28/05/2014

Leonid Savin - A Situação Ucraniana em Resumo

por Leonid Savin


A principal tendência na mídia de massa americana e européia descrevendo eventos na Ucrânia é a seguinte: após a queda do regime Yanukovich, revoltas tiveram início, que são apoiadas, em particular, pela Federação Russa. A mídia de massa americana e européia ("ocidental") propositalmente mantém silêncio em relação ao papel que fundos e ONGs "ocidentais" desempenharam no início do atual conflito civil e seu papel na escalada do conflito.

Em geral podemos ver um número de fatores que ajudam a descrever o que está acontecendo na Ucrânia.

1 - O governo atual em Kiev é simplesmente incapaz: até agora não há oferta de qualquer plano para superar a crise e nenhum trabalho em uma estratégia para o desenvolvimento da sociedade e do Estado ucranianos.

2 - É óbvio que o poder legislativo ucraniano está paralisado por um grupo de usurpadores que usam seu poder para conseguir a adoção de leis "inventadas".

Porém, também há casos em que os "inventores" violam suas próprias "leis". Por exemplo, em fevereiro de 2014, sob a pressão do "Maidan" uma lei foi adotada que proíbe o uso de forças policiais ucranianas, de forças do serviço de segurança e o exército contra cidadãos. A lei estipulava, em particular, que essas forças não poderiam ser usadas contra cidadãos participantes de manifestações e protestos.

É digno notar que o "Maidan" é usado para descrever o centro das revoltas em Kiev. A tradução direta em inglês é "praça". Isto estando dito, o "governo" em Kiev agora usa a polícia e tropas do exército com artilharia, veículos blindados e helicópteros contra os habitantes de Donetsk, Lugansk, Kramatorsk e outras cidades no sudeste ucraniano.

3 - O principal slogan das pessoas que estiveram no "Maidan" foi "luta contra corrupção e a dominação da política pelos oligarcas". Agora o "governo" em Kiev indica oligarcas como governadores regionais, isto é, chefes das administrações regionais. Ao mesmo tempo, a corrupção se torna verdadeiramente monstruosa.

As expectativas dos cidadãos ordinários que apoiaram o "Maidan" tem sido enganadas. Quanto aos negócios na Ucrânia, deve ser dito que todos os negócios agora tem que pagar "impostos" adicionais para as assim chamadas estruturas ou corpos estatais, que não são capazes de resolver qualquer dos problemas urgentes.

A corrupção floresce agora, não apenas nos negócios ucranianos, mas também nos contratos com parceiros estrangeiros. A razão é simples: qualquer roubo pode ser agora colocado na conta do presidente Yanukovich ou em força maior.

4 - Até agora, não houve investigação das mortes no centro de Kiev em fevereiro de 2014 por "atiradores não-identificados".

O "terceiro lado" contrata "atiradores não-identificados" que matam manifestantes e policiais, tornando impossível a negociação entre os lados do conflito civil.

Essa técnica foi usada no Egito, Síria e até mesmo em Moscou 1993, onde alguns "atiradores não-identificados" estavam atirando do telhado da embaixada americana.

Voluntários médicos, que trabalharam no "Maidan" afirmaram que em verdade aproximadamente 800 pessoas foram mortas em Kiev em fevereiro de 2014. A maioria deles foi queimada na Casa Ucraniana. Isto é, o Centro Internacional de Convenções de Kiev. Os organizadores do "Maidan" agora tentam ocultar este fato. Àquela época a Casa Ucraniana estava ocupada pela organização "Auto-Defesa", chefiada por Andrey Paruby.

5 - Não há liberdade de expressão. Na medida em que o "governo" em Kiev e os oligarcas, instalados como governadores regionais, impuseram censura estrita na mídia de massa e negam entrada aos jornalistas russos, há clara evidência de desinformação e manipulação da opinião pública.

O "Ocidente" está desempenhando um papel especial: por exemplo, imagens velhas de satélite de equipamento militar russo tomadas de exercícios militares de 2013 são apresentadas agora como informações novas de inteligência sobre concentração de tropas russas na fronteira da Ucrânia.

6 - A ausência de lei e ordem, que se manifesta, por exemplo, nas ruas das cidades ucranianas. Bandos vadios de neonazistas armados tornam óbvio que a criação de um governo realmente legítimo em Kiev é um problema bastante difícil.

O linchamento de membros do parlamento e candidatos presidenciais como Oleg Tsarev em Kiev, a suspensão da campanha eleitoral por Yulia Timoshenko, e muitos outros "incidentes" sugerem que as eleições presidenciais marcadas para maio de 2014 não podem ser consideradas como qualquer outra coisa além de uma farsa.

Antes do golpe em 21 de fevereiro, a solução mais adequada para a crise política teria sido aquela baseada no acordo mediado pela Polônia, Alemanha e EUA. Isto é, a dissolução do Parlamento e a formação de um corpo legislativo interino com participação proporcional e direitos garantidos para todas as regiões ucranianas.

Desde o golpe tal cenário se complicou, se não se tornou impossível graças ao rápido desenvolvimento de um certo número de conflitos internos. O conflito entre os habitantes do oeste e do sudeste da Ucrânia; o conflito entre aqueles que se consideram apoiadores do "Maidan" e aqueles que se consideram "Anti-Maidan"; entre nacionalistas ucranianos radicais cujos líderes estão, estranhamento, em contato extremamente próximo com oligarcas judeus, e cidadãos que apoiam a continuidade do desenvolvimento do país dentro do esquema da civilização russo-eurasiana. 

8 - Como os EUA, e mesmo a UE, deliberadamente incitam a escalada dos conflitos ao mesmo tempo que levantam acusações contra a Rússia, a situação na Ucrânia está agora longe de ser resolvida. O que seria necessário seria uma intervenção mais ativa de membros do Conselho de Segurança da ONU como a China, bem como dos países da Ásia, África, America Latina, e todos os países considerando o mundo multipolar como a forma mais adequada para o desenvolvimento futuro da comunidade humana na Terra.

23/05/2014

Aleksandr Dugin - O Caminho Crimeano

por Aleksandr Dugin

Pode-se ressaltar quatro correntes importantes de eventos que aconteceram na última semana no drama ucraniano:

  • O início da campanha presidencial e a tentativa de Kiev de apresentar "o início do ciclo eleitoral", marcado por um confronto entre o grupo de Poroshenko contra o grupo de Timoshenko;
  • A tentativa do agrupamento pró-americano ilegítimo, que controla o poder em Kiev, de encontrar uma solução para a questão com formações neonazistas ("Setor Direito", o julgamento de Goran);
  • Batalha diplomática da Rússia na arena internacional pela defesa de sua posição na Criméia e pela idéia de federalização;
  • Eventos revolucionários no sudeste que se sucederam nesse fim de semana após a repressão de ativistas da sociedade civil no sudeste que não obedecem ao poder ilegítimo em Kiev.
Imitação de "eleição" e seu boicote no sudeste

Kiev luta para dar a entender que nada especial está ocorrendo agora, e que independentemente da vitória total da "revolução" Euromaidan e a derrubada de Yanukovich, o país pode ingressar alegremente no ciclo eleitoral de primavera. Pelo menos, segundo a mídia ucraniana, essa parece ser a verdade. Porém, não há razões para acreditarmos nisso, porque a suposta "eleição" se dá em um país no qual não apenas um golpe inconstitucional ocorreu há alguns meses, mas que também perdeu o amplo território da Criméia, e que tem que lidar com ondas maciças de protestos no sudeste.

Nessa situação o Ocidente possui a seguinte intenção: atrair atenção para a competição entre dois candidatos igualmente pró-americanos, Poroshenko e Timoshenko, e (mesmo relativamente) "legitimar" a eleição de maio colocando nela supostos "candidatos do leste" (Tsarev, Dobkin, Tigipko). Como a eleição se dará em circunstâncias extremas, mesmo no caso hipotético de revolução, a vitória será concedida a um candidato ocidental (porque o Ocidente factualmente - EUA/OTAN e as regiões ocidentais da Ucrânia - orquestraram o golpe de março em Kiev). Posteriormente, o novo governo organizará repressões em larga escala no sul e no leste o que pode gerar uma escalada no conflito com a Rússia. Esse é o plano tanto dos EUA como do agrupamento ilegítimo que controla Kiev e executa seu plano. Essa performance se desdobrará por sua própria lógica até maio e seu objetivo não é o resultado, mas o processo em si. O sistema existente, tanto indiretamente como inconscientemente, já é legitimado pelo envolvimento de pessoas no tema eleitoral. Isso também fortalece na mente da sociedade civil a idéia de um golpe irreversível. Porém, esse artifício é transparente para todos os observadores que seguem atentamente a situação na Ucrânia.

Primeiramente, a Rússia anunciou claramente que não reconhecerá por antecipação os resultados das eleições de maio. Segundo a perspectiva russa, não importa se as eleições de maio serão conduzidas ou quem vencerá. Nesse contexto, o fato de que Tsarev será um dos candidatos não deve ser superestimado. Moscou simpatiza com esse político anti-ocidental, mas não aposta nele: suas chances são mínimas e sua participação joga nas mãos de agrupamentos ilegais. Moscou possui atitudes positivas em relação a Tsarev, mas sua nomeação como candidato presidencial não é saudada. Se Moscou não reconhecer a eleição, governantes ilegítimos não serão capazes de estabelecer relações diplomáticas com Moscou mesmo após maio. Dado, é claro, que essa eleição geral ocorra mesmo em tais circunstâncias.

Em segundo lugar, a Rússia insiste na realização de um referendo sobre o status das áreas do sudeste da Ucrânia e sua federalização (ou confederação). A Rússia acredita que a Ucrânia deve ser "criada" primeiro e então depois realizar as eleições. Moscou compreende a situação da seguinte maneira: há duas nações, duas sociedades na Ucrânia. O oeste e Kiev se referem aos zapadentsi (termo pejorativo para os ucranianos ocidentais), o sul e o leste se referem à Rússia (e sua história, cultura, língua, religião, identidade e características sociais). Eles sempre votam de maneiras opostas: os primeiros por um candidato ocidental (pró-americano, pró-europeu) e os últimos por um candidato pró-russo. Yuschenko era um zapadenets. Yanukovich se apoiava no sudeste. O Euromaidan derrubou o oriental Yanukovich, e como resultado o golpe levou legítimos zapadentsi ao poder.

