: "O altruísmo considera o indivíduo como alimento para um canibal..."

Tudo isso enlaça perfeitamente com os princípios da Igreja de Satã e de Sandor LaVey em particular. As Nove Afirmações Satânicas que formam a declaração de princípios da Igreja de Satã estão diretamente extraídos da Revolta de Atlas, tal como demonstrou George C. Smith, hoje membro do Templo de Seth (uma cisão da Igreja de Satã). A diferença entre Rand e LaVey estriba em que enquanto este crê que é possível chegar a estabelecer o "culto ao homem" mediante o ocultismo e a magia, Rand propõe fazê-lo mediante a economia e a ciência.

Em uma de suas obras "canônicas", a Bíblia Satânica, LaVey propõe uma visão do mundo que deve tudo a Rand e em menor medida a Nietzsche: LaVey exalta o egoísmo e o capitalismo, o orgulho do forte sobre as necessidades do débil, a abolição das religiões, as morais e a hipocrisia. E Satã? Para LaVey, Satã não é senão o símbolo do "culto ao homem", em absoluto um personagem real (em diferença de Michel Aquino e o Templo de Seth que o consideram um ente pessoal).

Nem LaVey nem Rand ficaram só na teoria. Desceram ao terreno da prática. A vida e as andanças da Igreja de Satã são suficientemente conhecidas. Barbara Braden, biógrafa de Rand, facilitou dados para entender que essa seguiu por vias parecidas. Seu objetivismo se traduziu em uma "experimentação radical, compreendidos os planos sexual e familiar, através de formas de poligamia e poliandria, no seio do pequeno grupo que dirigia o movimento político e literário que havia criado".

Os discípulos de Ayn Rand formam hoje um pequeno grupo de poder, extremamente influente, do qual Alan Greenspan é o principal expoente e que constituem a alma ideológica dos movimentos que hoje tendem ao poder mundial, o Clube Bilderberg, Comissão Trilateral, CRF...em outras palavras: Rand renovou e atualizou o fundamento doutrinário do "iluminismo".

Conclusão: Ayn Rand, a outra parte do sistema

O que Leo Strauss é entre as elites neoconservadoras, Ayn Rand o é entre as elites neocapitalistas. Geralmente, se tem tendência a pensar que uns e outros respondem aos mesmos estímulos. Não é assim. Os neoconservadores de hoje, eram chamados em fins dos anos 70, "dinheiro novo", enquanto que os liberais costumam se identificar com os grupos neocapitalistas mais selvagens, com as dinastias econômicas estadounidenses, os Rockfeller, os Vandervil, os Morgan, etc, que historicamente, estiveram ligados aos meios "fabianos".

Habitualmente, os seguidores de Ayn Rand se identificam com o pensamento liberal estadounidense e se enquadram no Partido Democrata, como os de Strauss o fazem com as alas extremas do Partido Republicano, uns com o neocapitalismo e outros com o neoconservadorismo.

Em qualquer dos casos, ambas escolas de pensamento se coalharam em núcleos organizativos discretos, informais, e restritos aos quais pertence o essencial das esferas de poder dos EUA. Certamente, hoje a maçonaria estadounidense segue sendo a mais numerosa de todo o mundo. Enquanto em França e Inglaterra, onde a maçonaria havia tido uma situação privilegiada até pouco, as lojas se encontram em franca retração; somente nos EUA gozam de boa saúde...a custo de terem se convertido em meros clubes sem grande importância política, nem muita relevância social. A maçonaria estadounidense jamais voltará a ter a influência social que teve até o último terço do século XX...porém outras organizações "discretas" a substituíram: straussianos, objetivistas...

Os que rechacem qualquer forma de visão conspirativa da história, rechaçarão de plano o papel desempenhado por esses grupos de influência; para eles, somente contam os dados objetivos e as cifras macroeconômicas, quer dizer, o avaliável e quantificável. Porém os dados objetivos, nesse caso, nos dizem também que os grandes personagens que ocupam os cargos mais relevantes da administração Bush pertencem ao círculo straussiano. Vimos também, como o culto à "nobre mentira", explica e justifica os enganos evidentes com os quais a administração Bush desencadeou as guerras de Afeganistão e Iraque. E, finalmente, através de Ayn Rand, pudemos ter acesso às justificativas que os "empresários" dão a seu poder.

Porém, por cima de tudo isso, estão os dados objetivos: a democracia americana, cada vez é menos democracia e mais plutocracia. Não são as massas, senão o poder do dinheiro o que determina as políticas nos EUA. E as formas para chegar à plutocracia são duas: através de Leo Strauss para os conservadores ou através de Ayn Rand para os liberais. Em realidade, ambos respondem à necessidade que tem ambos grupos de dispor de bases teóricas sólidas que justifiquem seu agir.

A história tem também uma dimensão subterrânea. Desconhecê-la implica correr o risco de não compreender os processos históricos. Essa dimensão subterrânea opera a modo de infraestrutura que determina decisivamente o papel e a orientação das superestruturas. Se nos limitamos unicamente a analisar o desenvolvimento das superestruturas, jamais entenderemos as razões últimas que as movem. Daí as balizas que temos seguido em nosso estudo: a ideologia dos Pais Fundadores dos EUA e o papel desempenhado pela maçonaria estadounidense entre a fundação da nação e o último terço do século XX. Vimos logo, como se formaram os grupos fundamentalistas religiosos e como, a partir dos últimos anos 70, alcançaram uma relevância notável. E como, finalmente, nos anos 90, foram reconduzidos pelo núcleo de "filósofos" straussianos que assumiram o papel de motores do neoconservadorismo. Por último, passamos em revista à grande ideóloga do neocapitalismo, Ayn Rand que influenciou no outro setor de poder.

É possível que a partir de agora tenhamos muito mais claro quais são os motores ideológicos que operam no tabuleiro estadounidense. A rapidez com a qual se desenvolve a história de nossos dias induz a pensar que essas forças não serão estáveis ad infinitum, e que serão substituídas por outros núcleos de poder. Porém não sabemos quando ocorrerá e nem mesmo se ocorrerá. Por outra parte, não se pode desvincular esses centros de poder da crise global que estão vivendo os EUA.

