09/12/2018

Matías Sirczuk - A Crítica ao Liberalismo: Carl Schmitt e Donoso Cortés

por Matías Sirczuk

(2004)



Introdução

Propomos nas páginas que seguem rastrear a crítica ao liberalismo nas reflexões filosófico-políticas de Carl Schmitt e Donoso Cortés. O caráter controvertido destes autores pela filiação, segundo nossa interpretação só aparente, de Donoso com um tradicionalismo católico de tipo reacionário ou pela vinculação pessoal de Schmitt com o regime nazista, usualmente não faz senão complicar a interpretação de seus escritos. Não pretendemos aqui justificar as posições particulares destes autores com relação a seu agir político prático. Tampouco acreditamos que nossa interpretação seja muito original ou nova. O que estamos efetivamente em condições de afirmar é que, tanto os postulados contrarrevolucionários de Donoso Cortés como o intento de restituição do político, levado a cabo por Schmitt permitem recuperar um olhar crítico sobre os próprios pressupostos da modernidade política. Com este objetivo nos embarcamos no pensamento destes autores que iluminam, segundo nosso critério, alguns dos problemas centrais da ordem política e da autoridade na modernidade.


Donoso Cortés: A Crítica Teológico-Política da Modernidade

A interpretação que propomos aqui sobre Juan Francisco María de la Salud Donoso Cortés se viu orientada, em princípio, pela maneira em que concebia o liberalismo e as críticas que aquele lhe sugeriam, mas ao longo de nossa investigação nos demos conta de que a crítica que Donoso realiza do liberalismo só pode ser compreendida ao interior de uma concepção metafísica da história e de uma teologia política que põem em questão os pressupostos mesmos do liberalismo, isto é, de uma metafísica e uma teologia política que questionam o liberalismo como um momento do que o filósofo considera a metafísica moderna. O liberalismo é um momento da razão moderna; não o último, mas sim o que habilita a possibilidade de radicalização da crise moderna iniciada com a posta em questão do fundamento absoluto da legitimidade.

Donoso se levanta frente à visão moderna de progresso que considera que o avanço da razão e da técnica traz como consequência o progresso do homem e com este, o de toda a humanidade. A metafísica moderna, principalmente em sua versão socialista, toma o homem como medida absoluta de todas as coisas e propicia a pretensão de constituir um tipo de sociedade fundada somente na razão humana, sem limites externos; isso, sustenta Donoso, conduziria a instaurar um regime que, ao não reconhecer limites a seu império, não poderia sair da lógica que vai da tirania à revolução e dali à tirania, conduzindo ao pior dos despotismos: nisto consiste o mal para Donoso.

É aqui que encontramos o ponto nevrálgico de sua crítica; desde uma concepção que podemos chamar com Schmitt metafísica, isto é, desde uma conceptualização que aponta para os princípios teológicos nos quais uma visão do mundo se assenta, Donoso pensará os problemas e os perigos que a metafísica moderna porta. A gramática da teologia política donosiana o levará a encontrar no catolicismo os princípios da boa ordem, isto é, os únicos princípios que, se opondo às tendências próprias da modernidade, possam articular liberdade e autoridade de maneira tal de constituir uma ordem estável e legítima.

Podemos desmembrar, então, o argumento donosiano, e com ele a crítica ao liberalismo, em três momentos: a) um primeiro momento no qual advertirá sobre as consequências nefastas às que conduz a metafísica moderna, isto é, a construção de um diagnóstico sobre a situação europeia desencaixada pela crise revolucionária de meados do século XIX; b) um segundo momento no qual, partindo da correspondência entre as diferentes esferas do mundo (políticas, sociais e culturais) e seu fundamento metafísico ou teológico, Donoso constrói a visão que tem as diferentes escolas racionalistas (o liberalismo e o socialismo em todas as suas vertentes) para contrapô-las à compreensão teológico-política católica; c) um terceiro momento de apelação a uma ditadura política que, ancorada nos princípios católicos, possa restabelecer o equilíbrio. O catolicismo será, para Donoso, o que em uma situação de normalidade brinda a estrutura necessária para a moderação e o equilíbrio entre a liberdade e a ordem, mas também será, em um situação desestruturada pela crise gerada pelo socialismo e pelo anarquismo, isto é, em uma situação excepcional, o respaldo doutrinário da ditadura.

a) Comecemos com o diagnóstico que realiza Donoso sobre a situação europeia. No discurso pronunciado no congresso madrilenho em 30 de janeiro de 1850 sobre a situação geral da Europa, Donoso sustenta que esta se encontra à beira da proximidade de uma crise funesta. A origem deste mal, que só pode ser contido mas que não se pode eliminar de maneira definitiva na modernidade, radica em que o princípio de autoridade, tanto divina como humana, desapareceu do mundo, tornando-se os homens ingovernáveis.

Esta situação pode se entender como a consequência do fato de que no século XIX encontram aplicação no campo político s social todas as heresias que no campo teórico se vem pronunciando desde sempre. A novidade do século não é o tipo de afirmações teóricas que proferem aqueles que se opõem à ordem, mas a audácia que apresentam na aplicação política e social dos erros em que caíram os séculos passados. Estes portadores de “novas verdades” só se comprazem quando as afirmações teóricas descendem ao campo da luta política e social correspondendo tudo, fazendo sair de cada erro um conflito, de cada heresia uma revolução e uma catástrofe de cada uma de suas afirmações. Postas no campo político estas “novas verdades” deixam de ser especulações teóricas ou, melhor dito, teológicas, e passam a formar parte das lutas políticas e sociais, questionando assim o fundamento da autoridade em que se apoia toda ordem.

Podemos encontrar uma primeira aproximação a este problema em uma carta dirigida pelo Marquês de Valdegamas ao diretor do El Heraldo na qual Donoso se propõe a responder a um artigo, publicado neste mesmo periódico, no qual o racionalismo está apresentado como o meio de chegar ao razoável, o liberalismo como o meio de chegar à liberdade, o parlamentarismo como o meio de constituir o bom governo e a discussão como o meio de chegar à verdade. De forma sumária, Donoso responde dizendo que, contrariamente ao que sustentava este artigo, a discussão é fonte de todos os erros, o parlamentarismo é a negação do governo, o liberalismo é a negação da liberdade e o racionalismo é a afirmação da loucura. 

Agora bem, razão, liberdade, discussão e parlamento só são fonte de dissolução quando estão dentro da metafísica moderna. Situados no interior dos princípios católicos, estes mesmos termos adquirem harmonia com a ordem hierárquica que Deus deu às coisas e são fonte de ordem; assim, por exemplo, o racionalismo que considera que não há Deus e que o homem é perfeito ou perfectível devém em razão que, guiada pela fé, acompanha as verdades reveladas; a liberdade filosófica ou revolucionária devém liberdade católica ou afirmação da dignidade do homem e de seu livre-arbítrio. 

Segundo Donoso, as tiranias e as revoluções são as duas faces de Jano com as quais se encontram as sociedades quando pretendem estabelecer um poder semelhante ao de Deus na terra. O diagnóstico que Donoso realiza sobre a situação europeia e sobre o perigo que correm as sociedades ao seguirem às “escolas racionalistas” se fundamenta em que, como dizíamos anteriormente, se aplicam no mundo político e social as heresias que se pronunciaram desde sempre e, sob a pretensão de estabelecer na terra o que é próprio do céu, isto é, pretendendo estabelecer uma comunidade que realize de maneira perfeita o homem, se vai cair ou no despotismo ou na guerra civil. Sob o império do catolicismo Deus distribui seus mandamentos a governados e governantes por igual, de maneira tal que os súditos contraem o dever de obedecer ao soberano que Deus institui e o soberano instituído, o dever de governa-los com o respeito que merecem. Quando a articulação entre liberdade e autoridade se move dentro da harmonia que lhe imprimem os princípios católicos, nos encontramos em um estado de liberdade. Quando os súditos faltam a essa obediência imposta por Deus, este permite as tiranias e quando os soberanos faltam a suas obrigações, isto é, quando pretendem desobedecer a Deus e se constituírem eles próprios como soberanos absolutos, Deus permite as revoluções.

