por Sergio Fritz Roa
(1998)
Dedicado a Frithjof Schuon
Um Pai da Igreja dizia com razão que Deus se fez homem, para que o homem se tornasse Deus [1]. Por sua vez, a Bíblia ensina que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus.
O espírito que reside em ambas as expressões é, por certo, o mesmo, ainda que alguém creia outra coisa. Pois, não revelam as citadas frases que a essência do homem é antes de tudo divina? Do que se infere que o homem é Deus em potência; o que revela necessariamente a existência de uma substância original, primigênia, partícipe da Divindade.
Mas, de imediato surge a pergunta que interroga acerca da perfeição divina e da imperfeição humana. Ou seja, como pode conceber-se que o homem, tendo sido criado à "imagem de Deus", seja imperfeito, e portanto um acidente submetido a outros acidentes? Como é possível que a humanidade sofra os limites – especialmente, espaço-temporais – que, no entanto, Deus não conhece?
Um contrassenso parece habitar entre os textos cristãos mencionados e o que vemos e vivemos diariamente. E, no entanto, um estudo mais profundo nos permitirá apreender a solução de tal paradigma.
De fato, não há dúvida que o Adam Kadmon da tradição cabalista, ou seja, o homem primigênio, foi uma imagem divina. Dotado de eternidade, liberdade e saúde, no entanto, conhecia uma proibição, cuja desobediência finalmente acarretaria sua própria ruína. A queda do homem primordial foi o efeito de uma sanção à vaidade, ao humanismo [2] que há séculos já é culto. Pois, não foi acaso o desejo de Adão de venerar-se a si mesmo – situação que o mito da Maçã quer expressar -, o que implicou em desconsiderar Deus?
O primeiro mandamento, sabemos, é venerar a Deus acima de todas as coisas. Isso implica em submeter-se à vontade divina; deixar de lado o ego. Assim, Adão descumpriu a norma das normas na teologia cristã, qual é amar – e portanto, obedecer – a Deus acima de todas as coisas. Eis aí a origem da que sem dúvida é a maior sanção aplicada à humanidade: ser desterrada do plano edênico.
O homem, ao desobedecer ao Pai, negou sua natureza e origem divinas, revelando que lhe é mais sedutora a serpente e a mulher do que a voz e o mandato de seu criador.
Mas que o homem tenha sido no princípio uma Imago Dei, não implica que sempre o continuasse sendo, o que, como indicamos, mudou ominosamente a partir do pecado de Adão, que corresponde "historicamente" à segunda queda. Enquanto a primeira – a do anjo rebelde – em um sentido ontológico representa a queda do macrocosmo; a de Adão, em contrapartida, simboliza a do microcosmo.
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O homem moderno é um ser que pouco ou nada se parece com o Adam Kadmon. E, no entanto, Deus em sua infinita bondade salvou a alma do homem, através da Encarnação. Pois em Cristo ou Deus-feito-homem há um caminho que é antes de tudo humildade; isto é, um convite a deixar de lado a vontade luciferina ou prometeica, que só acarreta ruínas, para o cosmos e o homem. Não foi essa vontade prometeica que levou a humanidade à Revolução Francesa, ao nascimento dos totalitarismos, à bomba atômica, à destruição dos ecossistemas em nome da “civilização”? O culto ao homem-enquanto-homem é, como toda veneração de caráter não divina, um passo direto ao vazio. O sustento da vida é Deus. E assim tem pleno significado a crença muçulmana segundo a qual “Não há mais Deus que Deus”; ou seja, que só Ele é Deus.
Onipotência e Onipossibilidade ao mesmo tempo.
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Se hoje o homem vagueia desolado atrás das coisas, fugindo de sua alma divina [3], é porque renega sua natureza intrínseca. Conduzido por “instintos” ou paixões, sua razão muitas vezes é a ferramenta de sua própria queda. Pois se esta não vai unida à fé, é fácil participar de uma falsa filosofia, aquela que distancia o ser humano dos problemas essenciais assim como de sua realeza divina, para nos empurrar em direção a um labirinto onde o Minotauro se chama razão. Nova Babilônia, onde importa mais a letra do que o espírito.
