por Aleksandr Dugin
(2017)
Metamorfoses Enganosas da Grande Mãe: O Arquétipo Mishima
O Arquétipo Mishima na cultura japonesa do pós-guerra foi o mais alto exemplo da dialética sutil, na qual a peculiar combinação do liberalismo modernista embutido com uma série de aspectos matriarcais do xintoísmo se tornou nitidamente aparente. Assim, foi construída uma nova cultura japonesa, na qual tudo o que era propriamente japonês, relacionado à autêntica identidade japonesa, foi proibido, pervertido ou substituído. Esta cultura, que deu gerou brilhantes nomes na literatura, cinema, música, etc., foi baseada na rápida degradação do espírito tradicional japonês, na profunda desintegração do Logos celestial, dissipando-se entropicamente em partículas infinitamente pequenas. Era uma cultura em decadência, que fascinou o Ocidente em grande parte por seu exotismo, rapidez e originalidade. Os intelectuais japoneses do pós-guerra, que decidiram "esperar um pouco mais...", tornaram tudo isso ainda mais doloroso e perverso.
Neste sentido, o famoso diretor de cinema japonês Takashi Miike pode ser considerado um exemplo vivo da cultura japonesa moderna, refletindo a estrutura de seu estado atual, alguém que fez muitos filmes de mérito variável, mas em muitos deles conseguiu refletir as principais linhas de força que percorrem o Japão moderno. Um europeísmo cauteloso com sua inclinação para a etnologia e a ecologia de Akira Kurasawa, e até mesmo o trágico paradoxo de Takeshi Kitano, em Miike é superado pelas formas mais extremas de expressão de absurdismo, crueldade e degeneração. A sociedade japonesa de Miike não é apenas uma sociedade extremamente degenerada, é uma sociedade que praticamente não existe, que se tornou seu próprio simulacro, uma ilustração do pós-modernismo japonês. O Ocidente penetrou no próprio núcleo da cultura japonesa, destruiu todos os seus laços orgânicos, cortou todas as cadeias semânticas e os "resíduos da niponicidade" vieram à tona, sob a forma de sadismo, crueldade, colapso familiar, degeneração, máfia, perversão, corrupção, patologia e, ao mesmo tempo, etnocentrismo, dos quais todos os filmes de Miike estão cheios.
Mad Yakuza
Cada um dos filmes de Miike reflete um ou outro lado da morbidez da sociedade japonesa. Toda uma série de filmes sobre a yakuza são uma representação grotesca de grupos pseudo-samurais, militantes, extremamente masculinos, distinguidos pela crueldade excessiva, indiferença moral absoluta e, ao mesmo tempo, profundamente comprometidos com a decadência do sistema social japonês, onde a corrupção, a imoralidade e a insensatez se tornaram uma norma universalmente reconhecida.
Miike retrata seus heróis a maior parte do tempo em um contexto surreal, onde o absurdo atinge seu clímax, yakuza, policiais, pessoas comuns e heróis aleatórios se misturam além do reconhecimento em uma teia contínua de desmembramentos sangrentos, todo tipo de perversões, crueldade injustificada, completamente desprovida de motivação, em cujo contexto a "decisão do samurai" e a "ética militar" se tornam uma paródia completamente sem sentido.
Um exemplo impressionante de como o gênero popular de filmes japoneses de Miike sobre a yakuza (em uma versão muito mais contida, representada por uma série de obras de outro famoso diretor japonês Takashi Kitano) se transforma em um delírio surreal, pode servir como o filme "Yakuza Horror Theatre: Gozu" (2003) e o seriado "Multiple Personality Detective Psycho" (2000), onde os temas clássicos de Miike se tornam uma mistura de patologia delirante e descobertas pós-modernas absurdistas.
A própria crueldade dolorosa e sangrenta, além de qualquer trama inteligível capaz de racionalizar pelo menos parcialmente tudo isso, torna-se conteúdo independente em filmes como "Ichi o Assassino" (2001) ou "Izo" (2004). No filme "Ichi, o Assassino", o jovem retardado mental Ichi, que não tem nenhuma emoção, durante todo o filme mata sem sentido, por ordem e por acidente, todos que se aproximam dele com a ajuda de lâminas afiadas afiados. E o filme "Izo" oferece uma versão surreal do verdadeiro personagem histórico, o samurai Izo Okada (1832-1865), que se torna um espírito imortal de destruição segundo Miike, que renasce periodicamente com um objetivo: o extermínio total de todos os que se interpõem em seu caminho. Ao mesmo tempo, a própria posição de Miike na interpretação dos personagens retratados e suas ações permanece estritamente neutra: ele descreve tudo o que acontece com rigor e precisão documental, não se importando minimamente com a forma como o público o avaliará. Como regra, os telespectadores consideram isso de forma bastante adequada: na pós-modernidade, o significado foi abolido, e a única forma de interpretação continua sendo o próprio fato da contemplação e do acompanhamento dedicado de cada reviravolta da trama, sem sentido, para se jogar tudo fora da cabeça no exato momento em que se deixar o cinema ou rolarem os créditos finais da transmissão televisiva.
