A recepção auspiciosa das obras de Evola no mundo islâmico provavelmente data do início dos anos 90, quando o filósofo nacionalista muçulmano Geidar Dzemal, fundador do Partido para o Renascimento Islâmico, forneceu ao primeiro canal da televisão russa uma transmissão devotada a Julius Evola.
Em 1993, Revolta Contra o Mundo Moderno foi evocado, em uma entrevista publicada na edição n.77 da revista "Éléments", por outro intelectual islâmico: o argelino Rachid Benaissa, discípulo e herdeiro daquele mentor da "Renascença Islâmica" que foi Malek Bennabi.
Em 1994, graças a uma iniciativa de um professor de teologia islâmica na Universidade de Marmara, Insan, uma editora de Istambul,, publicou um livro chamado Modern Dünyaya Baçkaldïrï, nomeadamente a tradução turca de Revolta Contra o Mundo Moderno. A apresentação editorial fez referência expressa a René Guénon, de quem duas obras apareceram no mesmo ano em turco, Crise do Mundo Moderno (Modern Dünyanin Bunalimi, Agac, Istambul) e O Reino da Quantidade e o Sinal dos Tempos (Niceligin egemenligi ve çagin alâmetleri, Iz, Istambul).
Se o nome de Julius Evola não é desconhecido no mundo islâmico, qual era a amplitude de conhecimento do Islã que possuía Evola?
A retrato do Islã em Revolta Contra o Mundo Moderno ocupa não mais que algumas páginas, mas apresenta com profundidade suficiente os aspectos do Islã que, desde a perspectiva evoliana, o permitem ser caracterizada como "uma tradição em um nível superior tanto em relação ao Judaísmo como em relação às crenças religiosas que conquistaram o Ocidente", (RMM 245) isto é, o Cristianismo.
Em primeiro lugar, Evola aponta que o simbolismo islâmico indica claramente uma conexão direta dessa tradição com a própria Tradição Primordial, de forma que o Islã é independente tanto do Judaísmo como do Cristianismo, religiões cujos temas característicos ele rejeita (pecado original, redenção, mediação sacerdotal, etc). Novamente em Revolta Contra o Mundo Moderno pode-se ler:
"Como no caso do Judaísmo sacerdotal, o centro no Islã também consistia da Lei e da Tradição, considerada como força formativa, à qual as estires árabes originais forneciam um material humano mais puro e nobre que foi moldado por um espírito guerreiro. A lei islâmica (sharia) é uma lei divina; sua fundação, o Corão, é tido como a própria palavra de Deus (kalam Allah) bem como uma obra não-humana e um "livro não-criado" que existe no céu ab aeterno. Ainda que o Islã se considere a "religião de Abraão", até a ponto de atribuir a ele a fundação da Kaaba (onde encontramos novamente o tema da "pedra", ou o símbolo do "centro"), é não obstante verdadeiro que (a) ele reivindicava independência tanto do Judaísmo como do Cristianismo; (b) a Kaaba, com seu simbolismo do centro, é uma locação pré-islâmica e possui até origens ainda mais antigas que não podem ser datadas com precisão; (c) na tradição islâmica esotérica, o principal ponto de referência é al-Khadir, uma figura popular concebida como superior e predatando os profetas bíblicos (Corão 18:59-81). O Islã rejeita um tema encontrado no Judaísmo e que no Cristianismo se tornou o dogma da base do mistério da encarnação do Logos; ele retém, sensivelmente atenuado, o mito da queda de Adão sem trabalhar o tema do 'pecado original'. Nessa doutrina o Islã via uma 'ilusão diabólica' (talbis Iblis) ou o tema invertido da queda de Satã (Iblis ou Shaitan), que o Corão (18:48) atribuiu a sua recusa, junto a todos os anjos, de se curvar perante Adão. O Islã também não apenas rejeitou a idéia de um Redentor ou Salvador, que é tão central no Cristianismo, mas também a mediação de uma casta sacerdotal" (RMM 244).
A pureza absoluta da doutrina da Unidade, isenta de qualquer traço de antropomorfismo e politeísmo, integração de cada domínio da existência em uma ordem ritual, ascese de ação pela jihad, habilidade de modelar uma "raça do espírito": essas são, respectivamente, os aspectos no Islã que retém a atenção de Evola. Ele escreve:
"Ao conceber do Divino em termos de um monoteísmo absoluto e puro, sem um 'Filho', um 'Pai', ou uma 'Mãe de Deus', cada pessoa como muçulmano parece responder diretamente a Deus e ser santificado pela Lei, que permeia e organiza a vida de um modo radicalmente unitário em todas as suas ramificações jurídicas, religiosas e sociais. No Islã primitivo a única forma de ascetismo era a ação, isto é, a jihad, ou "guerra santa"; esse tipo de guerra, pelo menos teoricamente, jamais devia ser interrompida até a consolidação plena da Lei divina ter sido atingida. É precisamente pela guerra santa, e não pela pregação ou pela iniciativa missionária, que o Islã veio a desfrutar de uma expansão súbita e prodigiosa, originando o império dos Califas bem como forjando uma unidade típica de uma raça do espírito, nomeadamente, a Umma ou 'nação islâmica'" (RMM 244).
