08/04/2012

O Grande Projeto

por Aleksandr Dugin
 


A agressão do efémero

Nós estamos de tal modo enterrados em “este minuto”, nas peripécias políticas e económicas, nos problemas psicológicos, e tão apaixonadamente atendemos ao hipnótico conjunto da vida quotidiana, que constantemente perdemos de vista o principal. O principal, o grande, aquilo que dá sentido à vida, o que define o motivo mais alto - é para nós, volta e meia, apenas treta, estribilho, um esquema verbal e emocional. Ou simplesmente uma cobertura, um adorno exterior daquilo que com senso prático afirmamos como básico e real e que sentimos ser concreto. Assim constituída, a nossa existência gravitacional achata-nos contra a terra. Esses excêntricos, que, seriamente, rompendo com os condicionalismos e convenções sociais, se lançam para o diferente, são aceites por nós apenas quando sábios académicos paramentados com específico uniforme, quando artistas com barretes de veludo, ou popes triunfalmente imponentes. Contra esta materialização da humanidade as almas fogosas sempre se queixaram, censurando, acordando, denunciando, envergonhando. Mas dificilmente na antiguidade houve algum tempo, em que a hipnose da rotina actuasse tão total e impudentemente, expressando-se pelos poderosos mecanismos mediáticos que paginam a realidade efémera, -- destacada como a única realidade pelo seu próprio arbítrio. Quanto mais ilusória é a Sociedade dos Espectáculos, tanto mais real se apresenta o momento do presente ao qual aplica a força gigantesca da sua sugestão. O que foi ontem, como foi ontem, há uma hora atrás, parece profunda antiguidade.

Os liberais contra o Projecto

A Humanidade vive apenas porque nela existe um Projecto. O Grande Projecto. Nomeadamente, os bons sucessos e os falhanços no caminho da sua realização constituem a essência do processo histórico. A História humana é a história da realização do Grande Projecto. Sem dúvida que não é simples. Frequentemente paga-se com milhões de vidas, sangue, torturas, dores excruciantes, ferro ao rubro, desmedido sofrimento, pela escolha do caminho. E ele apresenta-se errado, falso. Mas de novo se lambe a persistente ferida humana, os ventos dispersam os fumos das queimadas, os raios do sol expulsam os fantasmas da guerra, e nós lançamo-nos a novo Projecto, sabendo na alma, que haveremos de pagar pela medida grande tudo aquilo que resultar e que não sair como tínhamos imaginado, mas se desistirmos dum alto objectivo, desistimos de ser gente com sua específica dignidade, com a nossa postura vertical, com a nossa visão severa e inteligente – para a frente e para cima.

Todos têm um projecto. Tanto pequeno como grande. Mas existe um sector da humanidade – resmungão, cobarde, egoistamente fechado na sua concha – que quer aniquilar o Projecto, acabar com a História, abolir os heróis, estabelecer na terra o reino dos “últimos homens”. “Que é a verdade?” – perguntam os últimos homens e piscam os olhos [“Assim falou Zaratustra”/F. Nietzsche]. Abertamente, a respeito do “Fim da História” e do “Último Homem”, ensinam os ideólogos da nova ordem mundial – Karl Popper, Daniel Bell, Francis Fukiama, Jacques Attali, Milton Friedman, George Soros. Para eles a “era do Projecto” acabou. Eles ensinaram que a humanidade paga um “imposto à História” demasiado grande. Eles declararam que com o fim do estado soviético, a civilização ultrapassara o último baluarte do Grande Projecto, o qual caíra sob a pressão da massa apodrecida da banalidade generalizada.

O tratante[1] não conhece o Projecto. Ele esforça-se por escapar ao imposto sobre a realidade, à taxa pela vida não alienada, e pelo alto feito, por vezes completamente insensato. O tratante odeia o Herói. E quando o Herói sofre uma catástrofe imediata, -- tão doce para ele, tão inscrita no seu destino luminoso-trágico solar-dionisíaco, quando o rasgam os cães, titãs ou bacantes, o Tratante esfrega as mãos, e, tendo esperado, toma alento: “O Grande Projecto desta vez está posto de lado”.

A abominação do liberalismo hoje saltou para mais. “O Grande Projecto caiu para sempre”, -- proclamam os últimos homens, avançando para nova espira das reformas do mercado.