A nação unida da Ucrânia só poderia ser criada tendo consideração pelas duas identidades, mas ninguém pode fazer isso, nem candidatos ocidentais, nem orientais. Hoje em Kiev os zapadentsi se apoiam em neonazistas e proclamaram uma política que quer transformar toda a Ucrânia (excluindo agora a Criméia) em uma "Zapadenia" (um país só para os zapadentsi). Uma prova disso é a abolição da língua russa e a russofobia geral do regime. Zapadentsi radicais controlam Kiev e portanto o sudeste da Ucrânia, o que significa que pelo menos metade da população se tornará vítima de genocídio cultural e étnico inevitável. A Rússia não permitirá isso, e é por esse motivo que ela demanda a federalização primeiro, e eleições depois. Se não houver federalização e referendo sobre o status das áreas, não haverá Ucrânia com suas fronteiras atuais. É isso que Moscou e o Ministro de Relações Exteriores Sergei Lavrov dão a entender.

Federalização no ultimato do Kremlin a Washington

A federalização é a única condição pela qual a Rússia reconhecerá qualquer futura autoridade ucraniana. Ainda que Washington quera aceitá-lo, para pelo menos pacificar uma Moscou enfurecida com a derrubada de Yanukovich, na atual situação Kiev não concordará com a federalização de qualquer maneira. O regime assumiu o poder sob slogans nacionalistas extremistas em um frenesi russofóbico chauvinista.

Portanto, Kiev persistirá com as eleições sem referendo ou federalização. E o que fará Moscou nesse caso? Já que seu ultimato será rejeitado.

Isso nós veremos depois, mas precisamos notar um fato importante: na perspectiva de Moscou não há eleição. Isso significa que não há também para as regiões do sul e do leste da Ucrânia, que são guiadas por Moscou, e após a reunificação da Criméia, não apenas guiadas, mas depositam em Moscou sua esperança, e pela primeira vez em 23 anos realmente confiam nela. Moscou afirma com firmeza que não há eleição. Não há como o sudeste da Ucrânia não ouvir Putin, quando ele disse que eleição antes de referendo e sem federalização é efetivamente traição. Portanto, as eleições de maio serão radicalmente boicotadas pelo sudeste. Isso é apenas uma parte do ultimato de Moscou, mas não tudo que há nele.

Atlanto-Fascismo: Paradoxos da Guerra de Rede e as Leis da Geopolítica

O segundo tema da última semana é a intriga ao redor do "Setor Direito", os rumores sobre apoio de Kolomoysky, o julgamento e absolvição dos assassinos do "Martelo Branco" em Kiev, o programa pró-OTAN e liberal do "candidato presidencial" Yarosh, seu reconhecimento de colaboração com a CIA, etc.

O "Setor Direito" e o ultranacionalismo radical ucraniano em geral (algumas vezes um neonazismo direto) são a intriga do Euromaidan. Usualmente, em "revoluções coloridas" americanas, liberais e anarquistas desempenham os principais papéis. Dessa vez, os ultranacionalistas com uma direção russofóbica aparecendo sob a bandeira da UPA (Exército Insurgente Ucraniano) e com retrato dos capangas de Hitler, Bandera e Shukevych no fundo. Tal ousada solução político-tecnológica da CIA é uma repetição de esquemas similares no mundo islâmico, em que os EUA tem tradicionalmente apoiado grupos radicais wahhabis e salafis que ensaiam diferentes golpes benéficos a Washington, ataques terroristas, e outras operações extremistas. O wahhabismo e o salafismo são o núcleo do proxy atlantista no mundo islâmico, e podemos vê-lo na Líbia, Iraque, Síria, etc. Algum tempo atrás, os EUA começaram a testar a instrumentalização de movimentos de extrema-direita na Europa, bem como na Ucrânia e até mesmo na Rússia; exemplificado pelos casos de Breivik, os nacional-democratas russos, etc.

Os liberais aumentaram o fluxo de imigrantes com uma mão, e com a outra mão começaram a apoiar grupos neonazistas radicais que foram organizados para combater essa mesma imigração. O objetivo é desestabilizar a sociedade e criar as condições para "revoluções coloridas". No Euromaidan, os EUA tentaram a nova estratégia de rede de usar grupos neonazistas para ensaiar golpes em tal escala pela primeira vez, e esse também pode ser considerado como a origem do fenômeno do "Setor Direito".

Essa é a teoria e a prática da nova tendência ocidental de guerra de rede. É claro, nem todos os ultranacionalistas podem contar com apoio de Washington, da CIA e oligarcas integrados na oligarquia financeira internacional (geralmente de origem judaica, como o bilionário Igor Kolomoysky, que foi apontado pelo agrupamento ilegítimo de Kiev como "governador" de Dnepropetrovsk, ao mesmo tempo que ele é o cabeça do Congresso Judaico Europeu e do "Setor Direito"), mas apenas aqueles que se opõem aos inimigos dos EUA e da OTAN ou são leais a ambos. Agora os EUA estão lutando para manter o modelo unipolar do mundo. Ao mesmo tempo, a Rússia com mais e mais sucesso defende o modelo multipolar do mundo.

Portanto, aqueles neonazistas que se opõem a Rússia estão em uma situação privilegiada e são ativamente envolvidos nas estratégias americanas. Similarmente, Brzezinski usou a Al-Qaeda e Bin Laden no Afeganistão entre muçulmanos para promover resistência às forças pró-soviéticas. Para garantir a lealdade a seus donos, os neonazistas, tais como Goran ou Yarosh, enfatizam seu apoio à OTAN, visitam a embaixada israelense de maneira destacada e juram fidelidade a valores liberais.

É um segredo dessa semana: após um ativista do "Setor Direito" disparar três balas contra um membro da Auto-Defesa do Maidan, o quartel-general do "Setor Direito" apenas mudou discretamente de lugar. Um Goran ensanguentado que assassinou representantes da polícia de trânsito foi tranquilamente inocentado.

Nós estamos lidando com o fenômeno do atlanto-fascismo, a versão liberal do nazismo, que é acobertada pelos EUA e pelas forças oligárquicas do globalismo. À primeira vista, este é um paradoxo e uma anomalia. Mas para aqueles familiares com as regras de conduta da guerra de rede com as leis da geopolítica, é, pelo contrário, bem lógico. A rede, que foi organizada ao modo pós-moderno, envolve o uso de personagens livres de qualquer ideologia, mas que podem ser facilmente manipulados e contribuir durante as operações da rede. A geopolítica divide representantes de qualquer ideologia em dois campos: para os EUA, OTAN, União Européia, um mundo unipolar (atlantistas) e para a Rússia, multipolaridade, BRICS (Eurasianos). Quaisquer sejam as opiniões tidas por atlantistas, elas serão apoiadas pelos liberais e pela oligarquia financeira dominante no atlantismo.

E não importa que opiniões sejam professadas pelos apoiadores da multipolaridade e eurasianos, eles serão desacreditados e acusados de todos os pecados mortais.

Nesse contexto, a situação com o "Setor Direito" é uma ilustração simplesmente brilhante. Se um assassino nazista declarado apoia os EUA e a OTAN contra a Rússia, ele não é um nazista, nem um fascista, nem um assassino. Mas se um democrata ou uma pessoa sem qualquer ideologia está ao lado da Rússia, ele é automaticamente acusado de "fascismo", "nazismo", "stalinismo", etc. Muitos observadores dos eventos na Ucrânia tiveram um choque por causa dessa duplicidade. Lhes são mostrados os rufiões segurando retratos do capanga de Hitler, Bandera, e lhes dizem que aqueles são "pacíficos liberais". Os rufiões mostram uma patinadora russa, e a inscrição diz: "Essa é a face cínica e enganosa do fascismo de Putin". Há uma razão para enlouquecer. Especialmente se você assiste programas de TV ucranianos. Mas isso não é só sobre a Ucrânia. São apenas as novas regras de operações de rede segundo as leis da geopolítica.

Rússia vs. EUA: Dois tipos de brutalidade

No nível internacional, a Rússia entrou em uma batalha diplomática com os EUA. A situação é exacerbada pelo fato de que o debate está sendo travado entre duas potências nucleares. E assim, a responsabilidade de ambos os lados é imensa.

A Rússia defende a posição: a Criméia é um território russo, a Ucrânia deve ser federalizada, as eleições de maio são inválidas, Yanukovich é o presidente. Os EUA respondem: o referendo na Criméia é inválido, a Ucrânia é um Estado unitário, as eleições de maio são legítimas e as atuais autoridades em Kiev representam o país legitimamente. Nenhum dos lados pode chegar a um consenso sobre qualquer das questões.

A única diferença é que os EUA pressionam a Rússia em relação a seus interesses vitais, e a Rússia não permite que os EUA façam isso. Em outras palavras, a América está essencialmente comprometida com um ato de agressão contra a Rússia ao apoiar o golpe em Kiev. E o apoio de Washington aos grupos de Kiev é na prática um ataque. Enquanto isso, a Rússia está se defendendo e o faz de uma forma bastante dura.

Uma crueldade dos EUA e da Rússia é fundamentalmente diferente: para a América o destino da Ucrânia é algo secundário, ela não está incluída na área de interesses vitais americanos, já que ela é geograficamente distante e os EUA tem muitos desafios além da Rússia. Assim, os americanos botam pressão apenas por garantia, testando a Rússia pelo uso de contato direto. Ainda que os EUA recuem ou entreguem a Ucrânia a Moscou, mesmo nesse caso eles não perdem muito porque a Ucrânia era completamente neutra antes e estava fora de seu controle. Nessa situação, nem os EUA, nem a OTAN lutarão sob quaisquer circunstâncias. E hipoteticamente eles podem facilmente passar à posição de início.

