12/11/2023

Ernst Jünger - A Máquina

 por Ernst Jünger

(1925)


O mundo em que nascemos aparece para nós como algo evidente. Desde o momento de nosso nascimento, estamos cercados por uma infinidade de coisas e, com os primeiros indícios de consciência, aprendemos a defini-las mais claramente a partir do eu que as percebe. Ainda não podíamos falar e não sabíamos o que era movimento, mas o barulho dos trens que corriam sobre os trilhos através de florestas e campos já era algo familiar para nós. Se fôssemos crescer em alguma cabana entre as florestas virgens da América do Sul, nos familiarizaríamos com o movimento, observando as copas das árvores balançando ao vento, os pássaros voando e o voo de uma flecha. Aldeia, pássaros coloridos e flechas seriam algo natural para nós. Mas, dos braços de nossa mãe, observávamos enormes vagões de ferro e complicados mecanismos de aço, sem entendê-los nem um pouco. Essa verdade foi descoberta na história do pensamento há muito tempo: primeiro percebemos os objetos e só depois submetemos a variedade da experiência a uma classificação rigorosa. Às vezes, devemos nos lembrar dessa verdade para ver o quanto estamos conectados à nossa era e ao nosso ambiente. Supomos que podemos conquistar ambos com o pensamento, mas, na realidade, o pensamento é apenas a função deles.

Hoje, sentados confortavelmente no assento de um vagão-restaurante com um jornal nas mãos, não prestamos atenção às paisagens que passam por nós. Além disso, não nos surpreenderemos com as cidades e os vilarejos que passam pela janela. Estamos bem familiarizados com elas desde a infância, esse é o nosso mundo! Mas, pelo menos uma vez, vamos tentar vê-las com outros olhos, por exemplo, com os olhos de um homem de outra época, quando fortalezas, edifícios monásticos e catedrais se erguiam acima.

As florestas e os campos esculpidos com a tela brilhante de uma ferrovia nem sempre foram como aparecem hoje. Essas não são apenas florestas e campos propriamente ditos, são florestas e campos que pertencem ao nosso tempo e lugar. As fileiras de faias e abetos nos fazem lembrar de soldados em parada. O centeio e o trigo formam faixas em um campo retangular, como se fossem medidos com uma régua. Tudo isso foi feito por uma máquina. Grãos individuais, um a um, em uma linha rígida. Há apenas trinta anos, os campos tinham uma aparência completamente diferente.

E assim chegamos a uma cidade grande. Aparecem mastros de semáforos, pontes sobre estreitos pilares de ferro. Passamos correndo por pátios de triagem, conglomerados de alavancas e fios, silhuetas rígidas de fábricas nas janelas das quais podemos ver volantes e lâmpadas brilhantes. E quanto mais nos aproximamos do centro, mais nos sentimos cercados por um jardim mágico com suas peculiares plantas tecnológicas.

Deixamos o trem em uma das gigantescas estações (com traços do estilo imperialista moderno em sua arquitetura) e vamos para as ruas. A noite já está caindo. Mergulhamos em um mar colorido de luz, letreiros brilhantes deslizam nas paredes dos prédios, rodas de fogo giram em torno das torres. Caravanas de máquinas passam apressadas por praças amplas e ruas estreitas; roncando, assobiando, buzinando - são como gritos de animais perigosos. No entanto, caminhamos calma e indiferentemente em meio a todo esse caos sob o céu artificial de lâmpadas de arco. Estamos cercados por uma paisagem mágica que supera qualquer fantasia das "Mil e Uma Noites".

Aqui nos sentimos em casa. Não seria um erro dizer que vivemos em um mundo de contos de fadas. Tudo vem e vai, e pode parecer que, quando nosso mundo afundar no nada, nossos descendentes contarão lendas sobre nós, lendas sobre o mal e poderosos magos. Sim, criamos coisas grandes e maravilhosas e temos o direito de nos orgulhar delas. Pois há momentos em que realmente nos orgulhamos daquilo que chamamos de progresso. Lembremo-nos da alegria inebriante que domina o homem moderno ao ver suas próprias criações queimando quantidades gigantescas de energia no céu acima das metrópoles. Lembremo-nos também da sensação de vazio nos fins de semana quando essa máquina gigantesca é parada. Então, parece-nos que as massas de pessoas que se arrastam vagarosamente pelas ruas perderam seu verdadeiro significado, e o louvor aos feriados que herdamos de ancestrais mais piedosos quase parece pecado. Estamos prontos para transformar completamente a vida em energia.

No entanto, ainda há um medo profundo escondido dentro de nós diante desse aparato mecânico, dessa vassoura de bruxa que parece que forçamos a mover, mas como se o aprendiz de feiticeiro tivesse se esquecido de outros encantamentos e se confundido. O medo se manifesta conscientemente quando a tecnologia é vista como o resultado do pensamento racional, acreditando que o mundo espiritual pereceu irrevogavelmente e em seu lugar surgiu o culto ao ganho material. Ele é particularmente vívido na nova geração que sobreviveu à guerra, que instintivamente escolhe o sangue comum e procura evitar qualquer visão de mundo racionalista.

