02/11/2019

Adriano Erriguel - A Desconstrução da Esquerda Pós-Moderna

por Adriano Erriguel

(2018)



Toda luta pela hegemonia política começa por uma definição do inimigo. Mas sendo a política o âmbito, por excelência, do antagonismo, é claro que essas definições nunca podem ser neutras. Não estamos aqui no campo da probidade intelectual, nem no das pautas verificáveis de objetividade e precisão. Toda luta política aspira mobilizar um capital emocional, se apoia em recursos retóricos, tenta arrastar o antagonista para um terreno de jogo arranjado. Nesse contexto, aquele que determina os códigos linguísticos venceu a partida. Não em vão, a hegemonia consiste precisamente nisso: em um jogo. Ou mais exatamente, em jogos de linguagem.

O pensamento hegemônico de nossos dias – tudo isso que o politólogo norte-americano John Fonte batizava há anos como progressismo transnacional – impôs de forma esmagadora sua definição do inimigo. Todo aquele que se enfrente a sua visão messiânica do futuro – um mundo pós-nacional de cidadania global, no qual uma governança mundial deslocará as soberanias nacionais – se verá imediatamente apelidado de reacionário, de ultraconservador ou de populista, quando não de algo pior. [1]

Cabem poucas dúvidas: no debate público atual quase todas as cartas estão marcadas. Ainda que a linguagem nunca seja neutra, hoje ela está mais enviesada do que nunca. Poucos diagnósticos mais errôneos – entre os formulados no século XX – do que aquele que profetizava o “fim das ideologias”. Hoje a ideologia está por todas as partes. A prova é que assistimos à imposição de uma linguagem extremamente ideologizada, ainda que de forma sub-reptícia e com o nobre aval de poderes e instituições.

Uma linguagem ideologizada? Ainda que por sua onipresença pareça invisível, essa linguagem existe e é o instrumento de uma sociedade de controle. O controle começa sempre pelo uso das palavras.

Que tipo de palavras? Como se organizam?


Se tentamos uma classificação superficial podemos distinguir várias categorias. Por exemplo: as palavras-armadilha, aquelas que tem um sentido ressignificado ou usurpado (“tolerância”, “diversidade”, “inclusão”, “solidariedade”, “compromisso”, “respeito”); as palavras-fetiche, promovidas como objeto de adoração (“ilegais”, “nômade”, “ativista”, “indignado”, “mestiçagem”, “as vítimas”, “os outros”); os termos institucionais, senhas da superclasse global (“governança”, “transparência”, “empoderamento”, “perspectiva de gênero”); os achados da correção política (“zonas seguras”, “ação afirmativa”, “antiespecista”, “animalista”, “vegano”); os idioletos universitários com pretensões científicas (“construto social”, “heteropatriarcal”, “interseccionalidade”, “cisgênero”, “racializar”, “subalternidade”); os eufemismos destinados a suavizar verdades incômodas: “flexibilidade” e “mobilidade” (para adocicar a precariedade laboral), “reformas” (para designar os cortes sociais), “humanitário” (para acompanhar uma intervenção militar), “filantropo” (mais simpático do que “especulador internacional”), “redesignação de gênero” (mais sofisticado do que “mudança de sexo”), “interrupção voluntária da gravidez” (menos brutal do que “aborto”), “pós-verdade” (diz-se da informação que não segue a linha oficial).

Protagonismo especial tem as “palavras-polícia” (George Orwell as chamava “blanket words”) que cumprem a função de paralisar ou aterrorizar o oponente (“problemático”, “reacionário”, “nauseabundo”, “ultraconservador”, “racista”, “sexista”, “fascista”). Destaca-se aqui a linguagem das “fobias” (“xenofobia”, “homofobia”, “transfobia”, “serofobia”, etc.) que busca converter em patologias todos aqueles pensamentos que choquem com o código de valores dominantes (pensamentos que, inevitavelmente, formarão parte de um “discurso de ódio”). Sem esquecer as “palavras-tabu”: Aquelas que denotam realidades arcaicas, inconvenientes e perigosas (“pátria”, “raça”, “povo”, “fronteira”, “civilização”, “decadência”, “feminilidade”, “virilidade”). [2]

A “Novilíngua” (Newspeak) do politicamente correto tem duas características: 1) Transmite-se de forma viral pelo mainstream midiático; 2) Sua utilização funciona como um código ou “aval” de conformidade com a ideologia dominante. O objetivo da Novilíngua – como Orwell demonstrou em “1984” – é determinar os limites do pensável. Por isso, a hegemonia constrói seu próprio vocabulário, decide sobre seus significados e se atribui o monopólio da palavra legítima. Dessa forma, qualquer fagulha de rebelião contra o “pensamento único” se encontra, já de início, encaixado no campo semântico do inimigo.

Mas que inimigo?

Os objetores ao pensamento único necessitam definir com o que se enfrentam aqui. E como estamos falando de relações de antagonismo, a definição, longe de ser neutra, deve conter um elemento pejorativo que assegure sua eficácia política. Os objetores ao pensamento único devem construir seu próprio campo semântico, devem aprender a jogar os jogos de linguagem.

Quem manda aqui?

Nos estudos sobre filosofia da linguagem é um lugar comum citar uma famosa passagem de “Alice Através do Espelho”, de Lewis Carroll. Recordemos o episódio. Alice dialoga com Humpty Dumpty, o grotesco personagem em forma de ovo, criatura do folclore inglês. Em um dado momento, Humpty Dumpty utiliza palavras com um significado aparentemente alheio ao conteúdo da conversa. Quando Alice o critica, o diálogo segue da seguinte forma:

- Quando eu uso uma palavra – disse Humpty Dumpty em um tom desdenhoso – ela quer dizer o que eu quero que diga...nem mais nem menos.
- A questão – insistiu Alice – é se se pode fazer com que as palavras signifiquem tantas coisas diferentes.
- A questão – concluiu Humpty Dumpty – é saber quem manda...isso é tudo.

Em sua fabulação, Lewis Carroll capturava de forma simples algo que, anos mais tarde, se converteria no grande campo minado da filosofia pós-moderno: o questionamento da ideia de significado, o desafio às teorias tradicionais da linguagem e da cultura, o pós-estruturalismo e a desconstrução. Basicamente, o que os filósofos da linguagem viriam dizer – na linha de Wittgenstein e de Humpty Dumpty – era que a linguagem se constitui em uma série de “jogos”, e que os enunciados ou declarações se agrupam em tipologias diferentes que dependem de regras compartilhadas e produzem uma relação entre os falantes, da mesma forma que os jogos demandam regras e geram uma relação entre os jogadores. Nesse sentido, os diálogos podem ser vistos como uma “sucessão de manobras”: “falar é lutar”, no sentido de “jogar”. A conclusão essencial de tudo isto é que “ao ganhar uma rodada, ao replicar de forma inesperada, ao alterar os termos do debate, ao dissentir frente à posição dominante, podemos alterar as relações de poder, ainda que de forma imperceptível”. [3]

A questão é saber quem manda. Aquele dos jogadores que aceite como próprio o campo semântico do inimigo, ou que maneje um código linguístico obsoleto, perdeu de antemão.

A luta pela linguagem forma parte de um grande fenômeno pós-moderno: as guerras culturais.

O Grande Jogo

Nossa aldeia global está imersa em um “grande jogo”. Esse jogo pode ser definido acudindo a um conceito nascido no mundo anglossaxão: as “guerras culturais”. O que esse conceito quer dizer é que a política transbordou o âmbito estrito das doutrinas políticas e dos programas eleitorais. Hoje, mais do que nunca – como viu Gramsci há quase um século – tudo é política. Tradicionalmente é a esquerda quem melhor compreendeu isso, e por isso ela politizou absolutamente tudo: a linguagem certamente, mas muito especialmente tudo aquilo que concerne a vida privada e os aspectos mais íntimos da pessoa. Na parte que lhe toca, a direita – inspirada nos princípios do liberalismo clássico – abandonou a vida privada ao arbítrio de cada indivíduo e se centrou na gestão da economia. Uma direita gestora frente a uma esquerda de valores: essa tem sido – grosso modo e simplificando muito – a situação durante as últimas décadas. Mas algo mudou nos últimos anos. O primeiro resultado tangível dessa mudança se viu nos EUA, o laboratório principal dessa “esquerda de valores” que segue constituindo o pensamento hegemônico.

Os meses que precederam a vitória de Trump em novembro de 2016 não foram uma campanha eleitoral, mas mais precisamente a culminação de uma “guerra cultural” que se vinha travando há anos. Para além das estridências do personagem, o importante de Trump é o fenômeno social e cultural que representa, e que tornou possível a incubação deste inesperado terremoto político. O que ocorreu foi que, diante da ditadura do politicamente correto, as forças dissidentes haviam começado a construir seu próprio campo semântico, a quebrar o “marco” linguístico definido pelo inimigo.

As “guerras culturais” se configuram como um conceito-chave para os anos vindouros. A velha direita - a chamada direita “civilizada” – com seu discurso legalista e tecnocrático se encontra neste terreno completamente perdida. Confiando em sua superioridade intelectual (acreditada, segundo ela própria, pela gestão econômica) essa direita se limita a assumir como próprias as cruzadas culturais definidas a partir da esquerda, transcorridos os prazos preventivos de aclimatação. A razão de fundo é que, em realidade, essa direita assume o mesmo marco mental que a esquerda: a história tem um “sentido” que segue o curso do progresso.

Mas voltamos à pergunta anterior. Para os dissidentes frente ao pensamento hegemônico: como definir o inimigo?

A coisa se complica após a irrupção, durante os últimos anos, de um novo elemento: uma esquerda populista estimulada pela crise financeira de 2008. Em realidade, isto não constitui nenhuma surpresa. A chegada do populismo de esquerda se viu preparada, durante as últimas décadas, pelo predomínio esmagador – nos âmbitos cultural, acadêmico e midiático – da esquerda pós-moderna. Existe uma relação de continuidade entre os novos movimentos de esquerda (chamem-se populistas, radicais, de extrema-esquerda, ou o que seja) e a esquerda pós-moderna. Ambos compartem os mesmos dogmas, o mesmo substrato social, a mesma mitologia progressista. Ambos são o ecossistema natural do “politicamente correto”. Ambos são coetâneos do período de máxima expansão do neoliberalismo (uma coincidência nada casual à qual nos referiremos mais tarde). Para qualificar o pensamento dessa esquerda pós-moderna alguns utilizam o termo de “marxismo cultural”. Para qualificar essa esquerda populista muitos continuam referindo-se ao comunismo ou ao “neocomunismo”, como se este fosse uma ameaça real, como se este tivesse a capacidade de reproduzir a experiência totalitária do século XX.

Mas estas definições respondem a categorias obsoletas. Não nos encontramos aqui diante de um “marxismo cultural”, nem diante de um “marxismo” puro, e muito menos diante de um comunismo. Ao contrário, a esquerda pós-moderna – e esta é a tese central que defenderemos aqui – tem muito pouco de marxista e muito de neoliberalismo cultural puro e duro.

Mas isso é algo que, à primeira vista, não parece tão evidente. É muito certo que a esquerda radical usa e abusa de uma retórica “retrô” (o “antifascismo” em primeiro lugar) e reclama para si o patrimônio moral das lutas “progressistas” do passado. Mas com isso, a única coisa que faz é parasitar uma épica revolucionária que não lhe corresponde. Na verdade, a aposta ideológica da esquerda em todas as suas variedades (da social-democrata à mais radical ou populista) se inscreve de facto na agenda da globalização neoliberal. E se seu pensamento é, às vezes, qualificado como “marxismo cultural”, isso obedece ao peso da velha linguagem, assim como à rotina mental da direita habituada a categorizar como “comunista” tudo que lhe desagrade.

Mas não, não nos encontramos às vésperas de um “assalto aos céus” leninista, nem de uma socialização dos meios de produção, nem de uma ditadura do proletariado. Ao contrário: o cenário é o da ditadura de uma “superclasse” (overclass) mundializada, apoiada em técnicas de “governança” pós-democrática. Um cenário no qual a esquerda radical oferece as funções de acelerador e comparsa, preparando o clima cultural propício a todas as fugas para a frente da civilização liberal. Frente aos desafetos, a esquerda radical assegura – com seu zelo vigilante e histeria correntista – uma função intimidatória e repressora que adquire tonalidades parapoliciais. Tarefas todas elas perfeitamente homologadas pelo sistema.

De onde vem, pois, os equívocos? No mundo das ideias não há preto e branco. O vocabulário atual do politicamente correto se nutre, sem dúvida alguma, de uma incubação no pós-marxismo da Escola de Frankfurt e seus epígonos. Aí está a origem de um desentendimento – o suposto caráter “marxista” da ideologia hoje dominante – que a guerra cultural antimundialista deveria desfazer de uma vez por todas, se quiser assumir uma definição eficaz do inimigo.

Convém, para isso, fazer um pouco de história.

Os Autênticos Sepultadores do Marxismo

Costuma-se considerar que o fim do marxismo enquanto ideologia política teve lugar em 1989, com a queda do “socialismo real” e o colapso da URSS. Mas o certo é que o marxismo havia sido enterrado muitos anos antes, e que muitos de seus sepultadores passavam-se por discípulos de Marx.

Na verdade, o acontecimento que provou ser o canto de cisne do marxismo foi a revolução de maio de 1968, o momento em que o movimento operário foi deslocado por um sucessor: o “esquerdismo” liberal-libertário. [4] Mas a epifania progressista dos estudantes de Paris e de Berkeley havia sido prefigurada – com várias décadas de antecipação – pelo corpus teórico (também chamado de “teoria crítica”) da “Escola de Frankfurt”. Foram os intelectuais do “Instituto para a Investigação Social” fundado em 1923 nessa cidade alemã os que provocaram, a partir de dentro, a implosão do marxismo. Muitas das ideias e temas propagados por esses intelectuais se encontram na origem dos condensados ideológicos que hoje conformam a ideologia mundialista.

Desde seus primeiros anos e durante sua etapa de exílio nos Estados Unidos, a Escola de Frankfurt apartou no sótão da história o dogma central do marxismo ortodoxo: o determinismo econômico, a ideia de que são as condições materiais e os meios de produção (a infraestrutura) que determinam o curso da história, a visão fatalista de um triunfo inevitável do socialismo. O que interessava para os intelectuais de Frankfurt era a ação na “superestrutura”, posto que são as condições culturais – mais que a economia – que determinam a reificação e a alienação dos seres humanos. Algo que Georgy Lukács já apontava em “História e Consciência de Classe” (1923), obra fundadora do marxismo ocidental. Não em vão, todos os luminários da escola – Max Horkheimer, Theodor Adorno, Erich Fromm, Herbert Marcuse – se centrariam quase exclusivamente na crítica cultural, deixando de lado as questões econômicas. O que nos leva ao segundo golpe – ainda mais letal – que a Escola de Frankfurt daria ao marxismo ortodoxo.

Ao concentrar as suas denúncias na reificação e na alienação dos seres humanos – e não nas condições econômicas da exploração capitalista – estes intelectuais deslocavam o fim último da transformação social: esta já não se reduziria à abolição das injustiças sociais, mas se concentraria na eliminação das causas psicológicas, culturais e antropológicas da infelicidade humana. Nesta linha, estes autores se esforçariam para estabelecer passarelas entre o materialismo histórico e pensadores alheios a essa tradição, tais como Freud (é o chamado “freudo-marxismo”) ou – em um improvável exercício de malabarismo intelectual – o próprio Nietzsche. Na realidade, a Escola de Frankfurt é uma bagunçada oficina de ferramentas intelectuais onde se pode encontrar de tudo: as intuições mais brilhantes caminham de mãos dadas com os amálgamas mais precários, e uma crítica extremamente perspicaz da modernidade e de suas condições de desenvolvimento se vê misturada com uma obstinação utópica fadada ao dogmatismo. Tudo isso banhado em uma atmosfera de virtuosismo e de elitismo intelectual que selava o estranhamento definitivo entre os “intelectuais orgânicos” e as pessoas comuns. Ou seja, entre a intelligentsia progressista e o povo.

Cosmópolis Utópica

A Escola de Frankfurt oferece um grande paradoxo: partindo do marxismo – ou melhor, de uma interpretação “humanista” da obra do “jovem Marx” – seus teóricos preparavam o terreno para a ideologia orgânica da globalização neoliberal. A primeira ponte entre os dois mundos tem muito a ver com o fetiche ideológico destes intelectuais: a ideia de utopia. Para a Escola de Frankfurt, a utopia não é um “Dia do Juízo” ou Fim da História no sentido marxista – o advento de uma sociedade sem classes – mas, insuflando uma nota de realismo, admitem que mesmo que nunca alcancemos a Salvação ou Redenção final, a manutenção do Ideal – o sonho da Redenção – é um bem em si mesmo, posto que nos impele a uma melhora indefinida da Humanidade. É o "princípio esperança” definido pelo filósofo Ernst Bloch. Sob a tabela implacável da Utopia, o presente se vê, assim, submetido a uma acusação perpétua, se vê impelido a avançar pelo caminho do cosmopolitismo e da “tolerância” em prol da (sempre distante) miragem utópica. Mas não se trata aqui de uma utopia coletivista do tipo da “sociedade comunista” do marxismo clássico. Desde o momento em que se vincula a uma ideia de “felicidade” pessoal, a utopia frankfurtiana concerne, fundamentalmente, ao indivíduo. O que nos conduz à segunda grande ponte com o neoliberalismo.

Que a “felicidade” enquanto reivindicação individual é um velho fetiche do liberalismo, é algo que não demanda grandes demonstrações. Basta para isso ler a Constituição dos Estados Unidos. A contribuição da Escola de Frankfurt consistiu em canalizar rumo a essa reivindicação uma parte do capital teórico do marxismo, fazendo uma remodelação dele como uma espécie de filosofia “humanista” e relegando seus enfoques de classe e suas aspirações revolucionárias. A chave-mestra para isso consistiu na descoberta do “jovem Marx” – o dos “Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844” – com suas “inclinações utópicas e sua visão de um homem novo e liberado do egoísmo, da crueldade e da alienação. A revolução contra o capitalismo se substituiu por algo parecido a uma tentativa de transformação da condição humana. O socialismo passava, assim, a se identificar com uma forma de tratar as pessoas, mais do que com um modelo institucional e político”. [5]Aqui se consuma o autêntico enterro do marxismo.

Frente às categorias materialistas e positivistas do marxismo – empenhadas em uma analogia com as ciências naturais – a “Escola de Frankfurt” enfatizava os elementos éticos, subjetivos e individuais da “teoria crítica”, de forma que esta se configurava como uma teoria geral da transformação social, por sua vez esporeada por um desejo de “liberação” entendida em um sentido individual. A “liberação” e a “emancipação” eclipsavam assim o objetivo da revolução e se fundiam no horizonte utópico de uma “felicidade” orientada ao desenvolvimento pessoal. Não é estranho que Wilhelm Reich – com seus trabalhos sobre sexologia – ou Erich Fromm – com obras como “O Conceito do Homem em Marx” – alcançaram grande popularidade e foram amplamente lidos nos meios radicais norte-americanos.

O que restava então do marxismo? Uma retórica, um jargão acadêmico, uma dialética opressores/oprimidos, uma casca de romantismo subversivo a serviço do único sistema que, de fato, torna tangível esse graal utópico da “liberação” individual indefinida: o liberalismo libertário no cultural, o neoliberalismo no econômico; o que é dizer: o capitalismo em seu estágio final de desenvolvimento.

Do Pós-Marxismo ao Neoliberalismo

A primeira regra da guerra cultural é saber ler o inimigo. O legado da Escola de Frankfurt é rico demais para ser lançado no saco cômodo do “marxismo cultural”; de fato, boa parte de seus postulados admitem uma leitura “de direita”. O caso mais evidente – e interessante – é a perspectiva “antiprogressista” desenvolvida por uma parte desta escola. 

Um dos paradoxos da teoria frankfurtiana consiste em sua crítica sistemática da modernidade. Na realidade, trata-se da única crítica da modernidade e da ideia de “progresso” que foi formulada a partir da esquerda, ou pelo menos a partir de uma tradição não conservadora ou não reacionária. Possivelmente seja também a mais brilhante das realizadas até a data. A experiência de Auschwitz e a conseguinte ruína do otimismo progressista são as bases sobre as quais se constrói a obra seminal de Max Horkheimer e Theodor Adorno: “Dialética do Esclarecimento”. Nessa obra, o que ambos autores vêm dizer é que, depois de tudo, talvez o preço a pagar pelo “progresso” seja alto demais, e que os ideais racionalistas, quando absolutizados, revertem em seu oposto: em um novo irracionalismo. Em seu enfoque crítico sobre o Iluminismo, os dois autores rechaçam a narrativa tradicional que enfatizava a revolução das instituições, as ideias políticas ou o progresso tecnológico, e se concentram em uma crítica antropológica: os danos causados pelo desdobramento da razão instrumental em uma sociedade totalmente administrada, com seus corolários de reificação e alienação da pessoa. A partir dessa perspectiva, o panorama da modernidade e do progresso poderia ser muito sombrio. Há, portanto, na Escola de Frankfurt uma abertura a um certo conservadorismo cultural. [6] Não em vão, Horkheimer assinalava que, assim como há coisas que devem ser transformadas, há outras que devem ser preservadas, e que um verdadeiro revolucionário está mais próximo de um verdadeiro conservador do que de um fascista ou de um comunista.

Mas aceitas estas premissas, a diferença com uma autêntica “crítica de direita” é clara: ali onde esta teria posto a ênfase na denúncia da uniformização cultural, no desenraizamento identitário e na ruptura do vínculo comunitário (fenômenos todos eles impulsionados pela modernidade), Horkheimer e Adorno tem um enfoque individualista: a denúncia da perda de “autonomia” pessoal, o rechaço aos “processos de dominação” que afligem o indivíduo. Seja como for, a crítica frankfurtiana à modernidade segue sendo uma pílula dura de tragar para a vulgata progressista e para o “pensamento positivo” de nossa época. Por isso mesmo continua sendo uma contribuição para todos aqueles que, seja a partir da direita ou a partir da esquerda, desejam acometer uma desconstrução teórica da modernidade, do Iluminismo e do “progresso”.

Mas o gênio do liberalismo consiste em sua capacidade de absorver todas as críticas, sua habilidade de transformá-las em “oposição controlada”. O êxito da “teoria crítica” frankfurtiana marcou sua integração nas instituições, algo que os próprios Horkheimer e Adorno já haviam previsto quando assinalavam que, na medida em que uma obra adquire popularidade, seu impulso radical se vê integrado no sistema. O liberalismo descartou a parte mais autenticamente subversiva da Escola de Frankfurt – a crítica da razão instrumental, a análise da dessacralização do mundo, a reivindicação dos valores não-econômicos, a denúncia do consumismo, o rechaço da mercantilização da cultura, a advertência sobre a perda do “sentido” – e adotou seus postulados mais individualistas e libertários de “emancipação” e de rechaço à “dominação” exercida pela família, pelo Estado e pela Igreja. A “dialética negativa” desenvolvida pela Escola de Frankfurt serviu assim de instrumento para toda uma geração de radicais americanos e europeus empenhados em uma reconfiguração profunda da sexualidade, da educação e da família.

A um nível teórico mais profundo, a “dialética negativa” frankfurtiana se enlaçava sem solução de continuidade com uma nova geração mais radical e carente dos escrúpulos “conservadores” de Horkheimer e seus amigos: a geração do pós-modernismo e do pós-estruturalismo, de Foucault e de Derrida, da desconstrução e da ideologia de gênero. A partir dos anos 1970 se assentariam as bases de uma nova cultura e de um “homem nove”.