Finalmente, o Islã, Evola aponta, é uma forma tradicional completa, no sentido de que está imbuído de um esoterismo operacional e vivo que pode fornecer àqueles que possuem as qualificações necessárias os meios de atingir uma realização espiritual que vai além do objetivo exotérico de "salvação":
"Finalmente, o Islã apresenta uma plenitude tradicional, já que a sharia e a sunna, isto é, a lei exotérica e a tradição, possuem seu complemento não em um misticismo vago, mas em organizações iniciáticas completas (turuq) que são caracterizadas por um ensino esotérico (tawil) e pela doutrina metafísica da Identidade Suprema (tawhid). Nessas organizações, e em geral no Shia, as noções recorrentes do masum, da prerrogativa dupla do isma (infalibilidade doutrinária), e da impossibilidade de ser manchado por qualquer pecado (que é a prerrogativa dos líderes, os Imãs visíveis e invisíveis e, do mujtahid) levam de volta à linha de uma raça inquebrantável moldada por uma tradição a um nível superior tanto que o Judaísmo e as crenças religiosas que conquistavam o Ocidente" (RMM 244-245).
De todos esses temas, aquele a que Julius Evola, dada sua "equação pessoal", é mais diretamente receptivo, é obviamente o tema da ação, ação sacralizada. O olhar de Evola está portanto fixado sobre a noção da jihad e sua dupla aplicação, em conformidade ao famoso hadith do Profeta ("Raja'nâ min al-jihad al-açghar ilâ-l jihad al akbar", isto é: "Você retornou de uma luta menor à grande luta;" ou, se preferirmos: "da menor à guerra santa maior". Esse hadith, que fornece o título para um capítulo em Revolta Contra o Mundo Moderno ("A Grande e Pequena Guerra Santa"), é adicionalmente comentado por Evola:
"Na tradição islâmica uma distinção é feita entre duas guerras santas, a 'grande guerra santa' (el-jihadul-akbar) e a 'pequena guerra santa' (el-jihadul-asghar). Essa distinção originou de um dito (hadith) do Profeta, que no caminho de volta de uma expedição militar disse: 'Você retornou de uma pequena guerra santa para uma grande guerra santa'. A grande guerra santa é de uma natureza espiritual interior; a outra é a guerra material travada externamente contra uma população inimiga com a intenção particular de pôr populações 'infiéis' sob o território da 'Lei de Deus' (dar al-Islam). A relação entre a 'grande' e a 'pequena guerra santa', porém, reflete a relação entre a alma e o corpo; de modo a compreender o ascetismo heróico ou 'caminho de ação', é necessário reconhecer a situação em que ambos caminhos se fundem, 'a pequena guerra santa' se tornando o meio pelo qual 'uma grande guerra santa é efetivada, e vice-versa: a 'pequena guerra santa', ou externa, se torna quase uma ação ritual que expressa e dá testemunho da realidade da primeira. Originalmente, o Islã ortodoxo concebe uma forma unitária de ascetismo: que está conectada à jihad ou 'guerra santa'.
A 'grande guerra santa' é a luta do homem contra os inimigos que ele leva dentro de si. Mais exatamente, é a luta do princípio superior do homem contra tudo que é meramente humano nele, contra sua natureza inferior e os impulsos caóticos e todo tipo de elos materiais " (RMM 118).
Em outro livro, Evola vê na idéia da jihad um "renascimento posterior de uma herança ariana primordial", de modo que "a tradição islâmica serve aqui como transmissora da tradição ário-iraniana" (Metafísica da Guerra 96).
A doutrina islâmica da pequena e grande "guerra santas" ocupa na obra de Evola uma posição privilegiada e adquire um valor paradigmático; ela exemplifica, de fato, e representa a concepção geral que o mundo da Tradição atribui à experiência guerreira, e, geralmente falando, à ação como caminho de realização. Os ensinamentos relativos à ação guerreira de vários milieus tradicionais são assim considerandos à luz de sua concorrência essencial com a doutrina da jihad e são expostas através de uma noção que é também de derivação islâmica: a noção de "caminho de Alá" (sabil Allah).
"No mundo do ascetismo guerreiro tradicional a 'pequena guerra santa', nomeadamente, a guerra externa, é indicada e até mesmo prescrita como o meio para travar essa 'grande guerra santa'; assim no Islã as expressões 'guerra santa' (jihad) e 'caminho de Alá' são muitas vezes usadas de forma intercambiável. Nessa ordem de idéias a ação exerce a função e tarefa rigorosas de um ritual sacrificial e purificador. As vicissitudes externas experimentadas durante uma campanha militar causam a emergência do 'inimigo' interno que montam uma dura resistência na forma dos instintos animalísticos de autopreservação, medo, inércia, compaixão ou outras paixões; aqueles que se engajam em batalhas devem superar esses sentimentos até o momento de entrar no campo de batalha se eles desejam vencer e derrotar o inimigo externo, o 'infiel'.