Porém, a Rússia está arriscando tudo. A crueldade de Moscou é forçada, nessa situação; a Rússia não pode em geral recuar em relação a qualquer ponto, arriscando enfraquecer qualitativamente seu nível de segurança, porque ainda que a OTAN entre na Ucrânia ocidental e se mova na direção da fronteira oriental, a perda da Criméia e do sudeste seria um suicídio estratégico para a Rússia. Assim Moscou luta por suas idéias desesperadamente; nós simplesmente não temos oportunidade de dar passos para trás. Estrategicamente perderíamos, ainda que nos reuníssemos com o sudeste e a fronteira estivesse na linha que vai do Dnieper do nordeste (Sumy-Chernigov) ao sudoeste (Odessa). Portanto, Lavrov e Putin escolheram a plataforma mais suave para um confronto com o Ocidente. Federalização é uma chance para Kiev manter controle sobre todo seu território (excluindo a Criméia). A crueldade americana é bem previsível. A crueldade de Moscou impressiona e inspira um horror à quinta coluna e esperança aos patriotas. Mas esse jogo russo-americano apenas começou.

Sudeste da Ucrânia: O Caminho Crimeano

As coisas mais importantes que foram feitas: a revolta do sudeste nesse fim de semana, a captura da administração regional em Donetsk, Lugansk, Kharkiv e Mariupol, a impressionante mobilização em Odessa, a proclamação da República de Donetsk. Na verdade, uma coisa é clara: o sudeste se levantou. Essa é a segunda onda da revolução ucraniana, a Primavera Russa.

Durante o Euromaidan contra Yanukovich (um presidente do leste) não apenas Kiev se rebelou, mas toda a Ucrânia ocidental. A onda de capturas de administrações regionais se deu apenas no oeste. Por todo o lugar lá o poder foi capturado por forças nacionalistas e ultranacionalistas que estão em simpatia com o Euromaidan. Eles também forneceram a cena provincial de massas em Kiev. Foi uma revolta do oeste ucraniano contra o leste russo. E a primeira fase terminou com uma vitória do oeste da Ucrânia.

Até o golpe o equilíbrio de forças era: o oeste defendia rebelião e insurreição em massa, o leste defendia a ordem constitucional. O oeste era sinônimo de revolução, o leste - com paz e reação. Hoje os papéis se inverteram radicalmente. O oeste derrotou o leste em Kiev e tentou declará-lo como uma vitória da Ucrânia como um todo. Mas não há Ucrânia unida e ela não foi criada em 23 anos de história. Portanto, há apenas o oeste e Kiev ocupada pelo oeste, e o sudeste. Agora, quando a revolução do oeste se transformou em ordem (ainda que ilegal e ilegítima), há uma resposta revolucionária - a revolução do leste. Tudo se tornou oposto. De Kiev, do lacaio pró-americano Nalivayachenko, vem ordens de represálias, prisões de ativistas, supressão de insurreições civis, e o povo do sudeste decididamente tomou seu destino em suas próprias mãos. A Ucrânia ocidental atualmente possui o papel de um regime repressivo, enquanto o sudeste se rebelou, está organizando uma Veche (assembléia nacional), demanda independência, captura administrações regionais, anuncia greve geral e se recusa a obedecer Kiev. Essa é a segunda parte da revolução ucraniana, mas agora o sudeste é um símbolo de rebelião, e Kiev e o oeste são o baluarte da reação.

Qual é a causa da rebelião do sudeste? É fácil responder. Ela se rebelou contra o nacionalismo radical zapadentsy, contra a russofobia e contra os ataques dos EUA e da União Européia. Se pensarmos cuidadosamente, o sudeste se opôs a tudo isso antes, apoiando aqueles candidatos que prometeram reaproximação com a Rússia, o status da língua russa como idioma estatal, o status não-alinhado da Ucrânia internacionalmente, etc. Mas enquanto a lei e procedimentos democráticos estavam em seu devido lugar, o sudeste estava no campo legal. Após o ensaio do golpe ocidental, a legalidade foi abolida. Levou algum tempo para o sudeste perceber isso, e desde 6 de abril podemos dizer que essa percepção finalmente chegou. O sudeste rejeita Kiev, como ela é agora, se recusa a obedecer e assumiu o caminho da rebelião. Essa rebelião é contra Kiev e os zapadentsi da Ucrânia, que Kiev tenta "legitimar". A eleição em maio é o passo mais importante nesse esforço. Portanto, o sudeste se rebelou contra ela.

Se o poder em Kiev fosse diferente, as demandas do sudeste seriam relativamente moderadas. Seria tal como antes, por exemplo, uma reaproximação com a Rússia, a manutenção do status do idioma russo, a recusa a uma integração acelerada à UE e OTAN, etc. E mesmo sem federalização. Mas o radicalismo e a natureza ilegal das autoridades de Kiev após o Euromaidan não deixou alternativa para o sudeste, nem esperança de realização pacífica dessas demandas. Isso era impossível, e o povo do sudeste percebeu. Agora só há três possibilidades: a suave é o federalismo, a média é um Estado independente (Nova Rússia) e a extrema é a reunificação com a Rússia.

Mas para alcançar qualquer das três soluções, o sudeste deve defender sua independência política e militar completa. Kiev, em sua euforia ultranacionalista, definitivamente dará início a represálias contra "separatistas sudestinos instigados por Moscou". Isso significa que o sudeste vai repelir esses ataques, libertará seus líderes comunitários de custódia (tal como o Governador Popular de Donetsk Pavel Gubarev e outros), e criará autoridades independentes e unidades de autodefesa. Sem essa ação Kiev não quer ouvir falar em federalismo. O sudeste pode forçar Kiev ao federalismo apenas pelo poder. E esse poder deve ser sólido, persistente e bem organizado. Mas Kiev é apoiada pelos EUA e pela União Européia - financeiramente e politicamente até o envio de treinadores militares e exércitos privados. Portanto, a luta será desigual.

A assistência direta de Moscou é necessária para equilibrar as chances. E Moscou dará essa ajuda. E aqui nos deparamos com um paradoxo: para atingir a realização até mesmo do programa mínimo (federalização), o sudeste precisará de uma assistência direta de Moscou, quase na mesma medida em que para o programa máximo (reunificação completa) e o programa médio (Estado independente da Nova Rússia). E isso é claramente compreendido pelos próprios rebeldes: daí as bandeiras russas prevalecem em todas as demonstrações de massa e tomadas de poder. É definitivamente uma revolução russa e é abertamente conduzida sob a bandeira russa: o sudeste precisamente se vê com a Rússia, e sente que Kiev e a Ucrânia ocidental, apresentados por Bandera, Shukhevych, o Exército Insurgente Ucraniano e o "Setor Direito" e pelos oligarcas (Poroshenko, Timoshenko, Kolomoysky, Taruta, etc), é completamente alienígena, hostil, perigoso e odioso.

Portanto, é possível chegar a uma conclusão: apesar da posição moderada oficial de Moscou (Putin, Lavrov), a revolução russa do sudeste da Ucrânia é dirigida não apenas para a federalização. O objetivo é claro: o cenário crimeano. E para isso é aceitável e necessário pagar qualquer preço.

21/05/2014

Entrevista com Aleksandr Dugin - O Longo Caminho

por Guilherme Celestino



1 - O público em geral não o conhece, você poderia falar um pouco sobre seu caminho intelectual na Rússia?


Sinceramente, é um longo caminho. Primeiramente em minha juventude eu fui profundamente inspirado pelo Tradicionalismo de René Guénon e Julius Evola. Essa foi minha escolha definitiva de lado - ao lado da Tradição sagrada contra o mundo moderno (e pós-moderno). Essa escolha e todas as consequências ainda estão aqui no presente. Eu me posiciono firmemente pelos valores espirituais e religiosos contra a cultura pervertida e materialista decadente atual. O Tradicionalismo foi e permanece sendo central como foco filosófico de todos os meus desenvolvimentos posteriores.

No mesmo espírito eu descobri um pouco mais tarde a tendência ideológica da Revolução Conservadora e seu renascimento na Nova Direita francesa de Alain de Benoist que se tornou pessoalmente meu amigo e me influenciou diretamente. Ao mesmo tempo eu me interessei pelo campo da geopolítica, descobrindo as obras clássicas de Mackinder, Mahan, Spickman e Haushofer. Idéias muito similares eu identifiquei nos textos de eurasianistas russos as décadas de 20 e 30 que tentaram na imigração criar uma ideologia original combinando tradição, conservadorismo, conceitos eslavófilos com algumas noções contemporâneas no campo da geopolítica (Savitsky), linguística estrutural (Trubetskoy), direito (Alexeev), ciência histórica (Vernadsky) e daí em diante. Assim, esse foi o ponto de partida do neo-eurasianismo, desenvolvido por mim em meados da década de 80 quando os principais traços da nova visão global se tornaram claros para mim.

Mais tarde no início da década de 90 eu comecei a aplicar isso à análise política dos eventos contemporâneos no domínio doméstico e internacional, ampliando e detalhando o esquema geral do neo-eurasianismo. Assim eu fundei a escola russa de geopolítica, introduzindo os principais textos e autores bem como promovendo conceitos novos e originais. Ao mesmo tempo, eu lanceis as bases para o pensamento Tradicionalista tentando aplicar as idéias de Guénon e Evola à tradição cristã ortodoxa russa. Também eu explorei o campo da Revolução Conservadora russa partindo de valores históricos russos.

Tendo sido um anticomunista durante o período soviético eu mudei de opinião em 1991 diante da revolta liberal que eu julguei ser pior que o socialismo. O resultado dessa análise foi a primeira mudança séria em minha cosmovisão: eu rompi com o anticomunista me concentrando no antiliberalismo, o liberalismo sendo visto como o principal inimigo e a encarnação final do espírito da modernidade que sempre foi considerado por mim como o mal absoluto (no sentido de Guénon e Evola). A vitória do liberalismo sobre o comunismo era a prova, aos meus olhos, de sua natureza escatológica. Assim eu passei do tradicionalismo direitista mais clássico ao tradicionalismo de esquerda, algo chamado nacional-bolchevismo. Na verdade, não era realmente comunismo ou bolchevismo. Era e ainda é uma recusa total do liberalismo identificado como a ideologia que durante sua luta com comunistas e fascistas provou ser mais consistentemente moderna e idêntica à própria natureza, a própria essência da modernidade.

A virada resoluta da histórica política produzida em 1991 eu concebi como a confirmação de que fascismo e comunismo eram menos modernos e possuíam alguns traços antimodernos.

Isso era quase óbvio para o fascismo, mas muito menos óbvio para o comunismo. Assim eu propus uma leitura do marxismo e do socialismo a partir da Direita e uma leitura do Tradicionalismo a partir da Esquerda (Evola visto da sinistra - tal foi o nome de minha palestra em Roma em 1994 durante o congresso dedicado aos 20 anos de aniversário da morte de Evola).

