28/12/2024

Carlos Xavier Blanco - O Suicídio da Europa: O Declínio do Campo, a Ascensão da Pornografia e do Homem de Massa

 por Carlos Xavier Blanco

(2012)

 


 

Introdução


Neste ensaio, meditaremos sobre o Ocidente. Faremos isso principalmente com a orientação de Oswald Spengler, mas sem esquecer Nietzsche, Marx, Freud, Fromm e outros grandes pensadores. O filósofo germânico, genial autor de A Decadência do Ocidente, previu, entre o estrondo dos tambores de guerra que assolavam a Europa no início do século XX, a morte de nossa civilização e a necessidade de libertar, por meio de uma guerra expansiva, as últimas possibilidades de uma civilização velha, prestes a se tornar cadáver e tempo reduzia a fósseis de formas caducas. O pluralismo cultural de Spengler pressupõe o fim das abstrações vazias: Humanidade, assim como Progresso ou Liberdade, Igualdade ou Fraternidade, são esses novos deuses frios e abstratos, que não exigem mais do que uma devoção morna e que são tão caducos quanto a própria Modernidade que os criou. Os ideais da Ilustração e da Revolução conspiraram com a coisificação do homem no industrialismo e prepararam o cenário de uma Europa de fábricas, de “mão de obra” e de cidades globais absolutamente artificiais, desconectadas progressivamente da cultura que as precedeu.

Mas «a humanidade» não tem um fim, uma ideia, um plano; assim como não tem fim nem plano a espécie das borboletas ou das orquídeas. «Humanidade» é um conceito zoológico ou uma palavra vã. Que desapareça esse fantasma do círculo de problemas referentes à forma histórica, e veremos surgir com surpreendente abundância as verdadeiras formas.


“Humanidade”: ideia abstrata


Não existe a Humanidade. Somente temos diante dos olhos uma pluralidade de culturas e civilizações. Algumas são jovens, outras velhas. Cada cultura é um organismo vivente. A civilização é um cadáver que progressivamente abandona sua vitalidade e fossiliza suas formas. Não há um fim (Ziel) na Humanidade, e por isso os ideais pelos quais se lutou na Revolução Francesa, como em tantas outras revoluções que se seguiram, foram conjunturais e específicos de uma determinada fase da cultura Ocidental, prestes a entrar na fase de civilização cadavérica. Liberdade, Igualdade e Fraternidade proclamadas, não mais em nome do cidadão (francês) mas do Homem, são agora, no ocaso do Ocidente, meras abstrações que serviram apenas ao propósito de colonizar os bárbaros, os não europeus. Já que não há colônias, e os bárbaros se meteram em casa, a Europa aparece decrépita, com sua “Humanidade” vazia de significado. Tudo ia muito bem quando “Humanidade” conotava “branco”, “cristão”, “europeu”. Mas a História seguiu seu curso, e agora a abstração virou contra a cultura que a gerou.

Há aqui uma riqueza insondável, profundidade e mobilidade do vivente, que até agora permaneceu oculta sob uma frase vazia, um esquema seco, ou uns «ideais» pessoais. Em vez da monótona imagem de uma história universal em linha reta, que só se mantém porque fechamos os olhos diante do número avassalador dos fatos, vejo o fenômeno de múltiplas culturas poderosas, que florescem com vigor cósmico no seio de uma terra mãe, à qual cada uma delas está unida por todo o curso de sua existência.

A história dos organismos chamados culturas oferece o espetáculo teatral (Schauspiel) de seu nascimento, florescimento e declínio, que chega até a morte. Cada cultura goza de uma força cósmica primigênia (urweltlicher Kraft), que pode se expandir ou se estreitar em seu curso, assim como acontece com os indivíduos. E se os traços de cada espécie devem ser entendidos em relação ao habitat em que ela vive, o mesmo devemos dizer das culturas. Estas nascem de uma Terra de onde recebem um esboço primitivo, mesmo que depois sucedam migrações, deslocamentos, incrustações, etc. A Terra Mãe concede um rosto à cultura que nasce. As culturas são anteriores e posteriores ao Estado, e muitas vezes devem sobreviver a ele. Os Estados são produtos efêmeros deste jardim variegado que se dá em chamar “História Universal”, e além disso sua constituição é a mais heterogênea. Desde a polis grega, ao Império Oriental, desde o reino feudal ou o Sacro Império Romano-Germânico. Desde a monarquia absoluta barroca da Europa até o “Estado-nação” do século XIX… As repúblicas ou os sultanatos, a monarquia parlamentar ou a autocracia… Os Estados são produto da mais efêmera conjuntura, resultado da contingência. Mesmo os Impérios chinês e romano, arquétipos de quase eternidade política, não constituem uma unidade essencial. O tempo não admite a ilusão de uma estabilidade espacial. A pseudomorfose, isto é, a permanência espacial de formas civilizadas rígidas, fala por si mesma do poder do Tempo. O Tempo nega a ilusão de que os romanos da época de Santo Agostinho sejam os mesmos que os da época de Augusto. Muitas pseudomorfoses foram conservadas quando pouco depois caiu Roma, mas somente essas.

Mais duradoura é a comarca (Landschaft). Os povos se alimentam de sua região materna, embora depois percorra toda sorte de superfícies.

