Já chamamos antes a atenção para o facto de o homem tradicional e o homem moderno não diferirem simplesmente pela sua mentalidade e pelo tipo da sua civilização. Pelo contrário, a diferença diz também respeito às próprias possibilidades da experiência, e ao modo de vivê-las no mundo da natureza, e portanto às categorias da percepção e à relação fundamental entre o Eu e o não-Eu. O espaço, o tempo e a casualidade tiveram, para o homem tradicional, um carácter muito diferente do que corresponde à ex-periência do homem de épocas mais recentes. O erro da chamada gnoseologia (ou teoria do conhecimento) a partir de Kant é o de supor que estas formas fundamentais da experiência humana têm sido sempre as mesmas, e, em particular, as que são familiares ao homem actual. Na realidade, também a este respeito se pode verificar uma transformação profunda, em conformidade com o processo geral de involucão. Vamos limitar-nos aqui a considerar a referida diferença no que respeita ao espaço e ao tempo.
Em relação ao tempo, já na introdução se indicou o ponto fundamental: o tempo das civilizações tradicionais não é um tempo «histórico» linear. Não há experiência do «devir». Para esclarecer este ponto, é conveniente precisar o que significa o tempo hoje em dia. É uma simples ordem irreversível de acontecimentos sucessivos. As suas partes são homogéneas umas em relação às outras e, por isso, podem medir-se como uma quantidade. Além disso, implica também a diferenciação do «antes» e do «depois» (passado e futuro) em relação a um ponto de referência totalmente relativo (o presente). Mas o facto de ser passado ou futuro, situado num ponto ou noutro do tempo, não confere nenhuma qualidade especial a um acontecimento determinado: liga-o a uma data, e é tudo. Em resumo, existe uma espécie de indiferença recíproca entre o tempo e os seus conteúdos. A temporalidade destes conteúdos significa simplesmente que eles são arrastados por uma corrente contínua que nunca volta atrás e de que, no fundo, cada ponto, embora seja sempre diferente, contudo é sempre igual a qualquer outro. Nas concepções científicas mais recentes — como a de Minkowski ou de Einstein — o tempo chega mesmo a perder este carácter. Com efeito fala-se da relatividade do tempo, do tempo como «quarta dimensão do espaço» e assim por diante, o que significa que o tempo se transforma numa ordem matemática, absolutamente indiferente aos acontecimentos, que só podem encontrar-se num «antes» em vez de num «depois» em função do sistema de referência escolhido.
A experiência tradicional do tempo era de um tipo completamente diferente. Nela o tempo não é uma quantidade, mas sim uma qualidade; não é uma série, mas sim um ritmo. Não transcorre uniforme e indefinidamente, mas sim fractura-se em ciclos, em períodos, dos quais cada um dos momentos tem um significado, e por isso um valor específico em relação a todos os outros, uma individualidade bem viva e uma funcionalidade. Estes ciclos ou períodos — o «grande ano» caldeu e helénico, o saeculum etrusco-latino, o éon irânico, os «sóis» aztecas, os kalpa hindus, e assim por diante — representam cada um deles um desenvolvimento completo, formando unidades fechadas e perfeitas, portanto idênticas umas às outras, e ao repetirem-se não se alteram nem multiplicam, mas sim sucedem-se — conforme a feliz expressão de alguém — como «uma série de eternidades». Tratando-se de um conjunto não quantitativo mas sim orgânico, a duração cronológica do saeculum podia também ser flexível. Durações quantitativamente desiguais podiam ser consideradas como iguais, desde que cada uma delas contivesse e reproduzisse todos os momentos de um ciclo. Por isso, assistimos à repetição tradicional de números fixos — por exemplo o sete, o nove, o doze, o mil — que não exprimem quantidades mas sim estruturas típicas de ritmo, permitindo ordenar durações materialmente diferentes, mas simbolicamente equivalentes.