“A sociedade não deve ter mais nem objectivos, nem orientações, nem supertarefas , nem regulações. Tudo isto apenas causa coacção. Laissez-faire. Deixai as pessoas em paz, não impeçais que elas façam o que querem, não as seduzais a quaisquer aventuras históricas, não lhe ofereçais mitos e missões sagradas. Que elas sejam o que elas são: gente miúda com problemas miúdos. Elas precisam apenas de mercados. Foi-nos muito caro contornar o entusiasmo galvanizante das experiências precedentes”. Assim, mastigando, dança ao ar do liberalismo a fisionomia de boca retorcida do neto reencarnado de um grande escritor soviético, cantor da ética ascética e do elevado, duro, brilhante e jovem heroísmo. Tudo como na teoria de Vilfredo Pareto: “Os avós são heróis revolucionários; os pais — conservadores moderados; os netos – monstros e degenerados”.

À palavra “Projecto”, a mão do liberal por si mesma marca o número da mais próxima esquadra da polícia. Deles, os mais honestos, desconfiando que, matando o Projecto, eles matam o próprio homem, notam que este aspecto se liquida como tal. E, em reservados saguões de reparação europeia, engenheiros geniais da “nova ordem mundial” produzem clones com código comportamental corrigido : o homem – sem história, sem ideal, sem agressividade, sem heroísmo, sem o Grande Projecto. O homem ideal do globalização vencedora. Celibatário, cosmopolita eternamente adolescente. Boneco vivente com dentes ideais, exalando Pepsodent. Perfeição artificial do natural. A História a partir de agora será feita nas telemontagens, e as pessoas – nos tubos de ensaio.

O inimigo da meia noite

Nós, os “nossos”, nunca os venceremos, se não nos consciencializarmos da escala da luta. Nós estamos a viver o momento mais dramático da história, onde nas cartas está em jogo o Homem. E este dramatismo só é mais grave e tenso devido a que exteriormente parece que nada há mais banal, mais insensato e mais medíocre do que o nosso tempo sórdido e estúpido. Quando a noite atinge a linha crítica, o ponto da Meia Noite absoluta, a lembrança da luz do sol varre-se de tal modo que parece que ela nunca existiu e que até a dor de ontem com as últimas luzes se apaga na curta memória dos homens. Quando apenas há a escuridão e nada com que compará-la, ela deixa de ser escuridão e está livre de se apresentar como se quiser. “Que é a luz?” – perguntam os últimos homens. E piscam os olhos.

Sobre os personagens bastante ocasionais, que se apoderaram do poder do mais belo e comovedor povo do mundo, sobre o país mais inquiridor, enorme e magnífico, paira a sombra do muito profundo processo mundial. Aquilo por que os pelados e débeis receiam o restolhar dos ratos e por pouco olham de esguelha, e se atrapalham nos fios eléctricos e tropeçam nas escadas do funcionalismo do estado, não nos deve levar à tentação do menosprezo do seu poder. Eles são mesquinhos e dignos de piedade precisamente porque pertencem ao exército dos guerreiros que lutam contra tudo que seja elevado e grande, ideal e heróico. São lansquenetes do avanço liberal contra o Grande Projecto. Aquele que está por eles, que se decidiu a pôr fim à história, é a figura mais sinistra e perigosa.

Há dois pólos, apenas dois pólos, dois campos. Eles e nós. Eles são contra o Projecto como tal. Nós somos pelo Projecto, qualquer que seja, contanto que grande (e formidável).

Dantes tudo era diferente. Havia muitos projectos. Os seus paladinos impiedosamente lutavam entre si, seguiam os seus próprios caminhos, e tenazmente conseguiam o seu intento. Mas isto era quando ainda havia história. Agora tudo é diferente. E colocaram todos os insubmissos num só gueto comum. É um gigantesco pedaço do planeta, que não se inscreve nas normativas repulsivamente eleitorais do “Norte rico”, isto é, os detritos das velhas culturas, ideologias e nacionalidades, que não entraram no “bilião dourado”. Nós não tivemos passaporte para o “brave new world”. Algum de nós, na verdade, o queimou conscientemente...

