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09/06/2017

Jack London - O que a vida significa para mim

por Jack London


Nasci na classe trabalhadora. Cedo descobri o entusiasmo, a ambição e os ideais; e satisfazê-los tornou-se o problema da minha infância. Meu ambiente era cru, áspero e rude. Não via nenhuma perspectiva ao meu redor, por isso, o melhor era olhar para cima. Meu lugar na sociedade era nos fundos. Aqui a vida não oferecia nada, além de sordidez e miséria, tanto para o corpo como para o espírito. Por aqui corpo e espírito andavam famintos e atormentados.

Acima de mim se erguia o imenso edifício da sociedade e, em minha mente, a única saída era para cima. Logo resolvi subir. Lá em cima, os homens vestiam ternos pretos e camisas engomadas e as mulheres usavam vestidos lindos. Havia também coisas boas para comer e muita fartura. Abundância para o corpo. Depois havia as coisas do espírito. Acima de mim, eu sabia, havia despojamento do espírito, pensamentos puros e nobres e uma vida intelectual intensa. Eu conhecia tudo isto porque lera romances na biblioteca Seaside, nos quais, com exceção dos vilões e dos aventureiros, todos os homens e mulheres tinham pensamentos puros, falavam uma linguagem bonita e realizavam ações generosas. Em resumo, assim como eu aceitava o nascer do Sol, aceitava que acima de mim estava tudo o que era fino, nobre e belo, tudo o que dá decência e dignidade à vida, tudo o que faz a vida valer a pena e recompensa um homem por seu sofrimento e esforço.

Mas não é muito fácil para um homem ascender e sair da classe trabalhadora - especialmente se está cheio de ambições e ideais. Eu vivia num rancho na Califórnia, e era duro descobrir o caminho para subir. Cedo quis saber qual a taxa de juros do dinheiro aplicado, e preocupava meu cérebro de criança a compreensão das virtudes e excelências desta notável invenção do homem, os juros compostos. Mais tarde conheci os níveis de salário praticados para trabalhadores de todas as idades, e o custo de vida. Com todos estes dados, conclui que, se começasse imediatamente, trabalhasse e poupasse até os cinquenta anos, poderia parar de trabalhar e desfrutar de uma pequena porção das delícias e maravilhas que estariam a meu alcance um pouco acima na sociedade. E, claro, decidi não me casar, ao mesmo tempo em que me esquecia inteiramente de considerar esta grande causa da catástrofe no universo da classe trabalhadora - a doença.

Mas a vida que havia em mim exigia mais que uma pobre existência de restos e de escassez. Aos dez anos de idade, tornei-me jornaleiro nas ruas da cidade e descobri uma nova perspectiva. Tudo ao meu redor estava impregnado da mesma sordidez e desgraça, e acima de mim existia ainda o mesmo paraíso, esperando para ser conquistado. Mas o caminho para subir era diferente. Era o mundo dos negócios. Por que poupar meus ganhos e investir em papéis do governo quando, comprando dois jornais por cinco centavos, num piscar de olhos, podia vendê-los por dez e dobrar meu capital? O mundo dos negócios era para mim o meio de subir na vida, e eu me via como negociante quadrado e bem-sucedido.

Ai das visões! Quando tinha dezesseis anos me chamavam de “príncipe”. Este título me foi dado por uma gangue de assassinos e ladrões, que me chamavam de “O príncipe dos piratas de água doce”.

Naquele tempo eu tinha galgado o primeiro degrau no mundo dos negócios. Era um capitalista. Possuía um barco e uma tripulação completa de piratas de água doce. Tinha começado a explorar meus semelhantes. Toda uma equipe estava sob meu comando. Como capitão e dono, ficava com dois terços do dinheiro e dava à tripulação o outro terço, embora eles trabalhassem tão duro quanto eu e arriscassem tanto quanto eu suas vidas e sua liberdade.

Este degrau foi o último que subi no mundo dos negócios. Uma noite, participei de um assalto a pescadores chineses. Suas linhas e redes valiam dólares e centavos. Era um roubo, claro, mas era este precisamente o espírito do capitalista. O capitalismo toma os bens de seus semelhantes a título de reembolso, traindo a confiança ou comprando senadores e juizes de tribunais superiores. Eu era apenas mais grosseiro. Essa era a única diferença. Eu usava um revólver.