Estamos assistindo ao desmoronamento de um país. O déficit da balança de pagamentos, a desertificação industrial, a pulverização da poupança, a dependência absoluta da economia estadounidense dos investimentos procedentes do exterior, não deixam muito lugar para o otimismo. Socialmente, a integração racial dos afroamericanos fracassou: as duas comunidades seguem sendo hostis e estando separadas...a quarenta anos da promulgação das leis de integração racial, nunca na história dos EUA se esteve tão distante do objetivo. De fato, a situação do século XIX se reconstruiu: os aborígenes da América do Norte, vencidos e dizimados, reapareceram com a imigração mexicana. Esse núcleo mexicano, no mais, conseguiu romper a unidade linguística dos EUA: hoje um mexicano já não precisa falar inglês para se defender e encontrar trabalho em determinadas cidades. A taxa de criminalidade e a delinquência é absolutamente insuportável (mais de dois milhões de presos conformam a maior população carcerária do mundo). Enquanto a suas forças armadas, demonstrou sua incapacidade para conquistar e controlar o terreno dos conflitos: certamente, o poder tecnológico das Forças Armadas Estadounidenses não tem igual, porém tudo se baseia em bombardeios estratégicos, e no absurdo conceito de "guerra sem mortes"... No momento em que cessam os bombardeios e é a infantaria quem tem que tomar o controle dos territórios, se mostram todos os problemas que afetam o exército estadounidense: peso burocrático, rigidez, peso excessivo da logística sobre os núcleos operativos. Tudo isso sem esquecer as taxas de analfabetismo estrutural que nos EUA superam as de qualquer outro país do hemisfério ocidental. Os EUA vivem o dia. Crescidos desde as origens na ideia de que em seu território existem umas fontes inesgotáveis de riqueza, é incapaz de entender o que representa a deterioração do meio ambiente ou a escassez energética.

A sociedade estadounidense é frágil. Cada dia mais frágil. Seu absenteísmo crescente da política, sua simplicidade cultural, o economicismo inerente a sua escala de valores, determinam sua debilidade e sua fragilidade. O pensamento neoconservador de Leo Strauss e o pensamento neocapitalista de Ayn Rand, tentam afrontar uma nova situação histórica na qual fazem falta seres de ferro capazes de guiar à "nação eleita por Deus" (a ambos, estruturalmente ateus...) para manter sua hegemonia mediante o recurso ao tiranismo.

Porém, assim como a URSS se desmontou interiormente, os indicativos começam a alertar sobre a possibilidade de que nossa geração veja também o afundamento do poder americano. Isso já começou. Enfrentar-se com estados profundamento subdesenvolvidos (Afeganistão) ou micropotências de terceira linha (Iraque), assumir o papel de porta-estandarte de uma estranha "luta contra o terrorismo internacional", evidenciam que os EUA, longe de estarem no ápice de seu poder, iniciaram já a pendente da decadência: porque, com ou sem eleições, o Afeganistão dista muito de estar pacificado e, quanto ao Iraque, o país inteiro ferve na insurreição contra o ocupante. E, diante de tudo isso, Bin Laden, goza de boa saúde. Se é possível falar de algo, não é precisamente de êxito.

13/07/2012

O "Projeto do Novo Século Americano", ou o Núcleo do Neoconservadorismo Americano

por Ernesto Milà



O "Projeto para o Novo Século Americano" fundou-se em 1997 por um grupo de estrategistas neoconservadores, a maioria deles residentes na capital federal. O objetivo é "concentrar esforços para preparar a nova liderança mundial dos EUA". Essa vontade não se oculta desde a primeira frase do manifesto fundacional: "a política externa e de defesa americanas está à deriva", assim pois, se trata de reivindicar "uma política reaganiana de fortalecimento militar e clareza moral". O objetivo fundamental de tal projeto é "liquidar a questão iraquiana"...porém está claro que o projeto vai muito mais longe desse objetivo conjuntural.

O nome original do grupo é The Project for the New American Century, mais conhecido nos EUA por suas siglas PNAC e cujo nome corresponde em português a "Projeto para o Novo Século Americano". A declaração fundacional está firmada por influentes figuras como Dick Cheney, Jeb Bush, Lewis Scooter Libby, Dan Quayle, Donald Rumsfeld, e Paul Wolfowitz. A maioria dos assinantes, haviam pertencido às administrações republicanas de George Bush e Ronald Reagan. Ao PNAC não agrada falar sobre si mesmo, mas quando está obrigado a fazê-lo (era impossível que passasse despercebido para os analistas minuciosos), lhe agrada se apresentar como "uma equipe de homens experientes no exercício do poder" que formam "uma organização educativa sem fins lucrativos" e cujo leitmotiv fundacional ninguém nos EUA condenaria, pois sustentam "que a liderança dos EUA é boa tanto para os EUA como para o mundo; que essa liderança requer poderio militar, energia diplomática e compromisso moral". Sua atividade pública se realiza mediante a organização de seminários e conferências e pela publicação de documentos para explicar "o que a liderança americana entranha". Assim mesmo dispõem de um sítio.

William Kristol, Presidente do PNAC

Oficialmente tendem a agrupar "vontades de cidadãos norteamericanos que apoiem uma política vigorosa de implicação internacional dos EUA". Quando alguém lhes pergunta sobre suas próximas atividades, costumam responder que estão realizando "debates úteis em torno da política externa e de defesa e sobre o papel dos EUA no mundo". Algo que, em princípio, não parece excessivamente inquietante.

Não obstante, quando sabemos que seu presidente é William Kristol, as coisas deixam de estar tão claras. Kristol era, entre outras atividades, assessor da companhia Enron que protagonizou a quebra fraudulenta mais multimilionária na história dos EUA. De Kristol é necessário recordar que era o "cérebro de Dan Quayle", vicepresidente dos EUA com Bush. Kristol destacou-se desde então como politólogo (licenciado em Harvard) ultra-conservador, professor de Ciências Políticas, atual conselheiro principal da ala neo-conservadora do Partido Republicano dos EUA, jornalista e diretor do semanário "Weekly Standard". Nesse semanário de circulação restrita e discreta, porém não por isso menos influente, Kristol dá vez a Robert Kagan, outro dos estrategistas também influentes, da administração Bush, aos quais nos referimos. Seu pai, Irving Kristol, havia sido outro proeminente conservador, editor de "Public Interest" que apoiou a campanha anticomunista do senador McCarthy. Junto com Norman Podhoretz fundaram o University Center for Rational Alternatives, organização de caráter ultraconservador. Inicialmente colaborou com os democratas, porém em 1976 se fez republicano. Após uma breve estadia do jovem Kristol no Partido Democrata, passou ao Republicano e teve um cargo de segunda linha na Administração Reagan, para ser logo o "cérebro de Dan", vicepresidente com George Bush. Quando se desmontou a administração conservadora e subiu Bill Clinton à presidência, Kristol passou à iniciativa privada. Ali, no mundo das comunicações, conheceu ao magnata Rupert Murdoch o qual financiou seu "Weekly Standard", apesar da tiragem pequena e das perdas elevadas que se mantém até hoje ainda que as perdas continuem ocorrendo. Valia a pena porque foi ganhando influência no Partido Republicano, especialmente a partir de 1994 quando publicou seu documento "Project for the Republican Future". Este trabalho e o apoio da fundação Bradley lhe conduziu à Casa Branca. Em sua qualidade de presidente do PNAC, uma das primeiras atividades de Kristol foi solicitar à Comissão de Defesa da Câmara de Representantes um aumento de 100 bilhões de dólares para reforçar a defesa dos EUA e manter sua presença no exterior, para isso é preciso - sempre segundo Kristol - aumentar o orçamento de defesa a uns 3,5% (15 a 20 bilhões de dólares) manter a capacidade nuclear dissuasiva dos EUA, aumentar em 200.000 homens as suas Forças Armadas, modernizar o arsenal norteamericano, especialmente das Forças Armadas, renunciar a alguns planos defensivos propostos pela administração Clinton (e que coincidem com as propostas da Doutrina Rumsfeld), desenvolver o programa da "Guerra das Estrelas" (escudo antimísseis), controlar os espaços aéreos e o ciberespaço.