Ficaria livre o caminho rumo ao neoliberalismo.

O Neoliberalismo Invisível

“A maior astúcia do diabo é fazer com que acreditemos que ele não existe”, dizia Baudelaire. A maior astúcia do neoliberalismo consiste em adotar todas as formas possíveis, inclusive a do antineoliberalismo.

Ao fim de 2017, o Banco Bilbao-Vizcaya (BBVA) patrocinava a publicação de um luxuoso volume chamado “A era da perplexidade. Repensar o mundo que conhecíamos”, com o objetivo de reunir as reflexões de uma série de especialistas internacionais sobre “os grandes rumos da ciência, da tecnologia, da economia, dos negócios e das humanidades”. [7] O volume – apresentado como produto da comunidade online “Open Mind”, patrocinada pela BBVA – se abre com um artigo do presidente do banco, Francisco González, que oferece uma análise resumida sobre a revolução tecnológica, a qual “gerará a médio prazo mais bem-estar, crescimento e emprego”. O autor assegura que “sem dúvida, ainda há no mundo centenas de milhões de pessoas que vivem na pobreza extrema, e bilhões cujas condições de vida são muito deficientes” (...) “mas, em conjunto, o curso da economia global não avaliza o sentimento de insegurança, frustração e pessimismo que se vem observando cada vez mais”. Até aqui tudo normal: é o tipo de discurso institucional, mesurado e balsâmico que esperamos de um banqueiro. O curioso começa depois.

Entre o florilégio de textos reunidos não falta nenhum dos tópicos favoritos do progressismo transnacional: a crítica do populismo, a prédica feminista, a denúncia da “pós-verdade”, a ameaça russa, o perigo de Trump, o mantra das “reformas”, as bondades da globalização. Mas entre os artigos chama a atenção o que é aportado por um universitário canadense: uma furibunda diatribe contra o neoliberalismo unida a uma exaltação do anarquismo e dos movimentos antissistema. [8] O autor constata os horrores do “pesadelo neoliberal” (que é uma “sombra escura”), mas assegura que, ao final, tudo desembocará em “um novo amanhecer”, porque “há raios de esperança” que vem “trazer luz ao mundo”. Como? Através das “políticas prefigurativas” de esquerda, em cuja vanguarda estão os movimentos antissistema, os okupas, os zapatistas, os indignados, os coletivos pró-migrantes e inclusive as táticas de “black block” dos “antifa” violentos.

Mas se lermos com atenção, e meio ao êxtase anarquista (em papel cuché pago pelo Banco...) vemos a que veio o autor.

Ao se referir às críticas que, à época, alguns observadores fizeram do movimento “Occupy Wall Street” por não propor exigências claras de transformação social, o autor assegura que, se este movimento houvesse apresentado tais exigências, teria com isso “legitimado as estruturas de poder” e, portanto, teria debilitado seu compromisso com “a democracia participativa”. Em outro lugar do texto, o autor dirige um ataque ao acadêmico marxista David Harvey, por assinalar este último que “a atitude anti-estatista do anarquismo reforça, de facto, os valores neoliberais” (“Harvey, que é um marxista convicto, caricaturiza com má fé o anarquismo”, ele diz). Continuando, nosso autor assinala que, apesar de todas as maldades neoliberais, as políticas “prefigurativas” nos dão a oportunidade aqui e agora de mudar nossa vida quotidiana e de “criar um mundo novo no interior do velho”. E para encerrar, o professor antissistema entoa um hino À responsabilidade pessoa, individual e intransferível como único meio de transformar o mundo (“façamos realidade por conta própria a visão do que mais nos convém” (...) “se queremos alterar a direção do planeta...devemos fazer o trabalho duro nós mesmos. É um caminho pelo qual não podemos ser dirigidos”). Soa familiar, verdade? As cantilenas do self-made man, o “sonho americano”, a iniciativa privada, a sociedade civil, a “liberdade de escolher”, etc. Traduzido, tudo isto significa: nada de líderes, nada de luta organizada, nada de projetos coletivos, nada de programas políticos nem de revoluções. Sim ao protesto fotogênico, sim à algazarra estéril, sim ao berreiro adolescente, sim ao ativismo samaritano, sim ao turismo altermundialista. Ao fim e a cabo, o sistema permite, e ademais nos oferece nichos individuais para “tornar nossos sonhos realidade”. O que são, afinal, as ONGs solidárias, as startups ecológicas, as multinacionais de comércio justo, os financistas-filantropos e o charity business? Tudo isso, está claro, se formos responsáveis, se nos aplicarmos e trabalharmos duro. Porque o importante é “manter nossa autonomia”, reinventarmos a nós mesmos e “eliminar as fronteiras de nossos mapas” (toque final sem-fronteirista).

Resumindo: após o pacotinho antissistema, neoliberalismo.

O caso anterior é só um exemplo – anedótico, mas eloquente – do gênio supremo do neoliberalismo: sua capacidade camaleônica de fazer-se invisível, de fundir-se no espírito do tempo, para adotar uma máscara de esquerda. Neste caso, a dos anarquistas, antissistema e outros figurantes no circo mundial do neoliberalismo. 

Narcisismo de Massas

Por que as diatribes contra o neoliberalismo são patrocinadas pelos bancos? Por que os gurus contestadores são convocados pela mídia, reverenciados pelas universidades, adulados pelas instituições? Por que os subversivos recebem honrarias e subvenções? Por que o “pensamento alternativo” se expressa, quase sempre, em publicações de prestígio?

A resposta é simples: porque na maioria dos casos participam plenamente no desdobramento do capitalismo, favorecendo as mutações sociais e culturais exigidas pelo mercado.

Os caminhos do neoliberalismo são tortuosos: pós-marxismo, teoria “queer”, teoria pós-colonial, teoria do reconhecimento, feminismo de terceira geração, pós-estruturalismo, trans-humanismo, altermundialismo, estudos de gênero, estudos de descapacidade, estudos disto e daquilo. Todo um arsenal teórico, ideológico e social impulsionado em sua maior parte a partir dos Estados Unidos. Como assinalam Cédric Biagini e Guillaume Carnino – em um livro essencialmente o autêntico pensamento alternativo de nossa época – “ao se encarniçar na destruição dos modos de vida e de produção tradicionais, ao estigmatizar todo vínculo com o passado, ao exaltar a novidade, os processos de modernização incessante e a potência liberadora das novas tecnologias, esta falsa dissidência estimula a engenharia social necessária para o pleno desenvolvimento do neoliberalismo”. [9] A esquerda radical é o companheiro perfeito para esta viagem, a partir do momento em que, com sua retórica progressista, alimenta o mito do caráter conservador, retrógrado e repressivo do neoliberalismo: uma operação de distração que não faz senão mascarar a verdadeira essência deste último, e que adorna de enfeites subversivos todas aquelas forças sociais que servem apenas para escorar o mesmo sistema que juram combater.

Maquiavélico, não é?

Mas, ainda assim, não se trata de qualquer “conspiração”. Trata-se simplesmente de uma dinâmica, de uma evolução adaptativa do capitalismo em sua fase atual: o neoliberalismo.

Se existe uma técnica neoliberal por excelência, esta consiste no uso do narcisismo como sedação das massas. Ao construir seu projeto sobre uma ontologia exclusivamente individualista – o homem-empresário definido por seus desejos, por sua imagem e por seus projetos privados – o neoliberalismo promove um “amor de si” individualista que redunda no eclipse do político, na impossibilidade de qualquer projeto de transformação coletiva. As correntes alternativas que surgiram nos últimos anos – o altermundialismo, os novos movimentos sociais, os “indignados” – são uma mostra disso. Seu perfil é o de uma contestação apaixonada por si mesma, uma contestação desagregada, cindida em grupos fechados em suas práticas de consumo, fixados – como indicam os autores supracitados – na “fabricação de identidades de síntese (identity shopping), sejam nacionais, políticas ou religiosas, através de fragmentos de história que boiam na mídia e na consciência coletiva, e remisturados para justificar suas fantasias de fraternidade seletiva e de dominação”. [10] Evidentemente, todos estes dispositivos servem apenas para branquear o sistema. A revolução se converte, assim, em uma ética pasteurizada, em um mostruário de “estilos de vida”.

Os micronacionalismos e os movimentos independentistas europeus não escapam a essa dinâmica - tipicamente pós-moderna – de narcisismo e de fabricação de identidades. Uma dinâmica que se revela, entre outros fatores, na reescritura arbitrária da história, no uso do vitimismo e no afã de desconstrução das velhas nações europeus. Estas continuam sendo – pelo menos ainda – um dos obstáculos na construção da nova utopia.

A Impostura Antissistema

É preciso insistir: os movimentos “antissistema” que se pretendem em luta contra o neoliberalismo se configuram, na prática, como um de seus melhores Cavalos de Troia.

Longe de constituir um reluzente “contrapoder”, os movimentos contestatórios fazem o jogo dos poderes instituídos, ao se limitarem a radicalizar os mesmos pressupostos – ideológicos, sociais e políticos – da globalização neoliberal. A emancipação do indivíduo, a dissolução das soberanias nacionais e a mestiçagem cultural são alguns de seus vetores. Trata-se de uma confluência que tampouco se esforçam em dissimular. Os intelectuais contestatórios na moda – assinalam Cédric Biagini e Guillaume Carnino – “coincidem em postular que é a evolução do capitalismo – quer dizer, sua intensificação e não sua interrupção – o que tornará possível sua superação”. [11] Este é o caso de correntes de esquerda radical como o “aceleracionismo” – que se inspira nas teses sobre capitalismo e esquizofrenia de Deleuze e Guattari – ou dos teóricos do “Império” Toni Negri e Michael Hardt, com sua visão messiânica das multidões globalizadas como novo sujeito revolucionário. Poucas fraudes tão sangrentas quanto o discurso destes dois pretensos subversivos. Sua obra “Império” – assinala o filósofo Anselm Jappe – “se dirige a um público bem preciso em termos sociológicos: ele diz às novas classes médias que ganham a vida no setor ‘criativo’ – informática, publicidade, indústria cultural – que eles representam o novo sujeito da transformação da sociedade. O comunismo será realizado por um exército de microempresários da informática (...) Não obstante, os sujeitos dessa ‘multidão’ maravilhosa interiorizaram completamente os critérios da sociedade mercantil, e suas criações dão o testemunho disso. Quase todos os produtos materiais e imateriais de hoje são quinquilharia”. [12] Incluídos – acrescentamos – os ativistas radicais inspirados por Negri e por Hardt.

Nossa época é fecunda em propostas “subversivas”, se bem estas tem um traço em comum: no fundo, se encontram cômodas no capitalismo. Isso é assim porque ocorre de compartilharem a convicção de que o capitalismo libera desejos, tecnologias e processos que permitem expurgar arcaísmos e rigidezes – tais como as soberanias populares e as identidades nacionais – ao mesmo tempo que assenta as bases de sua própria superação. O capitalismo, segundo os radicais da moda, será incapaz de conter os processos que ele mesmo faz surgir. O objetivo final não é a destruição do capitalismo, mas a “reapropriação” de suas bases materiais, em um hipotético futuro pós-capitalista no qual as nações e os povos, como as relíquias que são, estão chamados a se dissolverem em uma “cidadania global” de indivíduos nômades. Um “final feliz” como nunca se viu antes, mas que concorre com o neoliberalismo em sua versão mais extrema: fronteiras abertas para as mercadorias, a mão-de-obra, os serviços e os capitais. Ausência de qualquer ideia de limitação, liberdade para todos. Nisso consiste uma revolução?

Cabo, ao contrário, pensar – parafraseando Anselm Jappe – que uma autêntica revolução consistiria em abolir as quinquilharias, ao invés de tratar de arrancá-las ao capital ao grito de “é nossa!”.

Já à primeira vista os bancos não parecem muito temerosos destes “antissistema”.

O Sexo e a Privatização da Política

Resulta irônico pensar (e aqui há que render tributo ao gênio do neoliberalismo) que quase um século de teoria crítica “contestatória” haja desembocado na ideologia oficial do novo capitalismo. A Escola de Frankfurt, ao rechaçar a crítica marxista da economia política (por seu suposto caráter “economicista”) abria as portas para o liberalismo libertário e para a ideologia da emancipação individual. Uma tarefa na qual a “French Theory” pós-moderna se destacaria para se converter, com o “politicamente correto” estadunidense na ponta de lança teórica de todo esse processo. Nessa dinâmica se insere também o pós-marxismo de autores como Ernesto Laclau, com sua chamada a uma “radicalização da democracia” através do ativismo de novos movimentos sociais (feministas, ecologistas, minorias étnicas e sexuais, etc.). O resultado não foi a superação do capitalismo, mas o exato oposto.

Como qualquer outra luta coletiva, um autêntico combate antineoliberal só pode partir de uma recuperação da dimensão política. Mas isso é justamente o oposto do que fazem os lobbies comunitários nos quais Laclau depositava suas complacências. As lutas dessas minorias não advogam pela revolução, mas pela satisfação de suas exigências; não combatem a exploração, mas a “exclusão”; não aspiram à mudança, mas ao “reconhecimento”. Tudo isso no entendido de que “tudo o que é privado é política”, o axioma central da esquerda pós-moderna. O neoliberalismo não tem problemas com se retroalimentar dessa “radicalização da democracia”, tão presente na boca da extrema esquerda. Na prática, essa politização da realidade quotidiana – o ativismo militante aplicado ao domínio dos costumes e das identidades individuais – reverte justamente na situação inversa: na despolitização do corpo social. Porque se tudo é política, nada é política. A política, que é expressão da vontade geral e defesa de projetos coletivos, se esfumaça e se dissolve em uma miríade de reivindicações privadas e de micronarrativas.

Tudo isso é especialmente visível no debate sobre feminismo e identidades sexuais, questões que conformam hoje o pão e circo pós-moderno. Como assinala o politólogo canadense Maxime Ouellet: “os movimentos sociais – especialmente as feministas de segunda geração – tentaram repolitizar a esfera cultural com a fórmula ‘o privado é política’, com o que a luta radical pela transformação da sociedade foi se convertendo, de forma progressiva, em lutas identitárias pelo ‘reconhecimento’, alimentando dessa forma o novo espírito do capitalismo”.[13] A esquerda pós-moderna desempenha um papel central nessa dinâmica, ao trufar sua retórica antineoliberal com um marketing de questões de gênero desfarçado de “revolução”. Uma mistureba que, nos atavismos mentais da esquerda, faz bastante sentido. Como assinala o filósofo Shmuel Trigano – “se o gênero é um fato social, a luta ‘sexual’ substitui à antiga luta de classes, e a política se estende ao corpo e às relações sexuais”. Nessa linha, o filósofo de extrema esquerda Alain Badiou assinala que “no materialismo democrático, a liberdade sexual é o paradigma de toda liberdade”. [14] Dessa forma o corpo humano – a possibilidade de reconfigurá-lo, de adaptá-lo ou melhorá-lo conforme o próprio arbítrio – se configura como o último “Palácio de Inverno” que restava por assaltar.

Não tem nada de estranho que, na era do neoliberalismo, a questão da identidade sexual se eleve a paradigma de toda liberdade. Este é o ponto de encontro em que todos coincidem: da direita conservadora (que sempre acaba conservando os avanços progressistas) até a esquerda radical-chic. Assim se explica que os gays e outras minorias sexuais se hajam convertidos nos ícones do sistema, em algo como a quintessência dos valores europeus ou na reserva espiritual do ocidente. No final das contas, trata-se da “luta” por antonomásia: aquela que, por mediação de uma cadeia de equivalências (Laclau dixit), sintetiza e absorve todas as lutas concomitantes. [15] Um âmbito – o da teoria de gênero – que alberga um paradoxo tão inquietante como pouco advertido: do momento em que o sexo se considera um “construto social” (cisão entre sexo e gênero), qualquer tentativa de “ancorar” o indivíduo em um sexo determinado acabará sendo considerado, potencialmente, como algo discriminador e opressivo. A indeterminado sexual – o estatuto de máxima fluidez e abertura – se eleva assim a conditio sine qua non da emancipação humana. O que, em último estágio, poderia nos conduzir à negação do sexo; ou, como reclama abertamente a filósofa Monica Wittig, “à destruição do sexo para aceder ao status de sujeito universal”. [16] Em suma: uma ideologia castradora. “Marxismo cultural”, dizem alguns. Será? 

Uma Patologia Norte-Americana

Ao explorar as origens estadunidenses do “politicamente correto”, o escritor francês François Bousquet chama a atenção sobre o fato de que “a economia psíquica norte-americana parece funcionar pela transferência de suas patologias ao mundo inteiro, como se se aliviasse ao exportar suas fobias, sua paranoia, sua febre antisséptica”. [17] A história é antiga: desde a ideologia castradora dos primeiros puritanos (do verbo “purify”, “purificar) que desembarcaram em Nova Inglaterra no início do século XVII, até o politicamente correto e o zelo inquisitorial dos novos vigilantes da Virtude. O viés moralista e puritano do politicamente correto – e mais concretamente, do feminismo americano – foi repetidamente enfatizado pela professora (e feminista atípica) Camille Paglia, que recorda como as sufragistas americanas se associaram, no início do século XX, à “Liga da Temperança” e a sua cruzada contra o álcool. Como consequência desse furor puritano, a “Lei Seca” deixou, nos EUA, um legado de criminalidade organizada cujas consequências segue padecendo. [18] O dogmatismo do Bem (o bonismo) costuma ser uma receita garantida para o desastre.

Seriam as políticas de gênero – como repete certa direita – outra forma de “marxismo cultural”? Não falta quem cite o livro de Engels, “As Origens da Família” como um exemplo da intenção marxista de acabar com esta célula básica da sociedade. O que não responde à realidade. Engels denunciava as reivindicações feministas como produtos de uma sensibilidade pequeno-burguesa: a das mulheres que desejavam ocupar altos postos profissionais. Em sua visão, só uma perspectiva de classe, comum a homens e mulheres, permitiria a liberação de todos. Um enfoque com o qual (de certa forma) também concorda Camille Paglia, quando assinala que o feminismo atual privilegia os valores e preocupações de uma classe alta de mulheres profissionais, mulheres que são apresentadas como “o mais alto desideratum, a cúspide evolutiva da humanidade”, mas que recorrem, enquanto isso, à exploração sistemática das mulheres da classe trabalhadora para o cuidado dos filhos e as tarefas domésticas. [19]

Por muito que se empenhe a rotina mental de certa direita, a ideologia de gênero e o politicamente correto são dois fenômenos com claras raízes nos EUA. Não há nos textos do marxismo clássico nada que inevitavelmente aponte para eles. Cabe mais pensar que nos encontramos aqui diante de neoliberalismo cultural puro e duro, por muito que, a níveis retóricos, se adorne de ranços marxistas.

Cabe nos perguntarmos, respondem todas estas formas de neoliberalismo cultural a uma patologia americana?

Ainda que o politicamente correto pareça às vezes uma loucura, tal como no “Hamlet” de Shakespeare “há um método nela”. Mais que um método, trata-se de uma lógica e de uma racionalidade implacáveis. Porque o neoliberalismo, muito mais que um conjunto de rapinas econômicas, é antes de tudo uma racionalidade. Ou, como assinalam os filósofos Pierre Dardot e Christian Laval, o neoliberalismo é “a nova razão do mundo”. [20]

Trata-se de saber de que maneira a esquerda pós-moderna se inscreve nela.

Os Autênticos Herdeiros de Maio de 1968

Maio de 1968 é um marco central na configuração de nosso mundo. Uma efeméride que costuma ser celebrada como o umbral de uma nova era: a do indivíduo liberado e plenamente emancipado. Uma gesta progressista associada ao patrimônio sentimental e moral da esquerda. Mas para sermos exatos é o neoliberalismo – mais do que a esquerda enquanto tal – o autêntico herdeiro de maio de 1968.

O neoliberalismo se situa na zona de conforto da história. Por uma parte, ostenta a atitude subversiva, inconformista e rebelde que é típica dos intelectuais. Mas por outra parte, sua rebeldia opera em benefício dos interesses dominantes. Por um lado, fornece a ilusão de estar a favor da história, de ser o portavoz de um futuro que chegará de todas as formas. Mas por outro lado adota um ar agônico, como se estivesse em uma luta dolorosa com as forças escuras do passado. Definitivamente: ouropel da transgressão mais confortável da dominação. “Os partidários do neoliberalismo – escreve o politólogo mexicano Fernando Escalante – se sentem desde sempre, aconteça o que acontecer, rebeldes (...) é impossível ler Hayek e não sentir em algum momento que se é o último homem livro no mundo de pesadelos de Orwell ou Huxley. Sua obra, como a de Popper, Becker e Buchanam, está escrita contra o establishment. Os partidários do neoliberalismo sempre podem se apresentar como rebeldes, iconoclastas, marginais, defensores da liberdade contra a ordem burocrática estabelecida. E por isso são verdadeiramente herdeiros do espírito de protesto dos anos 60”.

A ideia neoliberal básica sobre liberdade e emancipação é, no fundo, bem simples: “Todos somos empresários, ou todos seríamos empresários se não fôssemos oprimidos por um Estado que nos impede”. [21]

Como veremos, entre o homem-empresário do neoliberalismo e o indivíduo “empoderado” da esquerda pós-moderna, há uma linha muito tênue.

O Homem como Startup

Contrariamente aos estereótipos da extrema esquerda, o neoliberalismo não se reduz a um ultracapitalismo sem freios, nem a uma maquinação de financistas inescrupulosos, nem a um desmantelamento dos serviços públicos. O neoliberalismo tem algo disso tudo, mas de imediato não está aí a sua essência. Não se trata, tampouco, de uma ideologia repressiva e retrógrada (como rotineiramente afirma a esquerda). É o oposto: o neoliberalismo é revolucionário, emancipador e libertino, e são precisamente os poderes públicos – os poderes do Estado – que empurra rumo a essa “liberação”. Se dentro do neoliberalismo há repressão, é a que o sujeito se impõe de forma autônoma. Se há exploração, é a que o indivíduo exerce sobre sua própria vida.

O neoliberalismo é, acima de tudo, uma cosmovisão, uma forma de ser e de estar no mundo. O neoliberalismo vai um passo além do homo oeconomicus do marxismo ou do capitalismo. O protótipo do neoliberalismo é o homem-empresário; ou mais exatamente: o homem empresário de si mesmo. “Todo ser humano leva um empresário em sua alma!” cantam os rapsodos do neoliberalismo. O neoliberalismo – assinala o sociólogo francês Christian Laval – adota sempre ares de evidência, de conformidade a um movimento natural da sociedade, a uma realidade à qual governantes e governados devem se adaptar. Mas esta “realidade” (e aqui está a armadilha do neoliberalismo) é “feita de situações criadas, de regras estabelecidas, de instituições construídas que dão fôlego às condutas”. [22] O neoliberalismo não é a “mão invisível” do liberalismo clássico, mas um voluntarismo e um construtivismo. É a mão bem visível do Estado que atual – quando assim é requerido – para fazer a engenharia social necessária e adaptar a sociedade aos moldes neoliberais. 