Mas, naquela noite, minha equipe agiu como aqueles incompetentes que o capitalista está acostumado a fulminar, sem dúvida porque estes incompetentes aumentam os custos e reduzem os lucros. Minha quadrilha fez as duas coisas. Por falta de cuidado, tocou fogo na vela principal, destruindo-a totalmente. Não houve lucro aquela noite, e os pescadores chineses ficaram mais ricos pelas redes e linhas que não pagamos. Eu estava arruinado, sem condições sequer de pagar sessenta e cinco dólares por uma nova vela principal. Deixei meu barco ancorado e saí num barco de piratas na baía para uma viagem de saques pelo rio Sacramento. Enquanto estava fora, outro bando de piratas da baía saqueou meu barco. Roubaram tudo, até mesmo as âncoras; e mais tarde, quando recuperei o casco abandonado, obtive apenas vinte dólares por ele. Tinha descido o primeiro degrau galgado, e nunca mais tentei o caminho dos negócios.

Desde então fui implacavelmente explorado por outros capitalistas. Tinha força física, e eles faziam dinheiro com isso enquanto que, apesar do meu esforço, eu levava uma vida banal. Fui marinheiro, estivador e grumete. Trabalhei em fábricas de enlatados, indústrias e lavanderias. Cortei grama, limpei tapetes e lavei janelas. E não ganhava nunca o produto inteiro do meu trabalho. Olhava para a filha do dono da fábrica de enlatados, em sua carruagem, e sabia que eram meus músculos que ajudavam a empurrar aquela carruagem em seus pneus de borracha. Via o filho do industrial indo para a escola e sabia que era em parte a minha força que ajudava a pagar seu vinho e suas boas amizades.

Mas não ficava ressentido com isso. Fazia parte do jogo. Eles eram a força. Muito bem, eu era forte. Podia cavar um lugar entre eles e fazer dinheiro com a força de outros homens. Não tinha medo do trabalho. E quanto mais duro, melhor, mais me agradava. Gostaria de me entregar ao trabalho, trabalhar mais do que nunca e, eventualmente, me tornar um pilar da sociedade.

E a essa altura, com a sorte que eu gostaria de ter, descobri um patrão com a mesma mentalidade. Eu estava querendo trabalhar, e ele estava mais que querendo que eu trabalhasse. Pensei que estava aprendendo um ofício. Na realidade, havia substituído dois homens. Pensei que ele estava fazendo de mim um eletricista; de fato, estava ganhando, comigo, cinquenta dólares a mais por mês. Os dois homens que eu substituíra recebiam quarenta dólares por mês cada um, enquanto eu fazia o trabalho dos dois por trinta dólares.

Este patrão me fez trabalhar até a morte. Um homem pode adorar ostras, mas ostras demais vão deixá-lo enfastiado. E assim foi comigo. O excesso de trabalho me deixou doente. Eu não queria mais ver trabalho. Abandonei o emprego. Tornei-me um vagabundo, mendigando de porta em porta, perambulando pelos EUA e suando sangue em favelas e prisões.

Eu nascera na classe operária, e agora, aos dezoito anos, estava abaixo do ponto em que tinha começado. Caíra nos porões da sociedade, jogado no subterrâneo da miséria sobre o qual não é agradável nem digno falar: estava no fosso, no abismo, no esgoto humano, no matadouro, na capela mortuária da nossa civilização. Esta é a parte do edifício social que a sociedade prefere esquecer. A falta de espaço me leva aqui a ignorá-la, e devo dizer apenas que as coisas que vi lá me deram um medo terrível.

Estava apavorado até a alma. Vi a nu a complicada civilização em que vivia. A vida era uma questão de abrigo e de comida. Para conseguir abrigo e comida os homens vendem coisas. O comerciante vende seus sapatos, o político vende seu humanismo e o representante do povo, com exceções, é claro, vende sua credibilidade, enquanto quase todos vendem sua honra. As mulheres também, nas ruas ou na sagrada relação do casamento, estão prontas a vender seus corpos. Todas as coisas são mercadorias, todas as pessoas são compradas e vendidas. A primeira coisa que o trabalhador tem para vender é a força física. A honra do operariado não tem preço no mercado. O operariado tem músculos e somente músculos para vender.

Mas há uma diferença, uma diferença vital. Sapatos, credibilidade e honra têm como se renovar. Constituem estoques imperecíveis. Mas os músculos, estes não se renovam. Quando um comerciante vende seus sapatos, repõe o estoque. Mas não há como repor o estoque de energia do trabalhador. Quanto mais vende sua força, menos sobra para si. A força física é sua única mercadoria, e a cada dia seu estoque diminui. No fim, se não morreu antes, vendeu tudo e fechou as portas. Está arruinado fisicamente e nada lhe restou senão descer aos porões da sociedade e morrer na miséria.