Obviamente a orientação espiritual e 'intenção reta' (niyya), isto é, aquela em direção a transcendência (os símbolos empregados para referir à transcendência são 'céu', 'paraíso', 'jardins de Alá' e daí em diante), são pressupostos como as fundações da jihad, sob pena da guerra perder seu caráter sagrado e se degenerar em algo selvagem em que o verdadeiro heroísmo é substituído por abandono descuidado e o que conta são os impulsos liberados da natureza animal" (RMM 118-119).
Evola menciona uma série de passagens corânicas (da tradução de Luigi Bonelli, que ele modifica ligeiramente) relacionadas às idéias de jihad e 'caminho de Alá' (RMM 119-120); 4:76; 47:4; 47:37; 9:38; 9:52; 2:216; 9:88-89; 47: 5-7. Ademais, ele cita duas máximas para ilustras essas idéias: "O paraíso jaz sob a sombra das espadas" e "O sangue dos heróis está mais próximo de Deus que a tinta dos filósofos e as orações dos fiéis" (RMM 125; cf. DF 308). Porém, se o primeiro dito é efetivamente um hadith, o segundo, extraído talvez de algum dúbio estudo orientalista, está há pólos de distância do hadith, citado por Suyuti em seu Al-kami' al-saghir, que diz literalmente: "No dia do Juízo Final, a tinta dos sábios será pesada com o sangue dos mártires, que deram suas vidas por Alá, e a tinta será mais pesada".
Antes de passar à exegese da doutrina da "guerra santa" nos milieus tradicionais não-islâmicos (especialmente Índia e Cristandade medieval), Evola faz uma analogia entre a morte do mujahid e a mors triumphalis da tradição romana (RMM 120); esse tema é referido novamente depois, quando a significância da "imortalização" atribuída à vitória do guerreiro por certas tradições européias é mensurada com "a idéia islâmica segundo a qual os guerreiros mortos em uma 'guerra santa' (jihad) nunca morreram realmente" (RMM 13). Um verso corânico é citado para ilustrar isso: "Não diga que aqueles que foram mortos na causa de Alá estão mortos; eles estão vivos, ainda que não os perceba" (Corão 2:153). O paralelo específico a isso também é encontrado em Platão (República, 468c), que Evola cita: "E aqueles que são mortos no campo, nós diremos que todos que caíram com honra são da raça de ouro, que quando morre, segundo Hesíodo, 'Habitam aqui na terra, espíritos puros, benéficos, Guardiães para proteger a nós mortais do perigo'" (RMM 137).
Em Revolta Contra o Mundo Moderno, outro tema permite a Evola fazer certas referências à doutrina islâmica: aquele do capítulo "A Lei, o Estado, o Império". Notando que "até e incluindo a civilização medieval, a rebelião contra a autoridade e lei imperial era considerada um crime tão sério quanto a heresia religiosa e os rebeldes eram considerados tais quais hereges, nomeadamente, como inimigos livres de suas próprias naturezas e como seres que contradizem a lei de seu próprio ser" (RMM 21-22), Evola menciona um conceito análogo no Islã e refere o leitor ao quarto surat corânico, v. III. Outro elo é então traçado entre, por um lado, o conceito romano-bizantino que opõe lei e pax do ecumenismo imperial ao naturalismo bárbaro, enquanto afirma a universalidade de seu direito, e, por outro lado, a doutrina islâmica, em que Evola nota poder ser encontrada "a distinção geográfica entre Dar al-Islam, ou 'Terra do Islã', governada por leis divinas, e Dar al-Harb, ou 'Terra da Guerra', cujos habitantes devem ser trazidos ao Dar al-Islam por meio da jihad ou 'guerra santa'." (RMM 27).
No mesmo capítulo, evocando a função imperial de Alexandre o Grande, conquistador dos povos de Gog e Magog, Evola faz referência à figura corânica de Dhul-Qarnain, geralmente identificado a Alexandre, e ao que é dito no décimo oitavo surat do Corão (RMM 26).
II
As analogias existentes entre certos aspectos do Islã e elementos correspondendo a outras formas tradicionais também são mencionadas em O Mistério do Graal; mas enquanto Revolta Contra o Mundo Moderno lida com paralelos puramente doutrinários - comparando ao Islã formas tradicionais que jamais entraram em contato com o mundo islamico - no ensaio sobre a "idéia guibelina imperial", as similaridades entre o Islã e os Templários são, pelo contrário, trazidas ao esquema histórico concreto das relações mantidas por representantes do esoterismo cristão e do esoterismo islâmico. Por exemplo, na seguinte passagem:
"Ademais, os templários foram acusados de manter ligações secretas com muçulmanos e de estarem mais próximos da fé islâmica do que da cristã. Essa última acusação é provavelmente melhor compreendida lembrando que o Islã também é caracterizado pela rejeição da adoração de Cristo. As 'ligações secretas' aludem a uma perspectiva que é menos sectária, mais universal, e assim mais esotérica que a do Cristianismo militante. As Cruzadas, em que os templários e em geral a cavalaria guibelina desempenhou um papel fundamental, em muitos sentidos criou uma ponte supratradicional entre Ocidente e Oriente. A cavalaria cruzada acabou confrontando um facsímile de si mesma, nomeadamente, guerreiros que obedeciam a uma ética correspondente, costumes cavalheirescos, ideais de uma 'guerra santa', e correntes iniciáticas" (MG 130-131).
