28/12/2018

José Javier Esparza - Não se pode dizer o que acontece na França

por José Javier Esparza

(2018)



Não se pode dizer o que acontece na França. Porque, se você diz, todo o establishment cai sobre você e te chama de fascista. Como não se pode dizer, se silencia. Mas o silêncio não faz com que o problema desapareça, ao contrário: o enterra e o faz crescer até que explode, e de maneira imprevisível. Então todo mundo vê, mas ninguém sabe já seu nome. E como ninguém mais sabe seu nome, tampouco se pode dizer. Só restam os escombros das ruas destruídas e o negro dos incêndios, e também a cólera que voltará a despertar.

Macron e a Gasolina

Partamos do princípio. No início de 2018, o presidente Macron avalia os problemas financeiros do Estado e decide elevar ainda mais o preço dos combustíveis nos postos: é uma medida que renderá uma grande quantidade de lucros líquidos, por meio de impostos indiretos, e que ele poderá maquiar perfeitamente em nome da luta contra as mudanças climáticas. Macron, sim: o mesmo que havia suprimido o imposto sobre as grandes fortunas assim que chegou ao poder. Mas passado o mês de maio, uma vendedora de cosméticos, Priscilla Ludovsky, lança nas redes sociais uma petição para que se reduzam os preços dos combustíveis: se, de fato, se trata de lutar contra as emissões contaminantes – pergunta-se Patrícia – por que subir o preço somente para os automobilistas, e não para os combustíveis do transporte aéreo e marítimo? Na realidade estamos diante de uma subida camuflada de impostos. E isso em um país no qual a receita por impostos já representa 18,7% do PIB (na Espanha é 9%) e cujos cidadãos suportam o maior peso fiscal da União Europeia: cada francês destina em média 57,41% de sua renda para pagar impostos (na Espanha, a cifra, altíssima, está abaixo dos 50%). Para quem governa Macron? Por que elimina o imposto sobre os ricos e, ao contrário, sobe os impostos sobre a espoliada classe média?


E agora vem a pergunta mais incômoda: Para onde vão esses impostos? Porque a percepção geral é que o dinheiro dos impostos se perde em serviços sociais colapsados, mal geridos e precarizados, em relação aos quais não é indiferente a chegada de centenas de milhares de imigrantes ilegais nos últimos dois anos. Dados deste verão: somente na área de Sena-Sain Denis, no nordeste de Paris, a cifra de imigrantes clandestinos alcança o número de... 400 mil pessoas! Nessa região da conturbação parisiense há 28% da população vivendo abaixo da linha da pobreza. Mas, cuidado, acabamos de tocar duas linhas vermelhas: uma, a das políticas climáticas; outra, a da imigração.

A França comum...de carro

Porque isto tampouco pode ser dito, obviamente. E não obstante, é verdade. Na quinta-feira, recém-chegado a Paris, resolvi caminhar de Denfert-Rocherau, onde te deixa o ônibus do aeroporto de Orly, até o município de Le Kremlin-Bicetre, fora da capital. Oito quilômetros de aglomeração urbana, tranquilamente, onde o cartaz mais habitual é “Açougue Halal”, para o consumidor muçulmano. A perda de poder aquisitivo pode ser quantificada; a perda de identidade, não, mas nem por isso deixa de ser dolorosa. O acaba de recordar Robert Menard, prefeito de Beziers, fundador do Repórteres sem Fronteiras e, hoje, uma das figuras mais destacadas da “direita transversal” francesa.

Esta perda de identidade não é só étnica: é, também e principalmente, política. Para dizer em duas palavras, cada vez menos franceses se reconhecem no modelo político vigente. Cresce a sensação de que a República se converteu no latifúndio de uma casta político-econômico-midiática que vive cada vez mais distante do cidadão comum. Este é um processo de longa data, que se traduziu no crescimento exponencial da Frente Nacional e no aparecimento, na ala esquerda, da França Insubmissa, mas que na realidade se move por baixo dos partidos e das convocatórias eleitorais. Onde mais visível se faz este processo é certamente nas províncias, fora de Paris: é ali que é mais palpável a impressão de se ter sido abandonado às mãos de Deus, e é ali que é mais arraigado o fenômeno dos Coletes Amarelos.