O último feito russo

Apesar de tudo, tendo cuspido em todas as normas e decências, em todas as cerimónias do consenso e fórmulas diplomáticas da cApesar de tudo, tendo cuspido em todas as normas e decências, em todas as cerimónias do consenso e fórmulas diplomáticas da correcção política, somos obrigados a declarar a nossa fidelidade ao Grande Projecto. Mais do que isso, devemos cultivar, alimentar, mimar, criar o nosso Projecto, mesmo que nada resulte. Estou perfeitamente convencido: os inimigos esforçam-se especialmente para nos atrair ao momento concreto, hipnotizar-nos com “este minuto”, paralisar as altas energias criadoras com a magia do pesado momento. Depois, quando a horda deles se dispersar como fumo, e a sua certeza e persistência se desfizerem em cinzas, nós ficaremos nos arredores dos abismos abertos pós-reformistas, e estas hordas uivantes, perguntar-nos-ão: “Então? E onde estão as vossas ideias, ideais, objectivos? Perderam-se na luta connosco? E nós somos apenas fantasmas da meia noite, kishshuf. E nada mais”. Como no notável filme dos anos 30 “Dibbuk”[2], começam a andar de um lado para o outro os semi-transparentes e semi-corpóreos fantasmas pelo tortuoso cemitério. E teremos um aspecto estúpido e desnorteado. Vencedores da futilidade, submetidos aos subterfúgios dos refinados hipnotizadores de “este minuto”. Tácticas brilhantes das manobras posicionais lutando com sombras.

O Grande Projecto deve nascer aqui e agora. Apesar da conjuntura política. Varrendo os imperativos efémeros da luta. Com calma e grandiosamente nós, os russos, devemos de novo tomar consciência da história, dos mundos do espírito, do desígnio secreto da história religiosa, da lógica magnética do espaço qualitativo, a sagrada geografia do mundo.

Devemos acordar depois do choque. Sim, a precedente forma do Grande Projecto ruiu. Mas é preciso reconstruir tudo de novo, repensar tudo, reclamar outra vez. É preciso fazer entrar em ebulição o tenaz trabalho nacional – nos gabinetes de construção, onde a luz se acende à noite e os engenheiros russos silenciosamente se aproximam das folhas de papel Whatman e dos computadores, para desenhar os aparelhos para a futura Grande Rússia; nas bibliotecas e mosteiros, onde para mal da caixa diabólica é preciso ter sob os olhares de jovens ardentes os antigos manuscritos russos, vetustos livros proféticos e cerimoniais, a crónica da nossa Pátria, do nosso povo; nas praças, nos bosques, nas clareiras, e nos ginásios, onde os atletas russos trabalham as trajectórias de novos golpes, as técnicas de receber e atacar – observando perante olhares furiosos os traços pintalgados do inimigo; em salões forrados a madeira de carvalho de boa qualidade, os tratantes russos começarão a planear subtis operações para a guerra económica com a ralé, bebendo o sangue da nossa Rússia. Tudo isto deve ser o caminho para o Grande Projecto. E de novo, como antes, “ninguém nos dará a salvação”. Tudo depende somente de nós.

Nele, no próximo Grande Projecto, logo desde o princípio será possível discriminar as linhas básicas: liberalismo, Ocidente, capitalismo, nova ordem mundial, globalização, materialismo pequeno burguês, individualismo, são o mal. São os inimigos do Grande Projecto.

Justiça, Oriente, socialismo, o florescente complexo dos povos e culturas da Eurásia, alto idealismo, comunidade e solidariedade, são o bem. O eixo do nosso Grande Projecto.

E, partindo do nervo básico, não prestando atenção às figuras políticas concretas, ao governo, ao poder e à oposição, aos partidos e uniões, nós, russos, todos juntos – acima dos partidos e das facções -- devemos formular o Grande Projecto, contribuindo para ele com um óbolo, uma linha, com uma peça, com um copeque, com um metro de área, com um ponto de comércio, com um ícone, com um punho, uma roda de máquina, uma corda, uma habilidade, uma beleza, uma faca bem afiada.

Agora não pode ser apenas projecto. É preciso ir mesmo ao Grande Projecto. Não há lugar para a concorrência ou para a escolha entre algumas variantes. Nós devemos unirmo-nos no nosso Projecto, no Projecto comum, todos e toda. A Rússia antes do fim do mundo tomará para si toda a carga da história humana, da qual se retiraram outros povos.

Chega a nossa hora. É criminoso passá-la a dormir.

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[2]Kishshuf (magia, feitiçaria) e dibbuk (demónio que se apodera de uma pessoa e a controla) são palavras hebraicas. Ver Internet (N. do T.)

[1]‘Torgóvetz’ quer dizer ‘mercador’ em russo. Traduzi-a pelo seu homónimo no português medieval