O neoliberalismo tem um sonho: estender de forma ilimitada “um modelo de competitividade ao qual os sujeitos deverão se adaptar funcionando como empresas, quer dizer, como unidades de capitalização privada. Nessa tessitura o mercado já não é um fato ou um meio natural, mas um espaço normativo que uma política econômica e legislativa permite emergir, manter, corrigir e ampliar”. [23] A extensão ilimitada do mercado: aqui reside o caráter emancipador e progressista do neoliberalismo. O homem neoliberal se vê posto a se reinventar, a se otimizar, a se adaptar às dinâmicas do mercado, se o que se quer é aceder ao paraíso das oportunidades. A precarização generalizada adota assim ares libertadores. Claro que tudo isso requer uma condição prévia: abolir todos os obstáculos que se interponham às relações mercantis entre os indivíduos, incluindo aqueles domínios até agora regidos por arcaísmos éticos, religiosos, nacionais ou culturais. Porque já não há povos, nem nações, nem culturas, nem religiões, nem sexos. Melhor dito: essas coisas existem, mas como “kits” identitários de consumo particular, como realidades fluidas e maleáveis, como moda-fusão, simulacro e vintage. O “último homem” de Nietzsche é uma startup individual que pensa de forma global e se identifica pela fidelidade às suas marcas.

Neoliberalismo de Esquerda

A revolução veste Prada. Em uma obra já clássica, os sociólogos Luc Boltanski e Pierre Bordieu assinalavam que “a filosofia social da fração dominante da classe dominante já não se apresenta como defensora, mas como crítica frente ao estado atual das coisas, o que lhe permite acusar de conservadorismo a todos os que resistem à mudança. O Poder já não teme a crítica, ao contrário, a mobiliza: há que mudar constantemente – ou parecer que se muda – em todas as ordens da vida”. [24] Boltanski e Bordieu chamavam este fenômeno de “conservadorismo reconvertido”, frente ao “conservadorismo declarado” que seria o próprio das frações declinantes das classes dominantes. As elites no poder mudaram de ideologia, essa é a realidade. Qual é a função da esquerda nesse contexto?

Como é sabido, o neoliberalismo é uma das feras negras do esquerdismo bem-pensante. Mas a retórica antineoliberal da esquerda não nos deveria conduzir ao engano. Frente ao neoliberalismo – assimilado normalmente ao “ultraliberalismo” ou ao “capitalismo selvagem” – a esquerda moderada passou a reivindicar o “social-liberalismo”, que seria uma espécie de “liberalismo respeitável”. Mas isso é simplesmente impossível. Como explicam Pierre Dardot e Christian Laval, o neoliberalismo é uma “racionalidade global” que abarca todas as dimensões da existência humana, e não admite uma prolongação de si mesmo no plano social. Se pensamos que há um “social-liberalismo” que se contrapõe ao neoliberalismo (da mesma maneira que anteriormente a social-democracia se contrapôs à democracia liberal) incorremos em uma analogia escorregadia. [25] Na prática, o chamado social-liberalismo não é mais que um neoliberalismo de esquerda. O que está muito longe de ser uma contradição. Afinal de contas, como escolha consciente dos Estados o neoliberalismo é – assinalávamos acima – uma engenharia social. Por isso, admite uma ampla gradação da intensidade das intervenções estatais, por isso admite um jogo relativo entre diferentes versões de si mesmo. Como estratégia adaptativa, o neoliberalismo desenvolve uma versão “de esquerda” – o que é especialmente visível nas políticas culturais. E aqui adquire sua relevância a esquerda pós-moderna.

A esquerda pós-moderna é o aríete da engenharia social do poder, é o porta-estandarte do neoliberalismo cultural. Este sempre se apresenta como “revolucionário”, como favorável à mudança, como disposto à ruptura. Esquerda radical? Esquerda antissistema? Com suas caretas radicais e poses iconoclastas, a esquerda pós-moderna é tão perigosa para o neoliberalismo como um gato de bengala. Ela mesma é a vanguarda cultural do sistema.

E muito mais do que isso. O que se costuma omitir é que a configuração cultural do neoliberalismo afunda as suas raízes nas elaborações teóricas da esquerda pós-moderna. Neste aspecto resulta fundamental o legado do último grande “filósofo estrela” do século XX: Michel Foucault.

O filho da puta São Foucault

Tudo confluiu, em sua vida e em sua obra, para fazer de sua figura um ícone dos novos tempos. O filósofo carismático e maldito, o desconstrutor da sexualidade ocidental, o pensador do corpo e dos prazeres, o evangelista dos marginalizados e dos excluídos. Foucault é o guru no qual confluem todas as fugas para a frente da pós-modernidade tardia. Ele é o patrão da teoria de gênero, das identidades fluidas, da nova era “trans”: uma era sem tabus cujo advento ele havia propiciado, entregando sua própria vida em oferenda martirial. Um Santo, definitivamente. Ou, segundo a expressão de François Bousquet (em sua brilhante desconstrução do mito): “o filho da puta São Foucault”. [26]

Porém...

Para falar com expressão típica de seus discípulos: há algo de “problemático” em seu legado; uma herança incômoda que os custódios do mito, por mais piruetas e contorções que façam, não conseguem dissimular. E esse “algo” é a sintonia – quando não a identificação implícita – entre Foucault e o neoliberalismo.

Foucault neoliberal? Eis aqui um assunto embaraçoso. O neoliberalismo ocupa um lugar importante em seus últimos escritos – Foucault morreu em 1984 – ao ponto de que o autor de Vigiar e Punir parecia seduzido por esta doutrina. O que poderia encontrar Foucault de sedutor no neoliberalismo?

Para compreender isso é preciso partir de um dado: Foucault foi, ao longo de toda a sua vida, um pensador obcecado pelo poder. O problema do poder é o eixo ao redor do qual gira toda a sua obra, nela quase tudo se interpreta em termos de poder ou luta de poderes. Mas Foucault era um filósofo pós-moderno, o que significava que ele não podia pensar o poder em termos clássicos de filosofia política – um enfoque que ele abertamente desprezava. [27] Foucault se aborrecia com as interpretações totalizantes – o marxismo é um exemplo – e não queria se limitar a uma crítica das instituições (ainda que tenha se aplicado, no fundo, a sua desconstrução). Seu verdadeiro inimigo era muito mais amplo: este consistia em “todo Sujeito – quer fosse o Estado, a Sociedade ou o Inconsciente – suscetível de encerrar o indivíduo em uma determinação global, qualquer esta fosse”. Aos olhos de Foucault a ideia de limite é fundamentalmente infausta, posto que contradiz a faculdade de experimentar, a multiplicidade inesgotável das experiências. Daí o seu interesse pelos anormais, e seu empenho recorrente por “subtrair os loucos, os presos e os homossexuais de toda forma de encarceramento e de categorização unívoca”. [28] O Sujeito: eis aí o inimigo, na medida em que é ao redor da ideia de Sujeito que a tradição metafísica ocidental elaborou o conceito filosófico de identidade. Essa identidade que “ancora” o indivíduo em um conjunto de determinações coletivas (nação, raça, sexo, religião) e que se converte assim em sinônimo de “fascismo”. Todo o empenho de Foucault – e da French Theory e dos “estudos” pós-modernos – será desconstruir essas identidades para substituí-las por identidades flutuantes, mutáveis, indeterminadas. Foucault é o filósofo dos “tempos líquidos”.

Onde fica o neoliberalismo nisso tudo?

Filosofia da Pós-Revolução

No campo da crítica social, Foucault propõe uma inversão de prioridades: se bem as desigualdades econômicas e a miséria continuam existindo, em sua opinião estes problemas não se apresentam “com a mesma urgência” de antes. [29] Foucault é pós-revolucionário na medida em que é pós-moderno. Para o autor de “Vigiar e Punir” a crítica das grandes estruturas econômicas responde, no fundo, a uma problemática do século XIX, enquanto que em nossa época o autêntico problema se apresenta ao nível dos “pequenos poderes e das estruturas difusas de dominação, que hoje se revelam como os problemas fundamentais”. [30] A utopia de Foucault consiste em uma sociedade desembaraçada de mecanismos disciplinares, de dispositivos normalizadores e “excludentes”. Nesse contexto – sublinha François Bousquet – o Leviatã estatal se configura como o adversário a abater, segundo a máxima – repetida pelos apóstolos do livre-mercado – de que “se governa sempre demasiado”. É o momento da consagração americana da Foucault. Ao fim dos anos 70, o neoliberalismo estava virando a esquina: era a era de Milton Friedman e dos “Chicago Boys”, o momento em que, cansado da velha Europa, Foucault descobria fascinado os bairros gays de Nova Iorque e São Francisco, a subcultura homossexual masoquista, as praias da Califórnia, o LSD, o ópio e a cocaína. Os anos 80 são os anos da “French Theory” nas universidades americanas. O “fenômeno Foucault” é um produto americano. [31]

Liberdade de escolher! A apologia do mercado – o “mantra” neoliberal por excelência – tinha que resultar forçosamente grato aos ouvidos de Foucault. Afinal, se cada indivíduo é uma empresa que se auto-administra em função de uma ilimitada liberdade de escolha, que outro sistema – se não a mercantilização geral da vida – permitirá ao indivíduo escapar de qualquer gênero de determinação? Foucault é também o filósofo da construção de si mesmo, da bioestética e da estilização da própria existência: esculpir a própria vida como uma obra de arte. Mas o narcisismo – já vimos isto antes – é um dispositivo neoliberal dirigido a estimular a competitividade, e se situa ademais no centro de tudo isso que se tem chamado – com toda razão – o “capitalismo da sedução” (Michel Clouscard) ou o “capitalismo artístico” (Gilles Lipovetsky) [32]. Estamos aqui muito longe não só da luta de classes, como da simples luta contra as desigualdades...

Rumo à Emancipação pela Microeconomia

Foucault um filósofo contra o poder? Sua relação com o poder parece no mínimo ambígua. Foucault parecia certamente fascinado – alguns de seus alunos assim o recordam – pela ideia de vigilância, de domínio e de punição sobre os corpos. Sua “história da sexualidade” e sua fixação com o estudo das instituições que encerram e castigam os indivíduos (a prisão, o manicômio, a escola) assim testemunham. De Foucault parte a identificação – capital na esquerda pós-moderna – entre poder e dominação. Deste enfoque se desprende uma derivação política importante: “Ao colocar sob sua mira as formas concretas e visíveis de poder (o Estado e as instituições disciplinares) sem se interrogar sobre sua substância, os novos movimentos contestatórios (verbigratia, a esquerda “foucaultiana”) participou na consolidação da lógica de dominação despersonalizada própria do capitalismo”. [33] Com o que aqui chegamos ao miolo neoliberal da esquerda pós-moderna.

A esquerda pós-moderna é “libertária”. Mas o neoliberalismo também o é. “O neoliberalismo americano – assinala Christian Laval – teria a simpatia de Foucault, porque nos desembaraça finalmente de toda uma tradição filosófica, antropológica, psicológica e sociológica que tenta contabilizar os fatores que levam um indivíduo a se comportar de tal ou qual maneira. A microeconomia varreria todos esses saberes, ao limitar ao cálculo custo/benefício os motivos da conduta humana”. [34] A utopia neoliberal é a de uma sociedade aliviada de mecanismos disciplinares externos. Claro que o problema é que estes reaparecem de forma interna, ao serem substituídos pela autoexploração que o homem-empresário exerce sobre si mesmo. Mas os princípios libertários sempre estão a salvo, porque esta sociedade – por mor da competitividade – não só torna possível, como estimula a manifestação de fenômenos “desviados”, inovadores e diferentes. O “direito à diferença” será um de seus leitmotiv e o “empoderamento” das minorias um de seus objetivos centrais. Mas desde uma ótica neoliberal o que é o empoderamento – escreve Maxime Ouellet – senão “a transformação subjetiva dos excluídos para torna-los mais competitivos, para adaptá-los às exigências da aceleração em uma sociedade em movimento perpétuo”? [35] Neoliberalismo em estado puro.

Vivemos sob o poder censor das “minorias”. O que também responde à lógica neoliberal. Quando estas desviam o epicentro da contestação social para a luta contra o racismo, o heteropatriarcado e a moral sexual tradicional – quer dizer, contra a “punição dos corpos” – os novos movimentos sociais contribuem para desativar a luta contra as desigualdades sociais. Tudo isso em prejuízo do velho Estado-Providência que, como garantidor das conquistas do movimento trabalhador, havia resultado de “compromisso fordista” durante o século XX. Claro que, na perspectiva foucaultiana, esse Estado-Providência não passava de ser “outra instituição disciplinar, burocrática e ineficaz que impedia a realização da autonomia dos indivíduos”. [36] Dessa forma o Estado-Providência se transmutou em Estado-Neoliberal, a luta contra a exclusão passou a substituir a luta contra a exploração, e a proteção das “minorias” passou a substituir a proteção dos trabalhadores.

Tudo muito lógico desde uma perspectiva pós-moderna. Afinal, no mundo foucaultiano, o “lugar do trabalho” não passa de outro lugar de disciplina e punição. Daí o interesse dos seguidores de Foucault – e da esquerda pós-moderna em geral – por todo um setor social alérgico a qualquer tipo de trabalho regrado: o lumpem. 

O Lumpem Redentor

A esquerda pós-moderna reabilitou a imagem do lumpem, até investi-lo de uma missão redentora.

A popularização do termo “lumpemproletariado” vem de Karl Marx, que em sua obra O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (1852) o acompanha de epítetos como “enxertos degenerados e aventureiros da burguesia, vagabundos, ex-presidiários, prófugos, golpistas, saltimbancos, punguistas, escrevedores, alcoviteiros, ladrões, mendigos (...) e toda essa massa difusa e errante que os franceses chamam de boêmia”. [37] Pelo teor dessas palavras está claro que Marx considerava o lumpem como um submundo parasitário e carente de consciência de classe; definitivamente, como um obstáculo para a luta do proletariado.

Muito diferente é a perspectiva pós-moderna. Em sua obra A Razão Populista, Ernesto Laclau assinala que não serão os trabalhadores os forjadores da “hegemonia” do futuro, senão que esta é uma tarefa reservada aos elementos que se mantém “estrangeiros ao sistema”: as minorias oprimidas e o “lumpemproletariado”, entendido este de forma extensa. [38] O que interessava a Laclau no “lumpem” é que este representa a heterogeneidade total, o ponto de ruptura, o extramuros do sistema.

Para desenvolver esta ideia o teórico argentino desenvolve toda uma crítica da dialética hegeliana e do marxismo clássico, a partir de posições pós-modernas e muito inspiradas pela ideologia terceiro-mundista (de Franz Fanon et alii). Segundo seu raciocínio – carregado de pretensiosa verborragia acadêmica – em virtude de sua heterogeneidade radical o lumpem viria a sintetizar as reivindicações de toda uma caravana de movimentos sociais (feministas, homossexuais, negros, deficientes, imigrantes, etc.) mais ou menos inadaptados perante o sistema. Trata-se, definitivamente, da famosa “cadeia de equivalências” na qual Laclau punha suas esperanças revolucionárias. Para Laclau as noções de “massa marginal” (aqueles setores que não podem ser integrados de modo algum) e de “sujeitos anticapitalistas globais” (aqueles que não estão vinculados a um único interesse particular) são aplicáveis a este contexto: o lumpem participa de ambas noções, e ao se misturar com as lutas das minorias oprimidas e ao se fundir com as reivindicações sociais em grande escala, introduz um elemento de antagonismo radical que será saldado (segundo o desígnio estratégico “laclauniano”) com a formação de uma nova hegemonia e a construção de um novo “povo”. [39]

Um esquema que explica, entre muitas outras coisas, o interesse da esquerda pós-moderna por abrir as portas a uma imigração massiva de impossível absorção.

Mas a ideia não é nova; trata-se da elaboração pomposa de um enfoque que já havia sido desenvolvido em sua época pela Escola de Frankfurt. A partir de seu menosprezo elitista pela classe trabalhadora, Herbert Marcuse considerava que a consciência revolucionária só poderia brotar fora dela, de forma que seriam “as mulheres, as pessoas de cor, os movimentos anti-imperialistas na periferia do sistema, os intelectuais e boêmios os que poderiam proporcionar à classe trabalhadora, não somente a fagulha revolucionária, mas também algo bem mais elusivo: uma nova sensibilidade. Estes seriam os novos catalizadores da revolução, os que encarnariam isso que André Breton, de forma original, denominava ‘o grande rechaço’.” [40] Na mesma linha se situava Michel Foucault, quando reivindicava a proliferação de lutas “identitárias” como forma de redistribuir o jogo de poder na sociedade. O que interessava ao autor de “As Palavras e as Coisas” não eram os trabalhadores assalariados (recordemos que estes formam parte da dinâmica “disciplinar-repressiva” da fábrica, do sindicato, do partido, da seguridade social...) mas os “excluídos” do circuito produtivo: os marginais, os viciados, os doentes mentais, os presidiários, os delinquentes, as minorias sexuais, os imigrantes ilegais, os sem-teto, os associais; definitivamente, todo esse “lumpemproletariado” do final do século XX a favor do qual o filósofo multiplicava suas intervenções cênico-políticas. É a versão pós-moderna de uma velha história: a do vaivém entre bairros chiques e guetos, com seus senhoritos em busca de emoções canalhas (o que tem sua tradição literária, até).

Em Foucault, quase nada é o que parece à primeira vista. Para se ter ideia da ambiguidade de suas posições – tanto sobre o neoliberalismo como sobre o papel social do lumpem – há um elemento que resulta revelador: sua posição a favor de um sistema de subsídios públicos para as classes marginais. Em sua obra “Nascimento da Biopolítica”, o filósofo se mostra partidário do subsídio público para aqueles que, por um motivo ou outro, se mostrem resistentes a um trabalho normalizado. Neste ponto o filósofo aderia à ideia do “imposto negativo sobre a renda” proposta pelos economistas neoliberais (Milton Friedman, Lionel Stoléru) como ideia para lutar contra a pobreza extrema. Uma proposta que, apesar das aparências, não deriva de uma inquietude igualitária, mas do oposto: da ideia de que é preferível subsidiar diretamente os indivíduos do que os serviços sociais. Para Foucault, o sedutor da ideia consiste precisamente na “não-seletividade dos critérios de atribuição do subsídio”, a ideia de que o Estado renunciaria assim a distinguir entre “bons” e maus” pobres (quer dizer, entre os que não trabalham porque não podem e os que não trabalham porque não querem). [41] As ajudas econômicas seriam destinadas a todos aqueles que se situam por baixo de uma faixa de renda, com independência dos motivos de sua situação. Aos olhos de Foucault, este sistema permitiria romper com a “normalização dos comportamentos” imposta pelas velhas instituições centralizadas e estatistas. Uma perspectiva libertária que concorda, neste ponto, com os interesses do neoliberalismo. O que não deveria estranhar: afinal de contas, para Foucault, a seguridade social – instituição orientada para um modelo de pleno emprego - é um dos instrumentos burocráticos e disciplinares erguidos pelo Estado para controlar os corpos e as condutas. Música para os ouvidos neoliberais, partidários de subvencionar o lumpem se com isso puderemao mesmo tempo se livrar dos serviços sociais.

Do que se trata, definitivamente – a partir de uma perspectiva libertária – é de forjar “indivíduos responsáveis por suas vidas, sem impor a eles nenhum modelo antropológico determinado, sem submetê-los a qualquer regra sobre como viver, como amar ou como se divertir”. [42]

Michel Foucault e Milton Friedman, mesmo combate.

Classismo Progressista

Se interpretamos Ernesto Laclau à luz de Michel Foucault (saltando a distância entre o valor de ambos) observamos que há um elemento comum neles: o empenho dos universitários progressistas por forjar um “povo” à sua medida. Os novos patrícios buscam novos plebeus. O que se explica em função do imenso desprezo que, em seu foro interior, essa intelligentsia pós-moderna devia professar pelo “povo real”, pelo povo historicamente constituído com uma identidade forjada através dos séculos. [42] Mas como vimos, desde uma perspectiva pós-moderna, as identidades históricas – normalmente étnicas e culturais – são problemáticas, por serem excludentes e potencialmente “fascistas”. Em consequência, para a “French Theory” e seus epígonos a problematização e a desconstrução das identidades enraizadas dão suporte a uma engenharia social de construção de novas identidades, principalmente através do multiculturalismo, da “mestiçagem” e da teoria de gênero; um processo que vem, paradoxalmente, recolocar o problema da identidade no centro da política contemporânea. A partir de agora, todas as identidades será respeitáveis; todas exceto as identidades nacionais e aquelas outras que, em virtude das culpas e privilégios acumulados, tenham uma dívida histórica a expiar (como é o caso do homem branco, heterossexual e europeu/ocidental).

As minorias são o “sujeito revolucionário” arquetípico da esquerda pós-moderna. Um fato que deriva da convicção de que – como assinala Laclau – “todos os combates são, por definição, políticos (...) porque a política deixou de ser uma categoria setorial. Já não há lugar, como no socialismo clássico, para a distinção entre combate econômico e combate político”. [43] Nessa mesma linha qualquer reclamação privada é também política. E quem melhor que os focados em seus incômodos quotidianos – os humilhados, frustrados, oprimidos enquanto vítimas de uma segregação sexual, racial, etc. – para tomar as rédeas da luta contra o poder? A diferença é que já não se trata agora de lutar contra o poder do Estado ou contra os poderes econômicos (ao estilo dos revolucionários de antes). Não. Do que se trata agora é de lutar contra os “micropoderes” opressivos: os “micromachismos” e os “microfascismos” da vida quotidiana. Melhor dizendo: nem mesmo se trata já de uma luta contra o poder, mas de uma luta pela distribuição de poderes, pelo “empoderamento” (empowerment) de todos aqueles que, se antes se encontravam agraviados e excluídos, agora acedem a um status de reconhecimento e de autonomia pessoal (dentro da ordem neoliberal).

Quanto à classe trabalhadora... não cabe dúvida de que esta é resistente ao estilo de vida “nômade”, permissivo e multiculturalista exaltado pelos intelectuais pós-modernos (Deleuze, Hardt, Negri); seus componentes estão normalmente ocupados em afãs vulgares (como o futebol) e ademais costumam ser sexistas, machistas, grosseiros e xenófobos (o que demonstraram nos últimos anos votando em partidos de “extrema direita”). Definitivamente, não está aí a canteira da esquerda pós-moderna. Esta se encontra em outro lugar: entre um neoproletariado pós-industrial de mileuristas diplomados, de empregados precários (o “precariado”), de jovens fraudados em suas expectavias e radicalizados diante do risco de “exclusão”. [44]

Qual é, neste contexto, a funcionalidade das políticas da esquerda pós-moderna? Operar como um tipo de compensação psicológica, como um marcador de classe que torna possível para o precariado, apesar da incerteza que ronda seu futuro, com sua forma de vida “nômade”, urbanita, multicultural, centrada nas tecnologias de comunicação, se sinta culturalmente por cima desses trabalhadores arcaicos, ainda fechados nas “formas corrompidas do comum, tais como a família, a empresa e a nação”. [45] Se Samuel Johnson dizia que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas, hoje podemos dizer que o hipsterismo é o último refúgio do precariado. Não há nada de estranho na atração que autores como Antonio Negri ou movimentos como o altermundialismo, o “Occupy Wall Street” ou o LGTBIQ exercem sobre uma juventude urbana composta por diplomados sem emprego fixo. Como assinala Maxime Ouellet “todo este tipo de teorização pós-modernista permite a essa pequena burguesia em decadência se acreditar emancipada a priori, mas sem ter passado por qualquer forma de mediação ou representação política para se constituir em sujeito coletivo”. [46] A insistência em conceitos como “as gentes” – cortado à medida dos sujeitos des-historizados, intercambiáveis e abstratos do neoliberalismo – e “o amor” (frescurite recorrente de neopopulistas progressistas) nos remetem a uma realidade onde o amor já não se insere nas antigas formas de solidariedade – tais como a família ou a pátria – mas se orienta a uma empatia de geometria variável, exercida ao ritmo das modas midiáticas. Um tipo de “amor” que se assemelha ao de outras formas “líquidas” de relação interpessoal, como as praticadas por alguns membros de minorias sexuais ou as variedades mercantis dos locais de encontro na internet. Uma concepção de amor bem adaptada aos tempos modernos.