De fato, a máquina tirou muito de nós. Ela tornou nossa vida mais enérgica, mas também tirou seu brilho. Tirando o todo de nós, ela nos transformou em especialistas. Pensamos que seríamos capazes de fazê-la trabalhar para nós como um servo de ferro, mas, em vez disso, fomos triturados por suas rodas. Quando Keyserling, em seu "Diário de Viagem de um Filósofo", afirmou que, no final das contas, era uma grande ilusão que conseguíssemos tudo com as máquinas, deixando para nós mesmos apenas a função de controle. A cada nova máquina, a pressão sobre nós aumenta - basta olhar as estatísticas.

No entanto, é importante entender que o movimento das máquinas é de caráter compulsório. Ela atropela quem estiver em seu caminho, tornando-se um meio de destruição. Qualquer protesto se chocará contra sua carcaça de aço, como o protesto dos operários ingleses que se revoltaram contra o uso das primeiras máquinas a vapor. Não se pode lidar com máquinas com as próprias mãos - essa é uma lição que aprendemos nas batalhas ardentes da tecnologia militar. E aqui está outra coisa que é importante lembrar: a máquina não é culpada pelo fato de o mundo ter perdido sua dimensão mais profunda - que é exatamente a censura usada contra ela pelo falso desejo de "internalizar". Somente o próprio homem é culpado, se é que se pode falar em culpa quando se trata de tais assuntos. Hoje a máquina é um instrumento de um homem particular e singular, e sua unificação maciça se torna o instrumento da nação. E, por meio da máquina, o espírito pode fazer o que quiser, assim como com qualquer outro instrumento.

A paisagem renascentista de Nietzsche não tinha lugar para a máquina. Mas ele também nos ensinou que a vida não é apenas uma luta por uma mera existência miserável, que ela pode buscar objetivos mais elevados e mais sérios. Nossa tarefa é aplicar esse ensinamento à máquina. Não temos o direito de vê-la como um mero meio de produção, a satisfação de desejos materiais, porque ela pode satisfazer necessidades de ordem superior. E é por isso que devemos libertá-la das sombras do intelecto e colocá-la a serviço da vontade e do sangue. Aquilo que na linguagem do intelecto é chamado de meios de progresso, na linguagem do sangue é chamado de meios de poder.

O intelecto cria o instrumento, mas a vontade do sangue o dirige e utiliza. As máquinas são usadas para encher países inteiros com produtos baratos e para criar bugigangas tecnológicas. As máquinas são usadas por nações cultas para criar tanques e armas ofensivas para si mesmas, e está claro que isso não se limita a placas de aço e canos de armas.

Assim como na guerra, em tempos de paz o nacionalismo moderno é incapaz de operar sem máquinas. As batalhas da Floresta de Teutoburgo, que eram travadas com paus e manguais, ficaram para trás há muito tempo. Agora, se um país não possui o arsenal tecnológico necessário para enviar trens, imprimir slogans e, de modo geral, impor qualquer vontade em nosso tempo e lugar, ele está fadado ao fracasso.

Houve pessoas que, durante a guerra, acreditando na supremacia do espírito sobre a matéria, enviaram soldados para a batalha sem armas modernas. Esses erros foram muito bem pagos. É claro que o espírito possui supremacia sobre a tecnologia militar, mas isso não significa que eles devam ser colocados um contra o outro diretamente. A supremacia do espírito se apresenta na capacidade de controlar a tecnologia de acordo com a própria vontade. Em tempos de paz, também devemos procurar equipar a nação com a mais nova tecnologia. Em certas épocas, as pessoas se expressam por meio de bombardeios e ataques com gás, enquanto em outras épocas o cinema, o rádio e a imprensa se tornam um meio de expressão. Aqui temos um vasto campo para trabalhar.

Mas não é possível conquistar esse espaço se não conquistarmos primeiro o trabalhador da fábrica moderna. Devemos convencê-lo da necessidade de encontrar uma saída para esse beco sem saída de predefinições marxistas e capitalistas que, por estarem ligadas exclusivamente a questões de produção, levaram à guerra industrial e à Batalha do Somme.

Precisamos encontrar um novo caminho para a liberdade. Precisamos convencê-lo de que nossos valores não têm equivalente monetário, que não nos empenhamos em distribuir ganhos, mas que estamos resolvendo uma questão de sangue e poder. Para nós, ele não é um trabalhador não qualificado, mas um camarada com direitos iguais. O trabalhador foi facilmente comprado com promessas repetidas vezes. Mas o que o marxismo ofereceu a ele em um sentido puramente material, o nacionalismo pode oferecer e muito mais.

O trabalhador fabril é o primeiro e mais forte fator no surgimento do nacionalismo moderno, que é, por si só, um novo fenômeno europeu.