Aprendi, ainda, que o cérebro também é uma mercadoria, ainda que diferente dos músculos. Um vendedor do cérebro está apenas no começo quando tem cinquenta ou sessenta anos, e seus produtos atingem preços mais altos do que nunca. Mas um operário está esgotado e alquebrado com quarenta e cinco ou cinquenta anos. Eu tinha estado nos porões da sociedade e não gostava do lugar para morar. Os canos e bueiros eram insalubres e o ar, ruim para respirar. Se não podia morar no andar de luxo da sociedade, podia, pelo menos, tentar a mansarda. Ela existia, a comida lá era escassa, mas pelo menos o ar era puro. Assim, resolvi não vender mais meus músculos e me tornar um vendedor de cérebro.

Começou então uma frenética perseguição ao conhecimento. Voltei para a Califórnia e mergulhei nos livros. Como me preparava para ser um mercador da inteligência, achei que devia me aprofundar em Sociologia. Assim, eu descobri, num certo tipo de livros, formulados cientificamente, os conceitos sociológicos simples que eu tinha tentado descobrir por mim mesmo. Outras grandes mentes, antes que eu tivesse nascido, tinham elaborado tudo que eu havia pensado e muitas coisas mais. Eu descobri que era um socialista.

Os socialistas eram revolucionários, porque lutavam para derrubar a sociedade do presente e tirar dela material para construir a sociedade do futuro. Eu, também, era um socialista e revolucionário. Liguei-me a grupos de trabalhadores e intelectuais revolucionários, e pela primeira vez entrei na vida intelectual. Aí descobri mentes aguçadas e cabeças brilhantes. Encontrei cérebros fortes e atentos, além de trabalhadores calejados; pregadores de mente muito aberta em seu cristianismo para pertencer a qualquer congregação de adoradores do dinheiro; professores torturados na roda da subserviência universitária à classe dominante e dispensados porque eram ágeis com o conhecimento que se esforçavam por aplicar às questões maiores da Humanidade.

Descobri, também, uma fé calorosa no ser humano, um idealismo apaixonante, a suavidade do despojamento, renúncia e martírio - todas as esplêndidas e comoventes qualidades do espírito. Naquele meio, a vida era honesta, nobre e intensa. Naquele meio, a vida se reabilitava, tornava-se maravilhosa. E eu estava alegre por estar vivo. Mantinha contato com grandes almas que punham o corpo e o espírito acima de dólares e centavos, e para quem o gemido fraco de crianças famintas das favelas vale mais do que toda a pompa e circunstância da expansão do comércio e do império mundial. Tudo à minha volta era nobreza de propósitos e heroísmo; meus dias e noites eram de sol e de estrelas brilhantes; tudo calor e frescor, como o Santo

Graal, o próprio Graal do Cristo, o ser humano caloroso, conformado e maltratado, mas pronto para ser resgatado e salvo no final, sempre ardente e resplandecente, diante de meus olhos.

E eu, pobre tolo, julgava ser aquilo apenas uma amostra das delícias de viver que eu deveria descobrir acima de mim na sociedade. Tinha perdido muitas ilusões desde os dias em que lera os romances da biblioteca Seaside, no rancho da Califórnia. E estava destinado a perder muitas das ilusões que me restavam.

Como mercador da inteligência, fui um sucesso. A sociedade abriu suas portas para mim. Entrei direto no andar de luxo; mas meu desencanto foi rápido. Sentei-me para jantar com os senhores da sociedade e com as esposas e mulheres dos donos da sociedade. As mulheres se vestiam muito bem, admito; mas para minha ingênua surpresa percebi que eram feitas do mesmo barro que todas as outras mulheres que eu tinha conhecido lá embaixo, nos porões. A esposa do coronel e Judy O’Grady eram irmãs sob suas peles e seus vestidos.

Não foi isto, porém, mas seu materialismo, o que mais me chocou. É verdade que estas mulheres lindas, ricamente vestidas tagarelavam sobre singelos ideais e pequenos moralismos; mas, ao contrário do teor de sua conversa mole, a tônica da vida que levavam era materialista. E como eram egoístas sentimentalmente. Contribuíam de todas as formas para pequenas caridades e se informavam sobre a realidade, mas, o tempo todo, os alimentos que comiam e as belas roupas que vestiam eram comprados com os lucros manchados pelo sangue do trabalho infantil, do trabalho exaustivo e mesmo da prostituição. Quando mencionei tais fatos, esperando em minha inocência que aquelas irmãs de Judy O’Grady arrancassem fora de uma vez suas sedas e joias tingidas de sangue, ficaram furiosas e excitadas, e leram para mim pregações sobre o desperdício, a bebida e a depravação inata que causavam toda a miséria nos porões da sociedade. Quando disse que não podia perceber bem qual era a falta de economia, a intemperança e a depravação de crianças quase famintas de seis anos que faziam trabalhar doze horas por noite numa fiação de algodão sulista, aquelas irmãs de Judy O’Grady atacaram minha vida pessoal e me chamaram de “agitador” - embora isto, na verdade, reforçasse meus argumentos.