Continuemos: em 18 de outubro, uma cidadã desconhecida, Jacline Mouraud, lança no Facebook um vídeo que causa furor onde ela denuncia a política de “caça ao automobilista” do governo francês: encarecimento da gasolina, perseguição dos carros a diesel, aumento de todas as taxas, proliferação infinita de radares sancionadores, pedágios para entrar nas cidades... O que o motorista francês fez para merecer isto? E principalmente, o que Macron quer fazer com todo esse dinheiro? Uma piscina no Champs Elysee?, se pergunta a madame Mouraud. Em outras condições, o vídeo dessa mulher não teria passado de uma talentosa interpelação de uma cidadã qualquer a um governo depredador, mas, no ambiente social que se vive hoje na Frnaça, foi a fagulha que acendeu o fogo. Milhões de franceses se viram reconhecidos no protesto. Em 17 de novembro se produziu a primeira manifestação de massa: pessoas comuns, franceses étnicos tal como filhos de imigrantes, de esquerda ou de direita, todos unidos pelo cansaço de uma classe média que já não aguenta mais. Sem partidos, sem sindicatos. Como símbolo, um colete amarelo como o que todos temos em nosso carro (em francês, gilet jaune), um objeto cuja única mensagem é “Eu conduzo”. E desde então, quatro fins de semana consecutivos de protestos que não deixaram de crescer em intensidade e extensão, e que no último sábado ultrapassaram inclusive as fronteiras da França.

Quatro fins de semana, sim. E os que virão, porque a situação já saiu do controle. A principal responsabilidade foi de Macron, porque o presidente, elevando-se em uma nuvem de soberba cada vez mais densa, escolheu desdenhar dos protestos dos Gilets Jaunes. Unindo-se a ele em coro, todos os grandes meios de comunicação e a maioria da classe política entraram no discurso oficial: “as medidas fiscais são necessárias (por causa da mudança climática, claro) e os protestos obedecem a motivações obscuras”, vieram dizer. A pior das respostas possíveis a um problema que vai muito além da gasolina e que está enraizado na consciência política dos franceses. Na semana passada, as pesquisas diziam que cerca de 80% dos cidadãos viam simpaticamente o movimento dos Coletes Amarelos. Só então o governo retificou-se propondo uma moratória sobre os novos impostos. Mas era tarde demais. Como por justiça poética, enquanto os Coletes Amarelos convocavam sua nova mobilização, Macron anunciava uma viagem a Marrakech para assinar o pacto da ONU sobre migrações. Uma vez mais se fazia visível qual é a preocupação de cada um, o abismo imenso que separa a classe dominante e os cidadãos. E Macron, também mais uma vez, acabou se corrigindo e cancelou sua viagem. E também aqui já era tarde demais.

A “Extrema-Direita”

O movimento dos Gilets Jaunes é um protesto social transversal, sem patrocínios políticos ou sindicais. Nenhum partido do sistema pode apadrinhar um protesto que não tem nada a ver com os discursos habituais de feminismo, mudança climática, integração dos “refugiados”, etc. A Frente Nacional da Marine Le Pen expressou sua simpatia, mas à distância, e a França Insubmissa de Mélenchon, depois de uma tentativa de aproximação, preferiu se retirar porque seu líder foi golpeado na cabeça. Como não há possibilidade de “recuperar” o movimento para o mundo político oficial, nem mesmo em suas margens, a maioria midiática, que tem horror ao vazio, escolhe recorrer à etiqueta maldita: são da “extrema-direita”. E não, não é verdade.