Isso é seguido por uma descrição resumida do que Evola inadequadamente chama de "a ordem árabe dos ismaelitas", nomeadamente o movimento heterodoxo que estava proximamente ligado aos templários:
"Assim os templários eram o equivalente cristão da Ordem Árabe dos Ismaelitas, que similarmente se consideravam como os 'guardiães da Guerra Santa' (em sentido simbólico e esotérico), e que possuíam duas hierarquias, uma oficial e uma secreta. Tal ordem, que possuía caráter duplo, tanto guerreiro como religioso, quase se deparou com o mesmo destino que os templários, e por razões análogas: seu caráter iniciático e sua sustentação de um esoterismo que desprezava o significado literal das escrituras sagradas. No esoterismo ismaelita nós encontramos novamente o mesmo tema da saga imperial guibelina: o dogma islâmico da 'ressurreição' (kiyama) é aqui interpretado como a nova manifestação do Supremo Líder (Mahdi), que se tornou invisível durante o período da 'ausência' (ghayba). Isso ocorre porque o Mahdi em dado momento desapareceu, assim escapando à morte, deixando seus seguidores sob a obrigação de jurar lealdade e obediência a ele como se ele fosse o próprio Alá" (MG 131).
O esoterismo islâmico é definido por Evola como uma doutrina que vai tão longe quanto "reconhecer no homem a condição na qual o Absoluto se torna consciente de si mesmo, e que professa a doutrina da Suprema Identidade" (Oriente e Ocidente 212), de forma que o Islã constitui "um exemplo claro e eloquente de um sistema que, apesar de incluir um domínio estritamente teísta, reconhece uma verdade superior e caminho de realização, os elementos emotivos e devocionais, o amor e todo o resto perdendo aqui (...) toda significação 'moral', e todo valor intrínseco, adquirindo apenas o valor de uma técnica entre outras". (OO 212).
De fato, o esoterismo islâmico, nos ensinamentos de seus mestres e seu universo de noções e símbolos, oferece a Evola bases e referências de alguma importância. No que concerne símbolos e noções, é imperativo ressaltar a importância atribuída à função polar nas obras de Evola. Como ele explica, no "Oriente Próximo" (falar do mundo islâmico teria sido mais preciso), "a palavra qutb, 'pólo', não designa somente o soberano, mas, mais geralmente, aquele que dita a lei e é a cabeça da tradição de um dado período histórico". (Ricognizioni 50) (mais precisamente, o qutb, "o pólo", representa o ápice da hierarquia iniciática). Porém, todo um capítulo em Revolta Contra o Mundo Moderno, o terceiro da primeira seção, se apóia na idéia dessa função tradicional e faz uso precisamente dos termos "pólo" e "polar". O que é estranho é que o capítulo não contém qualquer referência explícita à tradição islâmica, ainda que os nomes de mestres esotéricos islâmicos como Ibn 'Arabi, Hallaj, Rumi, Hafez, Ibn Ata', Ibn Farid e Attar sejam mencionados em diversas obras de Evola.
A primeira menção de Ibn 'Arabi, al-shaykh al-akbar (doctor maximus), aparece em um glossário não assinado da Introdução à Magia, mas que certamente pertence a Evola: o caso de Ibn 'Arabi é citado para ilustrar "a inversão de papéis em relação ao estado em que, a dualidade tendo sido criada, a imagem divina encarnando o Eu superior se torna para o místico como um ser distinto" (IaM, I, 71). Para expandir essa idéia, Evola se refere à doutrina correspondente no sufismo:
"É interessante notar que no esoterismo islâmico há um termo específico para indicar essa mudança: shath, que significa literalmente 'troca de partes' e expressa o nível em que o místico absorve a imagem divina, a sente como si mesmo e sente a si mesmo, ao invés, como outra coisa, e fala como uma função daquela imagem. Há, na verdade, no Islã, certos 'sinais certos' pelos quais distinguir o shath objetivo de um mero sentimento ilusório em uma pessoa" (IaM, I, 71).