O classismo progressista engloba um grande paradoxo, na medida em que é um sintoma do fim disso que o socialismo tradicional chamava de “consciência de classe”. Uma mudança sociológica que tem lugar, precisamente, quando a desigualdade é mais crescente do que nunca e se converte no maior problema do século XXI. Mas em virtude do imaginário dominante – neoliberal, individualista e narcisista – os cidadãos rechaçam se reconhecer na divisão tradicional de classes. O classismo progressista é parte ativa dessa atitude de rechaço, na medida em que responde a um intento de não se situar na parte inferior da escala social, de não se confundir com a classe trabalhadora (o que seria admitir uma descida social e um fracasso). A apologia cultural do lumpem encobre uma forma de esnobismo, na medida em que o lumpem –e aí reside seu pretenso radicalismo – rechaça pertencer a qualquer “classe”. Uma pose transgressora para a qual Foucault, com sua estética dândi, dava um aval de prestígio.

O classismo progressista participa nisso que o escritor francês Renaud Camus denominava “a ditadura da pequena burguesia”. À medida que crescem as desigualdades sociais, à medida que se comprimem as classes médias, o modelo cultural da classe média se consolida como o único possível, dado que ninguém quer se reconhecer em risco de decadência. Consequência: já não há defesa de interesses comuns – a sociedade da “diversidade” o torna cada vez mais difícil – mas todos coincidem no mesmo: na religião do consumo e na ideia de êxito material como máxima expressão de uma vida realizada. [47] O classismo progressista participa nessa estratégia neoliberal de extensão do individualismo, através da desmoralização dos trabalhadores e da desativação de sua consciência de classe. É o que Owen Jones chama de “demonização” da classe trabalhadora: abaixo da classe média parece não existir mais nada, a não ser pelos fracassados do sistema. [48]

A revolução já não é o que era

Vivemos em uma época na qual as revoluções se proclamam a partir das passarelas de moda, a partir dos tapetes vermelhos de Cannes e a partir das páginas da Vanity Fair. Desde a revolução sexual dos anos 60, todas as revoluções possuem um caráter prêt à porter. Mais que de imperativos econômicos ou políticos, a revolução é uma questão de catálogo ou de menu. Revolução “feminista”, revolução “vegana”, revolução “transgênero”, revolução animalista, revoluções coloridas... trata-se de escolher o que mais nos agrade. Nossa identidade se expressa em nossa escolha.

Na sociedade de consumo, a “contestação” é chique, fotogênica e criadora de tendências. Se desdobra em escala global, coreografada pelos meios de comunicação, pelo showbusiness internacional, pelas Nações Unidas, pelos governos e por Soros e companhia. A contestação se nutre das formas em voga do “pensamento nômade”, das modernices de obsolescência programada, das lutas contra velhos e novos fantoches (o “heterpatriarcado”, o “fascismo”), da condenação de tudo aquilo que não esteja alinhado com a ordem neoliberal (como “populista”, como “nazi”, como “stalinista”). Na verdade, como assinala Christian Laval, trata-se de uma contestação que está “falsificada de antemão, porque só denuncia o que já não está nem na ordem do dia, nem na agenda do poder governamental. A contestação serve como uma contramanobra do poder, que utiliza a denúncia para se relegitimar a partir da mesma força daquilo que aparenta atacar”. [49] Sua função é participar no coral (falsamente polifônico) da “sociedade aberta” popperiana. Um simulacro de pluralismo por trás do qual se oculta um vasto partido transversal, um partido do centro, protegido e blindado por uma concepção judicializada do pensamento e pelo zelo vigilante do politicamente correto.

Quem foi o principal factótum de todo este desenvolvimento? A esquerda pós-moderna é a que consumou essa revolução na revolução: a problemática identitária substituiu a problemática da exploração; o combate pelo “respeito”, a “inclusão” e a “dignidade” substituiu o combate pela redistribuição das riquezas; a luta contra os efeitos da desigualdade substituiu a luta contra as causas da desigualdade. Na era pós-moderna, os protestos se conjugam não a partir do plano racional e político da rebelião, mas a partir do registro sentimental e moralista da indignação. Dizia Sartre nos anos 60 que nos encaminhávamos a um marxismo “moral”; o que equivale a dizer: à dissolução do marxismo. A partir dos anos 80, o “socialismo científico” se verá substituído por um fervor samaritano a favor dos excluídos, dos deserdados, dos humilhados e dos ofendidos. Nada há de estranho em que a esquerda pós-marxista conflua, em muitos aspectos, com um cristianismo social que substitui o ódio à pobreza pelo amor aos pobres. Uma evolução ideológica que resulta muito funcional para os interesses do neoliberalismo.

“Esquerda e direita”, “progressistas e conservadores”, “vermelhos e fachos”: os desgastados cabrestos destinados a desviar nossa atenção. É preciso pôr a linguagem e o pensamento em dia. A esquerda pós-moderna é a ordem neoliberal mantém uma relação simbiótica, essa é a realidade. Uma simbiose que cristaliza teoricamente – nunca se insistirá o suficiente nisso – em Michel Foucault, na “French Theory” e na pós-modernidade Made in USA. Toda uma nebulosa intelectual que encarna a transição de uma era idealista e dialética – a das lutas e projetos coletivos – à era “pós-metafísica” do indivíduo des-historizado, emancipado de qualquer determinação que lhe ultrapasse. A partir dos anos 80, toda a esquerda pode ser considerada em maior ou menor medida como “foucaultiana”. Porque o autor de “Vigiar e Punir” continua vivo em quase todas as obsessões, lugares comuns e modas ideológicas “progressistas”. Nos tempos foucaultianos a revolução não consiste em transformar o mundo, mas em se adaptar a ele. A revolução é coisa de “estar em dia”, de seguir a moda, de assumir o espírito do tempo, de se grudar ao rolo compressor da desregulamentação, da liberalização e da homogeneização do planeta, ao compasso de um ideal de emancipação individual por trás do qual se oculta um neoliberalismo alheio a qualquer ideia de limite.

O objetivo final? Uma globalização de rosto duplo: pós-ocidental no plano cultural (os países ocidentais serão multiculturais e mestiços) e ocidental no plano dos “valores”, o que quer dizer: extensão universal do princípio da livre-concorrência e um capitalismo que, desembaraçado de qualquer referência “arcaica”, será assumido como norma geral da vida. [50] Trata-se de um “pensamento único” que dá ares de evidência, que se impõe como a ordem natural das coisas, uma ordem frente à qual não cabem mais alternativas além das próprias da franja de lunáticos (lunatic fringe) ou das ideologias odiosas e inapresentáveis. É o famoso “Não há alternativa” (There is no alternative) de Margaret Thatcher.

Não há alternativa? Se aceitamos esse axioma, estamos aceitando o fim de toda política. Porque em sentido estrito só há política – explica Jacques Rancière – “quando há pelo menos duas ideias sobre como repartir o mundo. Mas quando há apenas uma, então não há política, mas polícia (no sentido novecentista de policy, police), administração ordinária, funcionamento bem lubrificado do status quo”. [51] Ao promover uma “contestação” que se declina em termos de indignação e de superioridade moral, a esquerda pós-moderna contribui para essa despolitização do debate público, ao mesmo tempo que substitui o confronto de alternativas por uma política compassiva saturada de gesticulação virtuosa.

O que não tem nada de estranho. A esquerda pós-moderna não se identifica com o operário ou com o proletário – figuras de tempos pretéritos – mas com a figura do “Outro”. Um Outro ubíquo que se apresenta, quase invariavelmente, sob os traços do grande herói de nosso tempo: a vítima.

“Big Other”

Quando em “1984” George Orwell imaginava a figura do “Grande Irmão” (Big Brother) não sabia que este adotaria – várias décadas depois – não a aparência de um tirano cruel e sanguinário, mas a forma impessoal e ubíqua do “Outro”. Do “Big Brother” ao “Big Other”, itinerário de uma guerra contra as liberdades.

Quem ou o que é exatamente o “Big Other”? Há alguns anos, o romancista francês Jean Raspail se referia a ele nestes termos: O “Big Other” patrulha em todas as frentes. Se apropriou da caridade cristã – aquela que devemos a nosso próximo – e a desviou em seu proveito, atribuindo-se os méritos. “O ‘Big Other’” – continuava Raspail – “é como o Filho Único do pensamento dominante, da mesma forma que Jesus é o Filho de Deus e procede do Espírito Santo. Se insinua nas consciências. Engana as almas caridosas. Semeia a dúvida nos mais lúcidos. Nada lhe escapa e não deixa que ninguém escape. Sua palavra é soberana. E o bom povo o segue hipnotizado, anestesiado, preenchido como um ganso por uma massa de certezas angélicas...”. [52] O Big Other não é um rosto concreto, mas uma multidão; é a vanguarda e a personificação da multidão, um dispositivo suprapessoal que nos observa e nos vigia.

O “Big Other” é uma das maneiras pelas quais se manifesta o grande herói de nosso tempo: a vítima. É também o disfarce de uma realidade tão velha quanto o homem: o poder.

“O Outro”: Construção de um Totem Pós-Moderno

A construção do “Outro” como objeto de culto pós-moderno parte, como não poderia deixar de ser, da Escola de Frankfurt. Ao voltarmos novamente a este fecundo clube filosófico (autêntica marmita de ideias que remodelaram o Ocidente) convém insistir, mais uma vez, em que não nos encontramos aqui diante de um desdobramento do “marxismo cultural”, mas de pós-marxismo. Como sabemos, o interesse dos intelectuais de Frankfurt se diria principalmente ao homem e à sociedade, não à econometria ou à justificação do determinismo econômico. O objeto de sua preocupação eram os conflitos que emanam da alienação e da reificação dos indivíduos, dois resultados nefastos – segundo os frankfurtianos – de uma sociedade totalmente administrada e hierarquizada. Os remédios deveriam ser, em consequência, não tanto políticos como filosóficos e psicológicos, segundo um modelo que recorda o do psicanalista e seu cliente no divã. Assim se entende que, a partir de então, a crítica cultural começara a eclipsar a crítica econômica e que a análise sociopolítica se orientara pelas vias da psicologia. [53]

A progressiva deificação do Outro responde também a esta deriva psicologizante: o Outro se configura como um vigia moral que nos impele a abandonar nosso egoísmo, a submergirmos em correntes de empatia, a nos abrir à alteridade. Do que se trata, finalmente, é de superar a alienação e a reificação que oprimem os indivíduos, através de um processo de identificação com aquilo que não é nós, de fusão com aquilo que se encontra mais além de nós: o Outro.

Em seu culto ao Outro, a teoria crítica frankfurtiana assume o papel de sentinela da esperança, algo como o vigia que anuncia a proximidade de uma costa salvífica. Os teóricos frankfurtianos adotam aqui um contraponto místico-escatológico, no qual se adverte uma sensibilidade judaica muito marcada pelas atrocidades da Segunda Guerra Mundial. Na esteira destes pensadores judeu-alemães, o remédio contra a desumanização de Auschwitz viria com uma abertura ao Outro que, incondicionada, se reverte de facto na negação de si mesmo. A identidade do Outro adquire, assim, traços sagrados e redentores, enquanto que a própria identidade se desvaloriza. Esta veia redentora – muito visível, por exemplo, no pensamento utópico de Ernst Bloch – explica a influência que a teoria crítica da Escola de Frankfurt exerceu sobre a teologia da libertação latino-americana, dando lugar a uma vulgata junta as reivindicações terceiro-mundistas com o discurso sobre a “culpa” e a dívida histórica do Ocidente (um argumento – o da culpa – também muito explorado por Jean Paul Sartre). O Outro é, por definição, quase sempre uma vítima. E ao assumir sua consciência culpável, o Ocidente assume uma visão romântica das identidades alheias e o rechaço pela sua própria. Trata-se de uma atitude em cujo fundo ferve a velha ideia do “bom selvagem” de Rousseau, o ilustre pioneiro na idealização ocidental do Outro. A ideologia sem-fronteirista e a visão seráfica da imigração como um fato globalmente positivo – dogma oficial do establishment mundialista – bebe dessa visão arrebolada do Outro como fonte de graças e bênçãos.

O “Big Other” se ergue como o grande totem dos tempos pós-modernos, como última e definitiva instância no tribunal da humanidade. Seu processo de construção reúne duas temáticas que se retroalimentam: a da identidade e a da vítima. Duas ideias basilares da esquerda pós-moderna. [54]

A Invasão dos Valentões-Chorões

“Espaço livre de violências machistas”. “Espaço livre de apartheid, racismo e xenofobia”. “Espaço livre de homofobia, transfobia e serofobia”. “Espaço livre disso e daquilo”. A linguagem relativa aos “espaços livres” procede – como todas as modas do politicamente correto – dos Estados Unidos. Sua proliferação alberga, potencialmente, efeitos imprevisíveis.

O conceito de “espaços seguros” (safe spaces) nasceu nas universidades americanas como a prática de habilitar aulas para que certos grupos de estudantes – normalmente gays ou transexuais – pudessem se reunir sem serem incomodados. Posteriormente, o conceito se expandiu, e hoje se refere a espaços permanentemente habilitados para que os estudantes de uma ou outra “comunidade” (étnica, sexual, religiosa, ideológica) possam se relacionar entre si, sem se verem expostos às “microagressões” ou traumas que lhes provoca serem confrontados por opiniões diferentes das suas. O assunto evoluiu a uma progressiva tribalização da vida universitária, com uma remodelação dos espaços públicos segundo parâmetros identitários. Com outra consequência: a prática dos “espaços seguros” desembocou em um clima de intolerância e intimidação, com as liberdades de expressão e de reunião limitadas pelo zelo vigilante dos defensores das minorias. [55]

A polêmica dos “safe spaces” no mundo anglossaxão combina dois fatores já mencionados: o reconhecimento das identidades “oprimidas” e a moral vitimista. Estes são os dois pilares da ideologia do Outro. No contexto da polêmica dos safe spaces, a expressão “cry bullies” (valentões-chorões) designa perfeitamente o perfil daqueles que, se amparando na superioridade moral de seu status de “vítima”, pretendem impor sobre os outros sua própria visão das coisas. Por trás das reivindicações justiceiras e dos delirium tremens moralistas se prende, portanto, uma questão de poder. Como assinalava o historiador italiano Furio Jesi, “quem controla uma máquina mitológica tem em suas mãos o palanque do poder”. A mitologia vitimista é hoje um palanque de poder, o primeiro disfarce das razões dos fortes. [56]

Como se “constrói” uma vítima? A questão não é frívola, na medida em que a moral vitimista constitui, hoje, a pedra angular do funcionamento de nossas democracias. Assistimos durante as últimas décadas a uma reconfiguração da ideia de democracia: esta já não se define pelo respeito à opinião da maioria, mas pela forma como trata e protege as minorias. O que nós encontramos aqui é algo muito mais manjado: a erosão do princípio de soberania nacional (ideia motriz da democracia moderna e do liberalismo clássico) e sua substituição por um princípio procedimental de respeito aos direitos humanos. A promoção das minorias e o estabelecimento de facto de uma “minoricracia” – impulsionado pelas políticas da esquerda pós-moderna – tem um caráter instrumental para o neoliberalismo, cuja agenda aponta para a superação das nações soberanas. Mas para chegar até este ponto era necessário um amadurecimento, filosófico e ideológico, nos laboratórios da pós-modernidade.

A Vítima como Fetiche

Quando a partir dos anos 70 os intelectuais pós-modernos refletem sobre a dor e sobre a vítima, o assunto contava já com um considerável pedigree filosófico. Como assinala François Bousquet “a partir de 1945 e sob o impulso da ‘teoria crítica’ frankfurtiana, a sociologia se tornou miserabilista, a etnologia se tornou dolorista, a teologia se tornou expiatória; um ecumenismo da penitência se estendeu a toda a sociedade, da alta cultura à cultura popular”. [57] Tomando o relevo da Escola de Frankfurt nos encontramos novamente com... Foucault! Na elucubração sobre vítimas e sofrimentos, o filósofo de “Vigiar e Punir” tinha forçosamente que encontrar uma mina. Foucault a explorou a fundo, para presentear ao neoliberalismo seu achado mais precioso: a substituição da luta de classes pelo confronto identitário.

Convém tem presente que, antes de mais nada, a vítima gera identidade. “Quem sou? Sou uma vítima, algo que não se pode negar e que ninguém poderá me retirar”. [58] A identidade vitimista se apresenta necessariamente como identidade minoritária. Não se trata – para as minorias – de se apoderar dos palanques do Estado, mas de desenvolver espaços de “autonomia”: um desígnio perfeitamente alinhado com a lógica libertária e antinormativa do neoliberalismo. O pós-modernismo foucaultiano abre o caminho para a “minoricracia”, e com isso para o abandono da práxis política marxista. Não em vão, o pós-modernismo favorece “uma erupção do social em uma miríade de singularidades, as quais pugnam por se reagrupar e formar uma coalizão que conduza a maioria à emancipação. A luta a favor dos excluídos de todo tipo, de todas as vítimas de todas as discriminações, era algo certamente impensável para as organizações marxistas, que se consagravam unicamente à defesa ou à representação do proletariado”. [59] Mas com Foucault se encerra definitivamente – no terreno filosófico – a era do proletariado. Começa a era do narcisismo ferido, a era do indivíduo-vítima.

Na filosofia pós-moderna e na esteira de Foucault, a dor, o sofrimento e a culpa se situam no epicentro da reflexão moral. Todos e cada um dos filósofos pós-modernos farão profissão de fé dolorista. Para François Lyotard é preciso, antes de tudo “dar testemunho” da dissonância, especialmente da dos outros. Para Richard Rorty a solidariedade consiste na “capacidade imaginativa de ver pessoas desconhecidas como companheiros de sofrimento”, de forma que a função do intelectual não é reelaborar uma teoria social, mas promover a sensibilização em relação ao sofrimento alheio. Para Jacques Derrida o reconhecimento da morte do “outro” é o fundamento de toda ética. Para Giorgio Agamben o paradigma biológico do Ocidente não se situa na cidade, mas no campo de concentração. Para Pierre Bordieu é preciso reconhecer, junto à “miséria da condição” (aquela que deriva de circunstâncias objetivas, pobreza, enfermidade, etc), a “miséria da posição”: aquela que é subjetivamente experimentada com independência das circunstâncias objetivas (o que explica que o vitimismo seja uma fábrica de identidades fictícias). Para Judith Butler a vulnerabilidade – o fato de se estar aberto à violência do outro – é o que nos identifica como sujeitos. Ser sujeito é ser suscetível de ser abusado. E assim sucessivamente.

Em seu desenvolvimento pleno, o enfoque dolorista se estende para além das fronteiras do humano. O movimento “anti-especista” situa a condição de vítima no centro do destino animal, sobre a base do sofrimento que os animais padecem por causa do homem. A espiral dolorista se estende também (por que não?) às plantas, ao mundo mineral e à terra. Paradoxalmente e fechando o círculo, a ideologia vitimista desemboca em uma espécie de anti-humanismo. [60]

De forma significativa, a “crise do Sujeito” e a “morte do Homem” (Foucault) são dois objetos de meditação pós-modernista. Após meio século de desconstrução, parece que só ficou uma coisa incólume: o princípio de inocência da vítima. Se produz uma inversão de perspectivas: a vulnerabilidade é potência, o desvalimento é fortaleza. As crianças, os inválidos, os pobres de espírito: eles herdarão não já o reino dos céus, mas o hic et nunc da legitimidade e a glória cidadã. Assim se explica – assinala Daniele Giglioli – que o status de vítima se configure hoje como “uma casamata, como uma fortaleza, como uma posição estratégica a ser ocupada a todo custo”. E não é estranho que “quem deseje o carisma da Verdade para sustentar seu próprio discurso, se sinta tentado pela mentira para se fazer passar pela vítima que não é”. [61] Por fim, a vítima gera liderança: não há maior fanatismo ou dogmatismo do que o daquele que assegura lutar contra a injustiça, que o daquele que fala em nome das vítimas. Desta forma a vítima se converte no novo veículo do poder, porque em um mundo em que a Verdade desapareceu, a vítima sempre tem razão.

Mas não há vítima sem culpados.

Tirania da Penitência

“Toda criança que morre de fome morre assassinado”. Isso dizia em 2005 o sociólogo suíço Jean Ziegler, então relator da ONU para a alimentação. Para além de sua intenção de remover consciências, convém reparar no reducionismo que implica uma transferência de culpa: para cada criança que morre de fome há necessariamente um assassino. De verdade? Na frase se advertem os ecos da já referida tradição filosófica. Para Emmanuel Levinas – certamente o máximo inspirador da ética contemporânea – toda morte (desde que prematura) implica, na verdade, em um homicídio e acarreta uma responsabilidade moral do sobrevivente. Para a maioria dos pós-modernos, a ideia de dignidade humana só é acessível através da humilhação e da ofensa. O que significa que a onipresença dos agressores e dos opressores – dos culpáveis – é condition sine qua non para sustentar e fortalecer a ideia de dignidade humana. Todos somos, portanto, culpados, e todos estamos chamados – se quisermos nos redimir – a residir na condição de vítima ontológica. A culpabilidade forma parte dos atributos do sujeito. Reminiscência da ideia cristã do pecado original: humanidade e culpa caminham juntas.

A questão é, então, saber: quem são os Administradores dessa culpa? Quem são os sacerdotes da má consciência? Aqui se encontra novamente escondida a questão do Poder.

A moral vitimista é maniqueia, no sentido de que o mundo é dividido entre oprimidos e opressores, entre bons e maus. Na doxa pós-moderna – mais concretamente, na tradição da French Theory e dos Cultural Studies americanos – a condição de vítima não depende de circunstâncias passageiras, mas se atribui ao “ser” (a orientação sexual) ou à origem (cultural ou étnica) das pessoas, especialmente se essas origens forem extra-ocidentais. A moral vitimista funciona em uníssono com a mitologia do “Outro”: a que se encarna no “muçulmano”, no “imigrante ilegal”, no refugiado, no recolhido em um campo de concentração. Convém não perder de vista as implicações políticas de tudo isso, sua função de blindagem do conformismo ideológico. Como assinala Daniele Giglioli “sob pretexto de uma moral universal de baixo custo e alta rentabilidade – ao não ser problemática – o credo humanitário é mais precisamente uma técnica, um conjunto de dispositivos que disciplinam o tratamento das palavras, de imagens sabiamente articuladas em ícones e glosas, de reações emotivas impostas aos espectadores, uma estetização kitsch, um sensacionalismo redutivo, uma naturalização vitimista de populações inteiras”. [62]

Trata-se também de uma questão de representação e encenação. É inegável – assinala Myriam Revault d’Allonnes – “a relação íntima entre o compassivo, o espetacular e o espetáculo”. [63] A moral vitimista se ajusta à perfeição com o funcionamento dos meios de comunicação. Não em vão “o tom moral, grandiloquente, da ética pós-modernista proporciona ao jornalista uma cátedra de profeta imprecador, muito teatral, que transformou o discurso dos meios de comunicação em um discurso de denúncia permanente, de revelação pública das taras de uns e de outros” (Shmuel Trigano). [64] Como instrumento de poder – ou de política/espetáculo – o enfoque vitimista é especialmente eficaz em sua aplicação às relações exteriores. “É evidente – continua Giglioli – que o humanitário forneceu a primeira fonte de legitimidade a quase todas as últimas guerras, da Somália à antiga Iugoslávia, do Afeganistão ao Iraque, sobrepondo à imagem resplandescente do guerreiro as figuras mais tranquilizadoras do policial, do médico ou do comerciante da esquina”. [65] Quem está com a vítima – ou quem fala em nome dela – tem sempre razão.