O divórcio entre a liberdade a ordem é, então, causa de todos os males modernos. “Para nós, diz Donoso, é uma coisa posta fora de toda dúvida, que todo movimento que sai das vias católicas, conduz as nações para fora das vias da civilização, até voltar a dar com elas nas idades bárbaras. Isto mesmo que nos ensina a razão ou testemunha a história. Os Reis saíram das vias católicas, quando, alargando sua potestade desmesuradamente, esqueceram que a liberdade humana é de direito divino. Os povos, por sua vez, saíram das vias católicas quando esqueceram que Deus pôs sob sua santa proteção as potestades legítimas, e que lhe hão encomendado o cuidado da terra. E que foi que sucedeu aos Reis? Lhes sucedeu que, por onde pensavam ir chegar à onipotência, por ali foram chegar à guilhotina. E que foi que sucedeu aos povos? Lhes sucedeu que, por onde pensavam chegar a uma emancipação completa, por ali foram chegar a uma servidão absoluta. E que outra coisa é, senão uma idade bárbara, aquela tristíssima idade na qual as nações são servas, e onde os Reis são guilhotinados? Tão certo é que, onde não está o catolicismo, ali está a barbárie”.

O Discurso sobre a Ditadura nos permite sintetizar qual é, para Donoso, o verdadeiro perigo para as sociedades europeias. Há só duas formas de repressão das paixões humanas, paixões que conduzem ao caos e à anarquia: a repressão interna e a repressão externa. A primeira, essencialmente religiosa, permite aos homens viver em liberdade; a segunda, a repressão política, os conduz à servidão. Quando o termômetro religioso está alto, a repressão política é mínima e quando o termômetro religioso está baixo, a repressão política, isto é, a tirania, é alta. Na Europa, sustenta Donoso, através do desaparecimento da repressão interna, e logo após cada revolução, as sociedades se dirigem cada vez mais ao despotismo, mediante a centralização administrativa, a formação de exércitos profissionais, a instauração da polícia e os avanços técnicos que permitem um maior controle dos súditos. Se o termômetro religioso continua baixando, não bastará com nenhum gênero de governo para evitar os descontroles produzidos pelas paixões humanas e o despotismo será imenso. A liberdade não existe de fato já na Europa; frente à tendência ao despotismo própria da modernidade, Donoso sustentará a necessidade de uma ditadura que, ancorada nos princípios religiosos, restaure e equilibre a relação entre ordem e liberdade. Antes de ver de que maneira Donoso opõe uma ditadura pessoal (que restaure o termômetro religioso) ao despotismo moderno, que podemos denominar burocrático administrativo, passemos a nosso segundo ponto. 

b) Nosso segundo ponto está centrado na reconstrução que Donoso realiza das diferentes visões das “escolas racionalistas” buscando no fundamento teológico ou metafísico que essas escolas sustentam, a origem de suas afirmações políticas e sociais para contrapô-las e criticá-las a partir da teologia política católica. Donoso sustenta que toda afirmação relativa ao campo político ou social pressupõe, sempre, uma afirmação ou negação com relação à natureza de Deus. Mas isto não quer dizer que o católico espanhol seja um teólogo: pôr ênfase na teologia do adversário é o que lhe permitirá, definitivamente, pôr em evidência o fundamento no qual se assentam suas pretensões e os descontroles que estas produzem na sociedade. A teologia política, cujo antecedente imediato encontramos em De Bonald e cuja manifestação mais plena construirá Schmitt, é o que permite a Donoso entender a forma política que as diferentes escolas racionalistas modernas sustentam, partindo da concepção metafísica que estas escolas (às vezes sem sabe-lo) afirmam. Donoso apontará para construir uma analogia entre as esferas políticas e as esferas religiosas que lhe permitirá criticar o liberalismo como um primeiro momento da metafísica moderna. Como veremos, o liberalismo habilita a irrupção do socialismo, que através da radicalização de todas as contradições da modernidade, produz a anarquia ou o despotismo. A correspondência entre teologia e política lhe permitirá, por outro lado, conceber a maneira pela qual o catolicismo é o único que pode se opor à metafísica moderna garantindo a estabilidade e o bom governo que articule a liberdade com a autoridade. 

Para realizar a crítica teológico-política da modernidade, Donoso distinguirá, no Discurso sobre a situação da Europa, duas fases da civilização. Denominará à primeira afirmativa, de progresso e católica; à segunda, negativa, decadente e revolucionária. Esta primeira distinção, que se move em um plano geral e abstrato, irá acompanhada, neste texto mas também em outros, por um lado de uma especificação das duas escolas que encarnam os princípios da fase negativa: o liberalismo e o socialismo e, pelo outro, de uma crítica a estas posturas metafísicas a partir da teologia política católica. Passemos a ver detidamente este ponto.

A primeira fase da civilização é denominada por Donoso como afirmativa porque se apoia em afirmações, de progresso porque essas afirmações são verdadeiras, e católica porque o catolicismo abarca todas essas verdades e afirmações. A segunda fase recebe o nome de negativa porque se apoia em negações, decadente porque essas negações são erros, e revolucionária porque estes erros se convertem em revoluções que transtornam os estados.

A civilização católica se baseia nas três seguintes afirmações: existe um Deus pessoal que reina no céu e na terra; este Deus pessoal está em todas as partes e governa tanto as coisas divinas como as humanas. Se estabelece aqui a analogia entre os conceitos teológicos e os conceitos políticos; onde reina essa concepção de Deus nas esferas religiosas, nas esferas políticas encontramos um rei que está em todas as partes por meio de seus agentes, reina sobre seus súditos e também os governa. Este rei é a garantia da ordem política, já que se bem ele se encontra em um marco de legalidade para as situações normais, pode diante das crises, apelando a um princípio de legitimidade mais alto, tomar medidas de governo excepcionais que garantam a continuidade da ordem. Estas três afirmações no campo político (o Rei que está em todas as partes por meio de seus agentes, que reina sobre seus súditos e que ao mesmo tempo os governa) são o reflexo das afirmações religiosas.

A civilização negativa se divide, por sua vez, em três momentos; cada um deles nega alguma das afirmações católicas e habilita a passagem ao momento seguinte até culminar no caos e no despotismo. O primeiro momento não nega a existência de Deus mas sim sua providência; o deísmo no plano religioso corresponde à monarquia constitucional onde o rei reina mas não governa. A segunda negação nas esferas religiosas tampouco nega a existência de Deus, mas o transforma de pessoa a “tudo que existe”; o panteísmo (a identificação de Deus com a humanidade) no plano religioso  corresponde à república no plano político, no qual os republicanos afirmam que o poder existe, mas não é pessoa, o poder é a multidão com o que o sufrágio universal e a república são a única alternativa. O último momento, no plano religioso, corresponde ao ateísmo que nega de Deus, tanto a existência como a providência, o poder como o governo; no plano político corresponde ao anarquismo, que nega a necessidade do governo e afirma a bondade natural do homem.

Estas negações da metafísica moderna podem ser reduzidas a duas, a saber: uma relativa a Deus e outra relativa ao homem. A razão moderna nega, em relação a Deus, ou bem sua existência (ateísmo como fundamento teológico do socialismo e do anarquismo em todas as suas vertentes), ou bem sua intervenção nos assuntos mundanos (deísmo como fundamento teológico do liberalismo) e nega em relação ao homem que este haja sido concebido em pecado. A visão do mundo que cada escola tem, e com ela a aplicação política de suas premissas teológicas, estará duplamente determinada: por um lado pelo tipo de concepção que tenha de Deus, e pelo outro, pela forma de compreender a natureza humana, podendo ser o homem bom e portanto não necessitado de governo, ou mau, e portanto necessitado de direção. Para analisar, então, o que é que opinam as “escolas racionalistas” sobre as questões políticas e sociais, devemos interrogar sua concepção do Bem e do Mal, de Deus e do homem.

Mas antes de passar à interrogação donosiana do racionalismo moderno, vamos nos deter na teologia política que ele próprio defende. No que concerne a concepção do homem, Donoso considera que “Se a história vem em apoio de algum sistema filosófico, não é certamente em apoio do que proclama a solidariedade, a liberdade, a igualdade e a fraternidade do gênero humano, mas sim daquele articulado virilmente por Hobbes, segundo o qual a guerra universal, incessante, simultânea, é o estado natural e primitivo do homem”. O homem foi criado por Deus como inteligente e livre. Esta liberdade que lhe foi outorgada por Deus no paraíso consiste em decidir por qual caminho quer chegar a Ele. O perigo consiste em que assim como pode escolher o caminho do Bem, também pode escolher o caminho do Mal: a razão, quando pretende se constituir como soberana e não se subordinar à fé, pode gerar a desordem e o mal. A queda de Adão é a queda da espécie mediante a qual o homem se encontra em guerra com Deus, com suas paixões, com a morte, com os outros homens e com a natureza. Segundo Donoso, existe uma maldade inerente ao homem pós-edênico; este, se bem não se encontra condenado para sempre, tampouco tem a salvação garantida. Com relação à natureza de Deus, Donoso o concebe (para ele não há outra forma de fazê-lo senão a católica) como soberano do céu e da terra: isto quer dizer que intervém ou mediante as leis eternas que ditou ao criar o mundo, ou mediante milagres que restabelecem a ordem que lhe deu e que o homem, com sua liberdade, pode corromper.