Em adição, ele relembra que "o fim de Al-Hallaj, que é considerado como um dos principais mestres do esoterismo islâmico (sufismo)", foi uma consequência de sua divulgação do segredo que está conectado à realização da mais alta condição. Evola retorna a esse ponto em outro lugar em sua obra, escrevendo:
"Em realidade, se certos iniciados com qualificação indubitável foram condenados e às vezes até mortos (o caso mais popular tendo sido o de al-Hallaj no Islã), isto é porque eles ignoraram aquela regra (a regra do segredo); não foi então uma questão de 'heresia', mas de razões práticas e pragmáticas. Segundo um dito: 'O sábio não deve perturbar com sua sabedoria aquele que não sabe'." (O Arco e a Clava, 108)
A outra breve alusão a Ibn 'Arabi encontrada em Introdução à Magia também é devida a Evola; no texto chamado Esoterismo e Misticismo Cristão e assinado com o pseudônimo "Ea", ele nota que o que está ausente no ascetismo cristão, apesar da disciplina do silêncio, é "a prática do grau mais interiorizado dessa disciplina, que não apenas consiste em pôr um fim à palavra falada, mas também ao pensamento (a noção de Ibn 'Arabi de 'não falar consigo mesmo')" (IaM, III, 281).
Em Metafísica do Sexo, tendo apontado que o Islã, "lei destinada à pessoa engajada no mundo, não para o asceta" (MS 262), não sustenta "a idéia da sexualidade como algo pecaminoso e obsceno" (MS 256), de modo que antes do concurso sexual com a mulher o homem pronuncia a seguinte fórmula "Bismillah al-Rahman al-Rahim" (Em Nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso), Evola observa que Ibn 'Arabi "chega ao ponto de falar de uma contemplação de Deus na mulher, de uma ritualização do orgasmo sexual em conformidade com valores metafísicos e teológicos" (MS 257).
A isso se seguem duas longas citações do Fusus al-Hikam (Os Selos da Sabedoria), da tradução de Titus Burckhardt, seguidas por essa conclusão:
"Nessa teologia sufística do amor, deve-se ver a amplificação e a elevação a uma consciência mais lúcida do mundo ritual com a qual o homem daquela civilização assumiu mais ou menos distintamente e experimentou relações conjugais em geral, partindo da santificação que a Lei Corânica confere ao ato sexual em uma estrutura não só monogâmica, como também poligâmica. Daí deriva o significado especial que a procriação pode adquirir, compreendida precisamente como a administração da prolongação da força criativa divina existente no homem" (MS 258).
Outra passagem do Fusus al-Hikam serve para ilustrar, na Metafísica do Sexo, a "chave para a técnica islâmica" (MS 349, que consiste em assumir "a dissolução através da mulher" como um símbolo da extinção no Divino. Relativo à mesma ordem de idéias é o significado da "Experiência entre os árabes" de Gallus (pseudônimo de Enrico Galli Angelini), um texto na Introdução à Magia do qual Evola cita alguns extratos relativos às "práticas orgiásticas para fins místicos (...) atestadas (...) no mundo árabe-persa" (MS 372).
No que Jalal ad-Din Rumi tinha para dizer sobre a dança ("Aquele que conhece o poder da dança da vida não teme a morte, porque ele sabe que o amor mata") (MS 128), Evola distingue outra "chave" das técnicas iniciáticas islâmicas, "a chave para as práticas de uma corrente ou escola do misticismo islâmico que tem sido transmitida por séculos e que considera Jalal ad-Din Rumi como seu mestre" (MS 370).
Na poesia sufi árabe-persa, conhecida de Evola através da Antologia della Mistica Arabo-Persiana de M.M. Moreno (Laterza, Bari 1951), ele discerne temas de uma certa relevância para sua "metafísica do sexo": por exemplo, ao aplicar simbolismo masculino à alma do iniciado, de forma que, como ele escreve, "a divindade (...) é considerada como uma mulher: ela não é a 'noiva celestial', mas a 'Amada' ou a "Amante'. Este é, por exemplo, o caso em Attar, Ibn Farid, Gelaleddin el-Rumi, etc" (MS 293).
Todo um glossário em Introdução à Magia, que pensamos poder ser atribuído a Evola, é dedicado a uma técnica caracteristicamente sufi, o dhikr. A correspondência entre essa técnica islâmica, o mantra hindu e a repetição de nomes sagrados praticada no hesicaísmo é particularmente enfatizada. (IaM, I, 396-397). O glossário também menciona Al-Ghazzali, o citando em outras páginas que são certamente atribuíveis a Evola (IaM, II, 135-136 e 239).
Ainda mais frutífero foi o encontro de Evola com o hermetismo islâmico: em verdade, de todos os autores muçulmanos, o mais citado por Evola é Geber, que é Jabir ibn Hayyan. No que concerne o papel desempenhado pelos hermetistas islâmicos, Evola escreve:
"Entre os séculos VII e XII era conhecido entre os árabes, que se tornaram os instrumentos do renascimento, no Ocidente medieval, do legado antigo da tradição sapiencial pré-cristã". (MG 150)
Em seu estudo especial sobre a tradição hermética, Evola usa um grande número de citações tomadas de textos islâmicos compilados por Barthelot e Manget. Como dissemos, ele privilegia Geber: mas se considerarmos a massa do corpus de Geber, isso não é surpreendente; Razi também é mencionado e um número de livros anônimos são citados, entre os quais o famoso Turba Philosophorum, traduzido ao italiano, no segundo volume de Introdução à Magia. Sobre o Turba Philosophorum, Evola diz que ele é "um dos textos hermético-alquímicos mais antigos do Ocidente" (TH 8); em realidade, em 1931, o ano em que a primeira edição de A Tradição Hermética foi publicada, J. Ruska indisputavelmente demonstrou a origem árabe do texto em questão.