Até o 11 de Setembro, todas essas idéias não eram levadas excessivamente a sério, nem mesmo nas altas esferas do Partido Republicano que seguia decantado pelo velho conservadorismo isolacionista moderado. A derrubada do World Trade Center fez com que os moderados ficassem desprovidos de argumentos e tivessem que ceder à nova estratégia imposta pelos cérebros neoconservadores; as "águias", a partir desse momento, dominaram na cena republicana e na administração. Os Rumsfeld, Wolfowitz, Perle, Cheney, e o próprio Kristol, passaram a constituir o núcleo duro da administração Bush. O semanário de Kristol, a rede Fox, o Instituto de Empresas Americanas presidido por Cheney e o PNAC, passaram a difundir a campanha patriótica que prosseguiu desde os atentados de 11 de Setembro, deformando a autoria do crime, lançando constantemente ameaças de falsos alarmes de novos ataques e instigando a guerra contra o Iraque e a passividade perante Israel.

É importante recordar que sem os fatos do 11 de Setembro o programa do PNAC jamais teria podido passar do estado de projeto irrealizável. São os atentados do 11 de Setembro e somente eles que permitem "adiantar as linhas" norte-americanas, primeiro ao Afeganistão e logo ao mais importante Iraque. Por que são as pessoas do PNAC as que elaboram e impõem sua linha política e seus objetivos à administração Bush, a qual, sem eles, seria na atualidade, uma administração órfã de tutelas políticas e sem outra tutela ideológica que o conservadorismo furibundo e míope dos cristãs renascidos e dos "reverendos" furibundos. Em efeito, estes últimos garante os eleitores, porém é o PNAC quem maneja o leme da administração.

Por certo, Kristol, é membro do Conselho de Relações Exteriores, CFR, assim como todos os membros proeminentes do PNAC.

Objetivo Prioritário: "Resolver" a Questão Iraquiana

O fato que motivou aos neoconservadores que fundaram o PNAC foi o fim da Segunda Guerra do Golfo no Iraque. Com o poder de Saddam Hussein debilitado, os neoconservadores acreditaram que ele seria eliminado permanentemente. Ao contrário, o anterior presidente Bush animou à oposição iraquiana a alçar-se contra o governo do Baas. Como sua rebelião foi esmagada pelo exército iraquiano, Bush ordenou ao exército dos EUA que não interviesse, erigindo, ao contrário, uma estratégia de "contenção" em relação a Saddam.

Em 1992, Paul Wolfowitz, então Vice-Secretário de Defesa, redigiu um escrito sobre o futuro da hegemonia norte-americana no mundo e como se poderia preparar para confrontar o fim da Guerra Fria. O documento, de caráter interno, tardou em se filtrar, porém, finalmente se soube que o centro das reflexões de Wolfowitz giravam em torno à possibilidade de que surgisse um rival que substituísse à URSS. Sendo assim, era preciso que os EUA estivessem em condições de identificá-lo, isolá-lo, e minimizar seu poder. Este documento, na prática, está na origem do manifesto PNAC e será recordado nos anos vindouros como o embirão da doutrina que logo Bush aplicou desde a presidência.

Em setembro de 2000 aparecia o docuento do PNAC "Reconstruindo as Defesas dos EUA: Estratégia, Forças e Recursos para um Novo Século" (a partir de agora RAD, como é conhecido nos EUA). Este documento se apoia no de Wolfowitz e desde suas primeiras linhas reconhece essa paternidade: "um anteprojeto para manter a proeminência dos EUA, excluir a emergência de uma grande potência rival e redesenhar a ordem de segurança internacional de acordo com os princípios e interesses americanos". Em síntese, o documento rechaça os cortes nos gastos de Defesa e define a missão dos EUA como uma luta contra "grandes ameaças de guerras múltiplas e simultâneas". Não há que esquecer que, nesses mesmos momentos, Rumsfeld havia elaborado o essencial do que na época se conhecia como "Doutrina Rumsfeld" e que ia em direção parecida.



A Doutrina Rumsfeld

No fundo, a chamada "Doutrina Rumsfeld" apenas é outro nome para um programa de modernização das Forças Armadas norte-americanas. Não obstante, é evidente que uma modernização em profundidade, deve se fazer em função dos objetivos estratégicos a alcançar. E nesse sentido, dita doutrina não é senão, em última instância, um programa que desenha a orientação em política externa da administração Bush. Há em dita doutrina elementos que concernem exclusivamente às Forças Armadas, porém, na medida em que dito exército é a ponta de lança de uma política expansionista de caráter mundial, estamos diante de uma obra excepcionalmente clara e que no fundo não é senão um desenvolvimento complementar e uma atualização da Doutrina Brzezinsky, aplicada à reorganização das Forças Armadas.

Desde a Segunda Guerra Mundial até praticamente nossos dias, o Atlântico tem sido considerado praticamente como um oceano anglo-saxão e o centro do comércio mundial, como antes foi o Mediterrâneo. Não em vão, inicialmente, a OTAN orientava sua atividade ao Atlântico Norte. Não obstante, Rumsfeld adverte que boa parte do crescimento econômico internacional se deslocou em direção ao Oceano Pacífico.

