por Aleksandr Dugin
(2019)
Como toda religião, o judaísmo possui inúmeras facetas. Neste sentido, pensá-lo apenas em uma perspectiva pró ou contra não passa de uma atitude vulgar.
O judaísmo está associado à noção de que os judeus são o povo escolhido (principalmente no sentido religioso). Sua razão de ser? Aguardar a vinda do Messias, que deverá reinar sobre Israel. Deste modo, o judaísmo configura-se como uma religião fundamentalmente atada a um sentido de expectativa em torno da figura do Mashiach.
No início do primeiro milênio, de acordo com o judaísmo, os judeus foram dispersos: o Segundo Templo foi destruído e uma história de dois mil anos de diáspora se iniciou. No entanto, tal período não deixa de ter um sentido dentro da própria tradição judaica: seu objetivo é expiar os pecados de Israel, acumulados em etapas históricas pretéritas, de modo que, uma vez que a Expiação se consolide (nos termos de um arrependimento profundo), de acordo com a tradição judaica, o Messias se manifeste, trazendo a bênção para o povo escolhido de Deus – que, neste caso, implicará no retorno dos judeus a Israel, no estabelecimento de um Estado independente e na construção do Terceiro Templo. Essa é a estrutura da cultura judaica da expectativa.
Os representantes mais consistentes desta abordagem são os fundamentalistas do movimento Neturei Karta. Estes afirmam que o deus judeu ordenou que os sofrimentos do Exílio fossem suportados, ou seja, que os judeus devem aguardar até a última hora para expiar seus pecados – até a vinda do Messias, que fará com que o retorno à Terra Prometida seja possível. Porém, podemos nos perguntar: como tal normativa veio a ser violada por meio do estabelecimento precoce de um Estado? Para compreender por que o Israel moderno está em completa contradição com a religião judaica, é necessário retornar ao século XVII, era do pseudo-mashiach Sabbatai Zevi, o legalista sionista.
Sabbatai Zevi afirmou ser o Messias e, portanto, que os judeus poderiam retornar à Israel. O destino de Sabbatai Zevi, no entanto, é infeliz: ao chegar ao Sultão Otomano, mirando à Palestina, foram lhe dadas duas escolhas: ter a cabeça decepada ou se converter ao Islã. E então vem o inusitado: Sabbatai Zevi se converte ao Islã, para a decepção de toda a comunidade judaica. Mesmo assim, no entanto, os seguidores de Sabbatai Zevi (sabbatianistas) continuaram a se alastrar, aparecendo, em influência, especialmente nos ensinamentos dos Asquenazes e dos judeus da Europa Oriental – foi assim, por exemplo, que, paralelamente, deu-se o desenvolvimento do movimento chassídico, que, despido de uma orientação escatológica ou messiânica, difundiria o pensamento cabalístico entre as pessoas mais simples. De igual forma, foi do seio de determinadas seitas sabbatianas (particularmente, entres os frankistas poloneses) que se originou a proposição teológica de que Sabbatai Zevi era, de fato, o autêntico Messias, e que, ao fazer a transição para o Islã, incorreu em uma “traição sagrada”, traindo o judaísmo em nome da vinda do Mashiach. De acordo com essa lógica, é possível que uma pessoa se desloque entre diversas religiões – [Jacob] Frank, por exemplo, se converteu ao Islã e, depois, ao catolicismo, alegando que os judeus comiam bebês cristãos: transgrediu em todos os sentidos os preceitos talmúdicos e traiu sua própria fé. E então, após o século XVII, coerentemente com sua doutrina esotérica, registrar-se-ia uma metamorfose na própria essência da ideia mesma de um Mashiach. A partir de então, os próprios judeus haviam se tornado o Mashiach e, portanto, a necessidade de aguardar por ele havia se tornado obsolete. Em outras palavras, mesmo traindo a própria religião, é possível chegar ao estatuto de sagrado e de divino. Foi assim que se criou o ambiente intelectual para o sionismo.
O sionismo é satanismo judeu – satanismo dentro do judaísmo, pervertido em todas as suas fundações. Se, no judaísmo, é necessário aguardar a vinda do Mashiach, no sionismo, um judeu pode ser divinizado, mesmo violando os mandamentos do Talmude. E é precisamente daí que deriva a relação singular entre o sionismo e o judaísmo: por um lado, o sionismo é a continuação do judaísmo e, por outro, sua refutação. Os sionistas dizem que não há mais do quê se arrepender. Eles já sofreram o suficiente. Eles se tornaram divinos: o que explica a peculiaridade do Estado sionista moderno, que depende não apenas de Israel, mas também de judeus seculares, judeus liberais, judeus comunistas, judeus capitalistas, judeus cristãos, judeus muçulmanos, judeus hindus, etc. Todos esses, em certo sentido, derivam do tronco do frankismo, e todos eles, a sua maneira, estão livres para incorrer em uma “traição sagrada” em nome da construção de um Estado, em nome da supremacia mundial, chegando ao ponto de conspirarem para proibir qualquer tipo de crítica ao sionismo (em alguns estados americanos, por exemplo, a crítica ao Estado de Israel equivale a antissemitismo).
Cabe ainda frisar que os sionistas estão há apenas um passo de explodir a Mesquita de Al-Aqsa e começar a construção do Terceiro Templo. Sabe-se também que pesquisas sobre o Monte do Templo já alocaram fundos no Knesset. Tudo se move numa mesma direção. E como estamos diante de contradições com um pano de fundo metafísico profundo, apelar à ONU com frases como “sejamos pela reconciliação” ou “respeitemos os direitos humanos” é inútil. Na Palestina, todos esses direitos humanos estão a sete palmos. Além do mais, qualquer apelo do tipo é rapidamente rechaçado a partir de toda sorte de declarações absurdas, por exemplo, a acusação de que a simples defesa dos semitas palestinos é antissemitismo…
Indo para além da hipnose e da cortina de fumaça de absurdos, bem como da fragmentação pós-moderna da consciência, nos depararemos com uma imagem aterradora do que está se passando no Oriente Médio atualmente.