14/08/2025

Ernesto Milà - A Vertente Oculta do Peronismo - Parte III: Os Fios Soltos da Suspeita, os Cavaleiros do Fogo

 por Ernesto Milà

(2010)


 

É fácil identificar as duas vertentes destas notas sobre a Loja Anael e o papel de López Rega. Uma delas diz respeito ao General Juan Domingo Perón, líder e fundador do justicialismo argentino e, certamente, o político mais valorizado e que despertou mais entusiasmo naquele país durante o século XX. A outra está relacionada com López Rega. Ambas referem-se à sua ligação com o ocultismo. As perguntas a formular são, portanto, duas: até que ponto o general Perón, Eva Perón e Isabel Martínez de Perón acreditavam no espiritismo? E quais eram as fontes doutrinais de López Rega?

A primeira pergunta é relativamente fácil de responder: Perón e Eva acreditavam no espiritismo. Nos anos 40 e 50, o espiritismo estava solidamente enraizado na Argentina. No estádio nacional, ocorriam frequentemente encontros espíritas, com médiuns locais ou figuras desse meio, trazidas dos Estados Unidos ou do Brasil. Hoje sabemos que grande parte dos problemas que Perón teve com a hierarquia católica se deviam à sua excessiva proximidade com o movimento espírita. Por outro lado, Eva Perón, em seu livro La razón de mi vida, mas também em outros escritos, frequentemente aludia à “religião popular” que se opunha à religião dos bispos, que ela identificava com a oligarquia; há suspeitas fundamentadas de que, para Eva Perón, a “religião popular” era o espiritismo. Quanto a Isabelita, ela havia nascido no seio de uma família espírita, então não se surpreendia em absoluto com as histórias que López Rega podia contar sobre as possibilidades de transferir a alma de Eva Perón para ela, prolongar a vida de seu marido gravemente doente desde o início dos anos 70 e sobre as vidas e reencarnações passadas de ambos.

E Perón? Perón, nesse terreno, é bastante misterioso. É difícil saber se ele “acreditava” no espiritismo e muito menos se essa suposta crença era sincera ou se, como todo líder populista, ele necessariamente tendia a assumir como próprias as crenças da população. Insistimos em lembrar que o espiritismo esteve na moda durante o primeiro mandato de Perón. Se isso for verdade, Perón tinha algo de oportunista no terreno pseudo-espiritual. Já vimos que o “doutor Anael” dizia que Perón fazia parte da Loja Anael. O segredo lhe agradava. De fato, ele havia chegado ao poder através de uma “loja militar” secreta: o Grupo de Oficiais Unidos. E também seria injusto lembrar, na hora de avaliar o personagem, que pouco antes de seu retorno à República Argentina, ele havia viajado para a Itália e –inequestionavelmente– ingressado na Loja Propaganda 2 e sido iniciado na maçonaria por Licio Gelli, seu Venerável Grão-Mestre. Ele fez isso por convicção ou por puro oportunismo? Essas são as questões essenciais no que diz respeito a Perón.

Depois, há a figura de López Rega. A leitura de suas obras não contribui para pintá-lo com traços particularmente satânicos, nem mesmo excessivamente fanáticos. Para aqueles que estão familiarizados com a literatura ocultista dos séculos XIX ou XX, mesmo sem compartilhá-la, o que encontramos em suas obras não é nada novo que já não existisse antes. Pode parecer excessivo, descontrolado, complicado, irracional e, sobretudo, opaco… mas assim é a literatura ocultista. Quanto ao livro Astrologia Esotérica, é simplesmente mais um tratado sobre o tema que não nos diz muita coisa nova. A tentativa de sistematizar horas, cores, aromas, com o que convém fazer em cada momento, é uma velha aspiração da magia que já estava presente no Renascimento com o redescobrimento do Corpus Hermeticum e que depois teve dezenas de versões que, mais ou menos, eram releituras do original ou tentativas pessoais de sistematização do conhecimento sobre “magia natural”.