Os princípios católicos serão os únicos que com suas afirmações absolutas poderão deter, pelo menos por um tempo, a irrupção do mal no mundo. Donoso reconhece o catolicismo como o único capaz de dobrar o orgulho humano e a pretensão de estabelecer na terra o que é próprio do céu. Por isso, será o respaldo doutrinário da melhor forma, a única, de articular a liberdade com a ordem.

Nos aproximemos, então, à interpretação donosiana das escolas racionalistas. Entre estas escolas Donoso distingue duas: as liberais e as socialistas. As primeiras, afirma Donoso, justificam o governo parlamentar sustentadas na crença de que a verdade política e a boa ordem são acessíveis por meio da discussão; isso abriria passagem para a irrupção dos socialistas que, levando até as últimas consequências as premissas modernas, conduzem ao caos, à tirania e, definitivamente, representam para Donoso a personificação de Satã. Veremos assim que a escola liberal, detendo-se na metade do caminho entre as afirmações soberanas católicas e as negações absolutas (encarnadas no socialismo), não é senão pedra de toque que permitirá a Donoso se enfrentar com o que ele acredita ser um inimigo verdadeiro. 

A escola liberal, dirá Donoso, despreza a teologia não porque não seja teológica, mas porque não o sabe que é, não entende o estreito vínculo que existe entre as questões teológicas e as questões políticas e sociais. Concebe um Deus criador mas não soberano ao qual há que render culto, mas não obediência. Não situando o mal na sociedade (coisa que fará o socialismo), nem no homem (pecaminoso do catolicismo) o liberalismo o coloca no governo e nas instituições. Reconhece a origem divina da soberania, mas afirma a soberania atual da razão e se encontra, portanto, entre duas verdadeiras teologias: a do socialismo, que afirma o poder constituinte atual do povo, e a do catolicismo, que afirma a soberania de Deus por meio de seus representantes legítimos. Para o liberalismo o mal advém quando o governo para das mãos parlamentares para o povo ou para os reis. A escola liberal tem por costume “afirmar o que nega e negar o que afirma”; propaga a corrupção buscando o equilíbrio através da discussão como meio de chegar à verdade, sem se dar conta de que a discussão liberal produz discórdia e leva as sociedades que estão sob seu império a morrerem gangrenadas.

Donoso encontra que o princípio liberal da liberdade de discussão, fundamento das constituições modernas, parte de um raciocínio errado, a saber: o princípio liberal da discussão sustenta a falibilidade dos governos (coisa que Donoso reconhece como verdadeira) e a infalibilidade da discussão como meio de chegar à verdade. É este segundo raciocínio que parece falso a Donoso: se todos os que dialogam tem uma razão sã – se a inteligência do homem é perfeita – podem chegar à verdade e a certeza por si sós, convertendo à discussão em um absurdo, e se a inteligência do homem não é perfeita (isto é, se o homem caiu, coisa que a Donoso parece também verdadeira) não é possível que a verdade suja do intercâmbio de opiniões, já que os homens nunca poderão se colocar em acordo em nada, nem escapar à incerteza por muito que discutam. Donoso considera que a lógica da ordem comporta a aceitação sem discussão das verdades do catolicismo devido ao efeito de ordem que produzem. Contra qualquer acusação que se lhe pudesse fazer a Donoso de irracionalista, ele crê que irracional é pretender fundar uma ordem em algo tão variável como as opiniões dos homens, já que diante da temporalidade que impõe o político não são necessárias as discussões intermináveis, mas a tomada de decisões que garantam a continuidade da ordem. “A discussão, diz Donoso, é o título com que viaja a morte quando não quer ser conhecida e anda incógnita”. 

O liberalismo, então, não se decidindo por matar Deus, o concebe sem capacidade de trabalhar sobre o mundo; não aceitando que o mal venha do homem nem de Deus o situa no governo, tratando de resolver as questões políticas e sociais simplesmente como falhas no sistema político. Encontra o mal, como dizíamos anteriormente, quando o governo passa das mãos dos parlamentares para o povo ou o Rei. Mas o parlamento, a forma política do liberalismo, constituído em poder, nega o que para Donoso são as características necessárias de todo governo humano: um poder concentrado, perpétuo e limitado que, em situações excepcionais, possa, por sua vez, operar milagres. Com a divisão de poderes nega a unidade da comunidade; com o chamado a eleições baseadas em um “contrato” entre governantes e governados nega sua perpetuidade e condenado pelas disputas entre parlamentares conduz à inação política e tende a degenerar em uma tirania que já não encontra limites.

Sigamos uma vez mais Donoso em suas próprias palavras: “A escola liberal, inimiga ao mesmo tempo das trevas e da luz, escolheu para si sabe lá que crepúsculo incerto entre as regiões luminosas e as opacas, entre as sombras eternas e as divinas auroras. Posta nesta região inominada, acometeu a empresa de governar sem povo e sem Deus; empresa extravagante e impossível: seus dias estão contados, porque por um ponto do horizonte assoma Deus e pelo outro assoma o povo. Ninguém saberá dizer onde estará no tremendo dia da batalha, e quando o campo todo esteja repleto com as falanges católicas e as falanges socialistas”.

O liberalismo se encontra em uma situação intermediária entre as afirmações católicas e as negações socialistas; impotente para lhe dar um impulso à civilização não pode fazer nada frente a irrupção do socialismo, que tem de fato uma visão teológica (ou melhor dito, antiteológica) dos problemas. Os socialistas, ao negarem a Deus sua existência, são mais consequentes que os liberais; não obstante, acabam situando o homem no lugar de Deus e dessa forma preparam o terreno para os males mais terríveis. O socialismo, sustenta o marquês, não é forte senão por ser uma teologia satânica, mas enquanto tal, apesar de superar o liberalismo sucumbe diante da teologia católica (divina). Tanto o catolicismo como o socialismo afirmam duas coisas: o mal e a redenção. A diferença radica em que o primeiro afirma o mal do homem e a redenção por Deus e o segundo o mal da sociedade e a redenção pelo homem. Com as afirmações católicas não se faz outra coisa que afirmar que o homem é homem e realiza obras humanas; que Deus é Deus e acomete empresas divinas. O socialismo não vê senão no homem um Deus e na sociedade as obras próprias do homem. Agora bem, se o mal está na sociedade, os socialistas se encontram diante do escolho de demonstrar de que maneira surgiu. Se não surgiu de Deus (já que não existe) e não surgiu do homem (já que é o encarregado de redimi-la e, portanto, é perfeito e só opera o bem) o sistema cai na contradição de explicar a origem do mal sem poder encontrar para isso qualquer causa. Os socialistas são, na presença dos católicos, dirá Donoso, crianças que parecem homens. “Negar o Deus trino para afirmar outro Deus; negar a humanidade sob um aspecto para vir a afirma-la desde outro ponto de vista; negar a sociedade com certas formas para vir a afirma-la com formas diferentes; negar o homem de certa maneira, para depois vir a afirma-lo de uma maneira diferente ou contrária, tudo isto é entrar pela senda de tímidas, contraditórias e covardes transações. O socialismo presente é, ainda, um semicatolicismo e nada mais”. É por isso que o socialismo, filho do erro, não pode, em última instância, vencer o catolicismo. Passemos a nosso último ponto e vejamos de que maneira o catolicismo se converte para Donoso no respaldo doutrinário de uma ditadura política que diante da crise revolucionária possa frear a destruição da ordem levada a cabo pelas “escolas racionalistas”.

c) Para Donoso Cortés não basta só enumerar e denunciar as contradições próprias da metafísica moderna: a verdade por si só carece de força. O erro pode causar grandes estragos, principalmente se considerarmos que, se bem o homem só recebe seu castigo na eternidade, o castigo das sociedades se encontra no tempo. A luta contra os males modernos se dá na história e não é senão uma luta pela interpretação metafísica dela. Os princípios católicos permitirão a Donoso dispor de todo um arcabouço que perante situações extremas habilitem a tomada de decisões extremas que garantam a permanência da harmonia que existe para ele entre a liberdade e a autoridade. O homem só é livre quando obedece a Deus e escravo quando obedece a outros homens. Frente à crise revolucionária do 48 gerada pelo socialismo e pelo anarquismo e pela impotência do liberalismo de freá-la, Donoso apelará a uma ditadura que, ancorada nos princípios católicos, possa deter, pelo menos temporalmente, a irrupção do mal no mundo.