Vitimismo e Desconstrução da Democracia

Nossa tese é de que a ideologia vitimista, apesar de sua aparência enganosa, se inscreve plenamente na dinâmica neoliberal. Como se efetua esse encaixe?

Como bem sabemos, o neoliberalismo se sustenta sobre uma ontologia individualista: a do homem como empresário de si mesmo. Nesse contexto as identidades, longe de se remeterem a determinações fixas – a nação, a raça, a família, a igreja, o partido político – se veem submetidas a um estado de reconstrução permanente, com o objetivo de se amoldarem a um padrão de otimização individual: o próprio de uma sociedade competitiva ao máximo. A nova cultura do capitalismo se fundamenta nisso que Boltanski e Chapiello chamavam as “identidades-projeto”: identidades personalizadas, fluidas e cambiantes, adaptadas a uma lógica de redes. A liberdade de escolher se manifesta também no direito a construir a própria subjetividade. Nesse contexto, o neoliberalismo não só privatiza os serviços públicos, mas privatiza também as identidades. É aí que intervém a dinâmica vitimista.

O vitimismo é uma fábrica de identidades particularizadas, setoriais, cindidas das determinações coletivas que, essas sim, contém uma autêntica dimensão política. Ao promover um ego hipersensível que reclama seu direito à lamúria, à felicidade e ao respeito por seus sentimentos, a ideologia vitimista reforça os poderosos, consola os subalternos e, em um nível mais geral, cumpre a função de despolitizar o espaço público. [66] A democracia se reconduz assim a uma política da empatia, se rebaixa às mudanças de humor de uma cidadania cada vez mais infantilizada. “A invasão do político pelo compassivo – escreve Alain de Benoist – é correlativa à inundação da esfera pública pelo privado. A generalização dos bons sentimentos acompanha e agrava a retirada do homem de sua esfera privada. A vida política se inclina assim na direção de uma ‘sociedade civil’ chamada a participar na ‘governança’, por algumas ‘reivindicações sociais’ que não tem mais a menor relação com o exercício político da cidadania”. [67] A palavra-chave é “governança”.

A promoção da vítima forma parte dessa transformação da ideia e da prática da democracia à qual fizemos alusão anteriormente. A retórica sobre o “empoderamento” dos diversos coletivos, a insistência em “espaços de autonomia” para as minorias oprimidas, as exigências de “inclusão”, de participação e de comunicação... tudo isso se insere na muito neoliberal ideia de “boa governança”. Esta vem basicamente dizer que a democracia não existe mais em função das consultas populares e da vontade da maioria, mas do respeito a regras procedimentais de gestão e arbitragem de interesses dispersos. O político se dissolve no administrativo (management) e o público se dilui no privado. Não em vão, o mundo da governança é aquele que institui a primazia dos juízes, das formas não-eleitorais de participação, da chamada “sociedade civil” (ONGs): uma forma de despotismo esclarecido. Nesse contexto o “povo” é sempre suspeito. Por isso, é melhor desconstruí-lo. [68]

A ideologia vitimista é um instrumento de desconstrução das nações; de “fluidificação” delas em amálgamas de projetos particulares, de grupos de interesse, de “comunidades” de diversas procedências (a chamada “diversidade”) unidas apenas por vínculos contratuais e por um marco legal comum garantido pelos juízes. Não em vão, vivemos na Era de Ouro dos juízes-estrela e dos tribunais internacionais. Objetivo último: colocar as nações em uma situação na qual possam ser reconstruídas, com base em normas importadas e regulamentos exógenos, de forma que se possa tomar controle delas a partir do exterior. [69]

Que tude mude, para que tudo siga igual

A esquerda pós-moderna é a principal impulsora do conceito enfático do “Outro”. O Outro é um totem com duas cabeças: “a multidão” (projeção de uma humanidade indiferenciada) e “as minorias” (necessariamente vitimizadas). Esta pinça dupla tem como finalidade favorecer o mundialismo e afiançar a governança neoliberal. [70]

Dizíamos que o pós-modernismo é uma filosofia da fragmentação, da singularidade, da individualidade. O que equivale a dizer: das multidões e das “gentes”. No final das contas, as gentes (e aqui reside sua diferença em relação ao povo) não deixa de ser um mero agregado de indivíduos, enquanto que a noção de multidão – assinala Maxime Ouellet – responde a uma ontologia individualista que define o ser por seus desejos [71] Por isso, Michel Foucault e Antonio Negri – o teórico das “multidões” enquanto sujeito global do pós-capitalismo – dão as mãos como santos do neoliberalismo de esquerda. A ideologia pós-modernista cumpre uma função histórica: a de oxigenar o capitalismo, a de acompanha-lo em suas mutações, a de aportar vias renovadas de legimitação à governança neoliberal. Nesse contexto, a ideologia participa em uma dinâmica de poder em três níveis: a esquerda pós-moderna se ocupa da gestão dos “usos e costumes”, os liberais “hayekianos” se ocupam da gestão da economia, e a social-democracia de “terceira via” se encarrega da gestão política. Os três níveis (cultural, econômico e político) conformam o “bloco hegemônico” que – como sintetiza perfeitamente Maxime Ouellet – compõem a governança do neoliberalismo. [72]

Não seria justo dize que as reivindicações setoriais e a agitação das minorias carecem totalmente de dimensão política. A conversão das questões comuns em questões particulares é, efetivamente, um fator de despolitização, mas apenas dentro da ordem neoliberal. Mas quando essa ordem se vê ameaçada a partir de fora – ou quando sofre sobressaltos que entorpecem seu manual – as minorias assumem, com disciplinada coreografia, o papel de força cipaia a serviço da oligarquia globalista. Exemplos? A utilização das minorias LGTB no agitprop contra regimes incômodos para o Ocidente (como a Rússia de Putin) ou a mobilização massiva do movimento feminista contra a presidência de Trump (com o tambor midiático do show business internacional) são dois episódios suficientemente eloquentes. Em todos os casos, a esquerda pós-moderna dará o alerta contra as forças “reacionárias” e acudirá em auxílio das causas “progressistas”, quer dizer, de todas aquelas que são promovidas pela superclasse transnacional globalizada. A ideologia vitimista é, neste sentido, uma força de ordem.

As Novas Damas da Caridade

A vítima inspira compaixão. Mas há algo mais reacionário do que a caridade, entendida não como virtude privada mas como forma instituidora do social? Nos tempos pré-pós-modernos se contrapunha a caridade à justiça. A ideia por trás era que, quando a política desliza pela rampa do compassivo (ou do caritativo) estamos nos esquivando de abordar os problemas de fundo. Mas hoje correm outros ventos, nos quais caridade e justiça caminham juntos. Junto ao “homem que padece”, o neoliberalismo promove certo tipo de homem de ação: o empresário solidário. É a hora do comércio justo, dos especuladores-filantropos, das banqueiras feministas, do charity business. A esquerda pós-moderna se integra no cortejo dos bons sentimentos e fornece seus próprios arquétipos: o ativismo comprometido, a velha estrela de rock solidária, as ONGs como novas damas da caridade... figuras todas essas que se inscrevem nisso que Myriam Revault d’Allonnes denomina “democracia compassional” e que não é mais que “uma democracia adulterada, desde o momento em que a moral compassiva é um substituto débil e desviado do que Max Weber chamava a ‘ética da convicção’, que se desprendia da fidelidade a uma exigência incondicional: o dever, o ideal, a religião, a grandeza de uma causa, etc”. [73] Quer dizer, de tudo aquilo que a pós-modernidade veio varrer...

A ideologia vitimista é conservadora. Com a desculpa do apoio a uma libertação das minorias discriminadas, as políticas neoliberais saem incólumes de seus (socialmente) custosos processos de ajuste. A promoção das vítimas pode, assim, se qualificar – nas palavras de Daniele Gigliogi – como “uma subalternidade que perpetua o domínio”. [74] Ou dito à maneira de Lampedusa: que tudo mude para que tudo siga igual. A esquerda pós-moderna se revela, neste sentido, como a melhor leitora de "O Gatopardo".

Uma linguagem tão antiga quanto o homem

A esquerda pós-moderna é a sacerdotisa da culpa e da expiação, a expedidora de certificados de moralidade e de decência. Uma esquerda ao gosto do dia, metade hipster metade Savonarola, instalada na indignação virtuosa e no onanismo da boa consciência. Ali onde o velho marxismo se distinguia pelo equilíbrio formal e pela frieza da análise – leia-se Marx, Lukács ou Gramsci – os sucessores da French Theory e dos Studies americanos, carentes do talento de seus mestres pós-modernos, se esgoelam em gesticulações humanitárias. Não é estranho que o tremendismo sentimental se haja apropriado do discurso das esquerdas; um registro lacrimejante destinado a afiançar o caráter moralmente irrebatível de seus argumentos. A superioridade moral da esquerda!

As sereias do “bom pensamento” ululam por todos os lados. Os indignados, as vítimas, os vigilantes da moral, os Torquemadas do politicamente correto, as matilhas incendiárias das redes sociais... não falam todos eles uma mesma linguagem? Uma linguagem tão antiga quanto o homem...

“Aqui pululam os vermes dos sentimentos de vingança e rancor! Aqui o ar fede a coisas secretas e inconfessáveis! Quanta mendacidade para não reconhecer que ódio é ódio! Que esbanjamento de grandes palavras e atitudes afetadas, que arte da difamação justificada! Essas gentes mal constituídas: que nobre eloquência brota de seus lábios! (...) O que querem exatamente? Representar pelo menos a justiça, o amor, a sabedoria, a superioridade...”

“Dão voltas ao nosso redor como censuras vivas, como advertências dirigidas a nós – como se a boa constituição, a fortaleza, o orgulho, o sentimento de poder fossem em si mesmas coisas malignas, coisas que há que expiar em algum momento: como eles mesmos estão, no fundo, dispostos a fazer expiar, como estão ansiosos por serem verdugos! Entre eles há aos montes os vingativos disfarçados de juízes, que constantemente levam em sua boca a palavra justiça como uma baba venenosa...” [75]

Estas palavras de Nietzsche parecem escritas para nossa época. Descrevem a eterna canção do ressentimento. Seu caudal e sua linguagem durarão tanto quanto dure o homem.

O gênio do neoliberalismo – sua grande inteligência estratégica – consiste em por a seu serviço – em instrumentalizar – as fraquezas e as pulsões mais elementares do ser humano. Sua habilidade para apagar as pistas é infinita. Mas se apesar de tudo conseguimos segui-las, podemos rastrear – sob as caretas da “Justiça”, da “Vítima” e do “Outro” – as metamorfoses do Poder.

Arrancar essas caretas é um ato de libertação.

A Esquerda e seus Chocalhos

“Há uma guerra de classes, isso é um fato; mas é a minha classe social, a dos ricos, que a está promovendo e que está ganhando”.

Assim se expressava em 2006 o multimilionário norte-americano Warren Buffet em uma célebre entrevista no New York Times. [76] Seguindo suas palavras, não é necessário ser um trotskista raivoso para admitir que, efetivamente, há uma crescente brecha social – se é que não se deseje chamar de “guerra” – e que na hora de analisar os problemas da sociedade ocidental o enfoque de classe é, hoje em dia, tão ou mais pertinente quanto nunca.

Uma nova luta de classes? Esse é um contexto no qual a esquerda não se encontra, nem espera. O que faz, hoje, a esquerda culturalmente hegemônica? Embriagada pela ideologia arco-íris e pelo multiculturalismo Benetton, a esquerda celebra a “diversidade”, reivindica as minorias sexuais, radicaliza o feminismo, advoga por fronteiras abertas, reescreve o passado (a “memória histórica”) e persevera em sua heroica luta contra a “sociedade heteropatriarcal”, contra a igreja que nos oprime e o fascismo que nos ameaça.

Claro que sempre haverá alguém que nos diga que todos estes temas são a buzina que o capitalismo vendeu à esquerda, para mantê-la entretida e tranquila. Mas também cabe pensar o contrário: que a esquerda não necessita de ajuda para se enganar e que todos estes temas procedem da própria esquerda; mais concretamente: da esquerda pós-moderna, a grande encarregada de fornecer ao capitalismo os liftings ideológicos da temporada.

Teria a esquerda traído seus próprios ideais? Cabe mais pensar o contrário. A conversão da esquerda ao pós-modernismo (e, portanto, ao neoliberalismo) é, no fundo, um ato de coerência histórica. Morto definitivamente o socialismo real – entre a “revolução” de maio de 1968 e a queda do muro em novembro de 1988 – a esquerda retornou às suas origens históricas, que não são outras que as da burguesia acomodada, herdeira e beneficiária da ideologia do Iluminismo. É preciso considerar – com o fez Jean-Claude Michéa em uma série de obras fundamentais – que a origem histórica da “esquerda” se situa, não no socialismo, mas no “compromisso histórico” fechado no final do século XIX (época do “caso Dreyfus”) entre a intelligentsia progressista e a parte mais institucionalizada do movimento socialista. Mas na aurora do século XXI, liberada finalmente de seus vernizes operários, é totalmente coerente que a esquerda compartilhe com o capitalismo, já sem dissimulação, uma comum essência liberal, assim como uma fé dogmática na religião do progresso. [77]

De início, os temas “progressistas”, agitados sem interrupção pela indústria midiática e pelo show business internacional, garantem à esquerda sua hipervisibilidade e sobrerrepresentação cultural. Mas também cabe se perguntar se, a longo prazo, a esquerda não estará procedendo com isso a sua própria explosão controlada. Talvez vejamos coisas que hoje são difíceis de imaginar.

Falemos de Classes Sociais

É necessário recolocar o enfoque de classe, adequá-lo a uma era na qual os atores sociais são difíceis de identificar à primeira vista.

Reivindicar hoje o enfoque de classe não equivale a desempoeirar a visão paleomarxista de classes sociais uniformes e estáticas, com grandes capitalistas dedicados a sugar a mais-valia do proletariado. Este enfoque já não tem sentido, a partir do momento em que é a exclusão – e não mais a exploração – o instrumento que o capital emprega para controlar as classes subalternas. Ademais, a noção de classe social é hoje incerta e fluida, do momento em que o sujeito neoliberal é, antes de tudo, um “empresário de si mesmo”. Todos e cada um são, hoje em dia, explorados e exploradores, devedores e credores, produtores e consumidores. Ao que há que acrescentar que já não há consciência de classe em sentido marxista, devido à atomização social impulsionada pelo neoliberalismo. A possibilidade de uma luta de classes em sentido clássico é cada vez mais incerta, a partir do momento em que a fronteira entre poderes e contrapoderes se tenha diluído. O próprio sistema renega o poder; essa é sua “marca de fábrica” (Shmuel Trigano). O sistema cria sua oposição controlada, de forma que os “contrapoderes” pomposamente proclamados pela extrema-esquerda não passam de meros parques temáticos, quando não forças auxiliares no trabalho sujo de informação, intimidação e repressão. [78] Na era pós-moderna a dominação se exerce de forma capilar, rizomática, com a colaboração entusiasmada dos próprios subalternos. Mas o fato de que os subalternos careçam de consciência de classe não faz com que os dominadores ignorem onde estão os seus interesses. Um ponto em que um dos pais da sociologia, Vilfredo Pareto, pode nos ajudar a completar a visão de Marx. [79]

Como é sabido, Marx propunha uma explicação da luta de classes em termos de oposição entre capital e trabalho. Segundo os marxistas tradicionais, a eliminação social dos grandes proprietários conduziria, a longo prazo, ao fim de toda dominação. Mas para Pareto, essa é uma ilusão otimista. A dominação não responde a um acúmulo de circunstâncias elimináveis, sendo consubstancial à natureza humana. “A dicotomia que opõe o trabalho frente ao capital – segundo Pareto – não é mais que a forma particular e contextual de uma luta pelos recursos e pelo poder, cujo dinamismo deriva de uma natureza humana que lhe pré-existe e lhe sobreviverá”. O que permanece invariável, portanto, é “a propensão das sociedades humanas a se organizarem de forma hierárquica entre as elites que governam e a massa governada (...) ao que se acrescenta uma luta interna no seio das elites para manter ou acrescentar suas prerrogativas, ainda que para isso devam estabelecer alianças de circunstância com atores sociais fora de sua própria esfera”. [80] A questão está em saber onde está hoje essa classe dominante, como se organiza sua hierarquia, onde estão as alianças de circunstância e qual é sua ideologia orgânica.

O pós-modernismo é a ideologia da classe dominante. O fracasso da esquerda pós-moderna reside em sua incapacidade de enxergar isso. Confrontados com o contexto do desprendimento de uma visão obsoleta da luta de classes, as novas esquerdas recorreram à já conhecida panóplia pós-moderna: as minorias como substituição do proletariado, os “ilegais” como substituição da classe operária, a “desconstrução” como substituição do materialismo dialético, as “guerras culturais” como substituição da revolução. Alguns na esquerda denunciam esta situação, mas a aposta foi demasiado forte, os esforços investidos extremamente ingentes, e certamente já é tarde demais para voltar atrás.

Em algo, de fato, tinha razão a esquerda pós-moderna: todos esses temas “progressistas” conformam, hoje, o marco vencedor. Mas não para as novas esquerdas em um sentido estrito, mas para o neoliberalismo do qual, de forma consciente ou inconsciente, elas também formam parte.

Diversidade: Armadilha ou Equívoco?

Teriam sido as novas esquerdas vítimas de uma armadilha do neoliberalismo? Seria o pós-modernismo uma estratégia para destruir a esquerda? Seria a “diversidade” um ópio do povo feito de paradas LGBTQ, políticas de gênero e slogans veganos? Essa é a tese de uma incipiente crítica no seio da esquerda, a qual, vítima de um ataque de pelanca pela fuga dos trabalhadores para o populismo de direita, liga as sirenes de alarme e clama por uma reapropriação do velho marxismo e suas essências operárias. Uma explicação – a da “armadilha” – que, como todas as interpretações em chave conspiratória, resulta pouco convincente. [81]

A tese conspiratória – que de forma mais rebuscada podemos chamar tese “funcionalista” – é um enfoque teleológico que explica os fenômenos e os comportamentos em função das necessidades internas do sistema. Segundo essa ideia, as coisas existem porque respondem a necessidades ou objetivos que, de alguma maneira, foram pré-determinados por certos atores: aqueles que “movem os fios” do que acontece. Trata-se de uma explicação confortável, na medida em que serve de coringa para explicar fatos que, de outra forma, parecem confusos ou incompreensíveis. Mas o problema dos conspiracionismos costuma ser o simplismo de suas análises. Algo assim como quando, no século XVIII, alguns iluministas explicavam a religião como uma impostura dos padres para dominar o povo. Mas se queremos entender a virada pós-modernista da esquerda, o próprio Marx assinala um caminho mais adequado. 

Se em algo se destaca a obra de Marx, é na frieza analítica. Por maior que fosse sua indignação diante das misérias do proletariado, o autor d’O Capital rechaçava as explicações subjetivas, psicológicas ou moralizantes. Nunca em sua obra se aplicam os manejos do capital em termos de maquiavelismo ou de rapacidade de um grupo social concreto (os capitalistas, em si mesmos, não são nem “bons” nem “maus”). Na visão marxiana, todos os agentes sociais – capitalistas, burgueses, proletários – obedecem a um processo que em boa parte lhes escapa, na medida em que é impulsionado pelas contradições de uma sociedade cuja célula germinal é o fetichismo da mercadoria. Um contexto no qual os homens são em boa medida os executores de uma lógica externa, na qual os processos de socialização formam uma dinâmica que se autorregula de forma autônoma. [82] O que quer dizer tudo isto, ao explicar o nascimento da esquerda pós-moderna?

Simplesmente: tanto o neoliberalismo como o pós-modernismo formam parte dessa lógica externa, na qual os dois fenômenos confluem de forma natural. Nem o pós-modernismo é um “complô” do neoliberalismo, nem há conspiração. Os pós-modernos de esquerda são só um produto de sua época, ou se preferirmos, são uma hegeliana “astúcia da História” na fase neoliberal do capitalismo. Uma ideia que, não obstante, devemos manejar com precaução, se não quisermos cair nessa visão teleológica que criticamos acima. As coisas aconteceram assim, mas também poderiam ter sucedido de outra maneira. Porque frente ao que afirma o marxismo vulgar, os processos sociais não são determinados pelos modos de produção (a chamada “infraestrutura”), mas condicionados por eles. [83]

Seja como for, a esquerda pós-moderna segue seu caminho, convicta (talvez sinceramente) de que constitui um ousado contrapoder frente ao neoliberalismo. Onde reside seu erro? Simplesmente, em não ver até que ponto ela é condicionada pela forma neoliberal de (re)produção do social; em não assumir até que ponto é a impulsionadora de um processo que a supera.

Capitalismo Cool

Obcecada pela crítica cultural ao Estado capitalista, a nova esquerda menosprezou o aspecto determinante das sociedades avançadas: a globalização. Esta consiste – assinala Maxime Ouellet – “na extensão das formas mercantis ao conjunto das relações sociais, de forma que o capital se institui como sujeito histórico da modernidade e o valor mercantil como norma universal de regulação das práticas sociais (...) Ao incidir nas questões de reconhecimento, identidade e diversidade, o pós-modernismo veio a participar nas mutações neoliberais da nova economia, ajudando-a a romper com a figura fria e austera da organização tecnocrática fordista”. [84] O pós-modernismo é a nova pele do capitalismo progressista, transgressor e cool. Este não é essencialmente homofóbico, heteropatriarcal ou etnocêntrico, ao contrário. Trata-se de uma verdade tautológica, mas difícil de assumir para aqueles que só se justificam pela existência de um inimigo imaginário: o capitalismo enquanto ordem patriarcal, conservadora e autoritária.

Não, a esquerda não precisa de ajuda para se enganar. Longe de ser um implante neoliberal no seio da esquerda, o pós-modernismo tem sua origem na própria esquerda. Em seus primórdios, alguns chegaram até a apresentar o pós-modernismo como uma nova revisão dentro do marxismo. [85] Os teóricos pós-sessentaeoitistas certamente acreditavam assentar as bases de uma nova práxis revolucionária. Mas a revisão (para dizê-lo em termos coloquiais) não passou de um breve momento. Ao se converter em pós-moderna, a esquerda deixou de ser marxista, deixou de se identificar com as classes trabalhadoras e passou a elaborar mercadorias ideológicas que – após os aggiornamentos preceptivos – podiam ser assumidas pelos partidos liberais e direitistas. Qual é o resultado? A esquerda se encontra diante da necessidade urgente de se diferenciar. E para isso não pode senão radicalizar a aposta, assumindo seu progressivo descrédito diante de uma classe trabalhadora para a qual as cruzadas pós-modernas – como as crianças transexuais, as discriminações interseccionais, a linguagem inclusiva, o antiespecismo, a sororidade, os banheiros transgênero e os micromachismos da vida quotidiana – resultam, no máximo, de importância secundária.