Nessa zona se está concentrando uma acumulação de forças produtivas sem precedentes na história. Pensemos no colosso chinês e em seu crescimento econômico sustentado já há dez anos, especialmente concentrado na Manchúria e nas zonas costeiras de seu Leste, pensemos nos chamados "tigres asiáticos" ou no desenvolvimento discreto porém constante da Austrália, na costa Oeste dos EUA, especialmente na Califórnia e no Chile, pensemos no Japão, inclusive pensemos em que o Pacífico é o oceano com maiores riquezas naturais submersas e com o menor índice de exploração, e o que teremos como resultado é que o eixo da economia mundial se está deslocando para o Pacífico e que, em qualquer caso, o crescimento demográfico daquela zona gera a possibilidade de abrir mercados promissores que, ademais, estão próximos às fontes de matérias-primas.

Porém a geografia do Pacífico, caracterizado pela dispersão dos territórios em ilhas mais ou menos pequenas, salvo Austrália e Nova Zelândia, faz com que se modifiquem os critérios militares. Em efeito, nessas zonas as grandes formações blindadas que seriam efetivas nas planícies centro-européias, resultam completamente inúteis nas ilhas do Pacífico. Ali se trata de responder ao desafio gerado por grandes distâncias e pequenas ilhas. No mais, o mais importante dessa estratégia consiste em reconhecer que após a queda da URSS, a OTAN já não pode ser a ponta de lança das Forças Armadas dos EUA e a frente da Europa Central carece de interesse militar. A um novo teatro de operações corresponde a escolha de um novo inimigo; este inimigo é a China.

Durante os primeiros meses de governo de Bush, essa doutrina foi posta em prática sistematicamente. Aumentaram-se os voos de espionagem sobre a China, até o ponto de que um dos aviões Awac acabou danificado e derrubado. Os dissidentes chineses do Falung Gong e o Dalai Lama receberam novos impulsos para predicarem por todo o mundo sobre as carências dos direitos humanos na China. Os EUA tentaram melhorar suas relações com a Rússia em face de uma aliança anti-China. A China respondeu facilitando tecnologia anti-aérea para o Iraque que evidenciou sua eficácia um mês depois que Bush prestasse seu juramento. Foi então, em um dos rotineiros bombardeios sobre a "Zona de Exclusão", quando os aviões perceberam uma maior capacidade de resposta das baterias anti-aéreas iraquianas.

O 11 de Setembro fez com que essa orientação anti-China se atenuasse, porém não completamente. A prioridade passou a ser o controle mundial dos recursos energéticos, em particular do petróleo. Porém a Doutrina Rumsfeld seguiu inspirando a política americana de defesa. A prova é que Bush, em várias ocasiões, desmentiu que a China fosse "sócio estratégico" dos EUA, mas sim que, com muito mais vigor que a União Européia, a China tenderá a ser cada vez mais um "competidor estratégico".

A estratégia de "luta antiterrorista" gerada pela administração Bush não deve nos fazer esquecer que tal luta é uma mera desculpa para adiantar as forças de intervenção norte-americanas lai onde existe um interesse estratégico.

Nesse contexto, a "luta antiterrorista" é um mero espantalho para operações táticas menores (a invasão do Afeganistão, o ataque contra o Iraque, as escaramuças com a Coréia do Norte, etc.) que cobrem o objetivo maior: a isolação, e portanto a neutralização, da China.

De fato, pode se entender a coexistência desses dois níveis de objetivos. Rumsfeld, quando iniciou sua teorização e Bush quando a aceitou, se encontraram com a oposição do complexo militar-industrial que veria minguados, em um primeiro momento, seus benefícios. Rumsfeld, em efeito, estava propondo era uma redução dos gastos de defesa, propondo armamentos muito mais simples que os utilizados até então. Enquanto que o Pentágono sustentava em fins de 2000 que seu orçamento tinha praticamente que duplicar, se pretendia prolongar a hegemonia americana, Rumsfeld propunha justamente o contrário: estabilizar o orçamento de defesa, otimizando investimentos, precisamente para alcançar o mesmo objetivo.

Em efeito, Rumsfeld desaconselhava a construção de novos porta-aviões tipo Nimitz, jóia da coroa da US Navy, com um valor de 4.000 milhões de dólares cada um e 2.000 milhões anuais em gastos de manutenção. Para o Secretário de Defesa se tratava de impulsionar a construção de pequenos barcos lança-mísseis, extremamente manobráveis e incomparavelmente mais baratos. A USAF, por sua parte, devia auto-limitar seus pedidos de caça-bombardeiros F-22 e cancelar projetos excessivamente custosos (como o Joint Strike fighter que em 2001 deveria absorver 850 milhões de dólares), manter-se com o material atual e confiar nos novos UAV (aviões não-tripulados) muito mais baratos, polivalentes e rentáveis.

Essas propostas, e as limitações orçamentárias conseguintes, eram suficientemente audazes para que o Pentágono e o complexo militar-industrial, gritassem aos céus. Foi então que se produziu o "providencial" ataque às Torres Gêmeas e se reestabeleceu a normalidade. As "necessidades da luta contra o terrorismo" abriram novas frentes bélicas: a modernização proposta por Rumsfeld se realizaria sem que o complexo militar-industrial visse minguados seus benefícios: estes procederiam do esforço bélico, não de uma maior produção das armas até agora clássicas.

Em sua formulação pública a Doutrina Rumsfeld é extremamente pessimista. Prevê que os EUA perderão progressivamente aliados, paralelamente ao aumento de seu poder. As bases que até agora puderam utilizar sem problemas excessivos, pode ser que não estejam a sua disposição em tempos vindouros. Isso implica que as Forças Armadas norte-americanas devem dispor de meios de longo alcance, tanto para trasladar tropas aos focos de conflito, como para lançar ataques com novas armas capazes de alcançar teatros de operações distantes.

A estratégia norte-americana se baseia em atrasar o máximo possível seu isolamento militar internacional impulsionando o fantasma da "luta antiterrorista" e adiantando suas linhas aos principais focos de interesse estratégico. A escusa escolhida tem a virtude de ser aproveitada por outros atores para conquistarem seus propósitos: a China aproveita para aumentar a repressão contra os muçulmanos do sudoeste do país; Aznar aproveita para lançar uma ofensiva final contra o ETA e seu desdobramento político; a Rússia utiliza a mesma mensagem para combater o independentismo checheno sem que ninguém se preocupe com a vulneração dos direitos humanos e das leis da guerra.