"Cada uma dessas culturas imprime à sua matéria, que é o homem, sua forma própria; cada uma tem sua própria ideia, suas próprias paixões, sua própria vida, seu querer, seu sentir, seu morrer próprios. Há aqui cores, luzes, movimentos, que nenhuma contemplação intelectual ainda descobriu. Há culturas, povos, idiomas, verdades, deuses, paisagens, que são jovens e florescentes; outros que já são velhos e decadentes; assim como há carvalhos, talos, ramos, folhas, flores, que são velhos e outros que são jovens. Mas não há «humanidade» velha. Cada cultura possui suas próprias possibilidades de expressão, que germinam, amadurecem, murcham e nunca revivem".  [LDO, I, 51]


O homem faz sua própria história, como dizia Marx? Aqui, em Spengler, vemos mais que o homem é a matéria passiva moldada pela cultura ou civilização na qual nasce e vive. Aqui, o homem é matéria (Stoff), e não agente da História. Está submetido aos ciclos e ritmos periódicos da História, que Spengler concebe como uma espécie de Supranatureza. A própria Natureza é História. A intuição da mesma deve ser praticada ao modo de Goethe, não ao modo de Newton. A História obriga o homem a agir de dentro de uma cultura. É na cultura onde há uma necessidade de índole morfológica que imprime os cursos de possíveis desenvolvimentos. Cada cultura se abre a determinadas possibilidades de expressão [Jede Kultur hat ihre neuen Möglichkeiten des Ausdrucks]. Quando estas possibilidades se estreitam, falamos de morte, por analogia com o fim da vida de um indivíduo, embora o que ocorre na realidade seja um não retorno. A cultura, como o organismo, não pode continuar "circulando", regulando seus ciclos. Ocorre uma paralisia, ela murcha e não há retorno [verwelken und nie wiederkehren].

Toda cultura é uma pluralidade de facetas, de expressões:

"Existem muitas plásticas muito diferentes, muitas pinturas, muitas matemáticas, muitas físicas; cada uma delas é, em sua profunda essência, totalmente distinta das demais; cada uma tem sua duração limitada; cada uma está encerrada em si mesma, como cada espécie vegetal tem suas próprias flores e seus próprios frutos, seu tipo de crescimento e de decadência. Essas culturas, seres vivos de ordem superior, crescem em uma sublime ausência de qualquer fim e propósito, como flores no campo. Pertencem, como plantas e animais, à natureza viva de Goethe, não à natureza morta de Newton. Eu vejo na história universal a imagem de uma eterna formação e deformação, de um maravilhoso surgimento e perecimento de formas orgânicas. O historiador profissional, por outro lado, concebe a história à maneira de uma tênia que, incansavelmente, vai acrescentando época após época". [LDO, I, 51-52]


Foi Vico, no século XVIII, quem soube ver na História um progresso e um retorno, um curso de avanço e um retorno. Com as nuvens de guerra mundial sobre as cabeças dos ocidentais, e com o advento de anos duros de guerra expansiva por parte das potências (a guerra expansiva era a última possibilidade de atuação para os alemães, segundo Spengler), devemos compreender o destino da Europa: estamos na fase de declínio (Untergang, Niedergang). As explicações deterministas, economicistas, etc., próprias do materialismo histórico, por exemplo, e de outras correntes, como o positivismo, não servem para prever o ciclo completo em que vivemos nós e nossos ancestrais. Tampouco são válidas para reconhecer a inevitável queda em que nos encontramos. Corsi e ricorsi, nas palavras de Vico: a história de uma cultura implica uma formação e uma deformação [Gestaltung und Umgestaltung].

A europeidade não é eterna. Os valores do ocidental se diluem. São muitos os detonantes: contração de sua expansão colonial, a multiculturalidade de suas sociedades, a primazia da grande urbe desarraigada frente à "região" (Landschaft). Mas esses detonantes se subordinam em todo caso à necessidade morfológica. Culturas jovens e fortes que agora se afundam na escuridão, esperam pacientemente o turno para tomar o protagonismo e fazer cair o velho edifício fossilizado, o da Europa cadavérica. Spengler sabia que outras culturas ocupariam o centro.

"A decadência do Ocidente, considerada assim, significa nada menos que o problema da civilização. Estamos diante de uma das questões fundamentais de toda história. O que é "civilização", concebida como sequência lógica, como plenitude e termo de uma "cultura"? Porque cada "cultura" tem sua própria "civilização". Pela primeira vez, essas duas palavras são tomadas aqui — que até agora designavam uma vaga distinção ética de índole pessoal — em um sentido periódico, como expressões de uma sucessão orgânica estrita e necessária. A "civilização" é o destino inevitável de toda "cultura". Subimos ao topo de onde se tornam solúveis os últimos e mais difíceis problemas da morfologia histórica. "Civilização" é o estado extremo e mais artificioso que pode atingir uma espécie superior de homens. É um fim; sucede à ação criadora como o já criado, o já feito, à vida como a morte, à evolução como o enrijecimento, ao campo e à infância das almas — que se manifesta, por exemplo, no dórico e no gótico — como a decrepitude espiritual e a urbe mundial petrificada e petrificante. É um final irrevogável, ao qual se chega sempre de novo, com íntima necessidade" (LDO, I, 64-65)