Vimos por um lado qual é o diagnóstico que Donoso realiza da situação europeia de meados do século passado. Por outro lado vimos de que maneira, para donoso, o liberalismo é incapaz de fazer frente à crise revolucionária, e como sua pretensão de resolver os conflitos políticos por meio da discussão e o sistema legal vigente só favorece a destruição da ordem nas mãos de socialistas e anarquistas. Advertimos, também que, segundo Donoso, a tendência da lógica própria da metafísica moderna não conduz à liberdade, mas ao despotismo. Caído o princípio de legitimidade tradicional e desterrada a liberdade da Europa, Donoso fará um chamado à ditadura como única forma possível de restaurar a relação entre liberdade e autoridade. Diz o filósofo espanhol em seu famoso discurso sobre a ditadura pronunciado no Congresso madrilenho que “a questão não está entre a liberdade e a ditadura; se estivesse entre a liberdade e a ditadura eu votaria pela liberdade, como todos os que nos sentamos aqui”; a questão, então, não está entre a liberdade e a ditadura, mas entre uma ditadura que conduz necessariamente ao despotismo (a ditadura da insurreição que sob a pretensão de libertar o homem o conduz à servidão mais abjeta) e uma ditadura que, ancorada nos princípios católicos, provoque uma reação religiosa e restaure o equilíbrio entre liberdade e autoridade; “a ditadura será, simplesmente, uma resposta racional à secularização total da soberania, para evitar o despotismo que surge quando os homens pretendem instaurar na terra o que é próprio do céu. Em situações de normalidade o ditador é absurdo; diante da catástrofe, é imprescindível. Sua legitimidade repousa na função que o define, a qual por sua vez pressupõe uma cosmovisão, que (...) em sua produção mais tardia é católica, mas de um catolicismo que responde melhor que qualquer outro corpo ideológico às exigências da racionalidade governativa como equilíbrio”. Diante da situação de uma crise que não pode ser resolvida dentro do marco da legalidade, Donoso apelará a um princípio de legitimidade mais alto, a teologia política católica, que será o sustentáculo de um governo que possa evitar, pelo menos por um tempo, o avanço da lógica moderna até a absolutização da razão humana. A temporalidade do político exige uma decisão peremptória que não se limite nas meias-medidas liberais e que freie o círculo vicioso entre tirania e revolução que conduz ao despotismo e ao caos. Diante do perigo da tirania e o perigo da revolução (como dois princípios de desordem), Donoso encontra nos princípios católicos o último refúgio contra uma razão que, considerada como soberana, engendra demônios.

Schmitt em Weimar: A Crítica ao Liberalismo

Propomos agora rastrear a crítica que Schmitt realiza do liberalismo durante o período da República de Weimar. Nossa interpretação encontra que a crítica que Schmitt formula tem um caráter dual: por um lado sustenta que o liberalismo cumpriu um papel na história, e que aliado à democracia, destruiu o princípio de legitimidade monárquico; a razão da caducidade do liberalismo a encontra, neste registro, em que, uma vez morto o Rei e desaparecidos todos os pressupostos próprios do liberalismo, este já não tem razão de ser. Este primeiro argumento de tipo histórico espiritual convive, cremos, com uma crítica ontológico-política do liberalismo na qual Schmitt descobre na metafísica liberal a incapacidade que tem, tanto teórica como praticamente, de fazer frente à situação excepcional; sua crítica ao liberalismo é uma crítica da neutralização do conflito político assentada na ilusão do normativismo e do universalismo humanista que leva, segundo Schmitt, à incapacidade de pensar a decisão como ultima ratio da soberania e, em suma, à incapacidade de pensar a política fora da normalidade legal, à impossibilidade de pensar a política nos momentos de criação, de ruptura ou de conflito.

Para rastrear os dois aspectos dessa crítica recorreremos detidamente alguns dos textos mais significativos que o autor escreveu durante a República de Weimar, já que é durante este período quando Schmitt concebe o perigo a que conduz a pretensão liberal de prorrogar toda decisão e escapar à temporalidade do político.

a) Em O Conceito do Político, Schmitt se propõe estabelecer quais são as distinções específicas do político como campo autônomo da realidade. Para iluminar a crítica ao liberalismo que Schmitt realiza neste texto, trataremos, por um lado, no aspecto ontológico-político, a relação que encontra Schmitt entre toda teoria política e a profissão de fé antropológica que cada uma sustenta, e pelo outro, no plano histórico espiritual, o tratamento schmittiano da acusação de violência que realizou o liberalismo durante o século XIX contra a política e o Estado, através do deslocamento do conflito político para a discussão no plano espiritual e negociação no plano econômico, isto é, através da neutralização do conflito e da negação de seu caráter essencialmente político. A crítica neste texto, não obstante, veremos que se move centralmente nas consequências nefastas que traz para Schmitt a pretensão liberal de erradicar a política do mundo, pretensão que está sustentada em suas premissas antropológicas e metafísicas. Schmitt sustenta que “não há uma política liberal em si, mas sempre uma crítica liberal da política”. O liberalismo se refere somente à luta interna contra o poder do Estado e gera uma série de mecanismos para controla-lo e garantir a liberdade dos indivíduos mediante a divisão de poderes e os controles normativos. Esta incapacidade para pensar o político tem sua origem na concepção antropológica do homem do liberalismo. A crença liberal se orienta em uma profissão de fé positiva com relação à antropologia do homem, isto é, crê que o homem é bom por natureza; a partir dessa concepção não é necessária a ideia de uma autoridade que, através do exercício de sua soberania, garanta a paz e a ordem no interior da comunidade devido a que os homens, ao não terem uma natureza conflitiva, deixados a seu livre-arbítrio, gerariam espontaneamente a ordem social e não se enfrentariam entre si. Para Schmitt, a esfera do político está dominada pela possibilidade real da distinção de um inimigo, o que pressupõe uma concepção negativa da natureza do homem. Movendo-se em um termo médio entre as concepções mais autoritárias (que pressupõem a maldade natural do homem) e as anarquistas (que são consequentes com a premissa da bondade natural do homem), o liberalismo, mediante a proposição de um homem bom, pretende subordinar o Estado à sociedade para garantir os direitos dos indivíduos; “para os liberais, a bondade do homem não significa outra coisa que um argumento com cuja ajuda o Estado é posto a serviço da sociedade: eles afirmam que a sociedade tem em si mesma sua própria ordem e que o Estado é só um subordinado dela, controlado com desconfiança e limitado dentro de limites precisos”. A hostilidade frente ao Estado e a política cresce à medida que a confiança na natureza do homem aumenta. O liberalismo não nega de modo radical o Estado – não é consequente, portanto, com sua premissa da bondade natural do homem; sob a doutrina da divisão de poderes não funda uma teoria do Estado, mas uma forma de limitar o exercício do poder (considerando-o como algo mau e corruptor do homem). O liberalismo é incapaz de formar uma teoria política própria porque parte da base de uma antropologia positiva do homem e se encontra, sempre, obrigado a pensar a forma de garantir os direitos individuais. Dado que, segundo o define Schmitt, o político se assenta na capacidade de distinguir amigo-inimigo, e que seu horizonte e pressuposto é a possibilidade de dar a vida por esta oposição existencial, seria inconsistente que o indivíduo liberal estivesse disposto a matar ou morrer por uma decisão que obedeça a outros fins que não sejam os do próprio indivíduo. “Em casos determinados a unidade política demanda o sacrifício da vida; esta pretensão não pode, de modo algum, se fundar e se sustentar no individualismo do pensamento liberal. Um individualismo que desse o poder de dispor da vida física do indivíduo a algo diferente do próprio indivíduo careceria de sentido, do mesmo modo que uma liberdade liberal sobre a qual fosse outro, e não o próprio titular da liberdade, quem decidisse seu conteúdo e alcance”.

Esta incapacidade teórica do liberalismo para pensar o político, não obstante, não o impediu de atuar politicamente contra uma forma de Estado e um poder político particular. Isto nos introduz ao segundo aspecto da crítica ao liberalismo: segundo Schmitt na acusação de político e violento contra todo movimento que se lhe oponha, o liberalismo propugnou por uma forma de dominação que, desconhecendo os limites próprios do político, conduz à radicalização do enfrentamento, à eliminação de toda distinção precisa entre guerra e paz, amigo e inimigo, e à transformação da guerra na última cruzada contra o último inimigo da humanidade ao qual se demoniza e que é apresentado como o Outro do verdadeiramente humano.