III
Como é sabido, uma grande parte da obra de Evola se baseia em certos ensinos tradicionais que foram tornados acessíveis pelos escritos de René Guénon. Evola portanto deve muito as obras deste, de onde ele tirou conceitos e os adaptou a sua própria "equação pessoal". Ainda assim, dado o pertencimento de Guénon ao Islã e a derivação islâmica de certos ensinamentos fundamentais em sua obra, não seria irrelevante considerar o que Evola escreveu sobre a integração de Guénon na tradição islâmica:
"Guénon estava convicto de que certos depositários da Tradição ainda sobreviviam, apesar de tudo, no Oriente. Praticamente falando, ele teve contatos em primeira mão com o mundo islâmico onde cadeias iniciáticas (sufi e ismaelitas) continuavam a existir em paralelo à tradição exotérica (i.e. religiosa). Ele então se 'islamizou' completamente. Tendo se estabelecido no Egito, ele recebeu o nome de Sheikh Abdel Wahid Yasha e também a nacionalidade egípcia. Ele teve um segundo casamento com uma árabe" (R 210).
"No caso de Guénon, essa conexão (iniciática) deve ter sido realizada - como falamos antes - através de 'correntes' iniciáticas islâmicas. Mas para pessoas que não querem se transformar em muçulmanas e orientais, o caminho pessoal de Guénon tem pouco a oferecer" (R 212).
"O caso de Guénon" portanto fez Evola admitir que ainda existem, apesar de tudo, possibilidades de conexão iniciática; ademais, Evola afirma que, dadas as condições presentes, a escolha do Islã é praticamente necessária pra aqueles que não estão satisfeitos com a mera teoria.
"Nós podemos também mencionar um relatório islâmico relativo à corrente iniciática ismaelita, mais precisamente aquela do assim chamado 'Décimo Segundo Imã'. O Imã, o supremo chefe da Ordem, manifestação de um poder superior e o máximo iniciador, passou ao 'ocultamento'. Seu reaparecimento é aguardado, mas a época presente é a de sua 'ausência'.
Em nossa opinião, isso não significa que centros iniciáticos, estritamente falando, não mais existem. É certo que alguns existem, ainda que o Ocidente não seja concernente aqui e que se tenha que se voltar para o mundo islâmico e o Oriente" (O Arco e a Clava 227).
Nós tomamos essa oportunidade para notar que Evola provavelmente confundiu o movimento xiita duodecimano como um ramo particular do movimento ismaelita, e tal equívoco seria realmente excessivo, especialmente vindo de um "insider". Da mesma maneira, Evola parece pensar que o Imã é "o supremo chefe da Ordem" tanto na perspectiva ismaelita como na dos "duodecimanos"; e isso também seria uma imprecisão significativa, já que para o xiismo duodecimano, o Imã, como sucessor do Profeta, não é apenas o chefe supremo de uma Ordem, mas de toda uma comunidade.
Não obstante, isso é de importância aqui. O que importa, ao invés, é que segundo Evola uma conexão iniciática na época presente ainda é possível, desde que se volte para "o mundo islâmico e o Oriente".
No mesmo contexto, Evola levanta um problema relativo à relação existente entre centros iniciáticos e o curso da história:
"O curso da história é geralmente interpretado como uma involução e dissolução. Mas qual é a posição dos centros iniciáticos em relação às forças que operam naquela direção?" (AC 228).
Esse problema obviamente implica o Islã, como Evola escreve:
"Por exemplo, ainda que seja certo que organizações iniciáticas existem no mundo islâmico (as dos sufis), sua presença está longe de deter a 'evolução' de países árabes em uma direção antitradicional, progressista e modernista, com todas as suas consequências inevitáveis" (AC 228).
Essa questão foi levantada por Evola como parte de uma troca de idéias com Titus Burckhardt, um conhecido estudioso suíço que havia se associado com o esoterismo islâmico e residia em um país muçulmano, e que, com pleno conhecimento dos fatos, "havia ressaltado que possibilidades desse tipo (isto é, de uma conexão iniciática) sobreviviam em regiões não-européias" (O Caminho do Cinabro 2014). Nós não sabemos se, e como, o escritor suíço respondeu às objeções de Evola; em qualquer caso, pode-se dizer, em primeiro lugar, que os "países árabes", com os quais Evola parece identificar a "terra do Islã", em realidade constituem tão só 1/10 do mundo islâmico, e portanto que não seria preciso fazer sua "evolução" coincidir com o desenvolvimento da condição geral da ummah islâmica. Em segundo lugar - e, hoje, nós estamos em melhor posição para observar isso que no tempo de Evola - um "despertar islâmico" que tem se enraizado em alguns países árabes parece anunciar uma mudança radical de orientação. Finalmente, mesmo quando os "centros iniciáticos sufi" não se opõem, por sua ação, ao processo de involução geral, não é justificado afirmar que sua função é ilusória. De fato, a conexão a centros iniciáticos - dos quais procede cada transmissão regular de influências espirituais - constitui a única solução possível para quem considere reagir ao curso degenerativo do mundo moderno: um curso inevitável, já que ele está ligado às leis cíclicas precisas que governam a manifestação. É a função da conexão a um centro iniciático - e através dele ao centro supremo - garantir a continuidade da transmissão de influências espirituais para todo o período do ciclo humano atual, e assim permitir participação ao reino do Espírito até o final do ciclo. Desde tal perspectiva, o processo de involução aparece como ilusório: na verdade, ele concerne tão somente uma manifestação - que, dado seu caráter fundamentalmente contingente, representa absolutamente nada em relação ao Absoluto.
