24/04/2023

Aleksandr Dugin - Heartland Distribuído: Rumo a uma Geopolítica Multipolar

 por Aleksandr Dugin

(2019)


Hoje devemos começar a discutir um problema geopolítico que, em minha opinião, é central para a construção de um mundo multipolar. Quem conhece geopolítica, sabe que uma das principais leis ou conceitos de geopolítica é a noção de Heartland. Todas as escolas clássicas de geopolítica - incluindo os modelos de Mackinder, Spykman, Haushofer, Brzezinski, etc. - reconhecem um profundo dualismo entre o Heartland - o Continente, a Civilização da Terra - e a Civilização do Mar, encarnada hoje no mundo anglo-saxão, antes de tudo os EUA e sua política marítima. A Civilização do Mar, ou Potência Marítima, tenta cercar Heartland - o Continente, Eurásia - a partir do mar e controlar seus territórios costeiros. A Potência Marítima esforça-se para impedir o desenvolvimento do Heartland e, assim, realizar seu domínio em escala global. Como disse Mackinder, "quem controla a Europa Oriental, controla o Heartland, e quem controla o Heartland, controla o mundo". Esta ideia foi posteriormente desenvolvida por Spykman: "Aquele que controla a Rimland (a zona costeira da Europa até a China e o Sudeste Asiático), controla o Heartland, e aquele que controla o Heartland, controla o mundo".

A luta para dominar o Heartland - pela Potência Marítima de fora, ou no próprio Heartland de dentro - é a principal fórmula da história geopolítica, a própria essência da geopolítica. A geopolítica é a batalha pelo Heartland. Todas as escolas de geopolítica são fundadas e procedem a partir deste modelo.

No mundo bipolar da Guerra Fria, o Heartland era representado pelo campo oriental, antes de tudo pela URSS, enquanto a Potência Marítima era o campo ocidental (Europa Ocidental, os países leais ao Ocidente no Oriente Médio, etc.). O Heartland, diante da URSS, perdeu esta guerra no início da década de 1990, que marcou o início do momento unipolar. A derrota do Heartland na Grande Guerra dos Continentes iniciou o momento unipolar, uma arquitetura unipolar na qual a civilização do Mar e a Potência Marítima alcançaram o domínio total. Fukuyama proclamou assim o Fim da História. A Potência Marítima governava o Heartland externamente, como por meio da Quinta Coluna à frente do Estado russo, como foi o caso na década de 1990. O Heartland foi bloqueado. Desde que Putin chegou ao poder, a Rússia começou novamente a trilhar o caminho da soberania, e a OTAN continuou a bloquear a Rússia. Nos anos 90, a batalha contra o Heartland foi vencida pela Potência Marítima, e o Heartland foi "retirado do sistema". Assim começou o momento unipolar: a vitória global da Potência Marítima.

Hoje falamos frequentemente de um mundo multipolar e de como a Rússia, apesar de suas terríveis perdas, preservou sua identidade, voltou a si mesma, retornou a si mesma, retornou na história, e sempre se espremeu um pouco sob o domínio total da Quinta Coluna dentro da própria Rússia. Ao mesmo tempo, a dominação unipolar da Potência Marítima recuou um pouco, já que a Rússia obteve certos ganhos. É óbvio que Fukuyama declarou o Fim da História e a vitória global do liberalismo prematuramente. Estávamos de fato próximos a isso, e podemos dizer que vivemos no mundo unipolar, mas este mundo unipolar não podia ser eternizado, não podia se afirmar, e assim se tornou apenas um momento, um episódio.

Assim como surge o mundo multipolar, também surge uma contradição. Se levarmos em consideração apenas uma Potência Marítima e um Heartland, então quando se trata de falar de um mundo multipolar, a Rússia não pode ser o único Heartland. A Rússia não pode alcançar um mundo multipolar por si só. No mínimo, a multipolaridade envolve quatro ou cinco dos pólos mais importantes do mundo. A Rússia poderia ser o centro deste mundo multipolar ou apenas um de seus polos. Mas a Rússia não pode ser o único Heartland.