Da cultura, segue-se necessariamente – com necessidade lógica e orgânica – a civilização. A civilização que corresponde a cada cultura, como estado ao qual esta deve chegar, é única. Da mesma forma que não existe o Homem (abstrato), também não há espaço para a Civilização (abstrata). A cada cultura está reservada sua civilização. Este é o destino que lhe está reservado [Die Zivilisation ist das unausweichliche Schicksal einer Kultur] de forma inevitável. E deste caráter relativo a cada cultura deve resultar um resultado absoluto: sempre há decadência em um devir, e sempre há uma hora do fim. A Europa outonal vai ficar exposta a fortes ventos da história. As folhas cobrirão seus monumentos, junto com a desídia e a falta de educação. Os homens cultos (no sentido spengleriano) passam por loucos ou infelizes, diante da alegre balbúrdia do civilizado, isto é, daquele que se prostra diante dessa moleza coletiva que representa para todos nós o consumo, as finanças, o multiculturalismo e a bolsa, as novidades tecnológicas e os brutais espetáculos de massa. O homem de cultura se retira da cena, que já não reconhece como sua, pois a Europa já não é sua casa. Ele se extingue, se volatiliza. Mas o homem da massa civilizada desfruta do consumo de um ócio e de uns serviços que disfarçam mal a prostituição, a escravidão e o crime. Tudo isso passa a ser "divertido". Este destino (Schicksal) não é percebido pelo homem massa, e menos ainda pode ser captado nos primórdios. O poder do destino pode ser vislumbrado com esta filosofia na qual a própria Natureza é um capítulo da História, mas uma História na qual não conta o capricho de sequências de fatos, o acaso, a contingência. Trata-se de uma filosofia da história onde há uma necessidade muito alta e poderosa (Notwendigkeit).

"A transição da "cultura" para a "civilização" ocorre, na Antiguidade, por volta do século IV; no Ocidente, por volta do século XIX. A partir desses momentos, as grandes decisões espirituais não são mais tomadas "no mundo inteiro", como acontecia nos tempos do movimento órfico e da Reforma, em que não havia uma única aldeia que não tivesse sua importância. Agora, essas decisões são tomadas em três ou quatro grandes urbes que absorveram todo o suco da história, e frente às quais o território restante da cultura fica rebaixado ao rango de "província"; que, por sua vez, não tem outra missão senão alimentar as grandes urbes com seus restos de humanidade superior.

Cidade mundial e província! Esses dois conceitos fundamentais de toda civilização colocam agora para a história um novo problema de forma. Estamos vivendo isso justamente nós, homens de hoje, sem tê-lo compreendido, nem mesmo de longe, em toda sua extensão. Em vez de um mundo, temos uma cidade, um ponto, onde se resume a vida de extensos países, que enquanto isso murcham. Em vez de um povo cheio de formas, crescendo com a própria terra, temos um novo nômade, um parasita, o habitante da grande urbe, homem puramente apegado aos fatos, homem sem tradição, que se apresenta em massas informes e flutuantes; homem sem religião, inteligente, improdutivo, imbuído de uma profunda aversão à vida agrícola — e sua forma superior, a nobreza rural —, homem que representa um passo gigantesco em direção ao inorgânico, ao fim". [LDO, I, 66]


A dialética entre o campo e a cidade


A dialética entre "campo" (Landschaft) e "urbe" (Welstadt) é magistralmente apontada por Oswald Spengler. Contrariamente às tendências de muitos marxistas e outros filósofos da história devotos do Progresso, o "campo" ou "a comarca" representa a "humanidade superior" [den Resten ihres höheren Menschentums]. Justamente porque já não é o seu mundo, o habitante cosmopolita das grandes urbes não entende essa superioridade e a despreza por ignorância. A vida na aldeia e a paisagem rural que circunda as cidades representam em sua mente um passado sobrevivente que espera morrer em prol de uma cidade industrial e cosmopolita. O cosmopolita não suporta o campo nem os seus valores, exceto em termos de colonização urbana: como celeiro, como parque de lazer, como depósito de lixo, como terreno para novas residências. O capitalismo tardio não pode existir sem a completa subordinação da "comarca" (aldeia, província, região) aos centros capitais de decisão. É assim materialmente, pois ao campo já não se reconhece autonomia, sendo a periferia colonizada a partir de um centro, mas também acontece o mesmo em um plano simbólico. O campo, o aldeão, a própria sobrevivência de formas de vida nobres, tradicionais, baseadas em uma economia originária, não podem significar outra coisa senão um insulto para o homem sem raízes da grande cidade. Este se sente agredido no mais profundo de seu subconsciente. A vida saudável e nobre do campo, sua própria organicidade, diz ao "inteligente" cidadão cosmopolita: "você não é nada, não tem raízes". Por baixo da guerra entre Estados nacionais ou impérios, lateja uma guerra feroz e silenciosa, a guerra entre o campo e a cidade cosmopolita. Na Idade Média e até a industrialização incipiente do final do século XVII, a cidade ainda era um complemento da fazenda e da aldeia: mercado, administração, festividade, rito. Era um espaço público necessário para dar riqueza ao isolado camponês. Mas a indústria e, hoje, a criação de grandes urbes dilapidadoras, não fizeram outra coisa senão inclinar a balança contra a periferia rural. Ora domesticando a produção agrícola, subordinando-a às necessidades da urbe, ora encurralando-a, a cidade domina e mata o campo. O encurralamento ocorre quando essa colonização não é rentável e se preferem os celeiros de países mais distantes. O fato é que há uma distância cada vez maior entre a mentalidade cosmopolita urbana e os valores tradicionais dos aldeões que se escondem a poucos quilômetros do centro das capitais. Há mais proximidade e solidariedade, mais cosmovisão compartilhada entre um madrilenho cosmopolita e um nova-iorquino de similar instrução e classe social, do que entre este urbanita e o aldeão mais próximo à sua capital. A distância espacial já não significa nada. Algumas décadas atrás, isso ainda não era assim: as cidades de países pouco desenvolvidos eram permeáveis: as correntes migratórias que nutriam seus bairros e suas classes trabalhadoras provinham do próprio cinturão rural das mesmas. Os emigrantes não vinham de tão longe. A ficção dos "Estados-nações" pôde se sustentar desde o século XIX graças a esse processo. Assim como afluíam os vegetais das hortas do campo circundante, afluíam também as mãos fortes do aldeão forçado ou disposto a se proletarizar. Houve uma fase efêmera na história de toda grande urbe em que sua seiva se reforçava e se sanava com essa emigração próxima. À medida que a própria aldeia se urbaniza, à medida que se transforma em zona residencial ou cinturão de indústrias, à medida que a paisagem se degrada e se escraviza, engolida pelas crescentes necessidades de mais-valia, essa seiva já não se renova e é preciso buscá-la progressivamente mais longe.