Não me dei melhor com os senhores da sociedade. Esperava encontrar homens honestos, nobres e vivos cujos ideais fossem honestos, nobres e vivos. Andei com homens que estavam nos lugares mais altos - os pregadores, os políticos, os homens de negócios, professores e editores. Comi carne com eles, tomei vinho com eles, andei de automóvel com eles e estudei com eles. É verdade, encontrei muitos que eram honestos e nobres; mas, com raras exceções, não estavam vivos. Realmente acredito que poderia contar as exceções com os dedos das minhas mãos. Quando não estavam mortos pela podridão moral, atolados na vida suja, eram apenas a morte insepulta - como múmias bem preservadas, mas não vivas. Neste sentido, poderia especialmente citar professores que conheci, homens que vivem de acordo com o decadente ideal universitário, “a perseguição sem paixão da inteligência sem paixão”.

Conheci homens que invocavam o nome do Príncipe da Paz em seus discursos contra a guerra e que botaram nas mãos dos Pinkertons rifles que abateram grevistas em suas próprias fábricas. Encontrei homens incoerentes, indignados com a brutalidade de lutas de boxe e pugilismo, e que, ao mesmo tempo, participavam da adulteração de alimentos que a cada ano matam mais bebês do que qualquer Herodes de mãos rubras jamais havia matado.

Em hotéis, clubes, casas e vagões de luxo, em cadeiras de navios a vapor, conversei com capitães de indústria e me espantou como eram pouco viajados nos domínios do intelecto. Por outro lado, descobri que sua inteligência para negócios era excepcionalmente desenvolvida. Descobri também que sua moralidade, quando há negócios envolvidos, nada vale.

O delicado, destacado e aristocrático cavalheiro era um testa de ferro de corporações que secretamente roubavam viúvas e órfãos. Este cavalheiro, que colecionava edições de luxo e era patrocinador especial da literatura, pagou chantagem a um chefão político de queixo duro e sobrancelhas escuras da máquina municipal. Este editor, que publicou propaganda de medicamentos licenciados e não ousou divulgar a verdade em seu jornal sobre os mesmos medicamentos, com medo de perder o anunciante, me chamou de canalha demagogo porque lhe disse que sua economia política era antiquada e sua biologia, contemporânea de Plínio.

Este senador fora a ferramenta e escravo, o pequeno fantoche de uma máquina indecente e ignorante de um chefão político; assim eram o governador e seu juiz no Tribunal de Justiça; e todos os três tinham passes para viajar de graça na estrada de ferro. Este homem, falando seriamente sobre as belezas do idealismo e a bondade de Deus, acabara de trair seus camaradas numa questão de negócios. Aquele outro, pilar da igreja e grande contribuinte de missões no exterior, obrigava as garotas de suas lojas a trabalhar dez horas por dia por um salário de fome e, portanto, encorajava diretamente a prostituição. Este homem, que dá dinheiro à universidade, comete perjúrio em tribunais por causa de dólares e centavos. E o grande magnata da estrada de ferro quebrou sua palavra de cavalheiro e cristão quando admitiu abatimentos secretos para um de dois capitães de indústria empenhados numa luta de morte.

Era a mesma coisa em todo lugar, crime e traição, traição e crime - homens que estavam vivos não eram honestos nem nobres; homens que eram honestos e nobres não estavam vivos. E havia uma grande massa sem esperanças, nem nobre nem viva, mas simplesmente honesta. Esta não podia errar, positiva ou deliberadamente; mas errava de maneira passiva e ignorante ao concordar com a imoralidade generalizada e com os lucros que ela produz. Se fosse nobre e viva, não seria ignorante, e teria se recusado a dividir os lucros do crime e da traição.

Percebi que não gostava de viver no andar de luxo da sociedade. Intelectualmente era aborrecido. Moralmente e espiritualmente, eu me sentia enojado. Lembrava-me de meus intelectuais e idealistas, meus pregadores sem hábito, professores desempregados e trabalhadores honestos com consciência de classe. Lembrava meus dias e noites de sol e estrelas brilhando, quando a vida era uma maravilha doce e selvagem, um paraíso espiritual de aventuras não-egoístas e um romance ético. E diante de mim, sempre resplandecente e excitante, vislumbrava o Sagrado.