Assim a década de 90 estiveram sob essa busca de uma síntese antiliberal entre direita e esquerda. Na política contemporânea isso significava a total recusa da política de Bóris Iéltsin e minha participação pessoal em vários grupos patrióticos de direita e de esquerda da oposição.

Esse período nacional-bolchevique durou de 1991 a 1998. A partir de 1998, com alguns passos do governo russo em favor do patriotismo (política Primakov) eu comecei a desenvolver uma versão moderada daquela e essencialmente a mesma ideologia política no contexto do Centro Radical. A idéia era que no Ocidente moderno, no Centro absoluto está o liberalismo (direita e esquerda ao mesmo tempo - direita na economia, esquerda no sentido cultural e social). Assim, para o Ocidente a síntese nacional-bolchevique dos dois extremos antiliberais é significativa e correta. Mas a Rússia possui uma estrutura política particular em que o liberalismo é algo formal e não essencial. É por isso que devemos promover a idéia de Centro Radical que não é uma criação artificial de algumas partes de direita e algumas partes de esquerda, mas se apoia em uma ideologia original russa que não é de forma alguma liberal, não sendo comunista ou nacionalista. O eurasianismo se encaixa aqui excelentemente, já que não é de direita ou de esquerda.

De 1998 a 2004 eu fui o assessor oficial do Presidente do Parlamento Russo, Seleznev, e também o diretor do Centro de Expertise Geopolítica na Duma russa.

Em 2000 Putin chegou ao poder. Essa foi a transição da imitação do liberalismo ocidental feita por Iéltsin para uma política russa mais orgânica. Essa era a época para o Centro Radical e o eurasianismo. O Movimento Eurasiano foi então formalmente construído como a rede daqueles que aceitavam a mesma filosofia política. Logo, os ramos externos do Movimento Eurasiano se seguiram e a estrutura se tornou internacional. Com Putin, minha posição que começou a se mover na direção do Centro Radical já em 1998 passou a se tornar bastante corrente. E as idéias eurasianas foram parcialmente aceitas pelo governo russo.

A partir dessa época minha posição foi garantida dentro do establishment político como a forma extrema, porém aceita, de atitude patriótica russa.

Nesse período, o conceito de Quarta Teoria Política foi finalmente elaborada, continuando as idéias de Centro Radical e eurasianismo. Aqui estava minha segunda mudança importante em meu desenvolvimento ideológico: a passagem da aceitação do comunismo e do nacionalismo em seus aspectos antiliberais a uma superação de qualquer tipo de modernidade política - incluindo comunismo e fascismo.

Desde 2008, quando os princípios gerais da Quarta Teoria Política estavam já claramente formulados eu renunciei a qualquer apelo à segunda ou terceira teorias políticas (comunismo e nacionalismo) e me concentrei exclusivamente na elaboração de uma Quarta Teoria Política completamente independente, rompendo quaisquer laços com a modernidade.

A Quarta Teoria Política é vista ao invés como a aliança entre pré-modernidade (tradicionalismo pré-moderno) e pós-modernidade (existencialismo heideggeriano e a centralidade do Dasein tomado como sujeito político).

Enquanto isso, Putin chegou ao poder pela terceira vez e este foi o momento de sua ruptura decisiva com o liberalismo. Agora Putin aceitou a orientação do eurasianismo e do Centro Radical se aproximando cada vez mais da Quarta Teoria Política. Então isso é o que está acontecendo hoje.

Simetricamente, minha posição no establishment político também muda - das margens patrióticas dos seguidores de Putin ao coração da hegemonia política. Assim, nesse exato momento, o realismo político de Putin está se unindo a minha Quarta Teoria Política e versão atualizada do eurasianismo. E é aqui que estamos. 

2 - O que é o "eurasianismo", que muitos dizem ser a estratégia geopolítica por trás das políticas externas de Putin?

O eurasianismo está baseado na visão multipolar e na recusa da visão unipolar da continuação da hegemonia americana.

O pólo desse multipolarismo não é o Estado nacional ou o bloco ideológico, mas o grande espaço (Grossraum) estrategicamente unido nas fronteiras da civilização comum. O grande espaço típico é a Europa, a unificação de EUA, Canadá e México, ou a América Latina Unida, a Grande China, a Grande Índia e em nosso caso a Eurásia.

A Eurásia é o território do antigo Império da Rússia ou da União Soviética. Nós o chamamos em outros termos, Grande Rússia (Bolshaya Rossia) ou Rússia como Eurásia. Para tornar firme o pólo independente nós precisamos unir diferentes países em uma entidade geopolítica, econômica e social centralizada.

A visão multipolar reconhece a integração na base da civilização comum. Assim falamos de uma civilização eurasiana comum não apenas a russos e eslavos e/ou povos ortodoxos mas também aos povos turcos e aborígenes da Ásia Central, Sibéria e Cáucaso. A política externa de Putin está centrada ao redor da multipolaridade e da integração eurasiana que é necessária para criar o pólo plenamente firme.

3 - O que o levou a apoiar Putin?

Eu expliquei isso em minha primeira resposta. O realismo político e o patriotismo emocional de Putin o fizeram se aproximar cada vez mais de minha própria posição geopolítica e ideológica. Eu apoio Putin agora porque ele declara e realiza objetivos e ideais que são essencialmente meus.

4 - Putin uma vez disse que o fim da URSS foi a maior tragédia geopolítica do século XX. O que você acha dessa afirmação?

A ênfase aqui deve ser feita na palavra "geopolítica". Isso ressalta que Putin lamenta não tanto o conteúdo ideológico da ideologia soviética, mas sim o colapso do espaço político unido já desde muito antes do bolchevismo e representando a Grande Rússia como entidade política baseada na similaridade civilizacional entre a história e as culturas de diferentes grupos étnicos e povos. O Ocidente sabe pouco ou nada da história real da Rússia. Às vezes eles pensam que a União Soviética foi uma criação puramente comunista e que Estados como Ucrânia, Cazaquistão ou Azerbaidjão eram independentes antes da URSS e foram conquistados pelos bolcheviques ou entraram à força no Estado soviético.

O fato é que eles nunca existiram enquanto tais e representavam tão somente distritos administrativos sem qualquer significado político ou histórico dentro do Império Russo, bem como dentro da URSS. Esses países foram criados em suas fronteiras atuais artificialmente apenas após o colapso da URSS e como resultado desse colapso.

Assim Putin quer enfatizar o caráter artificial, casual e infundado de tais processos e sugere que tais países artificialmente criados não são nada além de Estados falidos. Para impedir essa falha eles precisam ser integrados em um novo esquema geopolítico - que é a União Eurasiana.

A idéia da União Eurasiana não é conquistar ou forçar à esfera russa de influência países completamente independentes e bem sucedidos, mas impedir seu colapso inevitável anunciado em eventos como a crise georgiana de 2008 ou a ucraniana de 2014.

5 - O que você pensa da anexação da Criméia e dos protestos organizados por grupos pró-russos na Ucrânia oriental?

Durante as últimas semanas a Criméia se tornou parte integral da Federação Russa e algumas novas Repúblicas (Donetsk e Lugansk) apareceram no mapa político da ex-Ucrânia. Esse é o resultado lógico dos esforços das forças ultranacionalistas que realizaram um golpe de Estado em Kiev em março de 2014 para impôr a identidade ucraíno-ocidental sobre toda a população ucraniana. Mas o fato é que o leste e o sul da Ucrânia tem uma população com uma identidade cultural e histórica completamente diferentes.

A Ucrânia é um típico Estado falido extremamente artificial pós-soviético que nunca existiu na história antes de 1991. O oeste da Ucrânia possui uma identidade, e o sul e o leste possuem outra identidade, às vezes até diametralmente oposta. A primeira é pró-Hitler, banderita e fortemente antirrussa. A segunda é pró-russa, antifascista e ligeiramente pró-soviética (pró-Stálin). A população do sudeste pertence ao mundo russo (Russky Mir) e à civilização eurasiana. Daí a atual guerra civil e o retorno lógico das partes separadas à zona geopolítica russa.

Este é apenas o início do processo: nesse exato momento apenas 8 milhões com uma identidade eurasiana pró-russa anunciaram sua independência ou seu ingresso na Rússia. Mas há ainda pelo menos 12 milhões com a mesma identidade pró-russa ainda sob controle de Kiev. Assim, a luta continua.

6 - Seria a atual situação na Ucrânia um desafio ao renascimento da Rússia como superpotência mundial?

Sim, é. Se a Rússia for capaz de lidar com ela, estaremos vivendo em um mundo multipolar. Se a Rússia falhar a unipolaridade continuará por mais um pouco. Mas eu duvido que a hegemonia americana consiga resistir muito mais. Assim, eventualmente a Rússia vencerá.

7 - Como você avalia o papel da diplomacia russa na guerra civil na Síria?

Ela foi realmente ótima. Putin demonstrou ao mundo e na região que não há mais um lugar único em que decisões estratégicas sobre quem é o vilão e quem é o mocinho são tomadas. Os EUA e seus proxies sub-imperialistas no Oriente Médio (Arábia Saudita, Turquia e por aí vai) apoiam os rebeldes. Moscou e China apoiam Assad. Assim, há a posição firme e o exemplo a seguir sobre como o mundo multipolar deve ser. Há mais do que uma opção nessa situação crítica. E mais do que um ponto de decisões estratégicas centrais relativas a questões problemáticas.

8 - O que você pensa das leis russas anti-gays?

Elas são bastante corretas. O liberalismo insiste na liberdade e liberação de toda forma de identidade coletiva. Essa é a própria essência do liberalismo. Os liberais liberaram o ser humano da identidade nacional, da identidade religiosa, e daí em diante. O último tipo de identidade coletiva é o gênero. Assim, esse seria o momento de aboli-lo, fazendo dele arbitrário e opcional.

A maioria absoluta do povo russo se posicionam contrariamente a isso e possuem uma atitude conservadora em relação a identidade coletiva em geral e a identidade de gênero em particular.

Putin luta com essas leis não contra as relações homossexuais, mas contra a aplicação da ideologia liberal sob forma de lei obrigatória, contra a normativização e legitimação jurídica do que é considerado uma perversão moral e psicológica.