O homem cosmopolita abomina a vida agrícola. O operário fabril do mundo opulento, habitante do subúrbio, não da cidade mundial, ainda mantinha um pé no campo, de onde surgira há pouco. Mas o homem civilizado, o decadente, já rompeu suas raízes da terra de onde veio. Carece de linhagem e de vínculos terráqueos. Por isso o decadente tende, coletivamente e em média, para a Morte. A civilização, ao se sentir velha, sonha com ela. O cansaço vital da vida civilizada exige imperiosamente o suicídio, a eutanásia, o aborto e o infanticídio. A morte da Europa, e em seu conjunto, de todo o Ocidente, manifesta-se, em primeiro lugar e fundamentalmente, em uma morte demográfica. O profundo significado de que os casais não queiram ter filhos reside nesta obscura intuição do destino. A todas as civilizações do passado, em seu estreitamento de possibilidades, em seu cansaço, aconteceu o mesmo processo: após uma educação frouxa, onde a vontade se enfraquece e a lascívia se desvincula da reprodução e goza as cotas de espetáculo e de modo de vida (no sexo ocorre o mesmo que na arte decadente: adquire autonomia, "arte pela arte"). A morte da Europa é morte demográfica, mas também é desejo de destruição, suicídio e sadomasoquismo. Sigmund Freud falou do impulso destrutivo e aniquilador do homem, o Tânatos, como essa tendência regressiva ao inorgânico.


Civilização pornográfica


O mundo ocidental de hoje é um mundo pornográfico. Esta é a essência última e radical de um modo de produção capitalista decadente, já em sua fase monopolista e imperial. Deste modo de produção deriva uma coisificação da espécie humana, de um grau elevadíssimo em comparação com a coisificação alcançada em momentos históricos prévios, p.e., o Império Romano ou a Colonização do mundo no século XIX.

Trata-se da coisificação do ser humano, sua conversão em objeto de consumo, uso, manipulação, entregue ao consumo como meio e nunca fim em si mesmo. Assentou-se em nosso mundo o Imperativo Categórico às avessas, um mandato antikantiano que diria assim: "aja de tal modo que uses a humanidade, tanto em tua pessoa como na dos outros, sempre como um meio e nunca um fim em si mesmo".

O melhor testemunho cultural do processo de coisificação temos no campo da pornografia. Em muitos sentidos, o uso, o consumo e a comercialização do obsceno se estenderam, afloraram, saindo à luz, colonizando amplos campos da vida humana, além do estritamente erótico e genital.

Todos conhecem o tropel de imagens horrendas que saíram da prisão iraquiana de Abu-Graib. Os presos, despidos, se amontoam em forma de simples corpos, massa humana despojada de dignidade perante militares americanos uniformizados. Naquelas fotos, a nudez humana significava estritamente o despojamento de poder e dignidade perante quem tinha "a faca e o queijo na mão", frase feita cujos conteúdos freudianos não precisam ser explicitados mais. A cópula simulada perante as câmeras, uma cópula massiva e forçada, o rastejar pelo chão, presos por uma coleira e corrente, como cães e bestas, o disparo simulado daquela soldado americana, com os dedos apontados para os iraquianos indefesos, convertidos estes em objeto de prazer vinculado à humilhação e à inevitabilidade da derrota. Todas essas imagens devem ser objeto de análise e explicação exaustiva. Assim como a fotografia dos cães ferozes diante de pelotões de humanos indefesos e anulados em sua própria humanidade, e demais exibições do que é o Poder perante corpos humanos apagados em sua humanidade essencial, mais que alienados, coisificados até o ponto de serem reduzidos a carne humana simplesmente.