Nesta base, o mundo tradicional ao longo da sequência cronológica indefinida conheceu uma hierarquia assente nas correspondências analógicas entre grandes ciclos e pequenos ciclos e, para dizer a verdade, desembocando numa espécie de redução da multiplicidade temporal a uma unidade supratemporal. Com o pequeno ciclo a reproduzir analogicamente o grande ciclo, dispunha-se virtualmente de um meio de participar em ordens cada vez mais vastas, em durações cada vez mais livres de qualquer resíduo de matéria ou de contingência até atingir — por assim dizer —, uma espécie de espaço-tempo. Ao ordenar o tempo a partir de cima, de maneira que cada duração se repartisse em períodos cíclicos reflectindo essa estrutura, ao associar a determinados momentos destes ciclos celebrações, ritos ou festas destinados a despertar ou a fazer pressentir os correspondentes significados, o mundo tradicional, também sob este aspecto, atuou no sentido de uma libertação e de uma transfiguração; deteve o fluxo confuso das águas; criou nestas a transparência através da corrente do devir que permite a visão da imóvel profundidade. Portanto não devemos espantar-nos por antigamente o calendário, base da medição do tempo, ter um carácter sagrado e ter sido confiado à ciência da casta sacerdotal, nem por certas horas do dia, certos dias da semana, e certos dias do ano, terem sido consagrados a determinadas divindades ou associados a determinados destinos. De resto, como resíduo disto o catolicismo conhece um ano recheado de festas religiosas e de dias mais ou menos assinalados por acontecimentos sagrados, em que se mantém ainda um eco daquela antiga concepção do tempo, ritmada pelo rito, transfigurada pelo símbolo, formada à imagem de uma «história sagrada».
O facto de se ter adotado tradicionalmente para fixar as unidades de ritmo as estrelas, os períodos estelares e sobretudo pontos do curso solar, portanto está muito longe de vir apoiar as chamadas interpretações «naturalistas»; com efeito, o mundo tradicional nunca «divinizou» os elementos da natureza e do céu, mas sim, pelo contrário, estes elementos foram assumidos como matéria para exprimir analogicamente significados divinos; significados estes percebidos directamente por civilizações que «não consideravam o céu superficialmente» ou como «gado a pastar». Pode-se mesmo admitir que o percurso anual do Sol foi primordialmente o centro e a origem de um sistema unitário (de que a notação do calendário não passava de um simples aspecto) que estabelecia como constantes as interferências e correspondências simbólicas e mágicas entre o homem, o cosmos e a realidade sobrenatural. As duas curvas da descida e da subida da luz solar no ano na realidade apresentam-se como a matéria mais imediata para exprimir o significado sacrificial da morte e do renascimento, o ciclo constituído pela via obscura descendente e pela via luminosa ascendente.
Prestando-se as constelações zodiacais de uma maneira natural à fixação dos «momentos» deste desenvolvimento, articulações do «deus-ano», o número doze encontra-se como sendo uma das «siglas do ritmo» que surgem com maior frequência a propósito de tudo o que tenha o sentido de uma realização «solar» e figura igualmente onde quer que se tiver constituído um centro que de uma maneira ou doutra tenha encarnado ou tentado encarnar a tradição urano-solar,ou onde quer que o mito ou a lenda tenham dado em figurações ou personificações simbólicas um tipo de regência análogo.
Mas no percurso duodecimal do Sol através dos signos zodiacais existe um ponto com um significado particular: o ponto crítico correspondente ao lugar mais baixo da eclíptica, o solstício de Inverno, fim da descida, início da reascensão, separação do período obscuro e do período luminoso. Segundo figurações que remontam à alta pré-história, aqui o «deus-ano» aparece como o «machado» ou o «deus-machado» que despedaça em duas partes o sinal circular do ano, ou outros símbolos equivalentes: espiritualmente, é o momento tipicamente «triunfal» da solaridade (em vários mitos é dado precisamente como o resultado vito-rioso da luta de um herói solar contra criaturas que representam o princípio tenebroso, frequentemente com uma referência ao signo zodiacal em que se encontra, de acordo com as idades, o solstício de Inverno): numa «vida nova», num novo cïclo —naíalis dii solis invicti.
Com um estudo comparado, pode-se facilmente salientar a correspondência e a uniformidade de festas e de ritos calendariais fundamentais, por meios dos quais se introduzia o sagrado entre as malhas do tempo, de modo a fraccionar a duração em outras tantas imagens cíclicas de uma história eterna, que os fenómenos da natureza vinham recordar e ritmar.