Então, voltei à classe operária, na qual havia nascido e à qual pertencia. Não me preocupava mais em subir. O imponente edifício da sociedade não reserva delícias para mim acima da minha cabeça. São os alicerces do edifício que me interessam. Lá, contente de trabalhar, de ferramenta na mão, ombro a ombro com intelectuais, idealistas e operários com consciência de classe, reunindo uma força sólida agora para fazer mais uma vez o edifício inteiro balançar. Algum dia, quando tivermos mais mãos e alavancas para trabalhar, vamos derrubá-lo, com toda sua vida podre e sua morte insepulta, seu egoísmo monstruoso e seu materialismo estúpido. Então vamos limpar os porões e construir uma nova moradia para a espécie humana, onde não haverá andar de luxo, na qual todos os quartos serão claros e arejados, e onde o ar para respirar será limpo, nobre e vivo.

Esta é a minha perspectiva. Vejo à frente um tempo em que o homem deverá caminhar para alguma coisa mais valiosa e mais elevada que seu estômago, quando haverá maiores estímulos para levar os homens à ação do que o incentivo de hoje, que é o incentivo do estômago. Conservo minha crença na nobreza e na excelência da Humanidade. Acredito que a doçura e o despojamento espiritual vão superar a gula grosseira dos dias de hoje. E, no fim de tudo, minha fé está na classe trabalhadora. Como diz um francês: “A escada do tempo está sempre ecoando com um tamanco subindo e uma bota engraxada descendo”.

15/05/2017

Jack London - Como eu me tornei socialista

por Jack London


Pode-se dizer que me tornei um socialista de maneira similar à dos pagãos teutônicos ao cristianismo – à força. Não apenas eu não procurava o socialismo na época da minha conversão, mas lutava contra ele. Eu era demasiado jovem e inexperiente, não sabia nada de coisa alguma e, apesar de nunca ter ouvido falar de uma escola de pensamento chamada “individualismo”, cantava o hino dos fortes com todo o meu coração.

Isso porque eu próprio era forte. Por forte quero dizer que tinha boa saúde e músculos rijos, ambas características que podem ser facilmente explicadas. Vivi minha infância nos ranchos da Califórnia, vendendo jornais nas ruas de uma próspera cidade do Oeste e passei minha juventude nas águas saturadas de ozônio da Baía de San Francisco e do Oceano Pacífico. Amava a vida a céu aberto, desempenhando as tarefas mais difíceis. Sem aprender nenhum ofício, mas pulando de emprego em emprego, observava o mundo e gostava dele em todos os sentidos. Deixe-me repetir: esse otimismo existia porque eu era forte e saudável, nunca experimentando dores nem debilidades, nunca sendo recusado por um patrão por não aparentar estar em boas condições físicas, sempre capaz de obter trabalho nas minas de carvão, como marinheiro ou como trabalhador braçal de qualquer espécie.

Por tudo isso, exultante em minha juventude, capaz de me defender bem, tanto no trabalho como nas brigas, eu era um feroz individualista. E isso era muito natural. Eu era um vencedor. Por conseguinte, considerava o jogo, da forma como era jogado, muito apropriado para HOMENS. Ser HOMEM significava escrever em letras maiúsculas no meu coração. Arriscar-me como homem, lutar como homem, fazer o trabalho de homem (mesmo que com o salário de menino) – essas eram coisas que me tocavam profundamente e ficavam gravadas em mim como nenhuma outra. E eu olhava adiante as amplas paisagens de um futuro nebuloso e interminável, em direção ao qual – jogando o que eu considerava um jogo de homens –, continuaria a viajar com uma saúde inquebrantável sem acidentes, e com os músculos sempre vigorosos. Como digo, esse futuro era interminável. Podia ver-me apenas avançando pela vida sem fim como uma das feras louras de Nietszche, perambulando lascivamente e triunfando pela simples superioridade e força.

Quanto aos desafortunados, aos doentes, aos que sofrem, aos velhos e aos aleijados, devo confessar que raramente pensava neles, a não ser que vagamente achasse que estes, salvo acidentes, poderiam ser tão bons quanto eu e trabalhar igualmente tão bem, se realmente o desejassem. Acidentes? Bem, eles representavam o DESTINO, também soletrado com letras maiúsculas, e não havia modo de se esquivar do DESTINO. Napoleão sofreu um acidente em Waterloo, mas isso não tirou meu desejo de ser outro Napoleão. Além disso, o otimismo, vindo de um estômago que podia digerir pedaços de ferro moído e de um corpo que florescera de uma vida dura, não me permitia considerar que acidentes tivessem qualquer relação, mesmo que remota, com minha personalidade gloriosa. Espero ter deixado claro que eu tinha orgulho de ser um daqueles seres eleitos da Natureza. A dignidade do trabalho era para mim a coisa mais impressionante do mundo. Sem ter lido Carlyle ou Kipling, formulei um evangelho do trabalho que varriam os deles “no chinelo”. O trabalho era duro. Era a santificação ou a salvação. O orgulho que sentia depois de um dia de trabalho árduo e bem feito seria algo incompreensível para os demais. Ë quase inconcebível para mim quando penso nisso agora. Nunca um capitalista explorou um escravo do salário tão fiel quanto eu. Embromar ou ludibriar o homem que me pagava o salário era um pecado, primeiro contra mim mesmo, e depois contra ele. Para mim era um crime que vinha logo atrás da traição, mas tão ruim quanto.