A desculpa do antiterrorismo será, afinal, utilizada para justificar qualquer ataque contra qualquer país do mundo; porém não durará eternamente. Alguns serviços de inteligência ocidentais e muitos observadores políticos albergam as maiores dúvidas sobre os verdadeiros inspiradores dos ataques terroristas do 11 de Setembro. Se há que buscar o criminoso entre aqueles aos quais o crime beneficia, é evidente que os atentados do 11 de Setembro somente serviram aos interesses do expansionismo americano. Enquanto a Bin Laden, mais que de um terrorista islâmico teria que se falar de um "cooperador necessário" nessa estratégia infernal que os EUA já utilizaram em Pearl Harbour, no Maine, em Tonkin, etc.

A Doutrina Rumsfeld tem a virtude de reconhecer que o atual sistema de alinças dos EUA é produto da Guerra Fria e essa já acabou, em consequência, as velhas amizades tem menos sentido no novo tempo. Daí que a administração Bush tenha situado a redefinição do papel da OTAN entre suas prioridades.

O Documento RAD

O documento RAD insistia na necessidade de que os EUA interviessem no Golfo Pérsico assegurando uma posição indiscutível e preferencial. Para isso era preciso finalizar o trabalho realizado em 1989-90 no Iraque e derrubar Saddam Hussein: "Os EUA buscaram durante décadas desempenhar um papel mais permanente na segurança regional do Golfo. Enquanto que o conflito não resolvido com o Iraque proporciona a justificativa imediata, a necessidade de uma presença importante de forças americanas no Golfo transcende a questão do regime de Saddam Hussein". Voltava-se a insistir no escrito por Wolfowitz há oito anos: "Na atualidade os EUA não possuem rival em escala global. A grande estratégia dos EUA deve perseguir a preservação e a extensão dessa vantajosa posição durante tanto tempo quanto seja possível". Porém também se reuniam algumas considerações sobre armamentos novos já realizadas por Rumsfeld em seus documentos; em efeito, se pediam "Novos métodos de ataque - eletrônicos, não-letais, biológicos - serão mais extensamente possíveis; os combates igualmente terão lugar em novas dimensões: pelo espaço, pelo ciberespaço e quiçá através do mundo dos micróbios; formas avançadas de guerra biológica que possam atacar genótipos concretos podem fazer do terror da guerra biológica uma ferramenta politicamente útil".

O mais curioso desse documento é o "digo-te que não me digas" que ele inclui inopinadamente. Em efeito, o documento RAD, bruscamente alude a que a transformação estratégica dos EUA será difícil e "estará carente de algum fato catastrófico e catalizado, como um novo Pearl Harbour". Porque para a administração Bush os atentados de 11 de Setembro foram providenciais...tão providenciais que se diria que foram buscados por alguém próximo à administração. De fato, a Comissão de Investigação estabeleceu que a Administração Bush não fez tudo o possível para evitá-los. O advogado de uma das vítimas, de sua parte, apresentou em setembro de 2004 uma denúncia na qual considerava George W. Bush e Condoleeza Rice como mandatários do crime. Seja como for, não se pode dizer que a investigação sobre o 11 de Setembro tenha chegado muito mais longe do que foi a investigação sobre o assassinato de Kennedy. E, pleo demais, os aspectos escrutos todavia não esclarecidos do crime e da investigação posterior, assim como a irracional insistência de que Bin Laden estava refugiado no Afeganistão (o que justificava uma ação de rangers ou marines contra o refúgio de Bin Laden, porém não o bombardeio de todo um povo) ou que mantinha contatos com Saddam Hussein (algo absolutamente falso), geram sombras extremamente densas sobre o crime. Após os atentados, em efeito, o PNAC urgiu em outro documento ao Presidente Bush para que derrubasse Saddam Hussein.



As Linhas de Trabalho do PNAC

No ano 2000, Kristol e 27 ex-funcionários dos Presidentes Reagan e Bush (pai) elaboraram o informe "Reconstruir as Defesas dos EUA" onde se propõem medidas para estabilizar a hegemonia norte-americana no planeta. O documento inspirou o plano de Estratégia de Segurança Internacional que George W. Bush apresentou poucas semanas depois. Dos 27 redatores do informe, seis eram também altos funcionários da administração (Wolfowitz, Eliot Cohen, conselheiro político de Donald Rumsfeld; Scooter Libby, chefe de assessores de Dick Cheney; Dov Zekheim, sub-secretário de Defesa; Stephen Cambone, alto funcionário de Defesa).

O projeto para a criação de uma "Pax Global Americana", revelado pelo Sunday Herald, mostra que o gabinete de Bush pretendia tomar o controle militar da região do Golfo, e isso independentemente de que Saddam Hussein estivesse no poder. Diz: "Os Estados Unidos tem estado durante décadas representar um papel mais permanente na segurança regional do Golfo. Apesar de que o conflito todavia não resolvido com o Iraque oferece uma justificativa imediata, a necessidade de uma presença substancial de Forças Armadas americanas no Golfo transcende o tema do regime de Saddam Hussein". Essa "grande estratégia americana" deve ser posta em marcha "tão logo seja possível no futuro", diz o informe. Acrescenta também que a "missão fundamental" dos EUA consiste em "declarar e ganhar de forma decisiva múltiplas guerras simultâneas". Isso último é irrelevante...o importante é a insistência em que o PNAC deverá se colocar em prática "tão logo seja possível". Até o 11 de Setembro isso não era possível. A partir de então, foi imparável. É impensável que os que desenharam os atentados de 11 de Setembro não calibraram os conteúdos do PNAC e ignoraram que, precisamente, sua ação serviria como a justificativa esperada para aplicar o projeto "tão logo seja possível".

O informe descreve as Forças Armadas americanas no estrangeiro como "a cavalaria da nova fronteira americana". Wolfowitz e Libby, especialmente, não podiam ignorar que a União Européia e a Rússia em vias de reconstrução, supunham desvantagens para a dominação norte-americana, daí que propuseram que os EUA deveriam "impedir que as nações industriais desenvolvidas ponham em dúvida nossa liderança ou inclusive aspirem a um papel regional ou global mais importante". Para isso era preciso reforçar a aliança com países europeus (especialmente com Grã-Bretanha e em segundo lugar com Aznar na Espanha); eliminar à ONU de qualquer iniciativa de paz no mundo que, a partir de agora, deveria ser proposta e liderada pelos EUA; manter a presença no Golfo Pérsico ainda apesar de que Saddam Hussein fosse derrotado ou desaparecesse; logo definem o Irã como novo inimigo de substituição na região. E, finalmente terminar mencionando a China como rival geopolítico, o que os leva a propor o aumento da presença no sudeste asiático para conduzir a que o "poder americano e de seus aliados estimule o processo de democratização na China"; é nesse documento em que se cria a ficção de que o Iraque possui armas de destruição em massa e no qual se alerta sobre a necessidade de criar "forças espaciais americanas", para o domínio do espaço e o controle total do ciberespaço, com vistas a impedir que os "inimigos" utilizem a Internet contra os EUA. Assim mesmo, o documento define o âmbito do que logo popularizará Bush com o nome de "Eixo do Mal" (Coréia do Norte, Líbia, Síria e Irã).