A esquerda pós-moderna se funde com o neoliberalismo, e essa é uma convergência perfeitamente natural. Quando a nova esquerda renega a palavra “povo” (para substituí-la por “cidadãos”, “gentes” ou “multidões”) e quando se une aos neoliberais em seus ataques contra o “populismo” (considerado como “de direita”), o que ela na realidade faz é se reencontrar com sua verdade íntima, recuperar suas essências progressistas, renegar aquele compromisso histórico que, desde a aurora do século XX a vinculava, de maneira circunstancial, às classes populares. O resultado final é essa esquerda subvencionada pelos especuladores-filantropos internacionais, essa esquerda vaidosa que os franceses chamam “gauche-bobo” (burguesa-boêmia). A esquerda mais antipopular e elitista que já existiu. [86]

Um Novo Despotismo Esclarecido

Aplicar um enfoque de classe à esquerda pós-moderna pressupõe determinar a quem ela serve, designar o meio social que lhe serve de sustentáculo.

As origens do pós-modernismo não devem ser buscadas entre os setores mais desfavorecidos, nem entra a pequena burguesia, nem entre as classes médias, nem entre o “precariado” juvenil e urbano que é sua grande aposta estratégica. Todos estes setores são seus sujeitos passivos. O pós-modernismo é uma ideologia que se dissemina “de cima para baixo”. Quem são os de cima?

“Uma classe dominante, hegemônica, ainda que exterior à hierarquia social”: assim a define o filósofo Shmuel Trigano. Uma “nova classe” transnacional, cosmopolita e globalizada, dizia há décadas o sociólogo americano Christopher Lasch. [87] Os Mercados? Os Bancos? As Bolsas? O caráter difuso e inconcreto desta nova classe torna difícil chegar a uma definição precisa. É preciso evitar a linguagem conspiranoica. A Nova Classe não é uma conspiração, é uma dinâmica e é um sistema. A Nova Classe encarna a desmesura do capitalismo globalizado, a capacidade de representar para si um universo completamente abstrato, regido por “valores” universais, segregados da realidade física e imediata na qual habitam os homens ordinários. Uma superclasse (overclass) sem fronteiras, cosmopolita e nômade, que só se entende na mais comum das linguagens possíveis: o dinheiro.

A superclasse global conforma um sistema deslocalizado, desidentificado, viral. Mas seus traços pós-modernos não devem nos ocultar que, em última instância, ela responde aos mesmos padrões hierárquicos descritos por Pareto. Trata-se de um sistema de dominação. Sua estrutura interna foi descrita por autores como David Rothkopf, Jeff Faux, Shmuel Trigano, Michel Geoffroy. Quase todos coincidem em assinalar uma configuração em círculos concêntricos: a elite global econômica e financeira; a corporação midiático-cultural; a “sociedade civil” (as ONGs); as elites públicas gestoras da “governança” (com seus ramos acadêmico, judicial e tecnocrático). No DNA de todas estas corporações está o se manter a uma boa distância emocional, intelectual e mesmo física do “povo”, ao mesmo tempo que fomentam um cordão sanitário frente ao chamado “populismo”. As novas elites governam à distância, de fora do sistema político, sem se submeter aos mecanismos de controle democrático, enquanto promovem um projeto – o multiculturalismo, a democracia “participativa”, a pós-democracia, em suma – que impõem sem consultar às massas, com a displicência própria dos déspotas esclarecidos.

Projetado nos campi, propagado pela mídia, dogmatizado pela “sociedade civil”, imposto de forma coercitiva pelos juízes, o pós-modernismo – em sua versão progressista e de esquerda – é a “ideologia total” que permeia toda esta configuração de poder, a que lhe serve de discurso legitimador, a que transforma a realidade em “narrativa” (storytelling). 

Como em todos os grandes sistemas religiosos, o que se trata aqui é de criar um “homem novo”.

A Religião do Caos

Nenhuma sociedade é sustentável se não incorpora uma ideia de transcendência, uma ética e uma moral que a dote de um princípio de legitimidade. E isso, que é uma regra geral para todas, o é também para a nossa, a sociedade mais imanentista que já existiu. O pós-modernismo funciona como a para-religião de nossa época. Tal como muitos sistemas religiosos, se baseia na conciliação ou na união de contrários. Credo quia absurdum. A força religiosa do pós-modernismo se manifesta em sua falta última de coerência; não em vão, trata-se de um cúmulo de contradições, de uma ideologia caótica.

As contradições se desdobram em espiral. O pós-modernismo “desconstrói” as “grandes narrativas”, mas nos impõe outra “grande narrativa”, totalitária e messiânica. Ele considera que toda verdade é relativa, mas ele nos diz as coisas tal e qual são. Afirma que todas as culturas são respeitáveis, mas que a ocidental é culpável. Assinala que os valores são subjetivos, mas que o racismo e o machismo são o mal absoluto. Assegura que “tudo é política”, mas dissolve a política em governança. Desconfia dos Estados, mas exige mais “Estado-providência”. Exalta a diversidade, mas homogeneiza o mundo. Proclama a soberania do indivíduo, mas a enquadra em identidades e “comunidades”. Radicaliza a liberdade sexual, mas impõe o puritanismo (para lutar contra o “sexismo”). Rende culto aos “direitos humanos”, mas abre a porta para o trans-humanismo. Diz que a religião é retrógrada, mas que acolher o Islã é progressista. Diz que as raças não existem, mas que a mestiçagem é boa (mestiçagem do que?). Diz que a democracia é boa, mas que o povo é mau (se votar nos “populistas”). Diz que o feminismo é obrigatório, mas que o respeito à “sensibilidade cultural” dos imigrantes também é. Proclama a “tolerância”, mas instaura o politicamente correto...

Esta lista de incongruências deriva, de forma necessária, do método pós-moderno por excelência: a desconstrução. Este não persegue a coerência filosófica, mas a coerência sistêmica, quer dizer, o encaixe de todas as peças em uma “ideologia total”, em uma para-religião que se declina a todos os níveis. As incongruências respondem a um padrão comum, que o professor canadense Stephen Hicks resume do seguinte modo: o subjetivismo e o relativismo duram um suspiro, e o absolutismo dogmático é o que segue. [88] A pulsão absolutista do pós-modernismo nos devolve à questão da linguagem, que abordamos no começo destas páginas. Esse é o núcleo central da ideologia pós-moderna: a destruição e o controle da linguagem como coração do novo totalitarismo.

Tudo é Narrativa

“A linguagem é fascista” – dizia Roland Barthes. Ao final, a linguagem obriga a dizer determinadas coisas, “disciplina” o pensamento, o remete a uma realidade “não linguística”. Mas isso é algo que os pós-modernos rechaçam de forma taxativa. Para os pós-modernos a linguagem se conecta apenas com mais linguagem, jamais com uma realidade não linguística. Eles são “antirrealistas”. O que é a realidade? Um amontado de “construtos” sociais. A realidade é um conjunto de narrativas que se digladiam entre si, até um infinito que se confunde com o Nada. Desta forma podemos negar a biologia e a natureza, podemos impor o caráter “científico” da teoria de gênero, podemos reescrever a história, podemos fingir que um homem é uma mulher e uma mulher um homem, podemos justificar todas as incongruências citadas acima. A rebelião contra a realidade e a destruição da linguagem estão na ordem do dia. Aquilo de que se trata é de criar uma Novilíngua.

Recordemos o livro 1984 de George Orwell. A lavagem cerebral do protagonista culmina quando este admite que “2 + 2 = 5”, porque assim diz o Partido. A realidade e a linguagem se submetem ao código de comunicação ditado pelo tirano, à sua narrativa. O politicamente correto opera a partir dos mesmos princípios. A onipresença da palavra “narrativa” (storytelling) na linguagem política não é casual, porque nos remete ao fato de que a linguagem já não tenta distinguir entre verdadeiro e falso, mas persuadir em um sentido ou outro. Trata-se de um termo extraído do marketing anglossaxão. Não se trata mais de argumentar, mas de seduzir. Não se trata mais de refutar, mas de intimidar. Seduzir e intimidar: os princípios do politicamente correto. “Estender uma narrativa”, “se apropriar do relato”: duas expressões, onipresentes na linguagem de políticos e burocratas, que nos assinalam o autêntico campo de batalha: os jogos de linguagem. A linguagem se identifica com a retórica. A retórica é persuasão em ausência de cognição (Hicks). O que se pede à linguagem não é que seja verdadeira, mas que seja atraente, que seja efetiva. A linguagem é uma arma.

O Liberalismo devora a si mesmo

A teoria e prática dos “jogos de linguagem” nos situa diante do paradoxo supremo do pós-modernismo. Por uma parte, trata-se de um relativismo total: não há Verdade, há o Nada. Mas, na prática, ele funciona de maneira absolutista, como um tropel de dogmas quotidianos aos quais devemos adaptar nossos atos, palavras e pensamentos. Como se concilia essa contradição? A quê ela obedece?

Recapitulando o expressado até aqui, podemos distinguir três explicações:

- O pós-modernismo não é sério. Trata-se de uma estratégia neoliberal para neutralizar a esquerda (tese da suposta “armadilha”, já discutida algumas linhas acima).

- O pós-modernismo é uma forma de “marxismo cultural”, uma estratégia do socialismo para subverter a sociedade ocidental (tese habitual da direita conservadora).

- O pós-modernismo é o resultado de uma mutação no seio da esquerda, e se converteu no motor cultural do neoliberalismo (tese defendida ao longo destas linhas).

Como apontamos anteriormente, a maioria dos ataques direitistas contra a nova esquerda se apoiam na tese do “marxismo cultural”, fenômeno por trás do qual muitos acreditam ver um revival da tomada do Palácio de Inverno. Como já vimos, não faltam aparências que nos convidariam a sustentar essa tese. Afinal, vários gurus do pós-modernismo se declaravam marxistas (Escola de Frankfurt, Derrida, o primeiro Foucault) ou são tamborileiros contumazes das ideias da extrema-esquerda (a casta progressista acadêmica). Por outro lado, a dialética “opressores-oprimidos”, “repressão-emancipação”, “colonialismo-anticolonialismo” (típica dos “cultural studies” anglossaxões) recupera a tradicional retórica comunista. Ao que há que acrescentar a substituição pós-moderna da “luta de classes” por substitutos como a “luta das minorias” e a “guerra dos sexos”. Também é evidente que o pós-modernismo incorpora muitos dos reflexos atávicos da velha esquerda: a ideia de uma justiça universal e abstrata, a desconfiança em relação as nações, o utopismo, a ideia prometeica de um “homem novo”, o culto ao progresso. Entende-se, portanto, que autores como Stephen Hicks falem do “pós-modernismo maquiavélico” para se referirem a uma estratégia do socialismo em luta contra a civilização liberal, ou que o filósofo Shmuel Trigano defina o pós-modernismo como uma “metástase do marxismo defunto”. [89]

Não obstante, entre marxismo e pós-modernismo há uma diferença fundamental, que o próprio Shmuel Trigano ressalta com precisão: “os marxistas acreditam na existência de uma realidade por trás da realidade formatada pela ideologia, uma realidade que a economia política e a ciência (com as quais Marx se identificava) podem analisar de forma concreta”. [90] Mas como sabemos, a atitude pós-modernista é muito diferente. O pós-modernismo é, como vimos, uma rebelião contra a realidade. Uma liberação frente a mesma. E esse esquecimento dos fundamentos naturais da existência é precisamente o que distingue o pensamento burguês – em sua versão relativista e pós-moderna – da teoria de Marx. O que nos leva à diferença definitiva entre marxismo e pós-modernismo. 

Para compreender a essência do pós-modernismo, é preciso enfatizar a ideia de liberdade ou de liberação (mais que em suas reciclagens de velhos clichês marxistas). O pós-modernismo é, em sua essência, um movimento profundamente liberal. Isso é assim, ainda que não o pareça, ainda que em sua exacerbação adote formas dogmáticas e obscurantistas. O pós-modernismo é uma radicalização do liberalismo, um puro impulso de liberdade negativa. Em primeiro lugar, é necessário libertar o homem da tradição e da velha ordem. Em segundo lugar, libertá-lo de toda determinação “vertical”, seja simbólico-cultural ou político-institucional. Em terceiro lugar, libertá-lo de sua realidade biológica, de seu próprio sexo e de seu próprio corpo. E consumada essa etapa, nos encontramos finalmente com o trans-humanismo, com a “humanização” dos animais e da matéria inerte, o que equivale a uma dissolução de facto da ideia de humanidade. As teorias da “morte do Sujeito” e da “morte do Homem” não andam longe. O pós-modernismo é a fase terminal e niilista do liberalismo. É o liberalismo que, como um animal enlouquecido, devora a si mesmo.

Faz todo o sentido que a esquerda pós-moderna coincida com o desabrochamento do neoliberalismo. O pós-modernismo é, como vimos, um neoliberalismo de esquerda; uma esquerda que quer realizar até o seu limite a velha promessa do liberalismo – a concreção real dos ideais abstratos de liberdade, igualdade e fraternidade – ao mesmo tempo que, de forma hipócrita, denuncia os inconvenientes e as moléstias do neoliberalismo. Mas não por isso deixa de beber nas mesmas fontes que os neoliberais “de direita”. Não por acaso, o discurso liberal e a esquerda pós-moderna – assinala o politólogo canadense Eric Martin – “reivindicam ambos um sujeito que só se remete a si mesmo. Toda crítica que lhes recorde a necessária aproximação do indivíduo aos valores pré-liberais (comunidade, família, nação, etc.) será imediatamente assimilada, pelos liberais de esquerda e de direita, a uma crítica intolerante, reacionária, autoritária, nostálgica (...). O pensamento neoliberal de direita e de esquerda nega que possa existir uma anterioridade lógica, ontológica da comunidade ou da sociedade em relação aos indivíduos (como era o caso, por exemplo, em Aristóteles)”. Para os neoliberais (ou pós-modernos) de esquerda – acrescenta Eric Martin – “a emancipação significa a libertação das gentes em relação a tudo que pressuponha uma obrigação social, em relação a tudo que não dependa de uma reabsorção em si da “multidão” (Antonio Negri), uma multidão entendida como justaposição de potências individuais autônomas”. [91]É a visão contratualista da sociedade como simples soma de indivíduos atomizados, a concepção das nações como meros distritos administrativos. A desconstrução da nação: aí reside o grande ponto de encontro entre neoliberais de esquerda e de direita.

Objeto Político Não-Identificado

A esquerda, uma vez passada pelo molde pós-modernista, acaba resultando em um golem estranho; uma espécie de “objeto político não-identificado”, difícil de encaixar em moldes pré-estabelecidos. A coisa merece, certamente, uma nova definição.

O filósofo Gustavo Bueno utilizava as expressões “esquerda indefinida” e “esquerda divagante”. Ambas são válidas, mas lhes escapa esse elemento que apontávamos antes, e que em nossa opinião é essencial para definir o fenômeno: seu caráter profundamente liberal. [92]

Mas a definição de “liberal” é insuficiente. A história do liberalismo é demasiado complexa, com capítulos de grande envergadura e nobreza intelectual (tem, por acaso, algo a ver com Tocqueville, John Stuart Mill ou Raymond Aron o tema que nos ocupa?).

Trata-se, desde já, de um fenômeno pós-moderno. Mas nos encontramos com um problema parecido: esta seria uma definição “guarda-chuva” que se presta a muitas confusões. Ademais, em um sentido estrito, uma coisa é o “pós-modernismo” (que se supõe uma ideologia e uma tomada de partido) e outra diferente é a “pós-modernidade” (que é uma fase histórica e um dado objetivo). Nesse sentido, somos todos “pós-modernos” (na medida em que somos moldados por nossa época), mas nem todos somos “pós-modernistas”.

Se os termos “esquerda”, “liberal” e “pós-moderno” são insatisfatórios – por serem vagos e difusos – que palavra podemos empregar?

É preciso encontrar um novo termo.

O Momento Liberasta

No início do século XXI, um fenômeno político começou a ser propagado em vários países da ex-URSS: a irrupção de uma oposição indignada e ruidosa, provida de ampla disponibilidade de meios, de eficaz coreografia e um hábil emprego das novas tecnologias. Se algo a distinguia de outros protestos era a sua postura juvenil, seu afã mimético do Ocidente e o uso de uma nova linguagem.

Animada pelas corporações midiáticas e lubrificada com dinheiro ocidental, esta nova e difusa “sociedade civil” se converteu na ponta de lança das chamadas “revoluções coloridas”: um regueiro de algazarras políticas que, durante anos, se sucederam nessa parte do mundo. Os protestos apontavam sempre em uma direção: impugnar uma série de governos autoritários, repressivos e corruptos, para alinhar seus países com as “sociedades abertas” do Ocidente. As revoltas costumavam ser acompanhadas de uma dimensão ideológica de maior alcance: a crítica cultural às sociedades “arcaicas”, “fechadas” e “pós-comunistas”, reforçada ao mesmo tempo pelo ruído incipiente de reivindicações feministas e de minorias sexuais. Seus ativistas adotavam, de forma ocasional, uma estética e uma retórica inspiradas pela “nova esquerda” ocidental, na qual o “antifascismo” não deixava de marcar presença. [93]

Na atualidade, ainda que este ciclo de revoluções pareça momentaneamente esgotado, o seu magma social – nutrido por uma burguesia acomodada e urbanita – segue latente como oposição larvada nos países mais resistentes aos interesses atlantistas, a Rússia em primeiro lugar. [94]

As revoluções coloridas eram, à primeira vista, um fenômeno difícil de categorizar para os cidadãos de países que já haviam visto quase tudo em matéria de comunismo, guerras e antifascismo. Aos olhos da maioria da população, parecia claro que os novos revolucionários não eram nem podiam ser “marxistas culturais” ou “neocomunistas”. É preciso ter em conta que, nessa zona do mundo, os partidos comunistas costumam ter uma orientação patriótica que está muito longe do globalismo de seus homólogos ocidentais. Tampouco eram claras as credenciais “progressistas” da coisa; especialmente na Rússia, onde os anos de Iéltsin, com seu pró-ocidentalismo genuflexo, são recordados como um verdadeiro pesadelo. De forma instintiva, muitos cidadãos passaram a considerar estes ativistas como simples títeres do Ocidente, com todas as conotações negativas que isso acarreta.

E, assim, se estendeu o uso da palavra “liberasta”.

Com o termo “liberasta” (liberast) se denomina na Rússia a esse tipo de “eterno opositor” que, de maneira sistemática e demagógica, se manifesta sempre contra o poder, qualquer poder, e sempre em nome de alternativas caóticas. O termo se fez extensivo a todos os ativistas e pasionarias da “sociedade civil” que, de uma forma ou de outra, tentavam arrastar o país para as rotas socioculturais do Ocidente. O interessante desse termo, no que nos concerne, é que parece capturar a essência desse fenômeno que temos tentado descrever ao longo de todas estas páginas: a esquerda pós-moderna.

O que é, exatamente, um liberasta? O termo se constrói sobre o genérico “liberal” – que, segundo nossa opinião, identifica o substrato filosófico último das “novas esquerdas” – ao mesmo tempo que lhe dota do sentido radicalizado que o liberalismo adquire ao se fundir com a ideologia pós-moderna. Trata-se de um significado parecido ao da expressão “liberalismo libertário”, muito utilizado na área cultural francófona para designar às esquerdas pós-68. Mas, a partir de sua concisão e contundência, a expressão “liberasta” incorpora um certo sentido de perversão do liberalismo, captura a essência niilista desse liberalismo que devora a si mesmo, que tem algo de patológico e insaciável. Não é por acaso que a etimologia de “liberasta” – como a de pederasta – aponta para a existência de um desejo malsão (pela liberdade, neste caso).

O termo “liberasta” não é uma definição neutra. Ao contrário: desperta uma série de conotações pejorativas e tem, do ponto de vista polissêmico, um potencial interessante. Por isso, pode ser uma definição eficaz no contexto das “guerras culturais”, um instrumento apropriado para os “jogos de linguagem” dentro de uma narrativa contra-hegemônica.

Os liberastas são a versão degenerada da ideologia progressista, são a esquerda pós-moderna em sua pior faceta: a de idiotas úteis do neoliberalismo. [95]

A Esquerda faz sua Autocrítica

Em novembro de 2016, nos EUA aconteceu o impensável: diante da esmagadora oposição da oligarquia midiática, econômica e política, Donald Trump vencia as eleições presidenciais. Após décadas de hegemonia cultural absoluta, a vitrine do progressismo internacional parecia saltar pelos ares. O país-berço do politicamente correto, da ideologia de gênero e da pós-moderna French Theory via como os desprezíveis rednecks venciam as eleições e impunham como Presidente o seu grosseiro favorito.

O que havia acontecido?

Aconteceu o que alguns já haviam alertado há anos. A esquerda progressista havia se desconectado da classe trabalhadora e de suas reivindicações tradicionais: justiça social e luta contra a desigualdade econômica. Alienados dos perdedores da globalização, perdidos no rodamoinho pós-modernista, os “liberais” americanos (a esquerda, na linguagem política daquele país) só conseguiam se apresentar como uma plataforma de minorias sexuais, étnicas e linguísticas mais ou menos vitimizadas. Retomando uma velha tradição de respeitabilidade e de puritanismo – profundamente enraizada na cultura americana – a esquerda se assemelhava a uma coleção de beatas de sacristia pós-modernas, em luta contra os novos pecados da homofobia, do sexismo e do racismo. Mas como costuma acontecer, tudo que se converte em sagrado convida necessariamente a sua profanação. A esquerda havia se convertido na piada de uma nova geração de millennials, em um eriçado mensageiro do Sistema divertido de dar cascudos e causar histeria para ver o que acontece.

Diante desta inquietante transformação, fazia tempo que as advertências procediam da própria esquerda; mais concretamente: daqueles intelectuais que reivindicavam um marxismo mais ou menos “old school”. Entre essas contribuições se encontram algumas das melhores análises que até hoje foram feitas sobre a pós-modernidade. [96] Finalmente, escaldados pelo auge populista na Europa e América, alguns setores da esquerda defendem um retorno às essências obreiristas, ao mesmo tempo que ensaiam tímidas retificações em temas como a imigração ou as políticas de identidade. [97]

Significa isso que a esquerda hegemônica vai aprender a lição? Significa que a cultura de esquerda vai se orientar para um autêntico populismo? De modo algum. Isso seria admitir que a esquerda se equivocou, e isso não acontece nunca.

Uma crítica a esquerda moral admite: a de que seus nobres impulsos a tornam demasiado generosa. Mas na hora da verdade, no momento de fazer a autocrítica de seu giro pós-modernista, a esquerda resiste a fazer uma revisão profunda (o que a levaria, por exemplo, a questionar a ideologia de gênero, o multiculturalismo, as políticas de imigração ou o politicamente correto). Sua atitude predominante costuma se limitar a considerações táticas e/ou estratégicas: como evitar que a extrema-direita tire proveito da situação. Não se trata, portanto, de uma crítica genuína, mas oportunista e epidérmica. Por exemplo, ao criticar a ideologia da “diversidade” não se trata de desmontar este fetiche pós-moderno (que, na verdade, se considera maravilhoso), mas de denunciar a extrema-direita por se ocupar dos temas que, de fato, interessam aos trabalhadores: a imigração em massa, a islamização acelerada de bairros e escolas, a insegurança, a desindustrialização, as deslocalizações e um modelo de globalização que beneficia a poucos. Outro tique característico do enfoque esquerdista é a negação pura e dura da realidade. Por exemplo: nega-se que a imigração em massa provoque conflitos culturais, ou que ela seja inassimilável, ou que muitos europeus tenham um sentimento crescente de despossessão identitária. Como trata-se aqui de realidades incômodas que não deveriam existir, o mal estar se atribui às distorções interessadas e às “narrativas tóxicas” da extrema-direita – segundo a máxima pós-moderna de que “tudo é narrativa”. Outro exemplo de negação da realidade consiste em analisar o fenômeno populista europeu segundo parâmetros e clichês dos anos 1930 (renasce o fascismo!), em uma demonstração de rotina mental, reflexo pavloviano e incapacidade de entender os novos tempos.