Resumindo, meu individualismo entusiasta era dominado pela ética ortodoxa burguesa. Eu lia os jornais burgueses, ouvia os pregadores burgueses e repetia plenitudes sonoras dos políticos burgueses. E não duvido que – se outros eventos não tivessem mudado minha trajetória -, viesse a me transformar num fura-greves profissional (um dos heróis do reitor Eliot), e tivesse minha cabeça e minha capacidade de trabalho irremediavelmente esmagadas por um porrete nas mãos de algum sindicalista militante.

Por essa época, voltando de uma viagem que durara sete meses, e logo após ter completado dezoito anos de idade, pus na cabeça a ideia de que iria vagabundar. Em vagões de passageiros ou compartimentos de carga, desbravei meu caminho pela vasta região Oeste, onde os homens trabalhavam duro e os empregos procuravam as pessoas, até os congestionados centros operários da região Leste, onde os homens tinham pouco valor e davam tudo que tinham para conseguir trabalho. E nesta nova aventura de fera loura, comecei a ver a vida de um ângulo novo e totalmente diferente. Eu havia descido da condição de proletário para o que os sociólogos chamam de “porção submersa”, e comecei a descobrir a maneira como aquela porção submersa era recrutada.

Lá encontrei todo tipo de homens, muitos dos quais haviam sido algum dia tão bons e tão feras louras quanto eu: marinheiros, soldados, operários, todos estropiados, comidos e desfigurados pelo trabalho, pelas agruras e pelos acidentes e dispensados por seus patrões como cavalos velhos. Com eles mendiguei nas ruas, pedi comida nas portas dos fundos das casas e senti frio em vagões de trens e parques da cidade, ouvindo as histórias de vidas, que começavam sob auspícios tão favoráveis como os meus, com estômagos e corpos iguais ou melhores do que os meus, e que terminavam ali, diante de meus olhos, arruinados, no fundo do Abismo Social.

E enquanto eu ouvia, meu cérebro começava a funcionar. A mulher das ruas e o homem da sarjeta se tornaram muito próximos de mim. Vi a imagem do Abismo Social vividamente, como se fosse algo concreto. Eu os observava lá no fundo do abismo, um pouco acima deles, agarrando-me às paredes escorregadias com todo o suor e a força de minhas unhas. E confesso que um medo terrível se apoderou de mim. E se acabasse minha força? E quando me tornasse incapaz de trabalhar lado a lado com os homens fortes que ainda estavam por nascer? Aí, então, fiz um juramento. Era algo mais ou menos assim: Todos os dias tenho trabalhado até a exaustão com meu corpo e apesar do número de dias que trabalhei, cheguei bem próximo do fundo do Abismo. Deverei sair dele, mas não com os músculos do meu corpo. Não vou nunca mais trabalhar como trabalhei e que Deus me fulmine se um dia eu der de mim mais do que o meu corpo pode dar. E desde então tenho me dedicado a fugir do trabalho duro.

A propósito, enquanto vagabundava por umas 10.000 milhas pelos EUA e Canadá, entrei na cidade de Niágara Falls, fui pego por um policial à caça de multas, tive negado o direito de me declarar culpado ou inocente, fui imediatamente sentenciado a trinta dias de prisão por não ter residência fixa ou meio aparente de subsistência, algemado e acorrentado a um grupo em situação similar, despachado para Buffalo e registrado na penitenciária do condado de Erie; meu cabelo e meu incipiente bigodinho foram raspados, fui vestido com o uniforme de prisioneiro, vacinado compulsoriamente por um estudante de medicina que praticava em pessoas como nós, obrigado a marchar em fila e a trabalhar sob a vigilância de guardas armados com rifles Winchester – tudo isso por ter me lançado em aventuras ao estilo das feras louras. Para mais detalhes, esta testemunha declara-se muda, embora se possa desconfiar que seu exultante patriotismo tenha se evaporado um pouco e vazado por alguma fresta no fundo de sua alma – pelo menos, desde que passou por essa experiência, já se deu conta de que se interessa muito mais por homens, mulheres e criancinhas do que por linhas geográficas imaginárias.