A Nomenclatura da Elite Neoconservadora

O documento fundacional do PNAC, foi assinado por uma equipe de neoconservadores do entorno petrolífero dos Bush e do CFR (cujo presidente é precisamente George H. W. Bush sênior): Jeb Bush (irmão de George W., governador da Flórida onde se decidiu a vitória eleitoral de seu irmão), Dick Cheney (vice-presidente), Gary Bauer, William J. Bennett, Eliot A. Cohen (CFR), Midge Decter, Paula Dobriansky (CFR e Comissão Trilateral), Steve Forbes (dono da revista Forbes e ex-empregador de Domingo Cavallo), Aaron Louis Friedberg (CFR), Francis Fukuyama (CFR), Frank Gaffney, Fred C. Ikle (CFR), Donald Kagan (CFR), Zalmay Khalilzad (CFR), I. Lewis Libby (CFR), Norman Podhoretz (CFR), Dan Quayle (ex-vicepresidente de George Bush pai), Donald Rumsfeld (CFR; atual secretário de Defesa), Paul Wolfowitz (CFR, atual sub-secretário de Defesa), Peter W. Rodman (CFR), Stephen P. Rosen (CFR), Henry S. Rowen (CFR), Vin Weber (CFR), George Weigel (CFR) e Douglas Feith (CFR). Observe-se que a maior parte desses nomes está vinculado ao núcleo straussiano. De outra parte, 25% do total é composto de antigos trotskistas, a maioria, straussianos.

Dentro do marxismo, o trotskismo é um gênero cujos militantes sempre tiveram traços particularmente definidos e completamente distintos em relação a outras seitas igualmente marxistas (maoístas, marxistas revolucionários, marxistas-leninistas, castro-guevaristas, marxistas cristãos, revisionistas, eurocomunistas, etc.). Em efeito, os trotskistas sempre se caracterizaram por seus estudos milimétricos sobre situações políticas concretas. Sempre tiveram uma tendência particular a se cindirem em capelas até quase o infinito, e tem insistido especialmente no exame das conjunturas internacionais e...em sua maior parte, seus dirigentes tem sido de origem judia, ainda que completamente secularizados. No mais, o trotskismo, é hoje um movimento político muito minoritário, composto por crianças extremamente jovens e uns quantos gurus já na senilidade ou prestes a alcançá-la. E o resto? O percurso desses militantes tem sido sempre muito similar: enquanto trotskistas, sua atitude era irreconciliável com os partidos comunistas ortodoxos, tidos como stalinistas ou neo-stalinistas. Isso os levou, ou bem a se infiltrarem nos partidos socialistas (Lionel Jospin, por exemplo, era um antigo trotskista que chegou a chefe de governo, após entrar no PS como infiltrado) ou bem a adotar posturas, primeiro anti-comunistas e logo...liberais. Há entre os antigos trotskistas uma espécie de inércia que os leva sempre a aceitar o destino a que os conduzem suas reflexões ideológicas...sempre e quando se adaptem a seus gostos ou interesses pessoais. De fato, frequentemente, os trotskistas tendem a ideologizar qualquer tipo de comportamento que adotem.

Na Espanha existirem uns 4.000 militantes trotskistas nos anos 70 que se foram cindindo progressivamente em distintas facções rivais até desaparecerem quase por completo. Onde estão hoje os antigos trotskistas? Em todas as partes, há avido deles no CDS, no PSOE, no PP, e no IU, nas candidaturas de extrema-esquerda, e inclusivem chegaram a aparecer nas filas de extrema-direita. Nos EUA ocorreu outro tanto: o trotskismo norte-americano formado ao redor de Hansens e o Secretariado da IV Internacional, tem nutrido de militantes todas as correntes políticas norte-americanas: desde os sectários de extrema-direita agrupados ao redor de Lyndon Larouche, até as convenções do Partido Democrata, passando, obviamente, pelos grupos neoconservadores e, em concreto, pelo PNAC. Tudo isso fez dizer Michael Lind que "os intelectuais que mais defendem o neoconservadorismo tem suas raízes na esquerda, não na direita".

Uns 30% dos membros iniciais do PNAC, corresponde a antigos trotskistas. Porém há outra característica que já citamos do trotskismo: boa parte de seus quadros políticos são de origem judia. Isso se cumpre também no PNAC e entre os círculos straussianos. Evidentemente há cristãos...porém se trata de pessoas que não questionam as atrocidades cometidas por Israel nos territórios ocupados da Palestina e que, em qualquer caso, apoiam o sionismo e em especial os partidos da direita israelita, com Ariel Sharon à cabeça. Tendo isso em conta se pode compreender por que pessoas significativas do PNAC estiveram sempre a favor de que Israel e em concreto o governo de Benjamin Netanyahu, rompessem os acordos de paz de Campo David. Tal era a orientação que Richard Perle aconselhou ao primeiro-ministro judeu em 1996: "ruptura limpa". Perle na mesma comunicação a Netanyahu reconhecia que tal ruptura era tanto mais obrigada desde o momento em que a administração norte-americana reafirmara sua vontade de esmagar Saddam Hussein e, assim, garantir a segurança de Israel. Para o PNAC a lealdade frente aos EUA se complementa por uma lealdade em relação ao Estado de Israel...lealdade não isenta de interesses muito materiais posto que alguns como Perle e Wolfowitz representam interesses de companhias estatais judias (frequentemente de armamento) dentro dos EUA. Porém, ademais, isso enlaça com o eixo central de nosso trabalho: se trata de um setor convicto de que Israel era o "povo eleito" do Antigo Testamento e os EUA são o "povo eleito da modernidade". A um corresponde velar pela segurança do outro. Para ambos o Antigo Testamento é um texto que explica como será o mundo futuro. Daí que valha a pena seguir suas indicações, especialmente quando alude aos sinais do Apocalipse e à Segunda Vinda de Cristo que reconciliará judeus e cristãos e operará a conversão de Israel. É importante destacar, como já o fizemos em outros lugares, que a solidariedade da Administração Bush por Israel vai mais além de qualquer racionalidade e se trata de uma conclusão à qual levam distintos enfoques: de um lado os interesses estratégicos (Israel é o grande aliado dos EUA no Oriente Médio), porém também e acima de tudo os laços ideológicos e místicos que unem à extrema-direita israelense com a direita neoconservadora norte-americana.



