De quando em quando, irrompe e eleva-se, nos horizontes do espírito, um novo astro de uma claridade tão luminosa que fere os olhos e não lhes consente o sono, toque a rebate de uma anunciação, sinal de uma viragem dos mundos, como sucedeu outrora com os Reis Magos vindos do Oriente. As estrelas ao redor precipitam-se no sei braseiro incandescente, as estátuas dos ídolos estilhaçam-se em cacos de barro, e uma vez mais todas as formas cunhadas fundem-se em mil fornos, para serem vertidas em novos valores.
São assim os tempos encapelados cuja espuma nos cerca por todos os lados: cérebro, sociedade, Estado, Deus, arte, Eros, moral: escombros, fermentação – ressurreição? As imagens esvoaçam incessantemente, os átomos rodopiam sem descanso nas caldeiras em ebulição das grandes cidades. E, contudo, esta tempestade terá de se dissipar, esta torrente escaldante haverá de arrefecer e se moldar à ordem. Sempre a fúria se despedaçou contra pardas ruínas, ou encontrou quem, com mão de ferro, a atrelasse ao seu carro triunfal.
Por quê está nosso tempo tão carregado de forças de destruição e de criação? Por quê traz no seio tamanhas promessas? Matem as febres o que matarem, a chama continuará na mesma a arder, fabricando, em mil retortas, os prodígios do futuro. É o que mostram, a despeito de todos os profetas, uma volta pela rua ou uma vista de olhos pelos jornais.
Foi a guerra que fez dos homens e dos tempos aquilo que são. Nunca uma raça como a nossa descera à arena da Terra para disputar entre si o poder de dominar a época. Porque nunca uma geração transpusera um portal tão sombrio e tão portentoso como foi esta guerra, para ressurgir na luz da vida. Eis o que não podemos negar, ainda que alguns o quisessem: o combate, pai de todas as coisas, é também nosso pai. Foi ele que nos martelou, cinzelou e temperou, para fazer de nós o que somos. E enquanto a roda da vida vibrar em nós, esta guerra será sempre o eixo em torno do qual ela gira. Talhou-nos para o combate, e combatentes seremos enquanto existirmos. Já terminou, é certo; os seus campos de massacre estão abandonados e amaldiçoados como a câmara de tortura ou o monte do patíbulo, mas o seu espírito entrou nos servos da sua gleba, e nunca os libertará do serviço. E se está em nós, está em toda parte, pois, contempladores no sentido mais criador, somos nós que formamos o mundo e não o contrário. Não o ouvis como ruge vindo de milhares de cidades, trovoada que nos rodeia e se encastela ameaçadora, como quando os anéis das batalhas nos cercavam? Não vedes como a sua chama arde nos olhos de cada um? De vez em quando, talvez adormeça, mas se acontece a terra tremer, é ele que jorra a ferver de todos os vulcões em chamas.
Não importa: o combate não só é nosso pai, é também nosso filho. Geramo-lo como ele a nós. Fomos martelados e cinzelados, mas também somos os que brandimos o martelo, manejamos o cinzel, ferreiros e aço faiscante simultaneamente, mártires dos nossos atos, movidos pelos nossos impulsos.
No casulo bem fechado de uma mesma cultura, vivíamos todos juntos, mais próximos do que homens alguma vez o foram, dispersos pelos nossos trabalhos e prazeres, circulando por praças banhadas de claridade e por poços subterrâneos, nos cafés onde nos rodeavam espelhos resplandecentes, as ruas, grinaldas carregadas de luz, os bares cheios de licores de colorido variável, as mesas de conferência e o último grito, a cada hora sua novidade, a cada dia seu problema resolvido, a cada semana sua sensação, no fundo, uma enorme e irresistível insatisfação.
Técnicos e produtivos, atingíamos, com o riso de Ben Akiba[1], o fim da arte, tínhamos resolvido os enigmas do universo, ou acreditávamos estar presentes a chegar lá. Alcançara-se quase o ponto de cristalização, o advento do super-homem estava próximo.
[1] O proverbial sorriso do rabi Akiba alude ao seu otimismo na esperança da reconstrução futura, respondendo ao choro pessimista dos rabis que o acompanhavam diante das ruínas do Templo de Jerusalém destruído, pelos Romanos.