9 - O que você pensa da reação ocidental às leis anti-gays russas? Você acha que ela pode danificar a imagem russa?

A Rússia não é um país liberal, nem finge sê-lo. Assim, os liberais estão livres para criticá-la.

Mas no mundo há muitas sociedades não-liberais e conservadores que, ao contrário, aplaudem a posição russa nesse campo. As elites políticas do Ocidente estão reagindo contra a escolha russa de normas retas no âmbito do gênero. Mas as amplas massas dos países ocidentais apoiam Putin e a Rússia precisamente pela mesma razão.

10 - Você disse uma vez em um artigo para o Financial Times que o mundo precisa compreender Putin. Como o mundo pode fazer isso?

Compreender Putin é o mesmo que compreender o outro. A Rússia é o outro. Nós temos outros valores, outra história, outras idéias, outra moral, outra antropologia, outra gnoseologia em relação ao Ocidente liberal moderno.

Se o Ocidente identifica seus próprios valores com os universais é impossível compreender Putin.

Você pode criticá-lo e culpá-lo por tudo que ele está fazendo. Porque ele é outro (em relação ao Ocidente moderno), ele pensa de outra forma e age de outra forma. Ou você aceita o direito de ser outro - nesse caso você faz sua pergunta seriamente e a resposta demanda um conhecimento profundo da história russa e da cultura russa. Ou ela é apenas uma pergunta simbólica demonstrando a ausência de vontade de dar ao outro a chance de afirmar sua alteridade positivamente.

No último caso, você é obrigado a odiar o outro. Nós estamos preparados para dialogar com base na compreensão mútua do outro. Mas estamos preparados para o ódio vindo do Ocidente também.

Nós conhecemos bem as maneiras eurocêntricas, culturalmente racistas, universalistas e imperialistas do Ocidente ao lidar com o outro. 

Assim, é melhor tentar nos entender. Tentar ler nossos clássicos com atenção. Tentar abarcar o significado de nossa filosofia cristã ortodoxa, nossa teologia, nossos autores místicos, nossas estrelas e nossos santos, nossos poetas e nossos escritores (Dostoévski, Pushkin, Gogol). E aí você certamente considerará fácil compreender Putin, compreender a Rússia, compreender a todos nós.


14/05/2014

Reflexões sobre a Estética e Figura Literária do Dândi

por Robert Steuckers



Antes de entrar no assunto principal, eu gostaria de fazer três observações preliminares:

Eu hesitei em aceitar seu convite para falar sobre a figura do dândi, pois esse tipo de questão não é meu tema principal de interesse.

Eu finalmente aceitei porque redescobri um ensaio lúcido e magistral de Otto Mann, publicado há muitos anos na Alemanha: "Dandismo como Estilo de Vida Conservador" ("Dandysmus als konservative Lebensform"). Esse ensaio merece ser republicado, com comentários.

Minha terceira observação é metodológica e definicional. Antes de falar sobre o "dândi", e relacionar o tema à excelente obra de Otto Mann, eu devo estabelecer as diferentes definições do "dândi". Essas definições são de modo geral errôneas, ou superficiais e insuficientes.

Alguns definem o dândi como "um fenômeno puramente da moda", como um personagem elegante, nada mais, preocupado apenas com se vestir segundo o último estilo. Outros o definem como um personagem superficial que ama a boa vida e transita ociosamente de cabaré a cabaré. Françoise Dolto pintou um retrato psicológico do dândi. Ainda outros enfatizaram quase exclusivamente a dimensão homossexual de certos dândis como Oscar Wilde. Menos comumente, o dândi é assimilado a um tipo de avatar de Don Juan, que preenchia seu vazio acumulando conquistas femininas. Essas definições não são as de Otto Mann, que eu adotei.

O Arquétipo: George Bryan Brummell

Seguindo Otto Mann, eu mantenho que o dândi possui um significado cultural bem mais profundo que epicuristas superficiais, hedonistas, homossexuais, Don Juans, e vítimas da moda. Para Otto Mann, o modelo, o arquétipo do dândi permanece sendo George Bryan Brummell, uma figura do início do século XIX, a quem ele se opunha.

Brummell, contrariamente a certos pseudo-dândis posteriores, era um homem discreto, que não buscava atrair atenção para si mesmo por vestimentas ou excentricidades comportamentais. Brummell evitava cores berrantes, não usava jóias, não se devotava a jogos sociais puramente artificiais. Brummell era distante, sério, dignificado; ele não tentava causar impressão, como figuras posteriores tão variadas quanto Oscar Wilde, Stefan George ou Henry de Montherlant. Para ele, tendências espirituais predominam. Brummell participava socialmente, conversava, contava histórias, usando ironia e mesmo zombaria. Falando como Nietzsche ou Heidegger, poderíamos dizer que ele ascendeu acima do "humano, demasiado humano" ou da banalidade quotidiana (Alltäglichkeit).

Brummell, um dândi de primeira geração, encarna uma forma cultural, um modo de ser, que nossa sociedade contemporânea deveria aceitar como válida, de fato como singularmente válida, mas que ela não pode mais gerar, ou gerar suficientemente. Que é a razão pela qual o dândi se opõe a nossa sociedade. As razões principais que subjazem sua oposição são as seguintes: (1) a sociedade aparece como superficial e marcada com inadequações e insuficiências; (2) o dândi, como forma cultural, como a encarnação de uma maneira de ser, se apresenta como superior a essa sociedade medíocre e inadequada; (3) o dândi brummelliano não faz nada exagerado ou escandaloso (sexualmente, por exemplo), não comete crimes, não possui comprometimentos políticos (diferentemente dos dândis da segunda geração como Lord Byron). O próprio Brummell não pôde manter essa atitude até o fim de seus dias, porque ele estava afundado em dívidas e morreu na pobreza em um hospício em Caen. Em certo ponto, ele havia dado as costas ao frágil equilíbrio demandado pela postura inicial do dândi, do qual ele foi a primeira encarnação.

Um Ideal de Cultura, Equilíbrio e Excelência

Se o comportamento e modo de ser do dândi não contém exagero, nenhuma originalidade exibicionista, então por que ele aparece importante, ou meramente interessante, para nós? Porque ele encarna um ideal, que é em alguma medida, mutatis mutandi, o mesmo que a paidea grega ou a humanitas romana. Em Evola e Jünger há nostalgia pela magnanimitas latina, pela hochmuote dos cavaleiros germânicos dos séculos XII e XIII, avatares romanos ou medievais de um modelo proto-histórico persa, primeiro proposto por Gobineau e então por Henry Corbin. O dândi é a encarnação desse ideal de cultura, equilíbrio e excelência durante um dos períodos mais triviais na história, em que o burguês cru e calculista e o militante barulhento do tipo hebertista ou jacobino tomaram o lugar do aristocrata, do cavaleiro, do monge e do camponês.

Ao fim do século XVIII, com a Revolução Francesa, essas virtudes, emergindo das profundezas proto-históricas mais antigas da humanidade européia, foram completamente postas em questão. Primeiro pela ideologia do Iluminismo e seu corolário, o igualitarismo militante, que apagaria todos os traços visíveis e invisíveis desse ideal de excelência. Então, pelo Sturm und Drang e pelo Romantismo, que, como reação, às vezes pendia na direção do sentimentalismo inefetivo, que é também uma expressão de desequilíbrio. Os modelos imemoriais, às vezes turvados e difusos, as atitudes arquetípicas sobreviventes...desaparecem.

Os ingleses primeiro tomaram consciência disso, ao fim do século XVII, mesmo antes dos tumultos do século XVIII: Addison e Steele nas colunas do Spectator e do Tatler notaram a necessidade urgente de preservar e manter um sistema de educação, uma cultura geral capaz de garantir a autonomia do homem. Um valor que a mídia atual não promove, prova silenciosa de que de fato caímos em um mundo orwelliano, que porta a máscara do "bom apóstolo democrático", inofensivo e "tolerante", mas impiedosamente persegue todos os resíduos de autonomia no mundo de hoje. Em seus artigos sucessivos, Addison e Steele nos legam uma visão implícita da história cultural e intelectual da Europa.

O Ideal de Goethe

O mais elevado ideal cultural que a Europa já conheceu é certamente a paidea grega. Ela havia sido reduzida a nada pelo cristianismo primitivo, mas, do século XIV em diante, vê-se por toda Europa um desejo pela ressurreição dos ideais antigos. O dândi, e, muito antes de sua emergência na cena cultural européia, os dois jornalistas ingleses Steele e Addison, queriam encarnar essa nostalgia pela paidea, em que a autonomia de cada indivíduo é respeitada. De fato, eles tentam realizar concretamente na sociedade o objetivo de Goethe: incitar seus contemporâneos a forjar e moldar uma personalidade, que será moderada em suas necessidades, satisfeita com pouco, mas acima de tudo capaz, através desse ascetismo silencioso, de alcançar o universal, de ser um modelo para todos, sem trair sua humanidade original (Ausbildung seiner selbst zur universalen und selbstgenugsamen Persönlichkeit).

O ideal goethiano, partilhado avant la lettre pelos dois publicistas ingleses e então encarnado por Brummel, não passou intacto pelas vicissitudes da Revolução Francesa, da revolução industrial, e as revoluções científicas diversas. Sob os golpes do desprezo moderno pelo Antigo, a Europa se encontrou privada de qualquer cultura substancial, qualquer tutano ético. As consequências são plenamente aparentes hoje no declínio da educação.

De 1789 através do século XIX, o nível cultural gradativamente decaiu. O declínio cultural começou no topo da pirâmide social, a partir de então ocupada pela burguesia triunfante que, contrariamente às classes dominantes de tempos anteriores, não possui base moral capaz de manter um alto nível de civilização; não possui base religiosa, nem qualquer ética profissional, diferentemente do artesão e comerciante outrora supervisionados por suas guildas ou corporações (Zünfte). O único objetivo da burguesia é o acúmulo de dinheiro, o que nos permite falar, seguindo René Guénon, de um "reino da quantidade" em que toda qualidade é banida.