Alem disso, o tempo apresentava na concepção tradicional um aspecto mágico. Tendo cada ponto de um ciclo — devido à lei das correspondências analógicas - uma individualidade, a duração do ciclo desenrolava a sucessão periódica de manifestações típicas de determinadas influências e de determinados poderes: apresentava assim tempos propícios e não propícios, fastos e nefastos. Este elemento qualitativo do tempo constituía uma parte substancial na ciência do rito: as partes do tempo não podiam ser consideradas como indiferentes às coisas a realizar, apresentavam um carácter ativo que se tinha de ter em conta. Cada portanto tinha o seu «tempo» — tinha de ser executado num momento determinado, fora do qual a sua virtude se encontrava diminuída ou paralisada, se não mesmo produzindo um efeito oposto. Segundo certos pontos de vista, po-demos aliás concordar com os autores que têm afirmado que o antigo calendário assinalava apenas a ordem de periodicidade de um sistema de ritos. De um modo mais geral, conheceram-se disciplinas — como as ciências augurais — destinadas a inquirir se um dado momento ou período seria propício para a realização de um certo ato ou não —e já aludimos que era grande a preocupação que neste sentido se manifestou na própria arte militar romana.
É conveniente notar que tudo isto não corresponde de forma alguma a um «fatalismo», mas sim que exprime antes a intenção permanente do homem tradicional de prolongar e de integrar a sua própria força com uma força não-humana descobrindo momentos em que dois ritmos — o humano e o das potências naturais — por uma lei de sintonia, de acção concordante e de correspondência entre o físico c o metafísico se podem tornar uma única e mesma coisa, a ponto de arrastarem para a acção poderes invisíveis. Também assim se volta portanto a confirmar a concepção qualitativa do tempo vivo, em que cada hora e cada momento tem a sua fisionomia e a sua «virtude» e em que — no plano mais elevado, o simbólico-sacro — existem leis cíclicas que desenvolvem identicamente uma «cadeia ininterrupta de eternidades».
Daqui deriva uma consequência que não deixa de ter importância. Se tradicionalmente o tempo empírico foi ritmado e medido por um tempo transcendente, contendo não fatos mas sim significados, e se é neste tempo essencialmente supra-histórico que temos de reconhecer o lugar em que os mitos, os heróis e os deuses tradicionais vivem e «atuam» — temos no entanto de conceber uma passagem em sentido inverso, de baixo para cima. Por outras palavras, pode acontecer que alguns fatos ou personagens historicamente reais tenham repetido e dramatizado um rito, tenham encarnado — parcial ou totalmente, conscientemente ou não — estruturas e símbolos supra-históricos. Então, por isso mesmo, estes factos ou estes seres passam de um tempo para o outro, tornando-se expressões novas de realidades pré-existentes. Pertencem simultaneamente aos dois tempos, são personagens e factos ao mesmo tempo reais e simbólicos, e nessa base podem ser transportados de um período para outro, antes ou depois da sua existência real, quando se tiver em vista o elemento supra-histórico por eles representado. Por isso, certas investigações dos estudiosos modernos sobre a historicidade de alguns acontecimentos ou personagens do mundo tradicional, as suas preocupações em separar o elemento histórico do elemento mítico ou lendário, os seus espantos perante as «infantis» cronologias tradicionais, e finalmente certas ideias suas sobre as chamadas «evemerizações», assentam absolutamente no vácuo. Nos casos em questão — como já dissemos — são precisamente o mito e a anti-história que conduzem ao conhecimento mais completo da «história».
Além disso, é mais ou menos nesta mesma ordem de ideias que se tem .de procurar o verdadeiro sentido das lendas relativas a personagens levadas para o «invisível» e por isso «nunca mortas», destinadas a «despertar» ou a manifestar-se de novo ao fim de certo tempo (correspondência cíclica), como por exemplo Alexandre Magno, o rei Artur, «Frederico», o rei D. Sebastião, encarnações várias de um tema único, transpostas da realidade para a supra-realidade.