“Ninguém sabe quem são os Coletes Amarelos, nem como estão se organizando. Na realidade, os Coletes Amarelos somos todos nós”, diz Martial Bild, diretor da cadeia televisiva independente TV Libertés. O sabiam nossos clássicos: “Quem matou o Comendador? Fuenteovejuna, senhor”. Por certo que o panorama da liberdade de expressão na França está seriamente erodido (um estudo recente assinalava a França como o país ocidental com menor liberdade de expressão) e a TV Libertés teve que recorrer à internet para transmitir. Também isto forma parte da paisagem de crise que vive o país, desse crescente divórcio entre os cidadãos e a classe dominante, classe à qual pertencem a maioria dos meios de comunicação. Depois da manifestação anterior, a de 1 de dezembro, o fenômeno explodiu. A violência se desatou nas ruas. Todos vimos as imagens. Também todos vimos o empenho surpreendente da maioria dos meios de comunicação por apresentar como “extrema-direita” os grupos antissistema que portavam bandeiras anarquistas. Na televisão, a casta dominante político-midiática atacava unanimemente os Gilets Jaunes, do filósofo milionário Bernard-Henry Levi até o ex-revolucionário Daniel Cohn-Bendit, o célebre “Dani Vermelho” de maio de 68. “Sou alérgico à cor amarela, e não é difícil saber o motivo”, afirmava Daniel em uma rádio. “Por causa da estrela amarela dos judeus perseguidos pelos nazistas!”, respondia o condutor do programa. “Exatamente”, ratificava o ex-revolucionário, triunfal. E bem, eis aqui lançado o anátema: Colete Amarelo = Fascismo. E há algo de fascista nos GJ? Sim, claro: os manifestantes se opõem às sábias e humanitárias decisões de um poder que apenas vela por nosso bem, e isso é fascismo, quer dizer, esse fascismo genérico no qual ingressam hoje todos os que dissentem do dogma oficial.

A nota dominante desta última semana, até ontem, foi a tentativa do governo francês e da maioria midiática, nos perdoem a redundância, de atribuir à “extrema-direita” a violência das manifestações. No exercício, a imprensa chegou a limites de ridículo verdadeiramente vexatórios, como considerar “fascista” a Cruz de Lorena, que foi símbolo escolhido pelo general De Gaulle para convocar à resistência em 1941 e que alguns manifestantes exibem estes dias em suas bandeiras tricolor (e que, certamente, inclusive Macron acrescentou a seu brasão presidencial), ou alertar da presença de grupos monarquistas ao ver uma bandeira com a flor-de-lis, ignorando que era a bandeira regional da Picardia, que leva, de fato, a flor-de-lis. São só dois exemplos de aonde estamos chegando.

A Violência

“Coletes Amarelos somos todos os cidadãos, creio eu”, me diz também a senhorita Aude Dugast, uma típica universitária parisiense que chega a nosso encontro perto de Notre Dame em sua bicicleta. “O problema são os casseurs – me explica – e esses não são Coletes Amarelos”. Os “casseurs”? Bem, expliquemos rapidamente a questão. Há muitos anos, a França em geral e Paris em particular vivem ondas episódicas de violência urbana. Na origem dessa violência há duas “tribos”, usemos o termo, muito bem caracterizadas. Uma é o que chamam por aqui de “racaille”, ou seja, a ralé, que geralmente coincide com a população marginalizada dos bairros da periferia de Paris, quase unanimemente imigrada nos últimos quinze anos, e que criou em seus domínios autênticas “no-go zones” onde a polícia não entra. Quando há encrenca, a racaille emerge com enorme violência e se dedica aos saques e às pilhagens, geralmente hasteando bandeiras de seus países de origem (Argélia, Mali, etc.). Ademais da “racaille” há os “casseurs”, e estes são outra história: são os black blocs, os grupos anarquistas antissistema, e que por regra geral não vivem nos bairros marginais, sendo filhos descontentes da elite. “Casser” quer dizer romper, interromper, cortar, e é exatamente isso que fazem. Assim quando há transtornos da ordem, como ocorreu nas manifestações dos Coletes Amarelos, chegam os casseurs e aproveitam as circunstâncias para multiplicar a violência, e logo após aparece a racaille que se aproveita do caos para destruir tudo que puder, e é praticamente impossível retomar o controle.