Em outro livro, Evola vê na idéia da jihad um "renascimento posterior de uma herança ariana primordial", de modo que "a tradição islâmica serve aqui como transmissora da tradição ário-iraniana" (Metafísica da Guerra 96).
A doutrina islâmica da pequena e grande "guerra santas" ocupa na obra de Evola uma posição privilegiada e adquire um valor paradigmático; ela exemplifica, de fato, e representa a concepção geral que o mundo da Tradição atribui à experiência guerreira, e, geralmente falando, à ação como caminho de realização. Os ensinamentos relativos à ação guerreira de vários milieus tradicionais são assim considerandos à luz de sua concorrência essencial com a doutrina da jihad e são expostas através de uma noção que é também de derivação islâmica: a noção de "caminho de Alá" (sabil Allah).
"No mundo do ascetismo guerreiro tradicional a 'pequena guerra santa', nomeadamente, a guerra externa, é indicada e até mesmo prescrita como o meio para travar essa 'grande guerra santa'; assim no Islã as expressões 'guerra santa' (jihad) e 'caminho de Alá' são muitas vezes usadas de forma intercambiável. Nessa ordem de idéias a ação exerce a função e tarefa rigorosas de um ritual sacrificial e purificador. As vicissitudes externas experimentadas durante uma campanha militar causam a emergência do 'inimigo' interno que montam uma dura resistência na forma dos instintos animalísticos de autopreservação, medo, inércia, compaixão ou outras paixões; aqueles que se engajam em batalhas devem superar esses sentimentos até o momento de entrar no campo de batalha se eles desejam vencer e derrotar o inimigo externo, o 'infiel'.
Obviamente a orientação espiritual e 'intenção reta' (niyya), isto é, aquela em direção a transcendência (os símbolos empregados para referir à transcendência são 'céu', 'paraíso', 'jardins de Alá' e daí em diante), são pressupostos como as fundações da jihad, sob pena da guerra perder seu caráter sagrado e se degenerar em algo selvagem em que o verdadeiro heroísmo é substituído por abandono descuidado e o que conta são os impulsos liberados da natureza animal" (RMM 118-119).
Evola menciona uma série de passagens corânicas (da tradução de Luigi Bonelli, que ele modifica ligeiramente) relacionadas às idéias de jihad e 'caminho de Alá' (RMM 119-120); 4:76; 47:4; 47:37; 9:38; 9:52; 2:216; 9:88-89; 47: 5-7. Ademais, ele cita duas máximas para ilustras essas idéias: "O paraíso jaz sob a sombra das espadas" e "O sangue dos heróis está mais próximo de Deus que a tinta dos filósofos e as orações dos fiéis" (RMM 125; cf. DF 308). Porém, se o primeiro dito é efetivamente um hadith, o segundo, extraído talvez de algum dúbio estudo orientalista, está há pólos de distância do hadith, citado por Suyuti em seu Al-kami' al-saghir, que diz literalmente: "No dia do Juízo Final, a tinta dos sábios será pesada com o sangue dos mártires, que deram suas vidas por Alá, e a tinta será mais pesada".
Antes de passar à exegese da doutrina da "guerra santa" nos milieus tradicionais não-islâmicos (especialmente Índia e Cristandade medieval), Evola faz uma analogia entre a morte do mujahid e a mors triumphalis da tradição romana (RMM 120); esse tema é referido novamente depois, quando a significância da "imortalização" atribuída à vitória do guerreiro por certas tradições européias é mensurada com "a idéia islâmica segundo a qual os guerreiros mortos em uma 'guerra santa' (jihad) nunca morreram realmente" (RMM 13). Um verso corânico é citado para ilustrar isso: "Não diga que aqueles que foram mortos na causa de Alá estão mortos; eles estão vivos, ainda que não os perceba" (Corão 2:153). O paralelo específico a isso também é encontrado em Platão (República, 468c), que Evola cita: "E aqueles que são mortos no campo, nós diremos que todos que caíram com honra são da raça de ouro, que quando morre, segundo Hesíodo, 'Habitam aqui na terra, espíritos puros, benéficos, Guardiães para proteger a nós mortais do perigo'" (RMM 137).