Voltando a minha conversão. Acho que aparentemente meu individualismo feroz foi efetivamente extraído de mim e foi-me inculcada outra coisa, de forma igualmente eficaz. Mas, assim como eu havia sido um individualista sem saber, era agora um socialista sem saber, ou seja, um socialista não científico. Eu havia renascido, mas não havia sido rebatizado, e andava à toa por aí, tentando descobrir o que de fato era. Voltei para a Califórnia e abri os livros. Não me recordo quais abri primeiro. Este é um detalhe sem importância, de qualquer forma. Eu já era isso, seja lá o que isso fosse, e com a ajuda dos livros descobri que isso era ser socialista. Desde aquele dia abri muitos livros, mas nenhum argumento econômico nenhuma demonstração lúcida da lógica e da inevitabilidade do socialismo me afeta tão profundamente e tão convincentemente como o dia em que vi pela primeira vez os muros do Abismo Social se erguerem à minha volta e me senti escorregando, escorregando, para as ruínas que se amontoavam lá no fundo.

30/12/2011

O que o Socialismo é

por Jack London



"A revolução é uma revolução do proletariado" - Jack London

Socialismo e Natal. Quão incongruente este espectro, vagando quando tudo é alegria e festividades! Como deve ele despertar um calafrio sobre as festividades - esta coisa temível - que está lá fora em nossas terras! Mas fechai vossas portas, pessoas de bem, e baixai as persianas, para que vós não possais ver, e possais dar as rédeas de vossa imaginação a vossa curiosidade; então contemplai esse monstro temível com todo o terrorismo que vosso medo possa sugerir.

Ai de mim! Sempre tem sido vossa política fechar as portas e baixar as persianas quando o pobre passa por perto. Vós nunca o haveis visto; vós sois ignorantes dele; e ainda assim vossa própria ignorância pinta, com cores vívidas, sua hórrida imagem.

Interroguemos o socialismo, e tentemos obter um conhecimento mais legítimo dele.

O socialismo é comumente o sinônimo para qualquer esquema caótico ou revolucionário, projetado e executado por rufiões, com fogo e espada, e carnificina, destruição e caos no meio. Isso é uma injustiça. Anarquia e niilismo podem ter dado causa para tal impressão, mas eles estão tão distantes do socialismo como os pólos entre si. Outro equívoco é que anarquia e niilismo são formas extremas de socialismo. Eles são os extremos, mas não as formas extremas. Não pode haver aliança de tais contradições, ainda que devamos confessar que eles são filhos de uma mesma mãe; mas um é o dia, os outros dois são a noite.

Um socialista é necessariamente social - daí seu nome. Ele deseja ser social - isto é, viver em uma sociedade formada por seres sociais como ele. E como consequência ele deve se conformar às leis, talvez não escritas, de tal sociedade, seja ela a família, a comunidade ou Estado. Tudo que ele deseja é melhorar essas leis. Um anarquista, ao contrário, não reconhece nenhuma dessas leis, defende a abolição de todas as leis, de toda restrição. O seu esquema é um de puro individualismo, que é impossível sem o homem perfeito, e mesmo com o homem perfeito todo poder de cooperação e organização seria perdido. A sua era seria uma idade de ouro, tal como a mitologia grega expressa, mas não seria uma era iluminada de civilização, tal como a que queremos. Seu irmão gêmeo, o niilista, não quer nada. Mas com o homem, imperfeito como é, seus esquemas levariam ao caos.

Ainda, socialismo é um termo abrangente. Comunistas, nacionalistas, coletivistas, idealistas, utopistas, são todos socialistas; mas não pode ser dito que o socialismo é qualquer uma dessas coisas, pois ele é todas. Qualquer homem que luta por uma forma de governo melhor do que aquela sob a qual ele vive é um socialista.

Socialismo significa uma reconstrução da sociedade com uma aplicação mais justa do trabalho e uma distribuição mais justa dos retornos. Ele clama, "Cada um segundo seus feitos!". Sua fundação lógica é econômica; sua fundação moral, "Todos os homens nascem livres e iguais", e seu objetivo final é a democracia pura.

Por "todos os homens nascem livres e iguais" se quer dizer nascer livre e com oportunidades iguais de se sustentar com um trabalho honesto - mental ou físico.

Por uma democracia pura se quer dizer uma forma de governo na qual o poder supremo esteja com e seja exercido diretamente pelo povo ao invés da forma atual, que é uma forma republicana de democracia, na qual o poder supremo está com o povo, mas ele é exercido indiretamente por ele, através de representantes.