Agora, é possível atribuir alguma filiação concreta a López Rega? Ele teve algum “mestre espiritual”, isto é, algum “mestre em ocultismo”? Se teve, ele não diz, nem ninguém, apesar da fama que o personagem alcançou em seu momento, conseguiu apresentar provas de sua militância em algum grupo ocultista específico. É provável que, durante a maior parte de sua vida, ele tenha sido um “observador” que participou das atividades de grupos espíritas e talvez de algum grupo propriamente ocultista. Em concreto, quando a figura de López Rega começava a ascender no início dos anos 70, uma fonte habitualmente bem informada em matéria de ocultismo nos comunicou que ele havia pertencido à Sociedade dos Cavaleiros do Fogo. Na verdade, não estávamos falando de López Rega, mas da Nova Acrópole, que naquela época acabara de dar o salto para a Europa e estava constituindo seus primeiros grupos na França e na Espanha. À pergunta sobre os conteúdos da Nova Acrópole, nos responderam com várias considerações e com o detalhe “negro” de que ela havia compartilhado inicialmente sede com uma organização da qual López Rega fazia parte: os Cavaleiros do Fogo.

A Nova Acrópole surgiu como uma dissidência da Juventude Teosófica Argentina em 1957… justamente no período de maior efervescência ocultista e espírita naquele país, um período que corresponde à maturidade de Rega e pouco depois da derrubada de Perón pela Revolução Libertadora de Leonardi e Aramburu. Por outro lado, em 1971, existiam grupos ocultistas muito mais sinistros aos quais se poderia atribuir a militância de “Lopecito”, se o que se queria era desprestigiá-lo. A própria Nova Acrópole não renegava certo caráter neofascista, por exemplo, e os gnósticos de Samael Aum Weor sustentavam teses absolutamente excêntricas, fazendo da América Latina seu teatro preferencial de operações. Daí que sempre tenhamos estado tentados a atribuir veracidade a essa relação entre López Rega e os Cavaleiros do Fogo. Como veremos, não fomos os únicos a estabelecer esse vínculo. De qualquer forma, se Perón tinha algo de oportunista no político, Rega, indubitavelmente, o era no terreno ocultista. Como em todo vigarista, havia em Rega um duplo aspecto: por um lado, ele acreditava firmemente no “produto” que vendia (o espiritismo e seus poderes paranormais), mas, ao mesmo tempo, usava essa crença conscientemente para manipular: ele havia entendido algo que muitos outros entenderam antes dele, que os “poderosos” (e o casal Perón o era) não são absolutamente racionais em suas crenças, mas frequentemente supersticiosos e primitivos, e é possível explorar tudo isso em benefício próprio. “Lopecito” fez isso sem dúvida. E por isso não teve escrúpulos em abandonar os membros da Loja Anael, em liquidar alguns deles e em colocar em marcha um sinistro aparato de repressão desde o Ministério do Bem-Estar Social para responder à violência desencadeada de maneira inconsciente, aventureira e irresponsável pela esquerda peronista (montoneros, FAR, FAP) e pela extrema-esquerda (ERP).

Se estas páginas serviram para algo, em definitivo, foi para alertar até que ponto as “altas esferas” têm crenças excêntricas. De todas as correntes do ocultismo, o espiritismo é, sem dúvida, a mais primitiva, supersticiosa e atrabiliária; não é raro, portanto, que seja também a mais difundida. Portanto, não pode nos surpreender excessivamente que, em um país e em um momento em que o espiritismo estava na moda, líderes políticos o tenham assumido como uma forma de “se aproximar do povo”, mas também de “se beneficiar da religião popular”.

Vamos ver a natureza de todos esses “fios soltos”.


A Ordem dos Cavaleiros do Fogo


Se López Rega não pertenceu à Ordem dos Cavaleiros do Fogo, pelo menos teve conhecimento de sua existência através de alguns de seus colaboradores próximos no governo de Isabel Martínez de Perón. De fato, em 2 de junho de 1975, Celestino Rodrigo assumiu o Ministério da Economia da República Argentina. Até então, Rodrigo havia substituído Rega à frente do Ministério do Bem-Estar Social. Eles se conheciam há tempos, e Rega o havia colocado à frente da chamada “Operação Líbia”, que visava unir a economia argentina à de alguns países produtores e exportadores de petróleo. A ideia não era má, mas fracassou. Rodrigo e seu adjunto, Ricardo Zinn, não pertenciam ao partido peronista, mas faziam parte apenas do “grupo de amigos pessoais” de Rega, amigos pessoais e de aventuras ocultistas.