Nas classes desprivilegiadas no fundo da escada social, qualquer elemento de cultura é erradicado muito simplesmente porque as pseudo-elites não mais sustentam um padrão cultural; o povo, alienado, inseguro, proletarizado, não é mais uma matriz de valores específicos etnicamente determinados, muito menos uma matriz capaz de gerar uma contracultura ativa que poderia facilmente nulificar o que Thomas Carlyle chamou de "mentalidade do fluxo de dinheiro". Em resumo, nós estamos testemunhando a ascensão de um barbarismo afluente (eine ökonomisch gehobene Barbarei), economicamente avançado e culturalmente vazio.

Não se pode ser rico no estilo burguês e também refinado e inteligente. Isso é obviamente verdadeiro: ninguém cultivado quer se encontrar em um jantar, ou conversa, com bilionários como Bill Gates ou Albert Frère, nem com banqueiros ou construtores de automóveis ou refrigeradores. O verdadeiro homem de cultural, que estaria perdido na presença de tais péssimos personagens, teria que continuamente reprimir bocejos diante de seu palavreado inepto. (Aqueles de temperamento mais vulcânico teriam que reprimir o desejo de esfregar uma torna nas faces gordas dessas nulidades.) O mundo seria mais puro - e certamente mais belo - sem tais criaturas.

A Missão do Artista segundo Baudelaire

Para o dândi é necessário reinjetar estética nesse barbarismo. Na Inglaterra, John Ruskin (1819-1899), os pré-rafaelitas com Dante Gabriel Rossetti e William Morris, puseram mãos à obra. Ruskin elaborou projetos arquitetônicos para embelezar as cidades tornadas feias pela industrialização anárquica da era manchesteriana. Especificamente, isso levou à construção de "cidades jardim". Henry van de Velde e Victor Horta, arquitetos belga e alemão do Art Nouveau ou Jugendstil, levaram essa tocha. Mas ainda assim, apesar dessas realizações concretas - pois a arquitetura permite muito mais facilmente a realização concreta - o golfo entre o artista e a sociedade jamais deixou de crescer. O dândi é como o artista.

Na França, Baudelaire, em seus escritos teóricos, apresenta o artista como o novo "aristocrata", cuja atitude deve estar estampada com frieza distante, cujos sentimentos não devem ser excitados nem irritados além da medida, cuja qualidade principal deve ser a ironia, junto com a habilidade de contar anedotas agradáveis. O dândi artístico toma distância de todas as fantasias convencionais da sociedade.

As perspectivas de Baudelaire são resumidas nas palavras de um personagem do livro de Ernst Jünger Heliopolis: "Eu me tornei um dândi, que torna o desimportante importante, que sorri para o importante" ("Ich wurde zum Dandy, der das Unwichtige wichtig nahm, das Wichtige belächelte"). O dândi de Baudelaire, seguindo o exemplo de Brummell, é assim não um personagem escandaloso e sulfuroso como Oscar Wilde, mas um observador frio (ou, para parafrasear Raymond Aron, um "espectador distante"), que vê o mundo como mero teatro, geralmente insípido, em que personagens sem substância real transitam e gesticulam. O dândi baudelairiano possui um tanto de gosto para provocação, mas permanece confinado, na maioria dos casos, pela ironia. Esses exageros posteriores, geralmente tomados por expressões do dandismo, não correspondem às atitudes de Brummell, Baudelaire ou Jünger.

Assim Stefan George, apesar do grande interesse de sua obra poética, empurra o esteticismo ao ponto da autoparódia. Para Goerge, é um pequeno preço a pagar em uma era em que a "perda de todo meio feliz" se torna a regra. (Hans Sedlmayr explicou essa perda do "meio feliz" muito claramente em um famoso livro sobre arte contemporânea, Verlust der Mitte). Sedlmayr esclarece esse impulso de buscar o "estimulante". George o encontrava no renascimento da Grécia clássica.

Oscar Wilde finalmente colocava apenas a si próprio no palco, se proclamando "reformador estético". A arte, de seu ponto de vista, não é nada mais que um espaço de contestação destinado finalmente a absorver toda realidade social, se tornando a única realidade verdadeira. As esferas econômica, social e política são desvalorizadas; Wilde nega a elas todas substancialidade, realidade e concretude. Se Brummell mantinha um gosto inteiramente sóbrio, se ele mantinha sua cabeça sobre os ombros, Oscar Wilde posou desde o início como um semideus, vestia roupas extravagantes, com cores berrantes, um pouco como os Incroyables e os Merveilleuses da Revolução Francesa. Um provocador, ele também começou um processo negativa de "feminização/desvirilização", caminhando pelas ruas com flores em sua mão. Pode-se considerar isso como um precursor das paradas de "orgulho gay" de hoje. Suas poses são puro teatro, muito distantes do sentimento tranquilo de superioridade de Brummell, de dignidade viril, de "nil admirari".

Auto-Satisfação e a Expansão do "Ego"

Para Otto Mann, essa citação de Wilde é emblemática:

"Os deuses haviam me dado quase tudo. Eu tinha gênio, um nome distinto, posição social elevada, brilhantismo, ousadia intelectual: eu fiz da arte uma filosofia e da filosofia uma arte: eu alterei as mentes de homens e as cores de coisas: não havia nada que eu dissesse ou fizesse que não fizesse as pessoas pensarem: eu peguei o drama, a forma mais objetiva conhecida à arte, e a tornei um modo de expressão tão pessoal quanto a lírica ou o soneto, ao mesmo tempo que eu ampliei seu alcance e enriqueci sua caracterização: drama, romance, poema em rima, poema em prosa, diálogo sutil ou fantástico, o que quer que eu tocasse eu tornei belo em um novo modo de beleza: à própria verdade eu dei o que é falso não menos do que o que é verdadeiro como sua província de direito, e mostrei que o falso e o verdadeiro são meramente formas de existência intelectual. Eu tratei a Arte como a realidade suprema, e a vida como mero modo de ficção: eu despertei a imaginação de meu século de modo que ele criou mito e lenda ao meu redor: eu resumi todos os sistemas em uma frase, e toda existência em um epigrama. Junto a essas coisas que tinha coisas que eram diferentes". (De Profundis)

A auto-satisfação patente, a expansão do "ego", alcançam o ponto de mistificação.

Esses exageros continuaram crescendo, mesmo na órbita da virilidade estóica cara a Montherlant. Ele também faz poses exageradas: como praticante de uma tourada extremamente ostentosa, sendo fotografado usando a máscara de um imperador romano, etc. Seguidores menores arriscar cair no mau gosto, formalizando ao extremo as atitudes ou posturas do poeta ou do escritor. Em qualquer caso, eles não são uma solução para o fenômeno da decadência.

No que concerne o dandismo, o único caminho é retornar calmamente ao próprio Brummell, antes que ele afundasse sob vexações financeiras. Porque esse retorno a Brummell é equivalente, se nos lembramos das exortações de Addison e Stelle, a uma mais moderna - mais civil e talvez mais trivial - forma de paidea ou humanitas. Mas, trivial ou não, esses valores ainda seriam mantidos, continuariam a existir e moldar mentes.

Essa mistura de bom senso e estética dândi tornariam possível perseguir um objetivo político prático: defender a escola no sentido clássico do termo, aumentar seu poder para transmitir o legado da antiguidade helênica e romana, visualizar uma nova e efetiva pedagogia, que misturaria o idealismo de Schiller, métodos tradicionais e os métodos inspirados por Pestalozzi.

Retorno à Religião ou "Consciência Infeliz"?

A figura do dândi deve assim ser situada de volta no contexto do século XVIII, quando os ideais e modelos clássicos da Europa tradicional estavam sendo atacados e destruídos sob os golpes de açougueiro da modernidade niveladora. A substância da religião - seja cristã ou pré-cristã sob tintura cristã - se torna vazia e exaurida. Os modernos tomam o lugar dos antigos. Esse processo leva inevitavelmente a uma crise existencial através da civilização européia.

Dois caminhos estão disponíveis para aqueles que tentam escapar desse triste destino: (1) O retorno à religião ou tradição, caminhos importantes que não são nosso tópico hoje, na medida em que representa um continente extremamente vasto de pensamento, merecendo um seminário completo para si. (2) Cultivar o que os românticos chamavam Weltzschmerz, a dor causada por um mundo desencantado, que consiste em assumir uma atitude de crítica permanente em relação as manifestações de modernidade, desenvolvimento uma consciência infeliz que gera uma cultura auto-marginalizante em que o espírito político pode formular ma oposição ao que é dominante.

Para o dândi e o romântico que oscilam entre o retorno à religião e o sentimento de Weltschmerz, esta é mais profundamente sentida. Na interioridade do poeta ou do artista esse sentimento amadurecerá, crescerá, se desenvolverá. Ao ponto de se tornar imune ao poder da consciência infeliz de causar emoções lânguidas e violentas. No fim, o dândi deve se tornar um observador frio e imparcial em controle de seus sentimentos e emoções. Se seu sangue ferve perante "horrores econômicos" ele deve rapidamente esfriar, levando à impassividade, se ele quiser encará-las efetivamente. O dândi que passou por esse processo assim alcançou uma impassibilidade dupla: nada externo pode abalá-lo; mas também nenhuma emoção interior.

Pierre Drieu la Rochelle jamais foi capaz de atingir tal equilíbrio, o que dá uma nota bastante peculiar e sedutora a sua obra, muito simplesmente porque revela esse processo em caminho, com todos os seus turbilhões, calmarias e progressos. Drieu sofre do mundo, é testado nas linhas de frente, é seduzido pela disciplina e aspectos "metálicos" do "imenso e vermelho" fascismo, em marcha em seu tempo, mentalmente aceita a mesma disciplina nos comunistas e stalinistas, mas jamais se torna realmente um "observador frio e imparcial" (Benjamin Constant). A obra de Drieu la Rochelle é justamente importa porque revela essa tensão permanente, esse medo de cair na podridão de uma emoção estéril, essa alegria em ver alternativas vigorosas ao torpor moderno, como o fascismo ou a sátira de Doriot.

Fortalecendo Mente e Caráter

Em resumo, a desconstrução das idéias de paidea antiga e a liquefação de substancialidades religiosas imemoriais começando ao fim do século XVIII, é equivalente a uma crise existencial que perpassa todos os países ocidentais. A resposta da inteligência a essa crise é dupla: ou ela clama por um retorno à religião ou causa uma dor profundamente enraizada nas profundezas da alma, a famosa Weltschmerz dos românticos.