A figura divina no homem parece ter se desvanecido com o passar do tempo, restando em seu lugar uma forma espectral e um coração que não sabe orar. Os laços macro-microcósmicos cada dia se tornam mais distantes. A escada de Jacó, aquela que o Mutus Liber nos mostra como ponte que comunica os seres dos dois mundos – celestial e terrenal -, e por onde o homem sobe ao céu, e os anjos descem, já não está erguida. Os modernos ao adotar uma falsa ciência, pois uma ciência sem consciência não é tal (já que carece de fundamento teológico), se afastaram da natureza e do que esta – através do criado – quer comunicar.
Por isso, os Sufis praticam o Dhikr (recordação de Deus), os Judeus o Kidhr, os Budistas e Hindus a meditação, e os Cristãos rezam. Recordar é antes de tudo atualizar a Imago Dei em nós. É nos tornarmos novamente participantes do mistério do Onipresente. Integrar-nos ao Omniabarcante.
Instância magna, que, durante um instante “usurpado” à eternidade, não conhecerá de palavras. Pois onde subsiste a Paz, Deus habita.
Notas
[1] Frithjof Schuon, em Nas pegadas da religião perene (José J. de Olañeta, editor. Barcelona, 1982, p.13), traduz esta frase para uma linguagem vedantina, dizendo: “o Real tornou-se ilusório para que o ilusório se tornasse real; Âtmâ tornou-se Mâyâ para que Mâyâ realizasse Âtmâ”. Outra análise do mesmo autor referente a este assunto encontra-se no capítulo “Esquema da mensagem cristã” do livro Raízes da condição humana (José J. de Olañeta, editor. Barcelona, 2002, p.93).
[2] Quando utilizamos este termo — humanismo — fazemos uma concessão à linguagem ordinária. Em um sentido superior, no entanto, humanismo é o mesmo que dizer natureza divina, pois esta emana de Deus. O “propriamente humano” na verdade não existe; é apenas a adoção de características e impulsos inferiores, de natureza bestial ou diretamente luciferina. Dizer homem implica, em boa lógica, reconhecer de imediato seu vínculo divino, pois sem Deus ele não seria nada. Veja a nota em “Consequências que derivam do mistério da subjetividade”, capítulo do maravilhoso texto Do divino ao humano de Frithjof Schuon (José J. de Olañeta, editor. Barcelona, 2000). Digamos de passagem que, em estudos futuros, voltaremos ao tema “humanista”, pois aqui reside uma visão das coisas antagônica ao Espírito e, por isso mesmo, atentatória ao próprio homem!
[3] É precisamente a este fenômeno — elogiado por aqueles que, contraditoriamente, se autodenominam “humanistas” — que chamamos de “exteriorização imprudente” ou “esvaziamento nas coisas”. Pois, embora seja próprio do humano — enquanto participante da natureza divina — querer expressar e comunicar, não é menos verdade que isso não pode tornar-se uma rotina de tal forma que perca seu fundamento e sentido originais. Chama atenção aquela avidez de muitos em querer aparecer na televisão (um caso extremo e patético é o dos reality shows, onde a intimidade é entregue aos telespectadores em troca de fama), participar de shows massivos, usar roupas provocativas, etc. Tudo isso é exemplo do abuso da expressão. A exteriorização sem limites leva à perversão. Em um sentido profundo, perder-se nas coisas é dar algo de si a elas, o que constitui um perigo para o homem que as ciências atuais ignoram. Por isso, os povos antigos acreditavam que portar consigo uma parte do corpo de um animal implicava possuir algo dele, o que os levava a escolher para a caça o melhor da sua espécie.