Zebraman: Um Vôo para Lugar Nenhum
Com a mesma neutralidade e pontualidade destacada, Miike interpreta outros temas: em particular, a completa desintegração da família japonesa e o desaparecimento dos estamentos e relações sociais clássicos (filmes "Visitor Q" [2001] ou "The Happiness of the Katakuris" [2001]); a criminalização radical das escolas japonesas e a autonomização do arquétipo adolescente, privado dos procedimentos para crescer nas condições do individualismo liberal ("Crows Zero" [2007] e "Crows Zero 2" [2009]); a transformação do Japão em um lixão industrial e os japoneses em seus habitantes ("Shangrila" [2002]), e assim por diante.
É especialmente necessário enfatizar o apelo de Miike aos enredos mitológicos e arquetípicos, às vezes apresentados de forma deliberadamente infantil com a ajuda de uma estratégia pós-moderna reflexiva. Assim, na série de filmes "Dead or Alive" estamos falando das reencarnações de dois anjos castigadores que destroem o capitalismo corrupto.
Os filmes "Zebraman" (2004) e "Zebraman 2" (2010) representam o mito do Kirin, a versão japonesa de Qilin, o unicórnio amarelo, o símbolo do Logos chinês, que se encarna na grotesca figura de um professor de escola patético que acredita em quadrinhos e tenta voar pelo céu como super-homens e heróis que salvam a humanidade.
A Grande Mãe
O filme muito sutil "Audition" (1999), que se tornou um dos filmes mais famosos de Miike, é dedicado ao horror primordial associado ao elemento obscuro do feminino, onde sob a máscara de uma garota frágil se esconde uma essência sádica sanguinária que busca o engano, o assassinato, a tortura, o desmembramento e a morte de tudo que cruza seu caminho.
Estas metamorfoses enganosas da Grande Mãe, vividamente apresentadas em "Audition", refletem o diagnóstico mais preciso do estado moderno da civilização japonesa: sob a limpa e inocente limpeza e precisão tecnológica apresentada pelo tipo adolescente japonês, existe um abismo de decadência, vício, degeneração e destruição, de cuja contemplação a consciência coletiva da sociedade japonesa busca escapar por todos os meios possíveis, mas que a supera em arte e instintos psicológicos, até cobri-los com uma onda de horror total. Em "Audition" você pode ler a versão contemporânea pós-moderna da história da visita de Izanagi ao país de Yomi e seu encontro fatal com Izanami no inferno.
O Chinês Voador
A própria atitude de Takashi Miike em relação ao mundo que ele representa é bastante difícil de entender, pois ele realizou muitos filmes, às vezes bastante diversos e com diferentes atitudes ideológicas, unidos apenas pelo indubitável pós-modernismo estilístico do diretor. Mas a chave para sua posição pode ser encontrada no filme The Bird People in China (1998) (Tugoku no tojin - 中国 の 鳥人), no qual, mais francamente que em outros filmes, ele revela uma ideologia pessoal cuidadosamente escondida. Neste filme, dois mundos, Japão e China, se opõem de forma bastante transparente, mas não como fenômenos sociais, mas como dois espaços simbólicos. O Japão é representado pelo ingênuo e indefeso funcionário Wada e um yakuza de meia-idade enviado em busca de tesouros às montanhas abandonadas da China. Ambos são mostrados como representantes de uma civilização completamente decadente, sem valores morais ou religiosos, sem visão de mundo, sem auto-identidade positiva, agindo em virtude do individualismo e da inércia ditados pela influência de circunstâncias materiais. Este é o típico japonês de Miike, uma espécie de anti-Japão, seu duplo negro do pós-guerra moderno e ocupado.
Uma vez na China, os heróis não chegam em uma sociedade socialista, mas se encontram em um ambiente natural habitado por um grupo étnico completamente não afetado pela modernidade e vive em condições de valores simples, claros e transparentes, mitos, tradição celestial e sinceridade. O núcleo principal dos mitos destes habitantes de uma pequena aldeia perdida, onde os japoneses com grande dificuldade chegam sobre tartarugas aquáticas, encontram-se na lenda do "povo voador".