Weltzschmerz é sentida na interioridade mais profunda do homem que encara essa crise, mas é também em sua interioridade que ele trabalha silenciosamente para ascender acima dessa dor, para torná-la o material do qual ele forja a resposta e alternativa a essa terrível perda de substancialidade que é presidida por um economicismo deletério. É assim necessário endurecer a mente e caráter contra as pontadas envolvidas pela perda de substancialidade sem inventar do nada um substituto idiota para o que foi perdido.

Baudelaire e Wilde pensam, cada um a sua maneira, que a arte oferecerá uma alternativa para as velhas substancialidades que é quase idêntica em todas as maneiras, mas mais flexível e móvel. Mas nesse caso, a arte não precisa ser compreendida como simples esteticismo. O endurecimento da mente e do caráter devem servir para combater o economicismo ambiente, lutar contra aqueles que o encarnam, aceitam, e põem suas energias em seu serviço. Esse endurecimento deve ser usado como a base moral e psicológica firme dos ideais da luta política e metapolítica.

Essa dureza deve ser a carapaça do que Evola chamou de "homem diferenciado", aquele que "cavalga o tigre", que vaga imperturbado e imperturbável, "entre as ruínas", o que Jünger chamou de "anarca". "O homem diferenciado que cavalga o tigre entre as ruínas" ou o "Anarca" são descritos como observadores imparciais, impassivos. Esses homens duros, diferenciados, ascendem acima de dois tipos de obstáculos: obstáculos externos e aqueles gerados de sua própria interioridade. Isto é dizer, os impedimentos representados por homens inferiores e as fraquezas de uma alma perturbada.

Figuras Chandala de Decadência

A crise existencial que começou ao redor da metade do século XVIII levou ao niilismo, muito judiciosamente definido por Nietzsche como uma "exaustão da vida", como uma "desvaloração dos mais elevados valores", que normalmente se expressa por uma agitação frenética e pela inabilidade de realmente desfrutar do ócio, uma agitação que acelera o processo de exaustão.

A abstração da existência é a indicação clara de que nossas "sociedades" não mais constituem "corpos" mas, como Nietzsche diz, meros "conglomerados de chandalas", em quem males nervosos e psicológicos se acumulam, um sinal de que o poder defensivo de naturezas fortes não é mais que uma memória. É precisamente esse "poder defensivo" que o homem "diferenciado" deve - ao fim de sua busca por mistérios tradicionais - reconstituir em si mesmo.

Nietzsche muito claramente enumera os vícios do chandala, a figura emblemática da decadência européia, resultando da crise existencial e do niilismo: o chandala sofre com várias patologias: um aumento na criminalidade, celibato e esterilidade voluntárias, histeria, constante enfraquecimento da vontade, alcoolismo (e vários vícios em drogas também), dúvida sistemática, destruição metódica e impiedosa de qualquer resíduo de força.

Entre as figuras chandalas de decadência e niilismo, Nietzsche inclui aqueles que ele chama "nômades oficiais" (Staatsnomaden), que são funcionários públicos sem pátrias verdadeiras, servos do "monstro frio", com mentes abstratas que, consequentemente, geram sempre mais abstrações, cuja existência parasita gera, por sua lentidão persistente, o declínio de famílias, em um ambiente feito de diversidades contraditórias e soçobrantes, em que se encontra a "disciplina" (Züchtung) de caráteres que servem as abstrações do monstro frio - uma lubricidade generalizada na forma de irritabilidade e como a expressão de uma necessidade insaciável e compensatória por estímulo e excitações - neuroses de todos os tipos - "presentismo" político (Augenblickdienerei) em que a memória longa, perspectivas profundas, ou um senso natural e instintivo pelo certo não mais prevalecem - sensibilidade patológica - dúvidas estéreis procedento de um medo mórbido de forças inexoráveis que fizeram e ainda farão história/poder - um medo de dominar a realidade, de tomar as coisas tangíveis desse mundo.

Victor Segalen na Oceania, Ernst Junger na África

Nesse complexo de frigidez, de oposição agitada à mudança, frenesis estéreis, e neuroses, uma resposta primária ao niilismo é exaltar e concretizar o princípio de aventura, em que o protestador deixará o mundo burguês, com seu tecido de artifícios, movendo-se por espaços virgens que são intactos, autênticos, abertos, misteriosos.

Gauguin partiu para as ilhas do Pacífico.

Victor Segalen, por sua vez, elogia a Oceania primordial e a China imperial perecendo sob os golpes da ocidentalização. Segalen permanece bretão, segundo o que ele chama de "o retorno à medula ancestral", denuncia a invasão do Taiti pelos "românticos americanos", esses "sujos parasitas", escreve um "Ensaio sobre o Exotismo" e uma "Estética do Diferente". A rejeição de pedaços sem muito de um passado custou a Segalen um ostracismo injustificado em sua pátria. De nosso ponto de vista, ele é um autor que vale a pena redescobrir.

O jovem Jünger, ainda na adolescência, sonhou com a África, o continente de elefantes e outras criaturas fabulosas, onde espaços e paisagens não são assoladas pela industrialização, em que a natureza e o povo indígena preservaram uma pureza formidável, em que tudo era ainda possível. O jovem Jünger se uniu à Legião Estrangeira Francesa para realizar esse sonho, para ser capaz de pousar nesse novo continente, cheio de mistérios e vitalidade.

O ano de 1914 lhe deu, e a toda sua geração, uma chance de abandonar a existência enervante. No mesmo sentido, Drieu la Rochelle falou do élan de Charleroi. E posteriormente, Malraux das "estradas reais".

À "esquerda" (na medida em que essa distinção política tenha algum sentido), fala-se ao invés de "engajamento". Esse entusiasmo era especialmente aparente no tempo da Guerra Civil Espanhola, em que Hemingway, Orwell, Koestler e Simone Weil se uniram aos republicanos, e Roy Campbell aos nacionalistas, que também eram elogiados por Robert Brasillach.

A aventura e o engajamento, no uniforme de um soldado da milícia falangista, nas fileiras das brigadas internacionais ou dos partisans, são percebida como antídotos para o hiperformalismo de uma vida civil sem cores. "Eu estava cansado da vida civil, portanto eu me uni ao IRA", diz a canção nacionalista irlandesa, que, nesse contexto particular, proclama, com uma canção animada, esse grande levante existencialista do início do século XX com toda a facilidade, vivacidade, ritmo e humor da Verde Irlanda.

Intoxicação? Drogas? Amoralismo?

Mas se comprometimento político ou militar preenche as necessidades espirituais daqueles que estão entediados pelo formalismo constante da vida civil sem equilíbrio tradicional, a rejeição de todo formalismo pode levar a outras atitudes menos positivas. O dândi, que se separa da pose equilibrada de Brummell ou da crítica delicadamente construída de Baudelaire, irá querer experimentar novas excitações, meramente pelo prazer estéril de tentá-las.

Drogas, vício, o consumo excessivo de álcool constituem possíveis escapadas: a figura romântica criada por Huysmans, Des Esseintes, fugiu para o álcool. Thomas de Quincey evocou "os comedores de ópio". O próprio Baudelaire experimentou ópio e haxixe.

Cair no vício em drogas é explicado pelo fechamento do mundo, após a colonização da África e outros territórios virgens; aventura perigosa, real não é mais possível ali. A guerra, testada por Jünger por volta da mesma época que "drogas e intoxicações", perdeu sua atração porque a figura do guerreiro se torna um anacronismo conforme as guerras são excessivamente profissionalizadas, mecanizadas e tecnologizadas.

A amoralidade e o antimoralismo são mais becos sem saída. Oscar Wilde frequentava bares sórdidos, ostentando sua homossexualidade. Seu personagem Dorian Gray se torna um criminoso de modo a levar suas transgressões cada vez mais longe, como um tipo patético de húbris. Pode-se também relembrar o doloroso fim de Montherland e manter em mente sua dúbia herança, continuada até o dia de hoje por seu executor, Gabriel Matzneff, cujo estilo literário é certamente bastante brilhante mas em cujo caminho os mais tristes cenários se desdobram, levados em segredo, em círculos fechados, ainda mais perversos e ridículos porque a revolução sexual da década de 60 também permite a diversão sem moralismo de muitos prazeres fortes.

Essas drogas, transgressões e bufonarias sexuais, são apenas outras armadilhas em que os infelizes se arruínam em busca de suas "necessidades espirituais". Eles querem "transgredir", mas isso, para o observador irônico, não é nada mais que um triste sinal de vidas desperdiçadas, a ausência de vitalidade real, e frustrações sexuais devidas a defeitos ou enfermidades físicas. Certamente, não se pode "cavalgar o tigre" - de fato seria difícil encontrar alguém - nos salões em que o velho Matzneff revela pequenos detalhes de seus encontros sexuais a seus bizarros admiradores.

Ascetismo Religioso

A verdadeira alternativa ao mundo burguês de "pequenos empregos" e "pequenos cálculos" zombados por Hannah Arendt, em um mundo agora fechado, em que aventuras e descobertas são a partir de então nada além de repetições, em que a guerra é "high tech" e não mais cavalheiresca, se encontra no ascetismo religioso, em um certo retorno ao monarquismo da meditação, no retorno à Tradição (Evola, Schuon, Guénon). Drieu la Rochelle evoca esse caminho em seu "Diário", após seus desapontamentos políticos, e dá um relato de sua leitura de Guénon.

Os irmãos Schuon são exemplares nesse contesto: Frithjof se uniu à Legião Estrangeira, conheceu o Saara, conheceu os sufis e os marabouts do deserto e das Montanhas de Atlas, aderiu a um misticismo sufi islamizado, e então foi às reservas sioux nos EUA, e deixou um corpo de trabalho pictórico impressionante.

Seu irmão, nomeado "Pai Galle", conheceu as reservas indígenas da América do Norte, traduziu os evangelhos à língua sioux, recolheu-se a um mosteiro trapista na Valônia, em que ele treinou cavalos jovens no estilo indígena, conheceu Hergé, e travou amizade com ele.

Suas vidas provam que a aventura e a fuga total do mundo artificial e corruptor da ocidentalização permanecem possíveis e frutíferas. 

Pois a rebelião é legítima, se não cairmos nas armadilhas.