Dois dias após ser nomeado ministro, Rodrigo tomou medidas econômicas que representaram a primeira tentativa de ajuste neoliberal da economia, com uma desvalorização de 160% para o câmbio comercial e de 100% para o câmbio financeiro. A taxa de inflação atingiu três dígitos, chegando a 183% no final de 1975. A insegurança gerou desabastecimento nos mercados. O valor da eletricidade subiu entre 50% e 75%, a gasolina entre 172% e 181%, e o preço médio dos serviços públicos dobrou. Essa debacle foi seguida por uma segunda desvalorização do peso e uma queda de 50% nas reservas internacionais entre dezembro de 1974 e junho de 1975. Ricardo Zinn, banqueiro e vice-ministro da Economia, cunhou a frase “Encolher o Estado é engrandecer a Nação”, usada posteriormente por neoliberais de todas as latitudes como um lema. Na história recente da Argentina, essas medidas são conhecidas como “o Rodrigazo”, que gerou uma greve geral dos sindicatos peronistas contra o governo peronista e teve consequências imediatas: a demissão do ministro do Bem-Estar Social, López Rega, e de seu protegido na economia, Celestino Rodrigo, que permaneceu apenas 46 dias no cargo, tempo suficiente para que a economia sofresse as consequências negativas desse ajuste pelos 20 anos seguintes. A renúncia de Celestino Rodrigo não impediu que ele passasse 4 anos na prisão por irregularidades em sua gestão. Zinn ingressou no governo de Menem anos depois.

Celestino Rodrigo era um dos membros da Ordem dos Cavaleiros do Fogo e ostentava o cargo de Mestre. O mesmo foi dito sobre outros responsáveis recentes pela economia argentina. O doutor Pedro Pou, por exemplo, que por um tempo foi presidente do Banco Central da República Argentina, também seria membro dos Cavaleiros do Fogo. A presença de Rodrigo e de Pou à frente de setores importantes da economia argentina fez com que algum jornalista atento chamasse a Ordem de “seita dos economistas”... A ordem havia sido fundada por um ocultista italiano radicado na Argentina, Santiago Bovisio, falecido em um acidente de trânsito em 1962. Após sua morte, foi substituído por Jorge Isaac Waxemberg, que completou a configuração do grupo como uma “ordem ocultista”. Diz-se que, em 1970, Waxemberg entrou em contato com López Rega e que a nomeação de Rodrigo seria um tributo a essa relação. A neta de Rodrigo negou que seu avô tivesse compartilhado militância em um grupo ocultista, mas não negou sua pertença aos Cavaleiros do Fogo. De fato, essa militância é reconhecida em obras muito sérias sobre aquela época, e o próprio Rodrigo fornece algumas provas decisivas para confirmá-la.