Ao longo de numerosas discussões, conferências, discursos, palestras e artigos, cheguei à conclusão de que já é hora de introduzir a noção de um Heartland rateado, ou "Heartland distribuído". Para este fim, acho importante examinar atentamente a geopolítica alemã dos anos 20-30, que proclamou a Alemanha como sendo o Heartland europeu. De interesse para nós não é tanto a própria Alemanha, mas a própria possibilidade de considerar um Heartland adicional.

Naturalmente, existe o Heartland russo, o Heartland eurasiático, mas ele não pode se afirmar sozinho como Potência Terrestre. Como se segue, é necessário olhar atentamente para um Heartland europeu, um polo europeu: por exemplo, uma aliança franco-germânica, ou o eixo Paris-Berlim-Moscou. A Europa Continental pode ser vista como um Heartland que poderia e deveria ser amigável com o Heartland russo, ao mesmo tempo em que é um fenômeno independente.

Um Heartland chinês é uma questão totalmente diferente. Afinal de contas, a China é Rimland, uma zona costeira. Se reconhecermos a China como portadora do status de Heartland, então estaremos reconhecendo a China como um espaço estratégico independente. Se qualificamos a China como Heartland, então estamos enfatizando o aspecto conservador da China - a China como Potência Terrestre. Mas se a China se declara como Heartland contra a Rússia, assim como a Alemanha de Hitler se declarou como o coração da Eurásia contra a Rússia soviética, então o conflito surgirá imediatamente.

Se a Rússia mantiver o status de polo independente, então esta "Heartland distribuída" adquire um significado completamente diferente. Então é possível considerar tais Heartlands como um Heartland russo, como em todos os mapas geopolíticos tradicionais como o "pivô geográfico da história", e um Heartland europeu. Também chegamos a considerar um Heartland chinês, e isto significa que consideramos a China como um Estado tradicional, conservador, independente e soberano como é hoje - e só se tornará mais no futuro. No mínimo, é importante reconciliar o Heartland chinês com o Heartland russo, e em parte até mesmo o Heartland europeu. Mas mesmo isto é insuficiente para a construção de um mundo multipolar. Temos que considerar necessariamente um Heartland islâmico (cobrindo os espaços históricos de pelo menos 3-4 impérios, que se estendem da Turquia ao Paquistão). O conceito de um Heartland distribuído pode ser expandido para a Índia, e projetado também para a América Ibérica e África.

A seguir, deve haver um Heartland norte-americano no sistema multipolar. Estamos acostumados demais a pensar em termos de geopolítica clássica que o mundo norte-americano e anglo-saxão só pode ser Potência Marítima. Em um mundo multipolar, a América não poderá desempenhar este papel, seu alcance marítimo global será naturalmente reduzido, mudando assim a própria natureza da América. Como se segue, deve surgir um Heartland norte-americano que, em um sistema multipolar, não deve ser visto exclusivamente como em oposição a outros Heartlands. O voto em Trump representou os contornos desta Heartland estadunidense.

Se começarmos a conceber o Heartland como um tipo de cultura distribuída associada ao reforço da identidade conservadora, então "Make America Great Again" é a tese de um Heartland norte-americano. Deixe de ser uma Potência Marítima, e vocês serão grandes novamente. Como uma Potência Marítima, você será miserável, os Deploráveis, mas vocês serão grandes novamente quando se tornarem um Heartland norte-americano.

O Heartland Distribuído é o imperativo do novo modelo geopolítico, da geopolítica multipolar. Acho que este conceito merece uma cogitação, reflexão e descrição muito sérias. Deve haver uma série de conferências, ou mesmo um volume inteiro dedicado a esta questão inevitável. A eficácia deste conceito de Heartland distribuído é, em minha opinião, extremamente importante, na medida em que a construção de um mundo multipolar exige agora roteiros mais claros e precisos.

Na minha opinião, a noção de um Heartland distribuído é o principal e mais importante momento no desenvolvimento e materialização da Teoria do Mundo Multipolar.