Por que aparecem estas imagens de Abu-Graib? São apenas um exemplo de "abuso dos direitos humanos"? Foi um grave abuso dos direitos humanos daquelas pessoas, evidentemente, mais um a ser acrescentado aos milhares de exemplos que a história nos oferece. A história de uma humanidade na qual os primeiros impérios e cidades-estado na fase "civilizada" se dedicavam a caçar prisioneiros e domesticá-los, como antes se fazia com outras espécies animais. A história da guerra e do Estado é a história desse animal de rapina, o ser humano, em que se violavam sistematicamente as mulheres dos vencidos, se castrava e mutilava os derrotados, reduzindo-os à condição de escravos, ou seja, gado e mercadoria. Nem o cristianismo nem qualquer outro evangelho de amor reduziu ou extinguiu essa constante humana que é o "abuso" da humanidade, do outro humano, especialmente. E é que o homem é um animal de rapina.

A escravidão, longe de ser abolida, retorna com força no nosso século XXI. Milhões de mulheres e crianças são objeto de comercialização sexual em um mundo não apenas consumista nesse sentido, mas sim voraz. O Reino da Espanha é, dentro da União Europeia, um dos maiores mercados de mercadoria humana. Por outro lado, a degradação do trabalho assalariado em escala mundial faz com que as condições de existência de milhões de pessoas se aproximem das de escravidão estrita.

A sociedade de consumo que implica esse capitalismo imperialista e monopolista acentua as tendências sado-masoquistas, como já demonstraram as investigações da Escola de Frankfurt, e especialmente Erich Fromm. No sadomasoquismo, se bloqueia e até se destrói toda capacidade de amor, e as pulsões humanas se direcionam para a destruição do objeto, para o regozijo e a fruição na aniquilação e sofrimento do outro e do próprio eu.

Um estudo superficial da iconografia pornográfica, e especialmente a do sadomasoquismo, ilustra de maneira magnífica o catálogo de perversões (no sentido técnico da psicologia e psiquiatria, não no sentido moralista) e fantasias sexuais de nossa sociedade de consumo altamente alienada. Trata-se de uma sociedade altamente voyeurista, na qual as pulsões mais destrutivas e possessivas ficam bloqueadas pela pressão do ambiente social e pela interiorização das normas morais vigentes em um dado momento. Mas ao ficarem bloqueadas essas pulsões, e ao existirem poucos canais de sublimação em um modo de produção tão consumista, tão voraz, ocorre toda uma produção fantástica que não é de forma alguma desprezível na hora de compreender o mundo, o capitalismo e a desumanização.

Na iconografia pornográfica vigente, materializada na realidade em horrores como os de Abu-Graib e em outras partes, são tomados numerosos materiais estéticos e cênicos da História. A substituição da sedução pela conquista, o amor pelo estupro, a entrega livre do corpo pelo acorrentamento e a restrição, são elementos da fantasia sadomasoquista que os pornógrafos tomaram da história. A escravidão no mundo clássico, com a extrema animalização e coisificação que para os humanos supõe toda uma encenação que hoje, em outra época distinta, é anelada: ser vendidos, comprados, acorrentados, submetidos a todo tipo de capricho e arbitrariedade por um amo absoluto. Dizemos bem "anelada", porque na mente do ser humano o passado nunca se esquece, permanece escondido de forma inconsciente, em um Inconsciente Coletivo, e é fonte inesgotável de imagens e fantasias, ainda que o sujeito que as produz jamais tenha estudado História como disciplina acadêmica nem frequentado livros dessa matéria. Outros períodos e contextos, como os tormentos da Inquisição, já na idade moderna, ou as misérias do tráfico de negros, em datas ainda mais recentes, são parte do material inconsciente que serve aos propósitos da fantasia da dominação absoluta do corpo humano (o próprio e o alheio), e sua conversão em coisa e instrumento ao serviço do uso e desfrute de um possuidor.

A princípio, o capitalismo industrial clássico nasceu muito à margem desses fenômenos sadomasoquistas, como meio de produção de mais-valia através da produção de mercadorias. A fria produção e acumulação de mais-valia estava por trás de uma superestrutura moral de signo ascético e puritano (a "ética protestante" de Max Weber), marcando por décadas o tom da classe burguesa, entregue "religiosamente" à profissão do dinheiro. A moral proletária tentou, naquelas épocas vitorianas, manter-se fiel às suas origens rurais (todo proletário leva em seu inconsciente e em seu passado um camponês dentro), bastante mais desinibidos em moral sexual, especialmente se comparados com o burguês vitoriano das cidades, mas é sabido que a burguesia fez tudo o que pôde para "colonizar" seus novos escravos, os proletários. Lutou para colonizá-los moralmente, fazendo verdadeiras campanhas missionárias para conduzi-los à monogamia, ao casamento consagrado, à abstinência sexual e alcoólica.