No último fim de semana houve mais de setenta prisões. Foram detidos Coletes Amarelos por portarem sprays de tinta – algo surpreendente em uma cidade cheia de pichações – e bombinhas. Só um tinha antecedentes; todos os outros eram cidadãos comuns. Sobre todos caíram penas de prisão. Curiosamente, nenhum dos que realmente causou cenas de violência foi detido. Como que a raiva não cresceria?

Como o governo não pode dizer que os responsáveis pela violência são jovens dos bairros imigrantes, porque seria muito politicamente incorreta, a casta dominante inventou um eufemismo significativo: francilien, ou seja, “franciliano”. Francilien é um neologismo introduzido há pouquíssimos anos para designar os moradores da Ile de France, a grande região urbana de Paris, com mais de doze milhões de habitantes, e onde se acumula a maior parte da imigração do país. E assim, por obra e graça do eufemismo, que tem dessas coisas, agora já sabemos de quem se trata quando o governo fale em “franciliano”: não de um habitante qualquer da Ile de France, mas de um imigrante.

Há Coletes Amarelos para todos

A chegada dos casseurs e da racaille eram o grande temor de toda Paris na sexta-feira, até níveis de psicose social notáveis. Exemplo de campo: na casa de uns amigos, no Paris rico, chega uma moça muito assustada porque no colégio lhe haviam dito que os Coletes Amarelos haviam roubado fuzis e iam assaltar as casas. Na realidade, tratava-se simplesmente de um assalto rotineiro a uma loja de armas que não tinha nada a ver com os Gilets Jaunes. Mas este boato, como muitos outros, correu até o ponto de que milhares de vizinhos dos bairros do centro (Arco do Triunfo, Ile de la Cité, Bastilha, etc.) fizeram as malas bem cedo no sábado e abandonaram a cidade.

Jantando esta noite no Grand Colbert, um dos melhores clássicos da grande cozinha francesa, muito perto do Louvre, olhava ao redor e via a França que não leva colete amarelo, a que está apenas preocupada com a crise, sem a exasperação do resto das pessoas, a comum, que vai seguir pagando impostos selvagens para que Macron combata a mudança climática enquanto seu governo assina o pacto da ONU para as migrações, algo que tem muito mérito para um país e para uma Paris onde não cabe mais ninguém. Há apenas cinco anos, muitas dessas famílias de classe média podiam se permitir jantar no Grand Colbert uma vez a cada três meses, por exemplo. Hoje já ninguém pode se permitir essas alegrias.

Nesta manhã, sábado 8 de dezembro, Paris parecia um deserto. Furgões policiais por todas as partes, tanques, comércios fechados, 8 mil policiais patrulhando a cidade. Pouco a pouco, não obstante, as pessoas começaram a abrir suas lojas fora das zonas de risco. Numerosos comércios haviam pendurado coletes amarelos nas vitrines. Também havia coletes bem visíveis, exibidos nos painéis, em muitos dos carros que circulavam pela cidade. Porque os Coletes Amarelos são estes, não a racaille nem os casseurs. Macron recuou na subida da gasolina, mas os Gilets Jaunes pedem mais: querem que reduza o brutal esforço fiscal dos cidadãos, que se reintroduza o imposto sobre as grandes fortunas, que subam as aposentadorias... Le Monde examinou o conjunto das reclamações dos Coletes Amarelos e concluiu que a metade corresponde ao programa da Frente Nacional e um terço ao da França Insubmissa. A esquerda já anunciou que apresentará em breve uma moção contra Macron. Ninguém o inveja, porque o que está fervendo nas ruas não vai se acalmar nem mesmo com isso.

Cocotte minute: essa é a expressão que se usa em francês para dizer “panela de pressão”, e esse é exatamente o retrato perfeito da sociedade francesa neste momento. Um enorme mal-estar se acumula sem que a classe política saiba entende-la e sem que a classe midiática saiba explica-la. Há quem evoque uma atmosfera semelhante à revolução de 1848. O veterano Xavier Rauffer vai mais longe: “Ao que mais isto se parece é à Rússia em fevereiro de 1917”, diz. Foi a revolução que derrubou o Czar.