De fato, no início dos anos 60, Celestino Rodrigo havia escrito uma pequena obra de apenas 60 páginas intitulada Espírito e revolução interior na atual sociedade de massas, publicada pela Associação de Cultura Espiritual Argentina. Tratava-se de uma associação pública vinculada aos Cavaleiros do Fogo, fundada pelo próprio Bovisio, de modo que não há dúvidas sobre a militância ocultista do fugaz ministro. A obra, em si, é bastante insignificante, uma mera crítica à sociedade de consumo na qual “o homem perde sua identidade”. É assim que “o homem escravizado, que perde seu destino como ser consciente e individual, alienado pelo ruído, privado de paisagem e de intimidade, ignora o sentido da vida. Desumaniza-se pela constante entrega de seus valores às exigências externas artificiais. Comporta-se como um ente de consumo voraz, que satisfaz essa coorte de fiéis e devotos promotores do lucro”. Como sair dessa dinâmica? Rodrigo responde que “opondo-se ao crescimento acelerado do consumo per capita” e “utilizando de maneira inteligente os bens que requerem o desenvolvimento de sua consciência individual de ser”. Todos esses raciocínios parecem um tanto estranhos em um economista, ainda mais quando evidenciam certa nostalgia do passado: “No passado, o homem se sentia mais seguro e ‘completo’, porque era, de algum modo, o criador e dono de seus conhecimentos. Hoje, o artesão é substituído pela linha de montagem, o erudito pelo computador, e o mestre transmissor de um ensino vivo, pela instrução programada”. A ideia de Rodrigo é que o ser humano é vítima de um “esvaziamento espiritual”, provocado tanto pela pressão econômica quanto pelo desenvolvimento científico-técnico, aos quais a religião – ou seja, o catolicismo – não foi capaz de articular uma resposta. Até aqui, a análise é bastante rotineira e era muito comum nos anos 60, quando Rodrigo escreveu o opúsculo, mas quando ele pergunta “O que fazer?”, então surge a veia ocultista: recomenda endireitar a “vida interior”, “harmonizando os valores humanos” com os “divinos”, que “revelam a dimensão transcendente do ser humano”. Isso na dimensão individual; na coletiva, recomenda a reunião de almas “através das aspirações transcendentais”, a oferta dos valores pessoais, a “desenergetização do passado” (ou ato de desprender-se da carga emocional do passado) e a “capacidade de renúncia”. Tudo isso facilitará “a transformação do homem” e a irrupção de um novo período na história. Apesar dessa crítica ao sistema de produção e consumo, os 46 dias de Rodrigo no ministério tiveram uma orientação completamente diferente. Para dizer a verdade, os ensinamentos de Bovisio, o fundador dos Cavaleiros do Fogo, seguiam outros caminhos.

Ocultista de origem italiana, educado no catolicismo, Santiago Bovisio afirmou ter se afiliado muito jovem à Ordem dos Cavaleiros do Fogo, da qual disse ter sido fundada por Giovanni Veniviene, sobre quem as fontes da ordem garantem ter sido o maior herborista da Europa. Nada se sabe sobre a existência desse grupo ou sobre seu suposto fundador. É fácil deduzir que, se existiu, essa ordem deve ter sido um dos inúmeros grupos que reivindicavam uma herança neorrosacruz, daí a ênfase na "medicina natural" e no herborismo típicos dessa corrente. Naquela época, muitas outras ordens neorrosacruzes inevitavelmente tinham como "grão-mestre" alguém interessado em terapias naturais (lembramos, por exemplo, o caso de Arnoldo Krum Heller, também conhecido como "Mestre Huiracocha", fundador da Fraternidade Rosacruz Antiga e iniciado no Rito de Memphis-Misraïm, no qual atingiu o grau máximo — ele também era médico homeopata e herborista). De qualquer forma, a Ordem na qual Bovisio diz ter ingressado e no qual foi investido cavaleiro em 10 de janeiro de 1926, na Itália, desapareceu sem deixar rastros, e não encontramos absolutamente nenhuma referência a ela, nem a seu fundador Veniviene, seja em textos sobre ordens ocultistas do início do século XIX, seja em livros especializados em herborismo da mesma época. Já na Argentina, Bovisio contou que a Ordem era extremamente restrita e que só tinham acesso a ela membros da "nobreza europeia" ou — ele não era — aqueles que possuíam "poderes parapsicológicos muito desenvolvidos".

Em alguns de seus livros, ele alude que, no período posterior à Primeira Guerra Mundial, manteve contatos com seguidores de Blavatsky e Rudolf Steiner, sem, no entanto, ter ingressado nem na Sociedade Teosófica nem na Antroposófica. Quando chega à Argentina, com apenas 22 anos, começa a ter certa formação em ocultismo, mas seu espírito está perturbado por visões apocalípticas que o levam a se interessar pela figura de Girolamo Savonarola, o dominicano italiano que pregou apaixonadamente sobre o fim dos tempos e a quem Bovisio considerava seu "guia astral", atribuindo-lhe o título de "O Zelador". Bovisio funda a União Savonaroliana em Buenos Aires e, pouco depois, a Universidade Espiritualista Argentina, quando já estava estabelecido em Rosário — uma das muitas associações que tentavam aproveitar a moda do espiritismo.