Hoje, com o advento de uma sociedade opulenta no Ocidente, baseada no consumo geral das massas, pelo menos no chamado "Primeiro Mundo", à custa da inanição e subumanização das três quartas partes da espécie, a antiga moral do "libertino", ou seja, a antimoral relativista, niilista, hedonista ou, mais frequentemente, utilitária, se espalha entre amplas camadas da população, justamente entre trabalhadores semicultos ou pouco formados (em comparação com seus predecessores do "livrepensamento") e que acessam serviços e bens disponíveis unicamente através de altos salários, tempo de lazer mercantilizado, relaxamento na moral conjugal, atomização das famílias e maior permissividade social em relação à solteirice.

Se não fosse pelas condições econômicas que fomentam, essas mudanças sociais apontadas acima não existiriam, e dizemos isso sem pretender incorrer em economicismo algum. Mais ainda, com Foucault, nos perguntamos por que o sexo, longe de ser reprimido sob o capitalismo industrial tardio e opulento (como pretendia Marcuse), resulta pelo contrário "inflado", e isso sem prejuízo da introdução compensatória de outros mecanismos repressivos, de limitações, de coerções, mas dentro de uma estimulação comercial do pansexualismo. Desde a publicidade até a arte, passando pelo lazer noturno e a planificação do turismo, tudo resulta em sexo mercantilizado de uma forma ou de outra.

Frente à verdadeira des-repressão, desinibição, própria de uma sociedade de produtores livremente associados e organizados sob o princípio da ajuda mútua, a sociedade individualista e egocêntrica do capitalismo leva à introdução de canais de comercialização do corpo humano. Exércitos de milhões de seres racionais são convertidos em mercadoria no mais estrito sentido do termo. Um objeto com valor de uso e valor de troca, um objeto do qual poder obter mais-valia posto "a trabalhar". A prostituição é exploração dos corpos humanos, e sua alta conexão com a escravidão remonta às origens da própria civilização, do estado. Da mesma forma que recordamos em outros trabalhos que o Patriarcado é anterior ao Capitalismo, mas que se reorganiza sob este, o mesmo podemos afirmar de outras formas de submissão, dominação e controle de corpos humanos, infantis ou adultos, femininos ou masculinos. A prostituição já aparece onde há uma sociedade baseada na troca, no comércio, ainda que essa sociedade não seja ainda capitalista em sentido estrito. E por isso, no final do neolítico e com o auge de chefias militaristas e protoestatais, essa subordinação e escravização de fêmeas já tem seu lugar. Mas o específico no Capitalismo, e ainda mais no Capitalismo tardio (imperialista e monopolista), é que a comercialização e exploração de corpos humanos alcança todas as modalidades possíveis, deixando de ser um fenômeno entre marginal e complementar ao casamento. A prostituição sob o Capitalismo ocidental deixa de ser excrescência do Sistema e se converte na essência e raiz do mesmo.

Aqui, apenas tentei fazer alguns apontamentos sobre o que poderiam ser conexões importantes entre capitalismo, sexo, pornografia e escravismo nesta fase civilizada do capitalismo tardio (imperialista e monopolista) altamente coisificador. É evidente que há uma conexão íntima entre a moral dos escravos, a rebelião dos escravos em matéria de moral, como diria Nietzsche, e a inflação pornográfica que chega a todos os aspectos da vida decadente da civilização europeia.


Morfologia da História e Decadência


Spengler afirma que uma filosofia à altura do nosso tempo é uma filosofia que possa colocar diante dos olhos uma morfologia da história. Os grandes da filosofia moderna haviam ignorado ou desprezado esta ciência: Kant, Schopenhauer. É preciso deixar de ser moderno. A física-matemática não é a categoria central em torno do ponto de gravidade em que orbita a totalidade da filosofia. É necessário assumir a nova ciência da história, sua morfologia específica. E nessa ciência é preciso acostumar a mente ao método comparativo, entendendo por comparação a busca de correspondências, de homologias. Os períodos podem corresponder-se analogicamente: nosso período (iniciado há um século, quando Spengler publicou A Decadência do Ocidente) corresponde perfeitamente à Antiguidade decadente. O fato de que o último romano não sabia que seu mundo, já barbarizado, orientalizado e cristianizado, que sua civilização chegava ao fim, é muito significativo. Este último romano vivia alegremente seus dias finais como quem acredita que são eternos, diz Spengler. Nós, ao contrário, diferimos em um aspecto crucial: já somos historicistas, ao contrário de Kant e Schopenhauer. Somos mais conscientes de que nossa civilização chega ao fim, está morrendo. Contamos com a vantagem de ter estudado as origens da Grécia, de Roma e de outros povos. Sabemos, porque temos uma Arqueologia, uma Filologia, uma História, sabemos alguns detalhes que revelam seu nascimento de entre uma massa obscura de povos pré-históricos. Conhecemos sobretudo os lampejos culturais de alguns povos que se formam a si mesmos. Esse aparecer na História universal como marcos imprescindíveis na trajetória das massas humanas indica a posse de uma espécie de força, um vigor orientado para si mesmos e para seus vizinhos. É vigor e intuição da própria vontade: essa seiva que percorre um povo se torna Cultura. Um povo constrói sua Cultura na plenitude de suas forças, no anseio de buscar um destino. Mas quando essas possibilidades já foram percorridas, quando o vigor se gastou em múltiplas realizações, chega secretamente –como uma ladra– a Decadência: as formas geradas se engessam, tornam-se rígidos moldes e máscaras aos quais deverão se ater as novas expressões de uma vida coletiva cada vez mais senil. A Cultura decadente e fossilizada chama-se Civilização. A Civilização pode ser entendida como a paisagem de ruínas e cadáveres de uma cultura morta, paisagem que obstrui o desenvolvimento de uma nova cultura, primeiro balbuciante e depois vigorosa.