O liberalismo, sustenta Schmitt, se move dentro da polaridade de ética e economia, insultando ao político como o lugar onde as coisas se resolvem por meio da violência e buscando mediante a discussão no plano espiritual e a negociação e o intercâmbio no plano econômico propiciar uma convivência sem fricções. Desmilitariza e despolitiza todos os conceitos políticos transformando a luta e o enfrentamento no plano espiritual em discussão e no plano econômico em competição. Elimina os limites entre guerra e paz sob o horizonte de uma discussão eterna e uma competição eterna da qual derivaria o equilíbrio. Os polos de ética e economia se enfrentam à política como âmbito da “violência conquistadora” e o Estado se converte no mecanismo mediante o qual se devem garantir os direitos dos indivíduos. Assim, mediante a transformação de todo enfrentamento político em discussão no plano espiritual e negociação e competição no plano econômico, o pathos liberal se rebela frente à violência e à intervenção nos assuntos particulares, chegando assim a uma multiplicidade de argumentos desmilitarizados e despolitizados que conduzem a conceber o Estado e à política somente como o guardião dos interesses dos indivíduos.

O liberalismo, levantando a acusação de violência contra o Estado e a política, se valeu da concepção iluminista de progresso do século XVIII, pressupondo que o progresso da técnica e da economia estaria acompanhado do progresso da razão e da liberdade. Esta concepção se enfrentou polemicamente contra a contrarrevolução acusando de política, ou seja, violência, todas as pretensões de restauração ou de imposição de um governo que não fosse o parlamentar. Mas sustenta Schmitt, um domínio sobre os homens fundado somente no econômico, aparece como um terrível engano; “com a ajuda dessas definições e construções que finalmente giram ao redor da polaridade de ética e economia, não é possível extirpar o Estado e a política e despolitizar o mundo (...) Essencialmente não belicosa e, justamente baseando-se na ideologia liberal, é só a terminologia (...) O adversário não é chamado mais de inimigo, mas por isso mesmo é apresentado como violador e perturbador da paz, de fora-da-lei e fora da humanidade, e uma guerra efetuada para a manutenção e a ampliação de posições econômicas de poder deve ser transformada, com o recurso da propaganda, na “cruzada” e na última guerra da humanidade. Este é o fruto da polaridade de ética e economia”.

O núcleo da crítica que Schmitt realiza em O Conceito do Político se funda, então, por um lado, na incapacidade que tem o liberalismo de pensar o político devido a sua concepção antropológica, o que conduz, segundo o jurista alemão, a desatender o vínculo necessário entre a proteção e a obediência e a promover a irrupção de poderes intermediários que sem assumir os riscos do político se favorecem com todos os seus benefícios. Por outro lado, a crítica ao liberalismo se dirige a que este atua politicamente, mas de maneira encoberta, quando, qualificando a seus adversários como políticos e violentos, monopoliza o conceito de humanidade. Este monopólio do conceito de humanidade leva, segundo Schmitt, à desqualificação do inimigo, transformando o enfrentamento com ele no último passo para alcançar a tão desejada paz perpétua e utilizando para isso de todos os meios de destruição. Se o outro já não é humano, sua eliminação se faz necessária para a verdadeira convivência, o que conduzirá a uma guerra que, desatendendo dos limites próprios do político, se proporá não já manter o inimigo dentro de seus próprios limites, mas exterminá-lo. 

b) “A questão da soberania é a questão da decisão de um conflito existencial. Há vários métodos de por fim e término pacífico aos litígios (...) mas por muito que se possam solucionar, com boa vontade e mediante homens discretos e justos, diferenças, diversidades de opinião e litígios, um conflito existencial não pode se acabar desse modo. Todo povo politicamente existente decide forçosamente ele próprio e por sua conta e risco as questões de sua existência política. Inclusive a questão de se uma questão é existencial, só pode ser decidida por ele na medida em que exista politicamente”. A questão da soberania ocupar um lugar central na reflexão schmittiana; em Teologia Política, a crítica que Schmitt realiza do liberalismo estará focada na incapacidade que tem a metafísica liberal para pensar a soberania e decidir diante da irrupção de forças sociais que, amparadas sob o Estado de Direito, podem conduzir à guerra civil e à dissolução da comunidade política. O núcleo da crítica de Schmitt ao liberalismo ao redor do conceito de soberania é que o liberalismo, mediante a divisão de competições e o controle recíproco dos diferentes órgãos do Estado, pretende resolver os conflitos dentro do marco do sistema normativo e, frente ao caso de exceção (quando o conflito se dá em termos existenciais e não se pode resolver apelando a qualquer sistema normativo), se encontra impotente para garantir a continuidade da ordem ou para fundar outra nova.

O que o liberalismo não está em condições de compreender é que todo sistema normativo se apoia não em uma norma, mas em uma decisão. Soberano, diz Schmitt, é quem decide sobre o caso de exceção; do ponto de vista normativo a decisão nasce do nada, isto é, não tem outro fundamento que o de uma subjetividade que se afirma e que decide o que é a ordem, a segurança e o bem em uma comunidade política dada. A decisão tem sentido não pela racionalidade do decidido, mas porque esta decisão é o que permite o funcionamento normal de uma comunidade política. O liberalismo, devido à concepção que tem da lei que, como veremos mais adiante, é a de uma norma geral e racional oposta a toda vontade particular, é incapaz de fazer frente às situações que não podem ser resolvidas dentro do sistema normativo vigente e que precisam de uma fonte de legitimidade que não é normativa, mas política. Schmitt recuperará, oposta a esta concepção liberal da lei, a máxima hobbesiana de que não é a verdade, mas a autoridade, a fonte da lei; o Estado, na figura do soberano, pode suspender o Direito pelo direito que tem a sua própria conservação. Para dizê-lo com outras palavras, frente à irrupção do mal no mundo (sobre esta também é o soberano que decide se existe ou não, ou seja, se está diante de uma situação normal ou uma excepcional) o que mantém a estabilidade de uma comunidade política é essa decisão que possa ou bem reafirmar uma ordem de coisas ou bem gerar outra nova. O liberalismo não pode fazer frente à situação excepcional, pois pretende resolver os conflitos por meio da discussão racional, ignorando que, quando o enfrentamento é político, não há possibilidade de chegar a qualquer acordo, já que a oposição se dá em termos existenciais e não normativos.

Schmitt sustenta que todos os conceitos políticos derivam de conceitos teológicos secularizados; esta afirmação, com a qual começa a terceira parte de Teologia Política, nos permite entender a natureza do conceito de soberania e iluminar a crítica schmittiana à concepção liberal da mesma. Schmitt reconhece que para compreender que forma política uma época toma por evidente há que se perguntar que concepção do mundo, metafísica e teológica, tem essa mesma época, concepção da qual extrai toda sua força. Assim, uma época que pensa Deus como produtor e conservador do mundo, intervindo mediante a formulação de leis gerais, mas operando também milagres, conceberá um soberano que é ao mesmo tempo criador e conservador do Estado, que trabalha normalmente quando a situação é normal e excepcionalmente quando a ameaça de dissolução da comunidade se encontra como possibilidade real. Mas uma sociedade que considera que Deus criou o mundo, mas logo se apartou dele, isto é, que Deus só obrou por um ato geral no princípio dos tempos (deísmo), conduz a fazer desaparecer na forma política o elemento decisionista e personalista que caracteriza o próprio conceito de soberania. É neste ponto que Schmitt encontra a debilidade do liberalismo para fazer frente à situação excepcional; o liberalismo parte de uma metafísica deísta, pelo que não concebe outra lógica que não seja a da legalidade e se opõe a toda intervenção de uma vontade política. O edifício normativo do liberalismo funciona mais como um limite da soberania e da vontade política do que como uma afirmação de algum tipo de ordem, e é esta negação do conceito de soberania e o achatamento de toda decisão sob o pressuposto de que discutindo se pode chegar a um acordo, o que a Schmitt parece insultuoso no liberalismo. Ao não assumir a responsabilidade de decidir sobre a situação excepcional, o liberalismo se encontra impotente perante a irrupção de forças sociais, essencialmente antiliberais que, amparadas sob o sistema normativo burguês, podem conduzir à dissolução da comunidade política.