Representantes podem ser corrompidos, mas como poderia o povo inteiro ser subornado? Isso seria uma tarefa hercúlea, e como Lincoln disse: "Você pode enganar todo o povo parte do tempo; parte do povo todo o tempo; mas não todo o povo por todo o tempo".

O socialismo é um fenômeno desse século. É uma visão do futuro, enquanto seus agentes estão trabalhando ativamente no presente. É um produto da evolução social. Nós tivemos escravidão, feudalismo, capitalismo e socialismo. É o passo óbvio. Se essa geração verá isso é incerto, mas "eventos futuros deixam antes sua sombra", e a sombra do socialismo já escurece o mundo. É uma nuvem ascendendo sobre nós com crescente magnitude.  O ruído surdo de seu trovão pode ser ouvido; seu relâmpago brilha mais e mais; ele está sobre nós. Trará ele uma chuva refrescante sobre a terra seca, ou trará ele a devastação do furacão? Pensem, amigos, se vocês ainda não o fizeram. Se já o fizeram, pensem novamente.

27/09/2011

O Homem sob o Capitalismo

por Jack London

Eu tinha nascido na classe operária, e estava agora, aos dezoito anos, abaixo do ponto no qual tinha começado. Estava caído nos porões da sociedade, jogado no profundo subterrâneo da miséria a respeito do qual não é agradável nem digno falar: eu estava no fosso, no abismo, no esgoto humano, no matadouro, na capela mortuária da nossa civilização. Esta é a parte do edifício social que a sociedade prefere esquecer. A falta de espaço me leva aqui a ignorá-la, e eu devo dizer apenas que as coisas que vi lá me deram um medo terrível.

Eu estava apavorado até a alma. Eu vi as nuas simplicidades da complicada civilização na qual vivia. A vida era uma questão de abrigo e comida. Para conseguir abrigo e comida os homens vendem coisas. O comerciante vende seus sapatos, o político vende seu humanismo e o representante do povo, com exceções, é claro, vende sua credibilidade; enquanto quase todos vendem sua honra. As mulheres também, nas ruas ou na sagrada relação do casamento, estão prontas a vender seus corpos. Todas as coisas são mercadorias, todas as pessoas compradas e vendidas. A primeira coisa que o trabalhador tinha para vender era a força física. A honra do operariado não tinha preço no mercado. O operariado tinha musculosa e somente músculos para vender.

Mas havia uma diferença, uma diferença vital. Sapatos, credibilidade e honra têm maneiras de renovar a si mesmos. Eram estoques imperecíveis. Os músculos, de outra parte, não se renovam. Quando um comerciante vende seus sapatos, continuamente repõe o estoque. Mas não há como repor o estoque de energia do trabalhador. Quanto mais ele vende sua força, menos sobra para ele. A força física é sua única mercadoria, e a cada dia seu estoque diminui. No fim, se não morrer antes, ele vendeu tudo e fechou as portas. Está arruinado fisicamente e nada lhe restou senão descer aos porões da sociedade e morrer miseravelmente.

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Jack London - "A Paixão do Socialismo"

03/01/2011

Olhos Estranhos

"Nossos filhos, seria uma angustia não contemplar nem peixe, nem ave. Nem branco, nem asiático, nem europeu. Bastardos mestiços de sangues cruzados. Seria abominável - nós não poderíamos nos perdoar. Imagine só - o anglo-saxão olhando para mim com olhos amendoados; o japonês olhando para você de olhos anglo-saxônicos, inescrutáveis, estranhos, absolutamente, abismalmente alienígenas."

(Jack London)

06/11/2010

Decadência da classe capitalista

"A questão realmente é que a massa da humanidade é miserável, não por falta da riqueza tomada pela classe capitalista, mas por falta da riqueza que jamais foi criada. Essa riqueza jamais foi criada porquê a classe capitalista administrou esbanjadoramente e irracionalmente demais. A classe capitalista, cega e gananciosa, se apossando enlouquecidamente, não apenas não fez o melhor de sua administração, mas fez o pior possível. É uma administração prodigiosamente esbanjadora. Esse ponto não pode ser suficientemente enfatizado. Em resumo, são cega é a classe capitalista que ela não faz nada para aumentar a duração de seu usufruto da vida, enquanto faz tudo para encurtá-lo. A classe capitalista não oferece nada que seja limpo, nobre e vivo. Os revolucionários oferecem tudo que é limpo, nobre e vivo. Eles oferecem serviço, altruísmo, sacrifício e martírio - as coisas que atiçam a imaginação do povo, tocando seus corações com o fervor que se ergue do impulso de fazer o bem e que é essencialmente religioso em sua natureza."
(Jack London, Trecho de "Revolução e Outros Ensaios")