Nascimento da Europa como Cultura Faustiana


A chamada cultura faustiana apareceu na Europa por volta do ano 1000. Desde Covadonga, nas montanhas asturianas, e desde Poitiers em terra dos francos, a espada freou o islamismo, a civilização magiana, que havia incendiado os povos da pseudomorfose antiga. Bizantinos, sírios, egípcios, persas… povos dos mais heterogêneos, cada um portador de um rico passado civilizado, languideciam sob moldes tardo-romanos e helenísticos que já nada diziam, carentes de valor a não ser como espartilho de suas mais antigas civilizações. Antes que os árabes saíssem de seu deserto, eles já viviam sob a caverna magiana. O Islã chegou a eles como o fósforo chega à pólvora espalhada pelo chão. Também o sul da Espanha era parte essencial dessa romanidade tardia, uma sociedade urbanizada e cheia de fadigas, uma região de latifúndios que amassava escravos e capital, o complemento imperialista de uma urbe predadora de terras e mãos. Os muçulmanos chegaram com o ímpeto dos povos buscadores de butim e insuflados pelo fanatismo próprio do recém-convertido: foram os berberes os principais invasores, subordinados a uma elite árabe que os necessitava, mas que os odiava racialmente ao máximo. Assim que os berberes cumpriram sua função invasora (no fundo, uma nova invasão bárbara, desta vez procedente do sul) e fizeram desaparecer o civilizado reino visigodo.

Todo o processo em que a Europa se despojou de suas pseudomorfoses tardo-romanas, do cristianismo magiana, dos bárbaros ocasionais (muçulmanos pelo sul e oriente, vikings pelo norte, magiares pelo centro) foi o processo do despertar faustiano. Saudosos do perdido Toledo visigodo, os reis asturianos na realidade iniciaram a nova Europa, a Europa faustiana. As pequenas construções dos reis asturianos pressagiam –dentro de sua radical originalidade e do entrecruzamento de influências– as magnas obras do românico, do gótico, do barroco. O reino dos asturianos, sucessores de Pelágio, assim como o dos francos, com Carlos Magno, constituem exemplos magníficos de como um povo e uns heróis forjam sem saber o que estavam forjando. Nem renascia Toledo em Covadonga, nem Roma em Aachen. O que acontecia era o nascimento de uma alma totalmente nova. As almas em estado balbuciante têm de nascer em periferias ásperas, desertos, florestas. Mas depois descem às planícies férteis, assolam cidades, expandem fronteiras. A espada e alguns corações bravos deteram uma invasão bárbara –os berberes– em sua vanguarda, mas que trazia a pseudomorfose magiana na retaguarda. A Córdoba califal, no que não era oriental (mesquitas, haréns, eunucos) era romano tardio. Plebos urbanos e altamente alienados, espírito comercial e asceta (andam de mãos dadas), refinamento, poesia, orgia. Ao norte, em contrapartida, nascia a Europa. Os reis asturianos subjugaram ou ganharam tribos bascas para assim ligar-se aos francos e expedir assim o Caminho de Santiago. Um corredor de cultura nova e fresca que levava ao Ocidente a sua parte mais ocidental, com a devida redundância.

O contraste entre a civilização magiana e a cultura faustiana, já na altura do ano 1000, estará perfeitamente marcado pelo rio Douro. Todo o setentrião, tomando este acidente geográfico como referência, é o âmbito do germanismo. Como dizia don Claudio Sánchez-Albornoz, a sociedade cristã que se forjou durante a chamada “Reconquista” era uma sociedade mais livre, embora carecesse dos luxos e refinamentos de Al-Andalus. As pessoas lutavam para sobreviver e povoar, e povoavam para voltar a lutar. A terra, o dinamismo demográfico, o anseio de expandir fronteiras, tudo isso as movia. Em contrapartida, os islamitas recorriam a mercenários e escravos, e faziam de suas cidades espaços “civilizados” para o harém, o mercado de corpos humanos, rebanhos de eunucos e prazer de pederastas.

A cultura faustiana era jovem na Idade Média. Sua altura –e não seu alargamento, como diria Carl Jung– contemplamos no gótico das grandes catedrais. Um alargamento prematuro foram as cruzadas (incluindo a Reconquista espanhola). Mas a Europa, não a raiz antiga (Hélade), mas a Europa próxima animicamente, elevou-se nessas agulhas que captavam energia divina. As agulhas góticas parecem querer desfazer as abóbadas da cultura magiana. Não se trata de submissão, de se encolher sob a cúpula na qual o deus encerra o homem (a chamada alma máagiana). Agora é preciso perfurar o teto e buscar o céu. Da catedral gótica aos telescópios renascentistas, e destes à cosmologia físico-matemática atual, há apenas passos contínuos de uma mesma alma que se esforça por deslocar as fronteiras do “mundo” mais além, com sede insaciável.