Seus seguidores explicam que, desde muito jovem, ele manifestou "extraordinárias faculdades de clarividência e profecia, que, com o tempo, a disciplina e o conselho de instrutores físicos e astrais, alcançaram níveis excepcionais" e que "tinha acesso voluntário a todas as dimensões suprafísicas, poderes que apenas um punhado de homens vivos possuíam", o que confirma as influências teosóficas sobre Bovisio. Mas foi em 3 de março de 1937 que, "junto com outros três companheiros", ele fundou a Sagrada Ordem dos Cavaleiros Americanos do Fogo (sigla em latim: IHES), da qual sempre se diz ser "independente" da ordem homóloga europeia. Bovisio dotou essa nova organização de um "regulamento único e inalterável" e se autoproclamou Cavaleiro Grão-Mestre da IHES.

Nos anos seguintes, a ordem teve uma expansão moderada, e a incansável atividade de Bovisio conseguiu implantá-la em quase todas as províncias argentinas, além do Chile e do Uruguai. Ele acreditava que a Ibero-América deveria desempenhar um papel fundamental na "Nova Era de Aquário", que em vários de seus textos ele chama de "Hidrochosa". Por uma estranha coincidência com as teorias do "Doutor Anael", Bovisio opinava que a parte peruana da Cordilheira dos Andes estava destinada a desempenhar um papel central na "nova era". Quando se preparava para se deslocar para a região, sofreu um acidente após seu veículo derrapar na neve. Morreu aos 57 anos, em 3 de julho de 1962. Jorge Waxemberg o sucedeu até 2005, e atualmente a Ordem tem como Grão-Mestre José Luis Kutscherauer. Por expresso desejo de Bovisio, a Ordem dá ênfase especial à proteção da infância e à criação de aldeias infantis. No entanto, alguns discípulos diretos de Bovisio afirmam que, após sua morte, a Ordem se desvirtuou, e seus sucessores aproveitaram para "acumular riquezas", afastando-se do caminho do ascetismo e da renúncia pregado pelo italiano. Nada que já não tenha acontecido em qualquer outra seita similar.

É curioso notar que Bovisio afirmava lembrar-se de suas vidas passadas. Isso também não é excepcional entre ocultistas, mas é mais interessante observar que suas memórias remontavam ao Antigo Egito, chegando a descrever detalhes da vida do Faraó Akhenaton, da corte e dos nomes de suas filhas, ou até mesmo aspectos das liturgias egípcias, sobre os quais seus seguidores afirmam que só "pode relatar quem realmente viu". Um dos títulos que ele reivindicava era o de "Sumo Sacerdote do Templo de Amon". A "obsessão egípcia" não é rara em círculos ocultistas, mas é certo que também nesse campo há uma ligação com as ideias de López Rega e da Loja Anael.

A totalidade das obras de Bovisio pode ser consultada na internet, na Biblioteca Upasika (nome iniciático de Blavatsky). Os 45 títulos evidenciam os lugares-comuns de sua teoria com os de qualquer outro ramo derivado do teosofismo. No entanto, a "obsessão egípcia" está presente em um número excepcionalmente alto de textos de Bovisio, e suas considerações contradizem frontalmente a egiptologia convencional. Sem dúvida, algumas dessas obras foram escritas por meio de "escrita automática" e em estado de transe. Em alguns casos, ele segue literalmente os ensinamentos teosóficos (como, por exemplo, sobre as "raças matrizes" que deveriam se suceder nas diferentes "rodas cósmicas"), limitando-se a ampliar as fantasias de Blavatsky com outras sugestões igualmente fantasiosas sobre a "raça ariana". As semelhanças são tais que parece que Bovisio apenas retomou a obra de Blavatsky e tentou o impossível: torná-la mais compreensível, dividindo-a em temas e organizando-a na medida do possível.

A falta de dados sobre o "ramo originário" da Ordem, no qual Bovisio afirma ter ingressado durante sua juventude na Itália, confirma quase inequivocamente que se trata de uma invenção com fins "educativos" ou, simplesmente, para atribuir alguma legitimidade iniciática à Ordem por ele fundada em Buenos Aires. Os poderes paranormais de Bovisio também parecem problemáticos: são reconhecidos apenas por seus discípulos mais devotados, entre os quais abundam fenômenos de credulidade e confusão entre "pensamentos" que surgem espontaneamente na mente e "realidades objetivas" de vidas passadas ou influências paranormais. Nada que não tenhamos visto antes em meios ocultistas.