A Rede Neoconservadora

Dinheiro não falta. A Fundação Bradley constitui o suporte do PNAC através do New Citizenship Project, Inc. O PNAC tem sua sede em Washington, no edifício do Instituto de Empresa Americano (American Enterprise Institute), outro think-tank conservador. De fato entre ambas organizações há uma multitude de vínculos e personagens como Perle, que pertencem a ambos.

Assim mesmo, os membros do PNAC costumam estar também aderidos a outros grupos de pressão neoconservadores: o Hudson Institude, o Center for Security Policy, o Washington Institute for Near East Policy, o Middle East Forum, e o Jewish Institute for National Security Affairs. Porém, não nos enganoemos, apesar de que todos estes núcleos de poder estejam entrelaçados entre si e aportem a totalidade dos quadros da administração Bush, não se trata de grupos particularmente numerosos. São uma elite completamente desvinculada do americano médio que ignora seus postulados na medida em que os grandes meios de comunicação jamais aludem à existência desses núcleos intelectuais. Agora bem, estes núcleos estão também vinculados a uma parte do poder econômico e financeiro dos EUA. É, ademais, lógico que petroleiros, dirigentes do complexo militar-industrial, pensem em termos estratégicos e se vinculem a estes núcleos neoconservadores, como antes, os membros de organizações como o CFR ou a Comissão Trilateral, o faziam com núcleos fabianos e democratas.

É previsível que no futuro se produzam viradas importantes na política norte-americana. Já dissemos que nem todos os republicanos compartilham dos pontos de vista do clã straussiano, neoconservador e belicista. De fato, um setor do Partido Republicano, se caráter moderado, tem denunciado, ainda que timidamente, os riscos de prescindir dos aliados nas iniciativas de política exterior, e especialmente, sobre a periculosidade do déficit interior. Recordam que a OTAN todavia existe e que os EUA são altamente tributários das importações de manufaturas européias. Advertem sobre o rechaço que provocam as aventuras militares entre os europeus e advogam pelo "uso racional" da força. Henry Kissinger, membro dessa tendência, segue propondo um equilíbrio nuclear, enquanto que outros representantes dentro da administração Bush, são James Baker, Richard Armitage, Anthony Zinni, e Colin Powell.

Não há que esquecer que os EUA estão ligados ao antigo "mundo livre" por distintos tratados: ademais da OTAN, existe ainda que em vida larvar, o Tratado de Defesa Asiático ou o Tratado Interamericano do Rio, sem esquecer que o aventureirismo da administração Bush está deixando inoperantes as Nações Unidas.

Quando Donald Rumsfeld analizava no verão de 2002 o desenvolvimento da campanha afegã - não sem certos tons épicos - aproveitava para redefinir as prioridades da política norte-americana coincidindo em tudo com os mentros do PNAC, se bem se acrescentavam dois pontos, os finais, que insistiam desusadamente na proteção das redes de informação e na utilização das tecnologias de ponta para alcançar maior efetividade nos ataques das Forças Armadas. Esse ano aumentou o orçamento militar em todas as suas partes: defesa interior, armamento, investigação, presença no exterior, etc. Porém a principal novidade que se desprendeu da análise de Rumsfeld foi a coordenação de todos os serviços de informação e inteligência em uma só estrutura. Tal era a conclusão que Rumsfeld dava a seu artigo sobre o Afeganistão: as guerras precisam de um grande esforço de inteligência e portanto há que centralizar essas tarefas, as novas tecnologias da comunicação devem ser integradas nas Forças Armadas de maneira prioritária, a defesa do território metropolitano norte-americano é fundamental, o transporte de tropas é decisivo e, finalmente, como concessão ao sistema democrático, insista em que "O povo dos EUA deverá ser sempre plenamente informado dessas novas políticas e estratégias".

Porém Rumsfeld silencia muitas coisas, sem dúvida, as mais importantes: silencia que o terrorismo islâmico não é um risco para a segurança nem para a estabilidade mundial, tão somente um obstáculo anti-democrático em determinados países do mundo islâmico, concretamente na Arábia Saudita e no Paquistão, e em muita menor medida na Argélia, enquanto que na Chechênia vive seus últimos suspiros e em Bósnia-Kosovo está, senão desmantelado, ao menos apaziguado, assim como ocorre no Irã. Na Ásia Central se vive o fracasso do Islã radicalizado. Para concluir: quando se produz o ataque de 11 de Setembro, o Islã fundamentalista vive uma etapa de regressão. O pouco que se examine cada atentado atribuído ao "terrorismo internacional" se percebe com clareza que não existe uma direção terrorista universal, senão que cada atentado responde a circunstâncias locais muito concretas... ou muito misteriosas para que seja possível buscar um responsável universal. Rumsfeld silencia também que aos EUA será muito difícil reconstruir sua rede de alianças, especialmente com a Europa, território no qual se tem comprovado que os custos eleitorais das opções pró-americanas são de tal magnitude que tornam impensável pensar em que algum governo europeu voltará a repetir viradas pró-americanas como o de Aznar. Sem esquecer que já não é a Europa que precisa dos EUA para se proteger da URSS - a União Européia vive um idílio com o espaço russo - senão são os EUA que precisam da União Europeia porque é daí que procede o essencial de manufaturas que alimentam seu mercado consumidor interno. Falta dizer, finalmente, que a partir do ataque contra o Afeganistão resultou absolutamente evidente que os EUA não admitiam de seus aliados outra atitude que não fosse o submetimento a seu mando único, e que a campanha do Afeganistão demonstrou até que ponto os "impérios" não tem "aliados" senão "súditos".


25/04/2011

A Morte do Trabalho

por Ernesto Milà

Pode ser um drama constatá-lo, mas é uma realidade. O trabalho está a morrer. É certo que todos os dias se criam novos postos de trabalho, mas se observamos os números absolutos, em 20 anos a capacidade produtiva duplicou, mas a ocupação só aumentou 5%. O que é que isto quer dizer? Que cada vez menos pessoas fazem mais trabalho. Porquê? Por causa da automatização de processos. Constatar este facto é o elemento sociológico de maior interesse no nosso tempo. 

Chama a atenção que, precisamente no momento em que o trabalho agoniza, este se converteu num mito universal: tanto a direita, como o centro, como a esquerda veneram o trabalho, considerado como uma obrigação social. Todos os partidos lançam medidas para “estimular o trabalho”, “diminuir a fraude no desemprego”, “reciclar os trabalhadores”, etc. Nenhum explica – talvez porque na sua estupidez não o percebam – que o resultado da era tecnotrónica é a eliminação progressiva do trabalho físico.