Chega a Modernidade: entra a Decadência. O Homem Massa.


Mas a Modernidade tem nos trazido de volta velhos fantasmas. Com o auge do capitalismo, aquele espírito comercial que nasceu na Itália, aquela cultura de lojistas, de mercadores, a alma faustiana reconcentrou seus esforços em uma infinitude não tanto cósmica, mas de acumulação de capital. O capitalismo que nas cidades romanas ou islâmicas era uma simples excrecência do poder tributário, a acumulação dos comerciantes e proprietários de terras, tornou-se um modo de vida, um modo de produção. Quando ocorreu uma transição do capitalismo comercial para o capitalismo produtivo, momento em que o dono do capital é também o agente organizador de grandes oficinas de manufatura, a comunidade rural europeia já estava suficientemente atomizada. Os restos do feudalismo não serviram para se arrogar um novo papel jurídico efetivo de "protetor dos pobres", embora esse papel de resistência e defesa das comunidades rurais tenha sido assumido por certas Leis dos Pobres, seguros do antigo regime contra a depredação capitalista (K. Polanyi). Era absolutamente necessário aniquilar essas defesas paternalistas e esses resíduos feudais para alcançar o que Karl Marx chamou de Acumulação Primitiva.

As cidades europeias cresceram, a hipertrofia dos bairros operários transformou a cultura: chegou o momento de dar lugar à civilização. Este passo significou a irrupção das massas.

Por que esta ciência social? Por que esta filosofia da história? A resposta reside na massa. O homem-massa necessita de explicações para entender um fenômeno que consiste nele mesmo. Ele mesmo como fato bruto e radical. Não é possível alcançar a distinção e o reconhecimento. Há uma igualdade demasiado evidente e esta não consiste nos privilégios, nos preceitos jurídicos, na realização do socialismo. É a igualdade do vulgo desclassificado e perdido, alheio a toda luta encaminhada a conquistar a hegemonia. Esse vulgo constitui uma rede massiva que abarca toda a sociedade no Ocidente desde os tempos do pós-guerra mundial e vive principalmente no chamado mundo opulento. Opulência, pelo menos, que durou até hoje e que bem poderá ter seus dias contados.

A massa que outrora encheu os espaços públicos e rugia com reivindicações ora econômicas, ora jurídicas, é uma massa que tem desaparecido, apesar do florescimento efêmero dos "indignados" e de outras primaveras utópicas. A massa hoje é claramente solitária e sua participação no todo é de signo claramente místico e mágico. Realiza-se pela graça dos meios de comunicação em massa, que impedem o contato e contágio incômodos, que isolam profilaticamente do contato e dos miasmas que procedem dos outros. É preciso sintonizar magicamente com os outros, mas também mantê-los à distância devida. O ideal casto de uma comunhão de almas, mas não de corpos, realiza-se por meio das possibilidades tecnológicas dos satélites de TV e da internet.

O homem massa já não pede nada, exceto um reconhecimento, nem que seja em sua condição de escravo. Nada lisonjeava tanto certos escravos antigos quanto ser reconhecidos como tais por seu amo. A massa busca um amo, e quando carece dele torna-se rugente e feroz: busca um Führer e até o inventa, mas a massa é em si mesma espírito obediente e, sem líderes nem canais midiáticos, é um corpo inerte.

É evidente que há uma conexão entre o homem-massa das grandes cidades europeias e o declínio desta civilização. Em uma escala gigantesca, as massas desenraizadas da cidade aspiram a um sustento público garantido sob ameaça de motins e caos. Mas sua violência já não tem "letra": o Manifesto Comunista ou qualquer outro texto (nem catecismo, nem panfleto) não guia sua ação. Em ocasiões, esses surtos violentos não pretendem derrubar a ordem social para substituí-la por outra nova. Entre eles não há um Lênin nem uma vanguarda do proletariado: não pode haver. Os surtos violentos do homem massa anseiam por castigo, reforço da própria ordem que viola, blindagem das autocracias. Parecem emanados dessa necessidade masoquista em que é preciso se fazer notar para ser esmagado intermitentemente. Paris e suas revoltas dos bairros marginais, os distúrbios recentes de Londres. Todo esse universo escuro da Europa multiétnica está sendo muito pobremente analisado. Entre um racismo pedestre e popular, uma xenofobia espontânea, e o jacobinismo da santa madre economia que dita "que as causas residem na pobreza e na marginalização", encontram-se muitas outras possibilidades explicativas. Como Spengler não é um filósofo oficial em nenhuma parte, e antes é um maldito entre os bem-pensantes, não serviu de inspirador de análises que apontem nossa profunda decadência como Ocidentais. Se um estrangeiro muito distante, um extraterrestre, quisesse obter uma rápida imagem do que é ser europeu, não encontraria nas reuniões de euroburocratas engravatados, nem nos seletos espectadores de uma ópera. Pelo contrário, o "europeu" deve agora ser parte de outro quadro: as massas vociferantes de um estádio de futebol, com seus rostos pintados como os selvagens, assim como os saqueadores da City no verão de 2011.