Estas teologias políticas (teísmo e deísmo) correspondem aos séculos XVII e XVIII, nas quais uma concepção de um Deus transcendente em relação ao mundo coincidia com a crença em um soberano transcendente à ordem normativa. No século XIX, diz nosso autor, a noção de imanência adquire difusão cada vez maior; a tese democrática da identidade de governantes e governados, a identificação de Estado e Direito, provocou nos contrarrevolucionários Donoso Cortés, De Maistre e De Bonald o intento por recuperar o conceito de soberania em sua concepção teísta, já que observavam com cautela que um regime regido apenas pela imanência não é um regime de homens, mas de autômatos. Mas o século XIX, apesar dos pensadores contrarrevolucionários, adquire cada vez mais um caráter imanente onde o princípio de legitimidade democrático substitui o outrora reinante princípio de legitimidade monárquico. O liberalismo se encontra em um ponto intermediário entre estes dois princípios, mas não representa, como veremos no tratamento do Estado burguês de Direito que Schmitt realiza em Teoria da Constituição, nenhum princípio político. Quando seu inimigo político é o Rei, se aliará com a democracia para destrona-lo. Mas uma vez caído o princípio de legitimidade monárquico, a democracia aparecerá como o fundamento último das comunidades políticas e o liberalismo, enquanto se converte em um obstáculo para o livre desenvolvimento das forças democráticas, não pode opor a elas nenhuma forma política. Passemos então a ver o que é que entende Schmitt por democracia e qual é a diferença entre esta e o liberalismo.

c) A distinção entre parlamentarismo e democracia que Schmitt realiza em seu texto de 1923 Sobre o Parlamentarismo permitirá iluminar, principalmente, o primeiro aspecto de sua crítica ao liberalismo que denominamos histórico-espiritual. A crítica ao liberalismo tomará aqui a forma de crítica do parlamentarismo que, se bem acompanhou à democracia em sua luta contra o absolutismo principesco, não necessariamente se encontra vinculado com ela. Segundo Schmitt, uma vez destruído o regime monárquico tradicional, o Parlamento se transformará em uma instituição que já não cumprirá as funções para as quais, dado o princípio no qual está fundado o governo por discussão, estava destinado. Se bem neste texto o núcleo de nossa interpretação está centrado na caducidade histórica do parlamentarismo, Schmitt detectará, para pôr em evidência os pressupostos sobre os quais se assenta o parlamentarismo, a vinculação entre estes e a metafísica liberal, pelo que também aqui desempenha um papel importante a crítica ontológico-política que realiza do liberalismo. Comecemos, pois, pela caracterização que Schmitt realiza do fundamento intelectual do parlamentarismo para passar logo à crítica que realiza do governo por discussão devido a sua caducidade histórica. 

Qual é, então, o fundamento intelectual do parlamentarismo? O princípio da discussão pública, como o intercâmbio de opiniões determinado pelo objetivo de convencer o outro, com argumentos racionais, do verdadeiro e do correto é o pressuposto que torna compreensível o parlamentarismo como forma de governo.

O parlamentarismo encontra na discussão pública, como processo de controvérsias do que resultaria a vontade estatal, seu princípio reitor. O Parlamento seria o lugar onde as partículas de razão dispersas na sociedade se agrupam e se convertem em poder público. A causa dessa crença, diz Schmitt, deve ser buscada na metafísica liberal que pressupõe uma harmonia pré-estabelecida entre os distintos indivíduos a que se chega a partir da livre competição; o correto e o justo surgiria no Parlamento como resultado desta. Dessa busca da verdade por meio da discussão surgem as duas exigências típicas do liberalismo: a publicidade, que originariamente se dirigiu contra os segredos de Estado e com a qual a opinião pública aparecia como o corretivo contra todo abuso de poder, e a separação de poderes que, dirigida polemicamente contra a concentração do poder no monarca absoluto, acreditava encontrar no equilíbrio entre eles o único limite contra a arbitrariedade. Mas o Parlamento só adquire a importância que tem se ele é compreendido como o encarregado de legislar, isto é, de formular leis gerais e obrigatórias para todos, que devido a surgirem como produto da discussão racional, podem se aproximar à verdade e à justiça. Frente à vontade, que o liberalismo pressupõe arbitrária e por isso injusta, se lhe opõe a verdade como fonte da lei. O parlamentarismo se levanta como o único que mediante o equilíbrio entre os poderes pode, através da formulação de leis, opor ao poder puramente fático, a força do direito.

A crítica ao parlamentarismo, e ao liberalismo como fundamento intelectual daquele, pressupõe a distinção entre a democracia, como princípio de legitimidade que substitui à legitimidade dinástica, e o liberalismo. Como assinalávamos antes, para Schmitt o parlamentarismo pode ser a forma política da democracia só quando o Rei ainda não foi destronado. O sistema parlamentar que durante a luta contra a monarquia se apresentava como representante do povo, uma vez vencido o Rei perdeu seu sustento já que, como veremos, as decisões fundamentais são tomadas fora dele. Quanto mais desaparecia o antagonista, isto é, o Rei enquanto representante da unidade política, mais decaía a função representativa do Parlamento enquanto representante do povo em sua homogeneidade. Uma vez caído o Rei, o Parlamento se encontrou diante da tarefa de representar a unidade política frente ao povo, ou seja, frente a seus próprios eleitores. A aliança entre parlamentarismo e democracia só é efetiva quando há outra persona política (o Rei) frente à qual o Parlamento pode lhe fazer oposição como o “verdadeiro” representante do povo.

Vejamos então o que é para Schmitt a democracia e em que se diferencia do liberalismo. A democracia tem como princípio uma série de identificações (Estado e Lei, governantes e governados, dominadores e dominados) nas quais as decisões que se tomam no interior de uma comunidade política só tem valor para os que formam parte dela e onde a lei não representa outra coisa que a vontade do povo. Esta concepção da lei se opõe ao princípio liberal de que a lei deve representar não uma vontade, mas mais precisamente a verdade e a justiça. Enquanto que a democracia parte do pressuposto da homogeneidade do povo que ela contém, como toda igualdade política em um sentido substancial, uma desigualdade com relação àqueles que, por não pertencerem à comunidade, são estrangeiros, o liberalismo pressupõe uma igualdade entre todos os seres humanos que, mais que um conceito político, forma parte da concepção individualista e moral humanitária que este professa. Schmitt se pergunta por qual razão se pressupõe que a melhor forma de representar o povo seja através de um conjunto de pessoas no Parlamento e se não seria possível também, mediante a identificação entre governantes e governados, representar o povo em uma só pessoa. A ditadura, isto é, a eliminação da separação de poderes que propugna o liberalismo, pode ser facilmente a forma política da democracia. 

A caducidade histórica do Parlamento está dada por um lado, então, pelo fato de que uma vez deposto o Rei o Parlamento pretende representar o povo frente ao próprio povo, já que não tem adversário ao qual se opor. Mas a ênfase em Sobre o Parlamentarismo está posta, principalmente, em que o Parlamento se converteu em algo muito distinto do que dizia ser, isto é, que já não é o lugar onde mediante a discussão se produz uma lei racional e justa. O Parlamento se converteu, para Schmitt, no lugar em que as forças sociais obtém seus benefícios mediante a negociação e o intercâmbio de interesses. Contrapondo discussão e negociação, Schmitt assinalará que enquanto o primeiro implica uma busca do justo e do verdadeiro por meio do intercâmbio de opiniões com os demais, a negociação não tem como objetivo encontrar a verdade, mas obter o maior benefício através do cálculo de interesses. A discussão e a publicidade como fundamentos últimos do governo parlamentar só são uma mera fachada, já que as decisões, sustenta Schmitt, se tomam em comissões cada vez mais fechadas que respondem não a uma discussão da qual sairia o equilíbrio, mas a interesses sociais e corporativos que nada tem de racionais e que encontram na representação de seus interesses particulares por parte dos parlamentares, a melhor forma de domar o Estado e gozar das suas vantagens que este brinda sem assumir as responsabilidades políticas. “O Parlamento, diz Schmitt, ficou despojado de seu próprio fundamento espiritual, perdendo por completo sua ratio todo o sistema de liberdade de expressão, reunião e imprensa, debates públicos e imunidades e privilégios parlamentares (...) Se a publicidade e a discussão se converteram, com a própria dinâmica do Parlamento, em uma vazia e fútil formalidade, o Parlamento, tal e como se desenvolveu no século XIX, perdeu seu anterior fundamento e sentido”. A crítica de Schmitt ao parlamentarismo, como forma de governo do liberalismo, está ancorada, então, em que ao se converter em uma formalidade vazia, permite o avanço de forças sociais que, amparadas na lógica do Estado de Direito, utilizam o funcionamento normal do Estado como armas para conquistar posições na luta contra seus adversários políticos internos. O conciliacionismo liberal pressupõe que os conflitos podem ser resolvidos por meio de uma discussão racional, mas frente à radicalidade do enfrentamento político se encontra impotente para frear às forças sociais que podem conduzir à dissolução da comunidade política.