Há 10 anos atrás eram precisos 12 trabalhadores para vindimar um campo de um hectare. Hoje, esse mesmo trabalho realiza-se mediante uma máquina provida de sensores que detectam os racimos e outra pessoa que, a pé, examina se há algum racimo não detectado. Na construção, há 20 anos atrás, construía-se uma casa ladrilho a ladrilho; hoje tende-se às estruturas pré-fabricadas. Inclusivamente nos autocarros, até há pouco tempo eram necessários um condutor e um revisor, e dentro em breve haverá só um programa computorizado que levará os passageiros ao destino. O trabalho agoniza. Mas nunca como agora se prestou tal culto ao trabalho. O culto do trabalho pertence à mitologia moderna. É universal: mas é um mito.


Diariamente legiões de desempregados vivem um drama que parecem não entender: estão dispostos a vender uma força de trabalho… que ninguém está interessado em comprar. Estas pessoas ou vão engrossar as filas de desemprego e da assistência social, ou então aceitam trabalhos mal remunerados, que não exigem qualificação profissional e para os quais têm de competir com outros milhares de trabalhadores. O resultado é uma queda no preço da força de trabalho e a proliferação de trabalhos-lixo remunerados com salários-lixo que apenas permitem uma subsistência mínima.

Nos últimos 20 anos assistimos a uma mutação imperceptível mas contínua. Paralelamente à morte do trabalho, está também em vias de extinção a economia de produção que se converte progressivamente em economia de especulação.

Nas bolsas, a loucura financeira não tem nada a ver com a economia produtiva. No passado, os investidores investiam numa empresa porque acreditavam nas suas possibilidades produtivas, o que se reflectiria na hora de repartir os dividendos. Agora tudo isto mudou: investe-se na bolsa apenas durante algumas horas, e ao registar alguma subida, retira-se imediatamente o dinheiro, e a diferença entre o valor investido e o registado duas horas depois já constitui um lucro apreciável. De seguida o dinheiro migra para outras empresas, noutras fronteiras, noutras bolsas… Não existe nenhuma relação entre a economia produtiva e a especulação financeira. Estas práticas especulativas não fazem mais do que acelerar a morte do trabalho.


Em primeiro lugar temos de considerar a morte do trabalho como algo irreversível: os processos de automatização irão avançado e diminuirão progressivamente o mercado de trabalho. Este processo não é bom, nem mau: é bom se se reconhece no seu verdadeiro rosto e se actua em consonância. É mau, na medida em que os partidos políticos mentem e se negam a dizer à população a realidade da morte do trabalho.

Imaginemos uma sociedade em que o trabalho não seja o grande valor universal. Há outras actividades humanas, que não produzem benefícios económicos, mas que são indispensáveis para o equilíbrio psicológico da vida humana: o ócio, o estudo, a investigação, o exercício da paternidade, todas estas actividades podem dispor de mais tempo numa sociedade em que o trabalho tenha morrido.

Torna-se claro que nestas circunstâncias há que reduzir as jornadas laborais (trabalhar menos para trabalharem todos) e aumentar as ajudas sociais do Estado. É possível um programa baseado nestes dois pontos? É cada vez mais possível. Basta reconhecer os factos, estimular os canais educativos da população e realizar uma melhor distribuição das receitas do Estado que deve aumentar as suas receitas castigando fiscalmente a economia especulativa.


Reconhecer que o trabalho está a morrer é reconhecer também que há que remover dos programas dos partidos políticos de estilo novo qualquer referência ao culto do trabalho, é preciso ser realista: o trabalho é uma actividade como outra qualquer. Certamente que desde o nazismo todos os partidos promovem um “culto ao trabalho”. E isto gerou uma distorção da realidade: porque o trabalho não é a única tarefa que pode realizar o ser humano.

Felizmente a vida humana é extremamente rica em matizes. Além do trabalho existem muitas outras formas de actividade: a criação artística, o ócio, a investigação, a aprendizagem, o estudo, cuja natureza é muito diferente da do trabalho e que, frequentemente, é gerada por interesses não económicos.

A morte do trabalho é uma das formas que adquire a norma aconselhada por Julius Evola de “cavalgar o tigre”: porque se a morte do trabalho é uma tragédia, é-o, sobretudo, para a sociedade burguesa das Luzes e da prática política-económica do século XIX, não para aqueles que queremos um mundo novo e original, no qual a possibilidade de não morrer de fome não se dê necessariamente por troca com a de morrer de aborrecimento.

Em 1965 Herbert Marcuse estabeleceu que a diferença entre a nossa época e as anteriores, consistia em que agora era possível a realização prática dos ideias utópicos dado o crescimento das forças produtivas. Marcuse adiantou-se quase 40 anos: para que a utopia fosse possível era preciso uma maior automatização dos processos produtivos… e uma vontade decidida de conter o crescimento da economia especulativa. Isso não ocorria em 1965, mas ocorre hoje.


A utopia é possível, desde que se adoptem medidas drásticas: em primeiro lugar é necessário cortar radicalmente o fluxo de imigrantes para a UE, de seguida inverter a tendência e proceder ao repatriamento progressivo dos imigrantes. Neste terreno a divisa é: “Os Espanhóis primeiro”. Assim se põe termo ao crescimento da população que pretende vender a sua força de trabalho e, em consequência, o seu valor aumenta.

A segunda medida é a redução drástica dos horários de trabalho. Hoje é possível manter os salários com menos de 35 horas semanais. Além do mais, as reduções de horários devem ser acompanhadas por medidas sociais: subvenção ao trabalho no lar, protecção à família, etc. As protecções no desemprego, longe de diminuir como até agora, devem aumentar. E tudo isto, que implica um forte aumento dos gastos públicos, obtém-se mediante uma maior distribuição das receitas do Estado.

Finalmente a utopia é possível desde que se ponha termo à economia especulativa. A taxa Tobin parece uma medida oportuna, mas não é a única, nem sequer a mais aplicável. É preciso impedir fiscalmente as grandes acumulações de capital. É impossível abolir o capital, mas é possível orientá-lo em direcção à produção em vez da especulação. Os rendimentos procedentes da especulação devem restringir-se ao máximo. Hoje, a utopia é possível, mas a utopia já não está na nova esquerda, mas sim em quem tenha a coragem de denunciar o principal facto do nosso tempo: a morte do trabalho.