Miike dá uma explicação racional no espírito do materialismo cético: estamos falando das memórias dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, quando um piloto americano caiu perto da vila; os habitantes, tendo visto o avião pela primeira vez, decidiram que era um homem voador, especialmente porque o piloto caído sobreviveu e deixou descendentes entre os moradores locais, uma garota de aparência europeia, que é considerada, no entanto, uma perfeita mulher chinesa. Gradualmente, os japoneses caem sob o charme direto dos residentes locais, esquecem seus objetivos pragmáticos para os quais foram enviados e começam a acreditar no "chinês voador". Os próprios locais não desistem de suas tentativas de decolar do chão, carregando de novo e de novo asas artificiais e pulando das encostas das montanhas. Em algum momento, os japoneses se juntam a eles: primeiro, o gerente Wada, e depois os mais céticos, mas no fundo ingênuos e animados yakuza. O filme culmina em cenas de saltos desesperados dos próprios japoneses, e nas cenas finais vemos uma figura humana voando alto no céu com asas artificiais.
A ontologia chinesa é um ser flutuante baseado na "magia da respiração" (M. Granet). O filme de Miike representa isso de forma literal e visualmente. No contexto deste "ser flutuante" (pós-guerra), o Japão é visto como um reino de morte e terra, gravidade e decadência. Tal topologia comparativa se encaixa completamente em nosso quadro noológico: o Logos chinês, juntamente com o budismo Tao e Mahayana, especialmente na tradição Ch'an, tornou-se o componente mais importante da cultura japonesa através do "fascínio pela China", que é o início mais importante de toda a história japonesa (de acordo com L. Frobenius, a cultura/paideuma começa com "obsessão", "fascínio", Ergriffenheit). O surgimento da síntese nipo-chinesa, correspondente ao diálogo ativo e significativo do budismo e do confucionismo com o xintoísmo, as tradições locais e a dinastia imperial japonesa que resultou na encarnação definitiva do Logos japonês, onde na estrutura da elipse japonesa o foco Zen apoiava e fortalecia ativamente a abordagem xintoísta, enquanto que tudo o que era chinês só fundamentava e iluminava tudo o que era japonês. Esta se tornou a segunda fase da paideuma japonesa (segundo L. Frobenius) - a fase da "expressão" (Ausdruck). A terceira fase foi a divisão de japoneses e chineses durante a era Meiji, e após a última tentativa de reavivamento e a Revolução Conservadora durante o "Zen imperial" (a Escola de Quioto, algumas formas de nacionalismo japonês na primeira metade do século XX), a derrota na Segunda Guerra Mundial, o colapso do Logos, do qual só se aplicaram e permaneceram momentos técnicos (Anwendung).
Portanto, a viagem dos japoneses à China em Miike torna-se uma rota de retorno à sua pátria espiritual, às origens do fascínio. "O chinês voador" para o Japão é uma indicação fundamental do tempo em que o japonês voador existia, cujo eco tragicamente doloroso e irônico, seu duplo/simulacro, é o herói de Zebraman. Mas esta ideologia, que é o código principal de Miike, contrasta demais com a realidade - metafísica, social, política, cultural e estilística, razão pela qual, aparentemente, o diretor não ousou desenvolver este tema trágico e perigoso, que tem o potencial de repetir o caminho de Yukio Mishima - com o mesmo fim, previsivelmente triste e, pior, simulado. A sombra de Mishima paira sobre todos os verdadeiros artistas japoneses e mesmo os melhores deles não podem ir além dos limites deste arquétipo (e os liberais conformistas nem mesmo pretendem tentar). Isto predetermina o amargo e irônico pós-modernismo de Miike e outros diretores próximos a ele, como Shinya Tsukamoto, autor de filmes extremamente absurdos sobre a fusão de um homem com uma máquina (desenvolvimento pós-moderno do tema de Mishima - "corpo e aço") "Tetsuo - The Iron Man" (1989) e até mesmo "The Adventures Of Electric Rod Boy" (1987), "Tokyo Fist" (1995) ou Takashi Shimitsu, que dirigiu "Marebito" (2004) e "Ju-On" (2002) com várias sequências. O Japão está se movendo gradualmente para o espaço de outro mundo, onde a linha entre mecanismo e homem, entre os vivos e os fantasmas, entre a razão e a queda em cascata no irracional está se esfacelando.
Porões Xintoístas
Todas estas pinturas retratam os andares inferiores do cosmo xintoísta, onde a saturação do sagrado ainda é claramente sentida (e esta é a diferença fundamental com o pós-modernismo americano ou europeu, do qual o sagrado foi expulso no início do euromodernismo), mas toda a coerência, facilidade, ordem, compulsão e espiritualidade são irremediavelmente perdidas. Este é o duplo obscuro do Japão, de seu povo e civilização, submerso na Terra das Raízes, Yomi, até o fundo do Universo xintoísta na etapa de seu último resfriamento. O surrealismo pós-moderno japonês nada mais é, portanto, do que um realismo "fotográfico" confiável, uma réplica exata do estado do Logos japonês, que está na etapa final de sua decadência e afundamento.