d) Mas é na Teoria da Constituição onde Schmitt rastreará de maneira precisa de qual maneira os princípios liberais convivem nos Estados modernos junto com os princípios políticos, de maneira tal de funcionar como limite para o exercício da soberania e da vontade política. O liberalismo, que em sua luta contra o poder do monarca utilizou como único critério legítimo de constituição somente aquele que considera que o objeto desta é garantir a liberdade dos cidadãos frente ao poder do Estado, concebeu à Constituição como norma fundamental e soberana destinada a garantir os direitos dos indivíduos. Frente a esta absolutização da norma levada a cabo pelos liberais, Schmitt dirá que nenhuma norma se estabelece por si mesma e que a Constituição, entendida em um sentido positivo, não é mais que a decisão de uma comunidade que, através do titular do poder constituinte, seja o Rei ou o povo, configura a unidade política. Schmitt dará conta, então, do caráter dual das constituições modernas e da convivência nelas de dois elementos distintos: o elemento liberal e o elemento político: “A tendência do Estado burguês de Direito vai no sentido de deslocar o político, limitar em uma série de normatizações todas as manifestações da vida do Estado e transformar toda a atividade do Estado em competições, limitadas em princípio, rigorosamente circunscritas. Daí resulta já que o característico do Estado burguês de Direito só pode integrar uma parte da total constituição do Estado, enquanto que a outra parte contém a decisão positiva sobre a forma da existência política. As constituições dos atuais Estados burgueses estão, pois, compostas de dois elementos: de um lado, os princípios do Estado de Direito para a proteção da liberdade burguesa frente ao Estado; de outro, o elemento político do qual há que se deduzir a forma de governo propriamente dita”. 

Vejamos em primeiro lugar quais são os elementos típicos do Estado burguês de Direito para coloca-los em perspectiva com os elementos políticos que, seguindo Schmitt, possui toda comunidade que se possa chamar soberana. Resultado da metafísica liberal, os elementos próprios do Estado burguês de Direito funcionam sempre como um limite ao poder do Estado, pelo que, em situações excepcionais (quando o Estado se encontra em perigo) se apresentam como um obstáculo para sua conservação.

Os elementos do Estado burguês de Direito se correspondem com o ideal de Constituição do individualismo burguês e contém uma decisão no sentido da liberdade burguesa. Nesta forma peculiar de Estado, este aparece como servidor controlado da sociedade, isto é, se encontra submetido a, e identificado com, um sistema fechado de normas jurídicas que impõe limites a seu agir. Tem como objetivo não a glória do Estado, mas a proteção dos cidadãos contra o abuso do poder político. Deste objetivo Schmitt deduz dois princípios: o princípio de distribuição e o princípio de organização. O primeiro está representado nos direitos fundamentais e postula que a liberdade do indivíduo (anterior ao Estado) é ilimitada em princípio e que a faculdade do Estado para intervir nos assuntos daqueles é limitada em princípio; a função do Estado é garantir estes direitos absolutos (liberdade de religião, direito à propriedade privada, liberdade de opinião e de expressão, liberdade de indústria e de comércio, etc.) e proteger esta esfera de liberdade do indivíduo isolado frente a toda possível invasão política ou individual. O princípio de organização está representado na divisão de poderes; está destinado a assegurar a moderação de todos os órgãos do Estado e a produzir o equilíbrio; para evitar todo abuso ou concentração de poder em uma vontade unitária distingue os poderes estatais e encerra o poder do Estado em um sistema de normas, estabelecido para garantir as liberdades burguesas. 

O Estado burguês de Direito é também, essencialmente, um Estado legalista, isto é, um Estado que se baseia no império da lei, entendendo por ela um conceito específico que possibilite distingui-la de um mandato ou vontade quaisquer; “a burguesia, em luta por sua liberdade e seu Estado de Direito, adotou aqui um conceito de Lei que se apoia em uma velha tradição europeia e que passou ,desde a filosofia grega, à idade moderna, através da escolástica: Lei não é vontade de um ou de muitos homens, mas uma coisa geral-racional; não voluntas, mas ratio. Este conceito de lei, como norma jurídica reta de caráter geral, busca deslocar o conceito político de lei como vontade e mandato, deixando sem resposta a pergunta pela soberania e colocando em seu lugar a soberania da lei.

Estes elementos do Estado burguês de Direito, próprios da metafísica liberal, permitirão a Schmitt desenvolver sua crítica ao liberalismo. O liberalismo, afirma Schmitt, parte da ideia de que o exercício de todo poder estatal pode ser compreendido a partir das leis, com o que não cabe nenhuma conduta política de qualquer sujeito; mas são precisamente as decisões fundamentais as que escapam a todo controle normativo. Frente à situação excepcional, as normatizações típicas do Estado burguês de Direito atuam como limite para o exercício da soberania e para a conservação da comunidade política, já que, dirigidas à proteção dos direitos dos indivíduos, são sempre um limite ao exercício do poder estatal.

Schmitt sustenta que o liberalismo é incapaz de resolver os conflitos em momentos de ruptura da ordem normativa: pretendendo sempre adiar a decisão, o liberalismo obedece a uma racionalidade que não pode pensar senão que o equilíbrio é o que naturalmente deve surgir das relações sociais, pelo que quando a situação não obedece ao cálculo racionalista e à previsão que brinda o sistema normativo, o liberalismo não pode se enfrentar à irrupção do mal no mundo (apareça este sob a forma de crise extrema, revolução, ditadura injusta, etc.). Nos momentos de exceção aparece claramente a dualidade dos modernos Estados: privilegiando o elemento político, o poder constituinte se apresenta ali como anterior a toda norma e suspende a ordem jurídica para conservar a unidade política. Os dois princípios que Schmitt deduz do Estado burguês de Direito lhe permitem afirmar que, pensados para a proteção dos indivíduos (já que partem da liberdade ilimitada deles frente ao Estado e da necessidade de controlar o poder dividindo-o), não implicam qualquer forma política positiva, mas, sempre, um controle das atribuições do Estado pelo que quando a crise não pode ser resolvida pelo sistema normativo, são para a comunidade política um obstáculo para sua conservação. 

e) A crítica ao liberalismo em Legalidade e Legitimidade tomará a forma de crítica do positivismo jurídico. O positivismo jurídico considera que o conceito de legalidade é o único critério de legitimidade da ordem. Vejamos, então, qual é para Schmitt o perigo de pensar que a ordem se apoia, não em uma decisão, mas em um sistema fechado de normas jurídicas. Para chegar a isso é necessário acompanhar o jurista alemão na distinção que realiza entre quatro formas de Estado; três dessas formas (Estado governativo, Estado administrativo, Estado jurisdicional) concebem que por trás do funcionamento normal do Estado de Direito se encontra uma vontade dotada de existência real e inspirada no Direito como princípio de legitimidade; a quarta (o Estado legislativo parlamentário) se constitui como um sistema fechado de legalidade no qual é lei tudo que se cria segundo um procedimento formal com o concurso da representação popular. O Estado legislativo parlamentar (assim chama aqui Schmitt ao Estado de Direito próprio do liberalismo, que como vimos anteriormente foi nomeado como Estado burguês de Direito ou governo por discussão) proclama o império da lei, ou melhor dito, afirma que já não há poder soberano; está dominado por normas impessoais e pré-determinadas, contém uma separação entre a formulação da lei e sua aplicação, que evitaria toda dominação e mandato pessoal e funda sua obediência na legalidade geral de todo o sistema estatal. Esta forma de Estado está amparada em uma fé metafísica na figura do legislador que, como víamos antes na análise de Schmitt sobre o parlamentarismo, graças à discussão e o intercâmbio de opiniões produz leis que estão vinculadas estreitamente com a razão e a justiça. Sem esta fé o Estado legislativo parlamentar seria um absurdo E é por este lado que Schmitt criticará esta forma de Estado, já que uma vez que se abandona a crença na sabedoria do legislador ou na razoabilidade e justiça da lei surgida mediante a deliberação, o conceito de legalidade cai em um formalismo sem sentido.