No entanto, a presença de destacados economistas e o facto de partilharem ideias simples que não tinham nada de originais tornam este grupo radicalmente diferente de dezenas de outros semelhantes. Da mesma forma, a "obsessão egípcia" está diretamente ligada a López Rega, que havia conseguido incutir em Perón a ideia de que ele era a reencarnação de um faraó egípcio, bem como no passado egípcio de "Isabelita". Também se relaciona com a Loja Anael, cujo símbolo era uma pirâmide.

Pertenceu Rega à Ordem dos Cavaleiros do Fogo? Não parece provável, apesar das confidências que um especialista em seitas nos fez em 1972. Se naquela época o nome de Rega podia inspirar algum temor, atualmente ele já faleceu e passou seus últimos anos na prisão, aguardando julgamento, desprovido de todo o seu poder político, económico e coercitivo. O procurador que o interrogou declarou ter visto nele um homem apagado, vencido, derrotado. Numa situação assim, seria normal que algum daqueles que haviam militado com Rega na Ordem dos Cavaleiros do Fogo tivesse falado e fornecido detalhes significativos. Nada disso aconteceu. No entanto, Rega deve ter conhecido membros da Ordem – é provável que tenha assistido a algumas das centenas de conferências dadas por Bovisio quando ele, Rega, era sargento da polícia ou simplesmente astrólogo. Isso deve ter pavimentado o caminho para que ele e Waxemberg se conhecessem mais tarde e para que este pudesse recomendar um não-peronista, mas sim "iniciado", como Celestino Rodrigo… cujo "rodrigazo" acabaria por estar na origem do seu declínio (muito mais do que a tragédia de Ezeiza, da qual ele e seus homens de confiança foram os grandes responsáveis).

Na Ordem dos Cavaleiros do Fogo, encontramos uma mistura de boas intenções ("servir a humanidade"), alguns conselhos para o comportamento pessoal ("austeridade e recolhimento interior"), visões delirantes (sobre a evolução e o destino do Cosmos, sobre a história das "raças-matriz") e, por fim, superstições e crendices (como a improvável existência de um "ramo europeu e aristocrático" da ordem). O resultado não surpreende, nem chamaria particularmente a atenção, não fosse pelo facto de o nome da Ordem se ter cruzado demasiadas vezes com o de López Rega.

Alguns discípulos de René Guénon não comentaram os aspectos "contrainiciáticos" e "anti-tradicionais" presentes na obra de Bovisio. Isso, somado ao papel nefasto desempenhado por alguns membros da Ordem dos Cavaleiros do Fogo na história recente da Argentina, seria suficiente para considerar essa organização e seu fundador como participantes do que Guénon chama de "contrainiciação". Não concordamos com essa avaliação. A Ordem dos Cavaleiros do Fogo é mais uma sigla num magma de centenas de grupos ocultistas e espíritas que, mais do que contrainiciáticos, são um reflexo de uma época em que a religião tradicional entrou em declínio e nada conseguiu substituí-la. Nem mesmo, como alguns esperavam, a hegemonia da religião tradicional foi seguida por um período racionalista. Ocorreu exatamente o oposto, como já expusera Oswald Spengler há mais de 80 anos: o espaço deixado pelo recuo da religião tradicional foi ocupado por seitas, ocultismo, espiritismo e superstições puras e simples. O ocultismo é parte desse fenómeno: a emergência do irracional. Não surpreende, portanto, que, se o ocultismo está presente na sociedade, de vez em quando apareçam em posições de responsabilidade indivíduos ligados a essas correntes. Não se trata de contrainiciação, é simplesmente cálculo estatístico. A "religião popular" de que falava Evita Perón, seja o espiritismo ou as crenças de base cristã, é o clímax do irracional. A presença de "Lopecito", até mesmo da própria "Isabelita" e, até certo ponto, do próprio Perón à frente da Nação Argentina, tinha algo de "vitória do irracional"...