Que remédio propõem os estrategistas da esquerda diante do distanciamento dos trabalhadores? A partir do momento em que os achados pós-modernistas – a linguagem inclusiva, o neofeminismo, a revolução vegana, o antiespecismo, a denúncia da heteronormatividade, a desconstrução da masculinidade patriarcal, os banheiros transgênero, as fronteiras abertas, etc. – são considerados como conquistas irrenunciáveis do progresso humano, é claro que é necessário mantê-los. O que se propõe, simplesmente, é uni-los às reivindicações sociais da classe trabalhadora, apelando se necessário ao discurso obreirista e à bagagem ortodoxa. Definitivamente, um grande negócio que se baseia em uma suposição gratuita: todos os subalternos se amam e todos os subalternos se equivalem. LGBTIQ e metalúrgicos, mesmo combate! [98]

Astuto, não é?

Uma Nova Religião de Estado

O problema dos liberastas consiste em sua fuga da realidade. Aferrados ao dogma pós-moderno da “capacidade performativa do discurso” (o que traduzido significa: a capacidade da linguagem de produzir a realidade) eles substituíram a realidade pelo discurso e se extraviaram em jogos de palavras. A esquerda liberasta absolutizou o marco opressores-oprimidos (que é real, mas que não é o único) para aplica-lo em todos os casos e situações, ignorando que existem outros marcos que derivam da intersecção entre natureza e cultura, e que se sobrepõem – e muito frequentemente eclipsam – o marco anterior em questão. Dessa forma, a esquerda liberasta dá as costas à psicologia, à biologia, à etologia e à antropologia, prefere ignorar que os instintos territorial e tribal resultam de milênios de evolução humana e são consubstanciais aos povos, prefere negar que, como assinalava Levi-Strauss, um certo grau de hermetismo cultural é necessário para a salvaguarda da diversidade humana. A esquerda liberasta vê a história como uma melodramática novela de privilegiados versus discriminados, como um relato vitimista sobre o qual atiça seus sermões santarrões e suas fantasias sentimentais. A esquerda liberasta substituiu a racionalidade do marxismo por uma atitude kitsch histérica apta para berrar nas redes sociais e nos talk-shows televisivos. De forma infantiloide, exalta a autonomia individual e condena a ordem social como opressiva, mas ao mesmo tempo exige um Estado e uma burocracia que se comporte como uma mãe hiperprotetora e carinhosa. A esquerda liberasta é um florilégio de contradições insolúveis, de aberrações lógicas e de idiotices políticas, mas para ela dá na mesma porque tudo se resolve em “jogos de linguagem”. A coerência não deixa de ser, para ela, apenas outro “construto social”...

Fuga da realidade? Na cosmovisão liberasta não se trata tanto de negar a realidade quanto de desconstruí-la. A ideologia da esquerda pós-moderna é um construtivismo radical. Seu fundo ideológico último se encontra em Rousseau, quando estima que tudo, absolutamente tudo, é produto do ambiente, da educação e das circunstâncias sociais. Desta forma, podemos esconder sob a almofada os dados da biologia e da genética. Na mesma linha, o recurso a um Kant simplificado permite à esquerda se autoproclamar representante do “imperativo categórico” e das ânsias de bondade e justiça universais, a superioridade moral da esquerda! Para arrematar o trio vitorioso, Foucault lhes proporciona a sofística pomposa com a qual destruir toda a cultura anterior. Chegamos assim ao mundo perfeito, a um mundo em que a realidade se faz e se desfaz como um brinquedo manejado por uma criança geniosa.

Acontece que essa criança geniosa – a esquerda liberasta – se encontra hiperprotegida por um coral de adultos que sempre lhe dá a razão. Toda uma casta acadêmica lhe cuida e lhe engorda, com a ração dos “estudos culturais” (cultural studies): uma configuração de flatulências intelectuais que se fazem passar por disciplinas científicas. Como fonte doutrinária do politicamente correto, os “estudos culturais” – com seu epicentro nas universidades anglossaxãs – conformam hoje um universo incestuoso e corrupto, blindado na insularidade de seus privilégios acadêmicos. A partir de suas cogitações pós-estruturalistas, os estudos culturais prosperam na atmosfera espessa de um establishment endogâmico, no qual qualquer exposição a uma discussão aberta – ou à simples realidade – teria o efeito de um raio de sol sobre um vampiro. Seu valor filosófico e sua credibilidade científica eclipsam, em onanismo mental, os teólogos bizantinos ou as camarilhas clericais da escolástica tardia. A comparação não é gratuita, porque através do politicamente correto conseguiram erigir um monopólio ideológico que não se via na Europa desde a Idade Média: uma autêntica religião de Estado.

Esmagar o infame! – devem ter pensado muitos eleitores de Trump na hora de depositar seu voto.

De Costas para o Povo

Por que os pobres votam na direita? Por que os ricos votam na esquerda? Este é certamente o fenômeno político mais relevante das últimas duas décadas. A esquerda se identifica, de forma progressiva, com os profissionais de elite e com a gentry privilegiada, enquanto que as inseguranças e as angústias das classes subalternas encontram refúgio nos partidos populistas. Partidos que são desprezados pelo establishment progressista como um ordinarismo próprio de operários. Claro que esta soberba não deixa de recordar o das afetadas ridículas de Versalhes, anos antes de seu desfilo rumo à guilhotina. Dançando à beira do vulcão? Observamos uma conjunção de fatores que aponta para desenvolvimentos inéditos, não necessariamente pacíficos.

A história nunca se repete do mesmo modo; por isso, não tem sentido as analogias com os anos 1930 e com os alertas – periodicamente reativados – sobre o retorno do fascismo, do nazismo, do comunismo, etc. Todos estes espantalhos formam parte de uma estratégia de criminalização, de um esforço por tornar impensável tudo aquilo que se distancie do neoliberalismo em suas múltiplas faces: centro-direita, centro-esquerda, esquerda pós-moderna, liberastas e o resto do balé do pluralismo imposto. As tormentas vindouras tomarão formas inéditas, certamente com uma implosão ou superação do eixo tradicional esquerda-direita. Revoluções? [99]

As oligarquias sabem que só os povos fazem revoluções, enquanto que as “gentes” e as “multidões” (sujeitos políticos da esquerda liberasta) no máximo chegam à desordem e ao caos. Por isso, as oligarquias se aplicam na desconstrução dos povos, em sua remodelação e substituição mediante a imigração, as deslocalizações e outras operações de engenharia social. Quanto ao caos... as oligarquias o transformaram em instrumento de governança. Apesar das aparências, o caos não gera comportamentos imprevisíveis, mas lógicas de curto prazo, reativas, previsíveis. Frente a lucidez dos povos historicamente constituídos – que podem, se for o caso, se alçar contra o Poder – as sociedades desestruturadas são incapazes de elaborar estratégias de longo prazo, e se limitam a reações instintivas, fáceis de contrapor. Enquanto se mantenham sabiamente controlados, o caos e a anarquia também podem ser fatores de ordem, e esse é o grande segredo da engenharia social pós-moderna. Em qualquer caso, nada que possa afetar aqueles que voam em seus próprios aviões e esquiam em suas próprias montanhas. A privatização crescente da segurança e a proliferação de cidadelas amuralhadas – de costas para a realidade “multicultural” das pessoas comuns – são sinais emblemáticos de uma nova era: a de uma superclasse deslocalizada e imune às consequências desastrosas de suas políticas. [100]

Discurso Neoliberal e Reductio Ad Hitlerum

Assistimos à tentativa de impor uma “aldeia global” sem fronteiras ou exterioridade possível. Um sistema de valores e de normas homogêneas, no qual a possibilidade de outra alternativa se revele estritamente impensável. A esquerda liberasta é uma parte importante dessa aposta. A sua função consiste em perpetuar uma situação na qual a juventude – dito seja nos termos de Marx, retomados pelo filósofo italiano Diego Fusaro – se encontre “desintegrada na estrutura e integrada na superestrutura”. Ou seja: se encontre submetida às precariedades e alienações do neoliberalismo, mas se encontre entretida e sedada por seu aparato cultural, midiático e consumista. Como parte dessa estratégia – continua Fusaro – é imprescindível manter “os dois pólos alternativos e secretamente complementares do antifascismo (na total ausência do fascismo) e do anticomunismo (na total ausência do comunismo)”, dois pólos que “saturam o imaginário político dos jovens, ofuscando sua capacidade crítica e os cegando diante das contradições capitalistas, sempre invisíveis no choque entre facções aparentemente opostas”. [101] Com seu zelo vigilante e suas cruzadas histéricas, a esquerda liberasta funciona como elemento de distração, como bombeiros do Sistema.

Como se pode responder a esta estratégia? Como apontamos antes, é preciso reativar um enfoque de classe que ponha a ênfase no caráter espúrio da esquerda pós-moderna. Um enfoque de classe purgado dos erros, dogmatismos e rigidezes do velho marxismo. Se falamos de perspectivas inéditas, é necessário admitir que um Marx libertado do marxismo admite leituras que, considerando a virada antipopular e elitista da esquerda, bem poderiam se situar hoje à direita. A primeira delas: a reivindicação do materialismo. A esquerda pós-moderna substituiu a visão materialista da história pela retórica do politicamente correto: um conglomerado de moralismo e de dogmas exilados da realidade. O retorno ao material – a atenção às preocupações da maioria da classe trabalhadora – é uma atitude que, se ontem era de esquerda, hoje se inclinou para a direita. [102]

Em segundo lugar, é necessário afirmar com Marx o caráter contingente de toda ordem política, o papel central do povo na criação das constituições. Porque no pensamento marxiano, é o povo que cria as constituições, e não o contrário. [103] O politicamente correto dominante nos diz, ao contrário, que são as constituições – na medida em que derivam de princípios universais e transcendentes (a ideologia dos direitos humanos) – que criam e conformam os povos. Segundo este dogma são os povos que devem se adequar – inclusive em sua composição física – à Ordem Revelada, que é necessariamente multiculturalista. A democracia, de sua parte, deve ser corrigida quando o povo ignóbil questionar os princípios liberais que conformam a Legitimidade Superior. Neste sentido, não faltam propostas sérias, rodeadas de ouropel acadêmico, para substituir a democracia por governos de “especialistas”. [104] No final das contas, se Hitler chegou ao poder após eleições a democracia não pode ser completamente boa. O onipresente esquema do reductio ad hitlerum é o argumento universal e infalível do neoliberalismo para justificar todos os seus desmandos. [105]

A Esquerda no Quarto Escuro

A história intelectual dos últimos dois séculos nos ensina uma lição: quando um sistema de ideias se limita a repetir as mesmas consignas vazias e quando obriga os demais a acreditar nelas, trata-se de um sistema a caminho de desaparecer. Poderá conservar o poder, a força e a hegemonia – e isso por muito tempo – mas se trata de um sistema já morto, porque a seiva vital deixou de correr em seu interior. O conformismo e a autocomplacência são tóxicos, prelúdio da extinção. E a realidade oficial não admite, a longo prazo, o divórcio com a realidade real. A casca podre termina sempre se desprendendo. Assim ocorreu com os grandes credos e ideologias do passado – a URSS é um exemplo muito claro – e assim passará com a esquerda pós-moderna: a última religião que oferece guarida e santuário àqueles que buscam um dogma no qual acreditar.

A Igreja Liberasta exige de seus adeptos grandes provas de fé. Aceitar que uma mulher possa ser um homem e um homem possa ser uma mulher, ou que a beleza é um mito imposto pelo heteropatriarcado, ou que as raças não existem (porque como é sabido, “não é um conceito científico”) não são as menores delas. Do momento em que todos nascemos como indivíduos neutros e abstratos, do momento em que todos podemos escolher livremente nossa identidade... a partir desse mesmo momento, todos estamos obrigados a nos reconhecermos pelo que sintamos: homem ou mulher, negro ou branco, criança ou idoso, terráqueo ou marciano. Exageros? A lista de mais de cem “gêneros” já contabilizados nos EUA, a afirmação de que ser branco ou negro não é um fato natural, mas uma relação social (ideia replicada da teoria de gênero), a noção de “racialização” como “designação étnica” independente da biologia: eis aqui várias indicações de como as coisas estão se encaminhando. Que todas estas posições procedam dos EUA não deve nos surpreender. Liberdade de escolher! É Milton Friedman (e não Lênin) o Papa da esquerda pós-moderna. Por que se empenham em não reconhecer isso?

Com estas bagagens intelectuais, qual será o percurso da esquerda durante as próximas décadas? Entre os sintomas de uma civilização acabada e de uma sociedade em vias de dissolução (um progressista qualificaria estas afirmações como “decadentismo”) tudo isso que chamamos de “esquerda”, com sua bagagem centenária de lutas políticas e sociais, certamente desaparecerá ou mutará em um híbrido definitivamente irreconhecível. De fato, já o está fazendo. A esquerda foi abduzida pelo neoliberalismo em seu padrão essencial: o horror por tudo que pressuponha limites e limitações. Cortada da seiva vital que procede das classes populares, a esquerda liberasta preferiu se meter no “quarto escuro” das minorias e se entregar a experimentos mais ou menos extravagantes. É duvidoso que, a longo prazo, o comum dos mortais vai segui-la por esses caminhos. A “orgia suicida” era, ao final das contas, uma das fantasias malditas de Foucault. Niilismo terminal para as elites entediadas.

Rumo a um Futuro Pós-Liberal?

A apologia do “trans”: aí reside a alma, coração e vida da esquerda liberasta. Uma obsessão que se deriva em uma série de figuras metafísicas: os mutantes, os nômades, os párias, os marginais, os “outros”... figuras todas elas que, como assinala Shmuel Trigano, constituem uma espécie de “universal desconstruído”, uma série de portas rumo a uma transcendência indeterminada e cambiante: o Santo Nada. [106] O que é a negação da diferença sexual, senão a refutação da reprodução sexual, dessa “coprodução do humano que só tem sentido porque existem homens e mulheres”? [107] Diante de nós se abre uma perspectiva inquietante. Se encontra a humanidade em perigo de extinção? Por acaso o vírus liberasta, inoculado ao resto do mundo, nos converterá em um planeta queer?

Há motivos para pensar o oposto. As ilusões progressistas sobre uma parusia secular, liberal e permissiva do gênero humano não param de receber desmentidos duros. De fato, esta ilusão se encontra enclausurada no Ocidente, em uma porção cada vez mais reduzida da humanidade. Da franquia ocidental o mundo aceita as mercadorias, mas rechaça as doutas admoestações. O sonho liberal-capitalista do “Fim da História” – assinala a feminista “dissidente” Camille Paglia – “ignora as escuras lições sobre os ciclos de auge e queda das civilizações, que a medida que são mais complexas e interligadas se tornam também mais vulneráveis ao colapso. A terra está semeada de ruínas de impérios que se acreditaram eternos (...) As extravagâncias da experimentação de gênero costumam preceder os colapsos culturais (...) A América é hoje outro império distraído em jogos e distrações ociosas. Mas hoje, tal como ontem, há forças que se alinham fora das fronteiras: hordas dispersas de fanáticos, entre os quais o culto da masculinidade heroica ainda tem enorme atrativo”. [108] Como se quisesse lhe dar a razão, a ensaísta franco-muçulmana Houria Bouteldja (figura de proa do movimento de extrema-esquerda “Indígenas da República”) denuncia o “imperialismo gay” (“homorracialismo”) e considera que as reações homofóbicas das sociedades meridionais são “uma resistência orgulhosa frente ao imperialismo ocidental e branco, uma vontade obstinada de preservar uma identidade que, seja real ou imaginária, é objeto de consenso”. [109] Se aproxima, talvez, o momento de fazer a escolha entre racismo e homofobia? Um belo objeto de meditação para os doutores do multiculturalismo...

O pós-modernismo parte de uma convicção: a de sua capacidade de manipular a realidade ad infinitum. Mas essa é uma tentativa que acabará lhe arrastando, cedo ou tarde, a uma profunda crise. A existência de uma realidade inevitável, de fundamentos naturais que seguem suas próprias leis, sairá inevitavelmente à luz. O pós-modernismo é, hoje, a ideologia dominante; um status que ela conquistou agitando o material explosivo das identidades. Mas as identidades são conflito, dizia Freud, e cada geração finca seu arado sobre os ossos dos mortos. Tudo parece indicar que nos aproximamos de um ponto de inflexão. Um ponto no qual, como assinalava o filósofo René Girard, “é necessário cuidarmos dos vanguardistas que pregam a inexistência do real. Devemos nos acostumar a outro enfoque do tempo: aquele no qual a Batalha de Poitiers e as Cruzadas estão muito mais perto de nós do que a Revolução Francesa e a industrialização do Segundo Império”. [110] A história está sempre aberta. Mas o modelo neoliberal da “sociedade aberta” se apoia em um amontoado de contradições insolúveis. Não haveria nada de estranho que, uma após outra, acabem explodindo em sua face.

Decadentismo? Os papas da pós-modernidade, em seu oco pedantismo, foram os primeiros decadentistas. Em outra de suas imagens mórbidas, Michel Foucault dizia que o Homem acabará se esvanecendo, como um rosto de areia desenhado em uma praia. Pode ser que seja assim. Mas muito antes desse momento chegar, talvez possamos assistir a outro espetáculo: ao da esquerda liberasta desaparecendo no esgoto da história. O prazo de contemplar isso será, indubitavelmente, o melhor de seu legado.

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Notas

[1] John Fonte, pesquisador do Instituto Hudson (Washington), cunhou em 2001 o termo "progressismo transnacional" para abordar a ideologia pós-Guerra Fria. É uma das melhores descrições da ideologia mundial feitas até hoje. Segundo Fonte, as crenças promovidas por essa ideologia incluem: 1) promover identidades de grupo (gênero, etnia) sobre identidades individuais; 2) uma visão maniqueísta de opressores/oprimidos; 3) promoção de minorias oprimidas por meio de cotas; 4) adoção dos valores dessas minorias pelas instituições; 5) imigração; 6) a promoção da "diversidade" contra a idéia de assimilação nos países de destino; 7) a redefinição da democracia para acomodar a representação das minorias; 8) a desconstrução "pós-moderna" das nações ocidentais e sua substituição pelo multiculturalismo. 
https://www.hudson.org/content/researchattachments/attachment/254/transnational_progressivism.pdf

[2] Para esta classificação, confiamos, livremente, na obra-prima de Jean-Yves Le Gallou e Michel Geoffroy, Dictionnaire de Novolangue. Ces 1000 mots qui vous manipulent. Via Romana 2015, pp. 10–11.

[3] Catherine Belsey, Poststructuralism. A very Short Introduction. Oxford University Press 2002, pp.97–98.

[4] Adriano Erriguel, Vivir en Progrelandia. Mayo del 68 y su legado. www.elmanifiesto.com

[5] Stephen Eric Bronner, Critical Theory. A very short introduction. Oxford University Press 2011, p. 48.  

[6] Isto é o que o crítico cultural britânico Jonathan Bowden chamou de "segredo íntimo" da Escola de Frankfurt. Jonathan Bowden, Revisionismo da Escola de Frankfurt. https://www–counter–currents.com). O livro "Dialética do Iluminismo", de Adorno e Horkheimer, foi uma grande influência nas origens do fluxo de idéias conhecido como "Novo Direito" francês.

[7] La era de la perplejidad. Repensar el mundo que conocíamos. Taurus/Open Mind/BBVA 2017.

[8] Simon Springer, “Neoliberalismo y movimientos antisistema”, pp. 156–173 Obra citada.

[9] Cédric Biagini, Guillaume Carnino, Patrick Marcolini, Radicalité. 20 penseurs vraiment critiques, pp. 7–25. Éditions L'Échapée 2013.

[10] Cédric Biagini, Guillaume Carnino, Patrick Marcolini, Obra citada, p. 14.

[11] Cédric Biagini, Guillaume Carnino, Patrick Marcolini, Obra citada, p. 15.

[12] Anselm Jappe, Les aventures de la marchandise. Pour une critique de la valeur.Éditions La Découverte 2017, pp. 269–270. A obra "Império", de Michael Hardt e Toni Negri, foi recebida em sua aparição (2000) como "O Capital do Século XXI": um livro de referência inevitável para radicais e altermundialistas.

[13] Maxime Ouellet, La révolution culturelle du capital. Le capitalisme cybernétique dans la societé globale de l'information. Les Éditions Écosocieté 2016, p. 254.

[14] Shmuel Trigano, La nouvelle idéologie dominante. Le post–modernisme. Hermann Philosophie 2012, pp. 36–37.

[15] Com o tema gay prestes a ficar saturado, os laboratórios pós-modernistas já desenvolveram uma longa lista de "gêneros" que assumirão relevo na agitação da opinião pública.

[16] Shmuel Trigano, La nouvelle idéologie dominante. Le post–modernisme. Éditions Hermann 2012, pp. 35–37.

[17] Francois Bousquet, “L'Autre révolution culturelle. Les nouveaux Gardes rouges du multiculturalisme”. En Éléments pour la civilisation européenne. Numéro 171 (abril–mayo 2018).

[18] Camille Paglia, Free women, free men. Sex–gender–Feminism. Canongate 2018, pp.124–125.

[19] Em "As Origens da Família" Engels desenvolve uma análise histórica da família a partir dos pressupostos do materialismo dialético, destacando o papel subordinado das mulheres dentro dela. Na perspectiva deles, a autêntica emancipação das mulheres não é a mesma que as feministas afirmam. Para Engels, "a exploração de milhões de mulheres da classe trabalhadora está um milhão de vezes distante dos problemas das pequenas burguesas que infestam o chamado movimento de mulheres". Na sua opinião, as feministas se concentram em preconceitos e atitudes masculinas, e não em questões de classe. E isso porque “elas agem dentro dos limites do capitalismo, desejando expandir o número de mulheres de classe média em posições profissionais. Mas a emancipação das mulheres só será possível quando as mulheres tiverem capacidade de participar da cadeia produtiva em larga escala e quando as tarefas domésticas ocuparem sua atenção em menor grau.” Para Engels, a situação das trabalhadoras é, portanto, uma questão de classe, que exige a unidade da classe trabalhadora - homens e mulheres - em uma luta comum para derrubar o capitalismo. Na sua interpretação, o estabelecimento de uma sociedade comunista reverterá o fim da “poligamia masculina” (motivada em sua opinião pelo interesse em garantir uma herança), de modo que a monogamia seja comum a homens e mulheres (Mary Hansen e Rob Sewell, On Engels “Origin of the Family", www.marxist.com). Portanto, Engels não exige que a família seja destruída, mas reconfigurada a partir de uma perspectiva igualitária, dentro da sociedade comunista.

[20] Pierre Dardot y Christian Laval, La Nouvelle Raison du Monde. Essai sur la societé néoliberale. La Découverte 2009.

[21] Fernando Escalante Golzalbo, El neoliberalismo, Ediciones Colegio de México (edición Kindle).

[22] Christian Laval, Foucault, Bourdieu et la question néolibérale. Éditions la découverte 2018, p. 60.

[23] Christian Laval, Obra citada, p. 66.

[24] Luc Boltanski y Pierre Bordieu, La production de l´idéologie dominante (1976). Citado en: Christian Laval, Obra citada, pp. 214–215.