Rastreando o desaparecimento do direito à resistência que pressupõe a capacidade de distinguir entre uma ordem justa e outra injusta, Schmitt apresenta os perigos que contém a pretensão que tem esta forma de Estado de que só mediante uma recontagem aritmética dos votos da maioria, isto é, sem nenhuma afirmação positiva no que concerne os valores, se podem estabelecer governos legítimos. O problema se apresenta quanto a homogeneidade do povo não existe, isto é, quando os poderes sociais indiretos apresentam a uma sociedade desgarrada e dividida em interesses contrapostos, que não dispostos a assumir as responsabilidades do político, podem inclusive habilitar a clausurar o próprio Estado legislativo parlamentar e conduzir a uma guerra civil ou a um governo que, com o monopólio da legalidade e com a força que as leis tem neste sistema, destrua a sociedade. A neutralidade perante os valores, própria da racionalidade liberal, e a pretensão de fundar uma ordem social em um conjunto de normas e procedimentos, pelo temor a que a vontade de uma autoridade seja a fonte da lei, conduz a que o partido que haja chegado por meios legais ao poder possa mediante o monopólio da legalidade, utilizar todos os meios legais e produzir todos os que necessite para anular qualquer tipo de oposição.

O positivismo jurídico, herdeiro do liberalismo, reduzindo o critério de legitimidade de um regime não a uma decisão sobre o justo ou o injusto, mas à legalidade do sistema normativo e à eficácia, se encontra impotente perante a irrupção de forças sociais (Schmitt certamente está pensando no comunismo, mas o raciocínio também é válido para o nazismo) que chegando por meios legais ao poder acabem destruindo toda ordem, utilizando a legalidade como arma de luta em uma guerra civil. 

Eu gostaria de concluir o ponto II com uma citação, um pouco extensa, de um texto que não pertence a este período, onde Schmitt dá conta da maneira pela qual as contradições próprias da metafísica liberal levaram o liberalismo a se encontrar impotente frente a forças anti-individualistas produzidas no amparo do Estado, o qual haviam concebido como um sistema fechado de normas. 

“O pensamento de Hobbes penetra e atua eficazmente no Estado legal positivista do século XIX, mas só se realiza de forma que poderíamos chamar de apócrifa. Os antigos adversários, os poderes ‘indiretos’ da Igreja e das organizações de interesses, voltam a entrar em cena transfigurados, como partidos políticos, sindicatos, associações sociais; em uma palavra, como ‘poderes da sociedade’. Através do Parlamento conseguiram se apoderar da legislação e do Estado legal e até puderam chegar a acreditar que haviam conseguido enganchar o Leviatã a sua carruagem. A coisa não foi difícil para eles graças a um sistema constitucional, cujo esquema consistia em um catálogo das liberdades individuais. A pretensa esfera privada livre, garantida dessa forma, foi subtraída ao Estado e entregue aos poderes ‘livres’ da sociedade. (...) O dualismo Estado e Sociedade se converteu em um pluralismo social, propício ao triunfo fácil dos poderes indiretos. ‘Indireto’ vale tanto como dizer ‘poder que se exercita sem risco próprio e – usando a exata frase de Jakob Burckhardt – por meio de poderes temporais que foram maltratados e humilhados’. É próprio de um poder indireto perturbar a plena coincidência entre mandato estatal e perigo político, poder e responsabilidade, proteção e obediência e amparado na irresponsabilidade de um governo indireto, mas não menos intenso, obter todas as vantagens sem assumir os perigos do poder político.

Este método tipicamente indireto lhes permitiu empregar sua ação em algo distinto da política, a saber: na religião, na cultura, na economia e nos assuntos particulares, sem deixar por isso de aproveitar para si todas as vantagens do Estado (...) As instituições e os conceitos do liberalismo sobre os quais o Estado legal positivista se assentava, se converteram em armas e posições fortes de poderes genuinamente antiliberais.

O pluralismo dos partidos levou a sua perfeição o método de destruição do Estado próprio do Estado liberal. O Leviatã, como mito do Estado ‘máquina magna’, se quebra por obra da distinção entre Estado e liberdade individual, em uma época na qual as organizações dessa liberdade individual não eram senão facas com as quais as forças anti-individualistas esquartejavam o Leviatã e repartiam entre si sua carne. Foi assim que o Deus mortal morreu”.

Reflexões Finais

Em Romantismo Político diz Schmitt que “o critério (político) consiste em se existe ou não a capacidade de diferenciar o justo e o injusto. Esta capacidade é o princípio de toda energia política, tanto da revolucionária, que se apoia no direito natural ou humano, como da conservadora, que se apoia no direito histórico”. O liberalismo se apresenta tanto a Donoso como a Schmitt como aquele movimento incapaz de decidir o que é a ordem justa, a segurança, e o bem em uma sociedade desestruturada pela crise. Este é o nervo de sua crítica: adiando a decisão que ponha fim à crise e pretendendo resolver o conflito político irredutível através da discussão ou da ordem normativa existente, o liberalismo abre a porta para as tendências que, negando a política e a autoridade como fundamentos da ordem, conduzem à dissolução da sociedade e à guerra civil.

A crítica de Donoso ao liberalismo e ao socialismo se fundamenta em uma visão cristológica da história, que o conduz a pensar que só um regime político que tire seus princípios do catolicismo poderá articular liberdade com autoridade, para assim estabelecer a ordem. Se bem Schmitt também considera que o catolicismo romano é, enquanto princípio formativo da ordem, superior ao liberalismo e ao socialismo (Schmitt, 1993), já que entende muito bem o que significa o conceito de representação, ou seja, a necessidade de que exista um representante pessoal que possa ligar os princípios transcendentes com a pura imanência, não podemos dizer que, para o jurista alemão, a ordem somente possa estar fundada nos princípios católicos, mas que este se apoia na decisão existencial que uma comunidade adota para configurar sua unidade política. E é que para Schmitt, diferentemente de Donoso que crê, como víamos anteriormente, que o perigo para as sociedades europeias está intrinsecamente ligado à divinização do homem própria da modernidade política, na modernidade coexistem duas tendências: a racionalidade despolitizante e neutralizadora, e a racionalidade do político. Inauguradas ambas na concepção do Estado hobbesiano como o Deus mortal que, por um lado, põe fim às guerras civis religiosas estabelecendo um espaço pacificado no qual a convivência está garantida graças à decisão do soberano e que, pelo outro, funciona como uma máquina somente encarregada de garantir a proteção em troca da obediência, se irão desenvolvendo ao longo da modernidade, uma sempre diante da esperança de conseguir a tão desejada paz perpétua e produzindo por isso o deslocamento do conflito político para outra esfera, a outra querendo assumir as responsabilidades do político e o caráter necessariamente conflitivo da natureza humana, delimitando a esfera do conflito sob linhas de amizade e inimizade. A soberania ocupará em Schmitt o lugar que para Donoso representam os princípios católicos; como o assinalou Jorge Dotti, “esse elemento de personalidade concreta (...) significa que a forma se faz presente na pessoa do soberano, daquele que pronuncia a decisão excepcional perante a crise também excepcional. Não há ordem política, e não há convivência informada politicamente sem a ação fundacional de quem, diante da inanidade da normatividade normal, responde criativamente à irrupção do mal no mundo (...). Quando se derrubem a previsibilidade do cálculo racionalista-utilitário (...) e as harmonias espontâneas, então uma pessoa – o ator político – condensa em si a função de representar o ponto da cruz ou da convergência da transcendência (constituindo-se assim a autoridade, que é ao mesmo tempo poder jurídico-político) e a imanência (o mundo, desestruturado pela crise e à espera do novo ordenamento). A soberania é cristológica, pois é forma encarnada”. 

Mas com isto não queremos dizer que a reflexão donosiana seja pré-moderna; ao contrário, segundo a interpretação de Schmitt e a nossa própria, a luta de Donoso contra o socialismo e contra o liberalismo pressupõe, necessariamente, a perda do monopólio, por parte da Igreja Católica, da interpretação da palavra divina. Donoso é moderno porque sua luta é uma luta pela interpretação do sentido da história contra a divinização do homem levada a cabo pelas “escolas racionalistas”.

As diversas neutralizações e despolitizações próprias da modernidade conduzem, tanto para Donoso como para Schmitt, a uma monopolização do humano por parte de um dos contendentes que, em nome de princípios humanitários e pacifistas, podem chegar a produzir terrores inumanos contra o inimigo, tanto interno como externo que, considerado como inimigo absoluto e, portanto, hors l’humanité, não tem já nenhum direito. Frente a elas se levantam o jurista alemão e o Marquês de Valdegamas, o primeiro com seu intento de restituição do político, ligado ao conceito de soberania, o segundo com seu apelo aos princípios católicos.

O labor levado a cabo por Donoso Cortés e Carl Schmitt permite, a partir da evidenciação dos pressupostos metafísicos do liberalismo, elaborar uma crítica à modernidade política que não atenda só a uma racionalidade instrumental, mas que também se pergunte pelos valores que ela própria, às vezes sem sabe-lo professa.