01/05/2014

Aleksandr Dugin - Algumas sugestões sobre os prospectos para a Quarta Teoria Política na Europa

por Aleksandr Dugin


Para chegarmos à Quarta Teoria Política, nós devemos começar de três pontos ideológicos.

Do Liberalismo à Quarta Teoria Política: A estrada mais difícil

Ir do liberalismo à Quarta Teoria Política é o caminho mais difícil, já que esta é o oposto de todas as formas de liberalismo. O liberalismo é a essência da modernidade, mas a Quarta Teoria Política considera a modernidade um mal absoluto. O liberalismo, que toma como seu sujeito primário o indivíduo e todos os valores e agendas que procedem disso, é visto como o inimigo. Para abraçar a Quarta Teoria Política, um liberal deve negar a si mesmo ideologicamente e rejeitar o liberalismo e suas pressuposições em sua totalidade.

O liberal é um individualista. Ele é perigoso apenas quando ele é um extrovertido, já que ao ser assim ele destrói sua comunidade e os laços sociais com os quais ele está associado. Ser um liberal introvertido é menos perigoso porque assim ele destrói apenas a si mesmo. E isso é uma coisa boa: um liberal a menos.

Mas há um fato interessante: a Quarta Teoria Política diverge das versões modernas de antiliberalismo (nomeadamente, socialismo e fascismo) ao propor não uma crítica do indivíduo visto a partir de fora, mas ao invés sua implosão. Isso significa não dar um passo para trás em direção a formas pré-liberais de sociedade, ou um passo para o lado em direção a tipos iliberais de modernidade, mas sim um passo para dentro da natureza niilista do indivíduo como construído pelo liberalismo. Portanto, o liberal descobre seu caminho até a Quarta Teoria Política quando ele dá um passo a mais e atinge a auto-afirmação como a única e última instância do ser. Essa é a consequência final do solipsismo mais radical, e pode levar a uma implosão do ego e o aparecimento do Eu real (que é também o objetivo das práticas associadas com o Advaita Vedanta).

Nietzsche chamava seu Übermensch de "o vencedor de Deus e do nada". Por isso ele queria dizer a superação dos velhos valores da Tradição, mas também do nada que surgem em seu lugar. O liberalismo alcançou a superação de Deus e a vitória do puro nada. Mas essa é a meia-noite antes do irromper da aurora. Assim, dando um passo a mais na direção da meia-noite do niilismo europeu é como um liberal que deseja abandonar essa identidade, que é mais consistente com um destino peculiarmente ocidental de declínio (porque o Ocidente em si mesmo não é nada, além de declínio atualmente - mais sobre isso depois) para trás, chega ao horizonte da Quarta Teoria Política.

A modernidade é certamente um fenômeno europeu. Mas o liberalismo como essência da modernidade não é tanto europeu quanto anglo-saxão e trans-europeu, especificamente norte-americano. A Europa foi a fase preliminar da modernidade, e assim a Europa inclui dentro de si as identidades socialistas (comunista), bem como fascistas, assim como a puramente liberal. A Europa é a mãe de todas as três teorias políticas. Mas a América é um lugar em que apenas uma delas está profundamente enraizada e é plenamente realizada. Assim, apesar de nascer na Europa, o liberalismo amadureceu na América. A Europa e os EUA são comparáveis a pai e filho. A criança herdou apenas uma das possibilidades de seu pai, apesar de ser a mais importante. Como resultado, o liberalismo na Europa é parcialmente autóctone e parcialmente imposto pela América (sendo re-exportado). Essa é a razão pela qual seguidores americanos da Quarta Teoria Política são tão importantes. Se eles conseguirem superar o liberalismo no Extremo Ocidente, isso mostrará o caminho para os liberais europeus seguirem. Isso é algo similar à idéia de Julius Evola do homem diferenciado. Essa menção faz referência a meu artigo sobre a Quarta Teoria Política na Europa e especificamente a minhas duas proposições finais nele sobre como superar o indivíduo: pelo método da auto-transcendência por um esforço da vontade (um tipo de esforço politeísta da vontade pura), ou por um encontro existencial com a morte e a solidão absolutas.

Portanto, o caminho do liberalismo à Quarta Teoria Política na Europa passa pela América e sua mística interior. Essa é a terceira tentativa de ver um sentido na América: a primeira foi a de Tocqueville, a segunda foi a de Jean Baudrillard. A terceira é reservada para o europeu que se aproxime do Extremo Ocidente em busca do mistério do liberalismo desde a perspectiva da Quarta Teoria Política.

Do Comunismo à Quarta Teoria Política: De críticos radicais aos críticos principais

O caminho da posição comunista à Quarta Teoria Política é bem mais fácil e mais curto. Há alguns pontos comuns: em primeiro lugar, a rejeição radical do liberalismo, do capitalismo e do individualismo. Há um inimigo comum claro e definido. O problema é que o programa positivo do comunismo está profundamente enraizado na modernidade e partilha de muitas noções tipicamente modernas: a universalidade do progresso social, o tempo linear, a ciência materialista, o ateísmo, o eurocentrismo e daí em diante. A batalha do comunismo contra o capitalismo pertence ao passado. Mas a Quarta Teoria Política é o principal oponente ideológico do liberalismo no presente. Assim, um comunista genuíno pode facilmente se tornar atraído à Quarta Teoria Política, considerando seus aspectos anti-liberais.

Para dar esse passo, é necessário passar dos críticos radicais da modernidade, tais como Marx, aos críticos principais da modernidade, tais como René Guénon, segundo a excelente formulação do autor francês, René Alleau. Isso nos traz a relevância do Nacional-Bolchevismo. O nacional-bolchevismo é um tipo de hermenêutica que identifica os traços qualitativos na visão quantitativa do socialismo. Para marxistas ortodoxos, a sociedade está estritamente baseada em princípios classistas e a comunidade socialista é formada em todo lugar segundo um único modelo. Mas nacional-bolcheviques, tendo analisado as experiências soviéticas, alemães e chinesas, notaram que, para pôr em perspectiva, o marxismo pode ajudar a criar sociedades com traços claros de uma cultura nacional e que possuem identidades específicas e únicas. Ainda que seja teoricamente internacionalista, as sociedades comunistas históricas foram nacionalistas com uma forte presença de aspectos tradicionais. Portanto, o socialismo, sendo subproduto da modernidade liberal, pode ser considerado como um tipo extremo e herético de pré-modernidade e uma forma escatológica de religiosidade extática - seguindo os exemplos dos gnósticos, dos cátaros, Bruno, Münzer e daí em diante. Essa era também a opinião de Eric Voegelin, que chamou a isso de imanentização do eschaton. (Essa é uma noção herética, mas ela é não obstante tradicional).

O caminho para a Quarta Teoria Política para a esquerda européia passa pelas análises históricas e geopolíticas dos nacional-bolcheviques (Ernst Niekisch, Ernst Jünger e daí em diante). Trabalho excelente nesse sentido tem sido feito pela Nova Direita Européia e especialmente por Alain de Benoist.

Da Terceira Posição à Quarta Teoria Política: O caminho mais curto, mas ainda assim problemático

Da Terceira Posição européia à Quarta Teoria Política é apenas um passo, porque a Terceira Teoria Política e a Quarta Teoria Política partilham a Revolução Conservadora da era de Weimar e o tradicionalismo como pontos de partida em comum. Mas esse passo não é fácil de se dar. A Quarta Teoria Política é estritamente anti-moderna, na verdade contra-moderna. Mas a nação que é tão cara aos representantes da Terceira Posição é essencialmente uma noção moderna, assim como os conceitos de Estado e de raça. A Quarta Teoria Política é contra todo e qualquer tipo de universalismo, e recusa o eurocentrismo de qualquer tipo - liberal, assim como nacionalista.

As tradições étnicas dos povos europeus são sagradas em suas raízes e formam uma parte de sua herança espiritual. Porém, a identidade étnica é algo bem distinto do Estado nacional enquanto corpo político. A história européia esteve sempre baseada na pluralidade de suas culturas e na unidade de suas autoridades espirituais. Isso foi destruído, primeiro pela Reforma Protestante, e então pela modernidade. A liquidação da unidade espiritual européia foi parte da origem do nacionalismo europeu. Portanto, a Quarta Teoria Política apoia a idéia de um novo império europeu como um império tradicional com uma fundação espiritual, e com a coexistência dialética de diversos grupos étnicos. Ao invés de Estados nacionais na Europa, um império sagrado - indo-europeu, romano e grego.

Essa é a linha divisória entre a Quarta Teoria Política européia e sua Terceira Posição: a recusa de qualquer tipo de nacionalismo, chauvinismo, eurocentrismo, universalismo, racismo ou atitude xenofóbica. As pretensões históricas e hostilidades entre os grupos étnicos europeus existiram, certamente. Isso deve ser reconhecido. Mas é irresponsável construir um programa político sobre essa base. A Europa deve defender a unidade geopolítica, associada com a preservação da diversidade étnica e cultural das várias etnias européias.

A Quarta Teoria Política afirma que a geopolítica é o instrumento primário que pode ser usado para compreender o mundo contemporâneo. Assim a Europa deve ser reconstruída como uma potência geopolítica independente. Todos esses pontos coincidem com os principais princípios da Nova Direita francesa e com o manifesto do GRECE de Alain de Benoist. Portanto nós devemos considerar a Nova Direita européia como uma manifestação da Quarta Teoria Política.

Aqui nós abordamos a filosofia de Martin Heidegger, que é central e o mais importante pensador para a Quarta Teoria Política. A Quarta Teoria Política toma como seu sujeito primário a noção heideggeriana de Dasein. Heidegger é o passo metafísico (ontológico-fundamental) da Terceira Posição para a Quarta. A tarefa é desenvolver a filosofia política implícita de Heidegger em uma filosofia política explícita, assim criando como consequência uma doutrina de política existencial.

Último ponto. A Europa é o Ocidente, e o declínio é sua essência. Chegar ao ponto mais baixo de sua queda (Niedergang) é o destino da Europa. É profundamente tráfico, e não algo de que se deve orgulhar. Assim a Quarta Teoria Política está em favor de uma Idéia Européia na qual a Europa é compreendida como um tipo de comunidade trágica (seguindo Georges Bataille): uma cultura que está em busca de si mesma no coração do Inferno.