[25] Pierre Dardot, Christian Laval, La nouvelle raison du monde. Essai sur la société néolibérale. Éditions La Decouverte 2009, p. 470.

[26] Francois Bousquet, “Putain” de Saint Foucault. Archéologie d´un fetiche. Éditions Pierre Guillaume de Roux 2015.

[27] Jean–Loup Amselle, “Michel Foucault et la spiritualisation de la philosophie”. No volume coletivo dirigido por Daniel Zamora: Critiquer Foucault. Les années 1980 et la tentation néoliberale, Éditions Aden 2014, p.168.

[28] Jean–Loup Amselle, Obra citada, pp. 168–169.

[29] Michel Foucault, “la philosophie analytique de la politique”, junio 1978, en Dits et écrits V. II 1978–1988 Gallimard 2001, p. 536.

[30] Daniel Zamora, “Foucault, les exclus et le dépérissement neoliberal de l´État”, en Critiquer Foucault. Les années 1980 et la tentation néoliberale. Éditions Aden 2014, p. 94.

[31] Se denomina "French Theory" ao desembarque dos pensadores pós-etruturalistas franceses - Foucault, Derrida, Barthes, Deleuze, Lacan, Kristeva, Baudrillard - nos Estados Unidos na década de 1970, bem como a propagação e mutações de suas idéias no Novo Mundo: a desconstrução, a micropolítica, o nomadismo, a simulação, o hiperreal, e assim por diante (François Cusset, French Theory. Foucault, Derrida, Deleuze & Cía y las mutaciones de la vida intelectual en Estados Unidos. Melusina 2005)..

[32] Michel Clouscard, Le capitalisme de la séduction. Critique de la social–démocratie libertaire. Éditions Sociales 1981. Gilles Lipovetsky, L´esthetisation du monde: Vivre à l´âge du capitalisme artiste. Folio 2016. Christopher Lasch, The culture of Narcissism. American Life in an Age of Diminishing Expectations. Norton and Company 1991.

[33]Maxime Ouellet, Maxime Ouellet, La révolution culturelle du capital. Le capitalisme cybernétique dans la societé globale de l´information. Les Éditions Écosocieté 2016, p. 253

[34] Christian Laval, Obra citada, p. 56.

[35] Maxime Ouellet, Obra citada, p.257.

[36] Maxime Ouellet, Obra citada, pp. 253–254.

[37] Andrés Navamuel, “El lumpenproletariado del siglo XXI” (http://www.posmodernia.com).

[38] Ernesto Laclau, La raison populiste, Seuil 2005, pp. 177–178.

[39] Como um festival de pedantismo pós-moderno, o trabalho de Laclau chega às alturas. O professor argentino escreve sobre a “asserção estática da oposição binária”, a “heterogeneidade não dialeticamente recuperável”, a “fronteira antagônica”, os “significantes flutuantes”, as “cadeias equivalenciais”, a “integração simbólica” e as “materialidades da estrutura discursiva".(Ernesto Laclau, La raison populiste, Seuil 2005, pp. 177–178).

[40] Stephen Eric Bronner, Critical theory, a very short introduction, Oxford University Press 2011, p. 90.

[41] A idéia está próxima do conceito atual de "Renda Básica Universal", embora não seja confundida com ela. Daniel Zamora, “Foucault, les exclus et le dépérissement néoliberal de l´État”. En Critiquer Foucault. Les années 1980 et la tentation néoliberale. Éditions Aden 2014, pp. 108–109. También: Anselm Jappe, Les aventures de la marchandise. Pour une critique de la valeur. Éditions La Découverte 2017, p. 264.

[42] José Luis Moreno Pestaña, citado por Daniel Zamora en Obra citada, p. 110.

[43] Significativamente, para Ernesto Laclau e seus seguidores da esquerda populista, o "povo" não vai além de ser um "significante vazio" que deve ser preenchido com conteúdo ("construir povo").

[44] Ernesto Laclau, Obra citada, p. 181.

[45] Sobre o fenômeno do “precariado”: análise de Fernando Vaquero Oroquieta no jornal digital La Tribuna del País Vasco: “Podemos: el partido revolucionario del precariado” (8 de febrero 2016) (latribunadelpaisvasco.com).

[46] Maxime Ouellet, La révolution culturelle du capital. Les Éditions Écosocieté 2016. P. 143.

[47] Maxime Ouellet, La révolution culturelle du capital. Les Éditions Écosocieté 2016. P. 143–144.

[48] Renaud Camus. La dictature de la petite bourgeoisie. Éditions Privat 2005.

[49] Owen Jones, Chavs: La demonización de la clase obrera. Capitán Swing 2012.

[50] Christian Laval, Foucault, Bourdieu et la question néolibérale. Éditions la découverte 2018, p. 111.

[51] Uma perspectiva que Josep Piqué (ex-ministro das Relações Exteriores do governo de José María Aznar) chama triunfantemente "a síntese neoocidental", o modelo definitivo da futura sociedade globalizada. Josep Piqué, El mundo que nos viene: retos, desafíos y esperanzas del siglo XXI ¿un mundo post–occidental con valores occidentales? Deusto 2018.

[52] Danuele Giglioli, Crítica de la víctima. Herder 2017, p. 113.

[53] Jean Raspail, “Big Other”. Prefacio a la edición 2011 de Le Camp des Saints. Robert Laffon 2011, pp. 24 y 31.

[54] Correntes contemporâneas como os "lacanianos de esquerda" ou a obsessão de patologizar como "fobias" atitudes que não estão de acordo com a moral oficial ("homofobia", "xenofobia" etc.) são derivações muito mais recentes dessas abordagens da Escola de Frankfurt.

[54] O teórico da Escola de Frankfurt Max Horkheimer é um exemplo claro do tratamento quase religioso da figura do Outro. Para este autor, “cada um de nós tem um desejo natural de eternidade, beleza, transcendência, salvação, Deus - o que Horkheimer chama de anseio pelo totalmente outro. Esse anseio não faz promessas, não se refere a um ritual ou a uma igreja, mas nos fornece os fundamentos para resistir à sociedade totalmente administrada e afirmar nossa individualidade. O anseio pelo totalmente outro não tem nada em comum com a religião organizada. No entanto, sua confiança e sua capacidade de negação incorporam a esperança no paraíso e a capacidade de afirmar sua própria individualidade.” (Stephen Eric Bronner, Critical Theory. A very short Introduction. Oxford University Press 2011, pp. 92–93.

[55] Sobre o tema dos "espaços seguros" e a conversão das universidades em algo semelhante aos centros terapêuticos, o livro do professor da Universidad de Kent, Frank Furedi: Qué le está pasando a la Universidad: Un análisis sociológico de su infantilización. Editorial Narcea, 2018.

[56] Citado em Daniele Giglioli, Crítica de la víctima. Herder 2017, p. 12.

[57] Francois Bousquet, “L'idéologie Big Other: les autres avant les nôtres”. Intervención en el coloquio del “Instituto Iliade”, en París 2016 (disponible en Youtube).

[58] Daniele Giglioli, Obra citada, p. 91.

[59] Jean–Loup Amselle, “Michel Foucault et la spiritualisation de la philosophie”. En: Critiquer Foucaul. Les années 1980 et la tentation néoliberale. Ouvrage collectif dirigé par Daniel Zamora. Éditions Aden 2014, p. 174.

[60] Na Guatemala, a Terra como um todo tem direitos "constitucionais". O Presidente da Bolívia, Evo Morales, promove o reconhecimento dos direitos da Terra sobre o precedente dos direitos do homem. (Shmuel Trigano, La nouvelle idéologie dominante. Le post–modernisme. Hermann Philosophie 2012.

[61] Daniele Giglioli, Obra citada, p. 89.

[62] Daniele Giglioli, Obra citada, pp. 20–21.

[63] Myriam Revault d'Allonnes, L'homme compassionnel. Seuil 2008, p. 11.

[64] Shmuel Trigano, La nouvelle idéologie dominante. Le post–modernisme. Éditions Hermann 2012, p. 103.

[65] Daniele Giglioli, Obra citada, pp. 20–21. Em sua admirável desconstrução da ideologia vitimista, Daniele Giglioli se refere ao que Lacan chamou de "o discurso do Patrão". "A palavra da vítima, absoluta por ser incensurável, é o disfarce mais astuto do que Lacan chamou de  o discurso do Patrão": um discurso que, baseado em uma norma fundada apenas em si mesma, mas complementada pelo direito à compensação de que a vítima desfruta, impõe o tom da resposta, define o contexto, dita os termos do confronto e proíbe que sejam alterados pelo (suposto) bem do interlocutor. O Patrão - Slavoj Zizek escreveu comentando Lacan - “ele é quem recebe dons de tal maneira que, quem dá, percebe a aceitação de seu próprio dom como prêmio”. Não é, então, um "seja bom e me dê razão", mas sim um "me dê razão e você será bom"". Obra citada, p. 32.

[66] “Quando cada um expressa seus problemas pessoais - escreve Revault d'Allonnes -, o espaço público não é mais o lugar onde a atenção dos cidadãos se mobiliza ao redor dos problemas essenciais da comunidade. Pelo contrário, esse se torna o lugar em que experiências singulares são adicionadas e onde o individualismo de massa triunfa ”. Myriam Revault d'Allonnes, Obra citada, p. 40.

[67] Alain de Benoist, Les démons du Bien. Pierre Guillaume de Roux 2013, p. 29. Essa despolitização geral do espaço público é perfeitamente compatível com o "tudo é político" e a "politização do cotidiano" defendida pela esquerda pós-moderna, de acordo com a lógica elementar de que quando a política está em toda parte, ela não está em lugar algum.

[68] Como aponta o cientista político Peter Mair: "a literatura atual sobre "boa governança" - direcionada aos países em desenvolvimento - parece sugerir que existe uma fórmula disponível: ONGs + juízes = democracia. Embora a ênfase na "sociedade civil" seja aceitável e a confiança nos procedimentos legais seja indispensável, as próprias eleições não são indispensáveis". Peter Mair: Ruling the void. The hollowing of western democracy. Verso 2013, p. 11.

[69] A ideologia vitimista permite provocar “conflitos triangulares” entre atores sociais dentro do sistema (que se acusam mutuamnet de “algozes”), de modo que uma intervenção externa salvadora sempre possa ser usada, seja de um Tribunal Internacional, através de sanções econômicas ou, nos casos mais extremos, com uma ação militar "humanitária". São exemplos paradigmáticos da "estratégia do caos".

[70] Argumento desenvolvido pelo filósofo francês Shmuel Trigano em seu livro: La nouvelle idéologie dominante. Le post–modernisme (Hermann Éditeurs 2012) pp. 48–51. Uma das melhores sínteses existentes sobre os dogmas ideológicos de nosso tempo.

[71] Maxime Ouelllet, Obra citada, p. 142.

[72] Maxime Ouellet, Obra citada, p. 256.

[73] Myriam Revault d'Allonnes, L'homme compassionnel. Seuil 2008, pp. 99 y siguientes.

[74] Daniele Giglioli, Obra citada, pp. 109 y 113.

[75] Friedrich Nietzsche. La Genealogía de la moral. Un escrito polémico. (Traducción de Andrés Sánchez Pascual) Alianza editorial 1983, p. 142–143.

[76] Ben Stein, “In Class warfare Guess Which Class Is Winning”. The New York Times, 26/11/2006.

[77] Não surpreende que, desde o caso Dreyfus (final do século XIX), os setores operários mais relutantes à aliança do socialismo com a esquerda burguesa tenham dado origem ao anarcossindicalismo. Entre todos os intelectuais contemporâneos, é sem dúvida Jean-Claude Michéa quem melhor formulou a origem filosófica comum da esquerda e do liberalismo moderno: Impasse Adam Smith. Brèves remarques sur l'impossibilité de dépasser le capitalisme sur sa gauche. Flammarion 2006. L'Empire du moindre mal. Essai sur la civilisation libérale. Flammarion 2007. La double pensée. Retour su la question libérale. Flammarion 2008. Le complexe d'orphée. La gauche, les gens ordinaires et la réligion du progres. Flammarion 2011.

[78] Sobre as conivências do “movimiento Antifa” con la polícia e o “Estado Profundo” (Deep State) euroatlântico: “Les Antifas sans cagoule” (Os Antifas sem capuz), artigo de Fernand Le Pic no periódico digital Antipresse, dirigido pelo escritor franco–serbio Slobodan Despot.

[79] Como assinala Anselm Jappe: “No final de sua trajetória histórica, o principal dano que o capitalismo causa aos homens não é a exploração, mas a expulsão. O estágio final do capitalismo não se caracteriza pela existência de um proletariado cada vez maior e revolucionário; isso ocorre porque a diminuição do capital variável faz o trabalho assalariado e o proletariado clássico perderem sua importância. Esta etapa é caracterizada pela diminuição do número de pessoas que vale a pena explorar”. Anselm Jappe, Les aventures de la marchandise. Pour une critique de la valeur. Éditions La Decouverte 2017, p. 164.

[80] Artículo de Sylvain Fuchs “Les mirages de la finance: une utopie contemporaine”. Krisis, revue d'idées et débats, nº 48, Nouvelle Economie? Junio 2018, p. 31.

[81] Dentro da Espanha, o livro de Daniel Bernabé, "La trampa de la diversidad. Cómo el neoliberalismo fragmentó la identidad de la clase trabajadora" (Akal 2018) é um exemplo da tendência - a crítica do pós-modernismo a partir esquerda radical - que no mundo anglófono e francófono tem uma história mais de duas décadas.

[82] Uma explicação desenvolvida por Anselm Jappe, teórico da corriente marxiana da “crítica do valor”, en: Les aventures de la marchandise. Pour une critique de la valeur. Éditions La Découverte 2017, pp. 98–107.

[83] O próprio Marx estava longe do determinismo de seus discípulos, quando afirmou (na Sagrada Família) que "a História não faz nada" e que esta nada mais é do que a atividade do homem que busca seus fins. Nesse sentido, é necessário distinguir entre a "vulgata marxista" - a ideologia desenvolvida pelos epígonos de Marx - e o pensamento do autor de "O Capital", muito mais complexo e inconclusivo do que aquilo que seus seguidores queriam admitir. O marxismo vulgar é um exemplo da abordagem teleológica/funcionalista à qual nos referimos acima: uma visão retrospectiva da história que explica as causas das conseqüências (o que aconteceu é explicado porque serve aos interesses do Capital). Como apontou Cornelius Castoriadis: “o ponto de vista marxista é aquele em que as instituições representam os meios que, a cada vez, são os mais adequados para que a vida social seja organizada de acordo com as demandas da “infraestrutura”” (Cornelius Castoriadis, L'Institution imaginaire de la societé, Editions du Seuil 1999, p.172).

[84] Maxime Ouellet, La révolution culturelle du capital. Le capitalisme cybernétique dans la societé globale de l'information. Écosocieté 2016, pp. 254–255.

[85] A esse respeito, o líder comunista Alberto Garzón ressalta que: “o pós-modernismo foi uma das reações da esquerda à evidente crise, tanto dos projetos políticos realizados em seu nome quanto, sobretudo, do referencial teórico historicista do marxismo. Ou seja, os autores da nova esquerda francesa, incluídos sob o rótulo de pós-modernismo, iniciaram um novo tipo de revisionismo das teses originais do marxismo. Um revisionismo diferente do de Bernstein ou do de Lênin, mas revisionismo, afinal de contas”. Alberto Garzón, “Crítica de la crítica de la diversidad”, en eldiario.es, 24 de junio 2018.

[86] Bobó = bourgeois-bohème. Chamados “pijoprogres” na España.

[87] Shmuel Trigano, La nouvelle idéologie dominante. Le post–modernisme. Éditions Hermann 2012, p. 96. Christopher Lasch, The revolt of the elites and the betrayal of democracy. Norton and Company 1996.

[88] Stephen R. C. Hicks, Explicando el posmodernismo. La crisis del socialismo.Barbarroja Lib, 2014, Buenos Aires, p. 161.

[89] Stephen R. C. Hicks, Obra citada, p. 162–163.

[90] Shmuel Trigano, Obra citada, p. 126.

[91] Eric Martin, “De l'abîme de la liberté à l'universel concret: liberté, humanisme, républicanisme et dialogue intercivilisationnel chez Michel Freitag”. Contribución al volumen colectivo: La Liberté à l'épreuve de l'histoire. La critique du liberalisme chez Michel Freitag. Éditions Liber, Quebec, 2017. pp. 267–274.

[92] Rodrigo Agulló, “Izquierda indefinida y hegemonía social”. En: elmanifiesto.com

[93] Como estratégia de adaptação ao terreno, as revoluções coloridas assimilam o antifascismo com o anticomunismo. O comunismo, por sua vez, é assimilado sem matizes ao stalinismo. O resultado final é a demonização de tudo que não é o liberalismo ocidental.

[94] O ponto de virada do ciclo das “revoluções coloridas” foi o golpe de Estado na Ucrânia em 2014. Este episódio apresentou a peculiaridade de reunir no mesmo bando pró-ocidental liberais de esquerda e hooligans neonazistas, usados pelos "democratas" como uma tropa de choque para o trabalho sujo. Um ótimo exemplo de pragmatismo e adaptação ao meio por estrategistas atlantistas. Para mais informação: ¿Rusia o América? Metapolítica de dos mundos aparte. Adriano Erriguel. Ediciones Insólitas 2016.

[95] O termo "liberasta" pode funcionar, de certa forma, como uma "palavra policial" (no sentido orwelliano a que nos referimos no início do texto): um epíteto que "cola" no inimigo e do qual ele não pode mais se separar. O episódio do grupo punk feminino Pussy Riot e sua performance na Catedral de Moscou em 2012 é um exemplo paradigmático de "soft power" liberasta. A breve prisão das "ativistas" na Rússia tornou possível apresentá-los como mártires, para a maior glória da propaganda atlantista. Já em liberdade, os membros do Pussy Riot encontraram seu lugar no show business americano.

[96] Entre eles: David Harvey, The conditions of Postmodernity (1989); Alex Callinicos: Against postmodernism, a marxist critique (1989); Frederic Jameson: Postmodernism, the cultural logic of late capitalism (1991); Terry Eagleton: The illusions of Postmodernism (1996); Perry Anderson: The origins of Postmodernity1998; Owen Jones, Chavs, la demonización de la clase obrera 2011. David North: The Frankfurt School, Postmodernism and the politics of the Pseudo–left. A marxist critique (2015).

[97] Um exemplo encontramos na Alemanha com a iniciativa: De pé! (Aufstehen!) lançado em setembro de 2018 pela dirigente do partido alemão “Die Linke”, Sahra Wagenknecht, que se declara contra o permissivismo em matéria migratória e defende o retorno dos refugiados a seus países (uma vez que a situação o permita).

[98] Um exemplo paradigmático deste “kitsch” ideológico é o filme britânico “Pride” de Matthew Warchus (2014). Ao se dar conta de que tem inimigos comuns (Margaret Thatcher, a policia e a imprensa conservadora) os homossexuais e lésbicas londinenses se unem aos mineiros de carvão galeses nas greves de 1984. O moralismo do filme nos sugere uma versão ideal daqueles frisos e conjuntos escultóricos da era soviética, nos quais, junto aos tradicionais soldados, operários e campesinos, se incorporariam a drag queen, o gay e a lésbica da vez. 

[99] No momento de escrever estas linhas (outono 2018) uma primícia destes possíveis desenvolvimentos inéditos o temos na Itália, com a aliança governamental entre o populismo “de esquerda” (Movimento 5 Estrellas) e o populismo “de direita” (La Liga).

[100] A análise mais conhecida sobre o uso do caos como estratégia de domínio é o livro de Naomí Klein, The Shock Doctrine: the rise of disaster capitalism. O clássico de Bernard Charbonneau, Le Système et le chaos, desenvolve a ideia de que o sistema engendra o caos, para se presentar em continuação como a única alternativa frente ao caos que ele engendrou. Na mesma linha: Gouverner par le Chaos. Ingénierie sociale et mondialisation. Max Milo 2014. O jornalista Pepe Escobar aplica este enfoque à política exterior dos Estados Unidos em: Empire of Chaos. Nimble Books 2014.

[101] Diego Fusaro, Europa y capitalismo. Para reabrir el futuro. El Viejo Topo 2015, pp. 122–125.

[102] Convém recordar alguns dados: Karl Marx condenava a competição desleal que os imigrantes pressupunham para o proletariado autóctone, e considerava a imigração como “o exército de reserva do capital”. Nos anos 1950 o Partido comunista francês (que,seja dito de passagem, condenava o aborto como um “vício burguês”) fazia uma cuidadosa distinção entre o internacionalismo (desejável) e o cosmopolitismo (luxo burguês). Importantes sindicalistas (Jacques Nikotoff) defendiam o retorno dos imigrados sobre uma base voluntária. O Secretário Geral do Partido Comunista Francês, Georges Marchais, dirigia em 1981 uma carta ao reitor da Mesquita de Paris na qual dizia que: “os sinais de alarme se acenderam: é preciso parar a imigração oficial e clandestina”. (Alain de Benoist, “Populisme de gauche, populisme de droite, les fronts bougent…” Entrevista de 25.9.2018 en www.Bvoltaire.fr).

[103] Denis Collin, Introduction à la pensé de Marx. Seuil 2018, p. 37.

[104] Nesse sentido, o livro do professor da Universidade de Georgetown "Contra la democracia" (tradução espanhola publicada por Instituto Juan de Mariana–Universidad de Deusto en 2018). Outros libertários–liberais como Bryan Caplan, Jeffrey Friedman e Damon Root sustentam que “quando a democracia ameaça os compromissos substanciais do liberalismo – o que será inevitavelmente o caso, posto que todos os votantes mal-educados e desinformados são iliberales – o melhor é, simplesmente, considerar a possibilidade de se desfazer da democracia”. (Patrick J. Deneen, Why liberalism failed. Yale University Press 2018, p. 157). Em outro nivel, a majorette atlantista Bernard Henry Lévy reivindica o “Estado Profundo” (Deep State) como “freio não– democrático” frente aos “desvarios” do populus ignorante (“El Estado profundo existe, Trump y compañía lo han comprobado”, en El Español).

[105] Resulta especialmente repulsivo ver um personagem como Madeleine Albright (ex–Secretaria de Estado dos Estados Unidos) publicar um livro entitulado "Fascismo: una advertencia" (dedicado a atacar os partidos populistas), especialmente após ver no Youtube uma entrevista sua (ano 1996) em que considera que a morte de meio milhão de crianças no Iraque (consequência dos bloqueios americanos) é “um preço que merece a pena ser pago”.

[106] Shmuel Trigano, La nouvelle idéologie dominante. Le post–modernisme. Hermann Éditeurs 2012, p. 66.

[107] Francois Bousquet, “Putain” de Saint Foucault. Archéologie d'un fetiche. Pierre-Guillaume de Roux 2015, p. 102.

[108] Camille Paglia, Free Women, free men. Sex–Gender–Feminism. Canongate 2017, pp. 212–221.

[109]“L’homophobie est-elle une résistance farouche à l’impérialisme occidental ?”, em bibliobs.nouvelobs.com. Para uma análise reveladora sobre todos estes temas, o artigo de Alain de Benoist: “Races, racismes et racialisation, la gauche en folie”, na revista Éléménts pour la civilisation européenne, nº 173, agosto-setembro 2018. (pp. 34-39).

[110] René Girard, Achever Clausewitz. Entretiens avec Benoît Chantre. Flammarion 2011, p. 356.