Em Revolta Contra o Mundo Moderno, outro tema permite a Evola fazer certas referências à doutrina islâmica: aquele do capítulo "A Lei, o Estado, o Império". Notando que "até e incluindo a civilização medieval, a rebelião contra a autoridade e lei imperial era considerada um crime tão sério quanto a heresia religiosa e os rebeldes eram considerados tais quais hereges, nomeadamente, como inimigos livres de suas próprias naturezas e como seres que contradizem a lei de seu próprio ser" (RMM 21-22), Evola menciona um conceito análogo no Islã e refere o leitor ao quarto surat corânico, v. III. Outro elo é então traçado entre, por um lado, o conceito romano-bizantino que opõe lei e pax do ecumenismo imperial ao naturalismo bárbaro, enquanto afirma a universalidade de seu direito, e, por outro lado, a doutrina islâmica, em que Evola nota poder ser encontrada "a distinção geográfica entre Dar al-Islam, ou 'Terra do Islã', governada por leis divinas, e Dar al-Harb, ou 'Terra da Guerra', cujos habitantes devem ser trazidos ao Dar al-Islam por meio da jihad ou 'guerra santa'." (RMM 27).
No mesmo capítulo, evocando a função imperial de Alexandre o Grande, conquistador dos povos de Gog e Magog, Evola faz referência à figura corânica de Dhul-Qarnain, geralmente identificado a Alexandre, e ao que é dito no décimo oitavo surat do Corão (RMM 26).
II
As analogias existentes entre certos aspectos do Islã e elementos correspondendo a outras formas tradicionais também são mencionadas em O Mistério do Graal; mas enquanto Revolta Contra o Mundo Moderno lida com paralelos puramente doutrinários - comparando ao Islã formas tradicionais que jamais entraram em contato com o mundo islamico - no ensaio sobre a "idéia guibelina imperial", as similaridades entre o Islã e os Templários são, pelo contrário, trazidas ao esquema histórico concreto das relações mantidas por representantes do esoterismo cristão e do esoterismo islâmico. Por exemplo, na seguinte passagem:
"Ademais, os templários foram acusados de manter ligações secretas com muçulmanos e de estarem mais próximos da fé islâmica do que da cristã. Essa última acusação é provavelmente melhor compreendida lembrando que o Islã também é caracterizado pela rejeição da adoração de Cristo. As 'ligações secretas' aludem a uma perspectiva que é menos sectária, mais universal, e assim mais esotérica que a do Cristianismo militante. As Cruzadas, em que os templários e em geral a cavalaria guibelina desempenhou um papel fundamental, em muitos sentidos criou uma ponte supratradicional entre Ocidente e Oriente. A cavalaria cruzada acabou confrontando um facsímile de si mesma, nomeadamente, guerreiros que obedeciam a uma ética correspondente, costumes cavalheirescos, ideais de uma 'guerra santa', e correntes iniciáticas" (MG 130-131).
Isso é seguido por uma descrição resumida do que Evola inadequadamente chama de "a ordem árabe dos ismaelitas", nomeadamente o movimento heterodoxo que estava proximamente ligado aos templários:
"Assim os templários eram o equivalente cristão da Ordem Árabe dos Ismaelitas, que similarmente se consideravam como os 'guardiães da Guerra Santa' (em sentido simbólico e esotérico), e que possuíam duas hierarquias, uma oficial e uma secreta. Tal ordem, que possuía caráter duplo, tanto guerreiro como religioso, quase se deparou com o mesmo destino que os templários, e por razões análogas: seu caráter iniciático e sua sustentação de um esoterismo que desprezava o significado literal das escrituras sagradas. No esoterismo ismaelita nós encontramos novamente o mesmo tema da saga imperial guibelina: o dogma islâmico da 'ressurreição' (kiyama) é aqui interpretado como a nova manifestação do Supremo Líder (Mahdi), que se tornou invisível durante o período da 'ausência' (ghayba). Isso ocorre porque o Mahdi em dado momento desapareceu, assim escapando à morte, deixando seus seguidores sob a obrigação de jurar lealdade e obediência a ele como se ele fosse o próprio Alá" (MG 131).
O esoterismo islâmico é definido por Evola como uma doutrina que vai tão longe quanto "reconhecer no homem a condição na qual o Absoluto se torna consciente de si mesmo, e que professa a doutrina da Suprema Identidade" (Oriente e Ocidente 212), de forma que o Islã constitui "um exemplo claro e eloquente de um sistema que, apesar de incluir um domínio estritamente teísta, reconhece uma verdade superior e caminho de realização, os elementos emotivos e devocionais, o amor e todo o resto perdendo aqui (...) toda significação 'moral', e todo valor intrínseco, adquirindo apenas o valor de uma técnica entre outras". (OO 212).
De fato, o esoterismo islâmico, nos ensinamentos de seus mestres e seu universo de noções e símbolos, oferece a Evola bases e referências de alguma importância. No que concerne símbolos e noções, é imperativo ressaltar a importância atribuída à função polar nas obras de Evola. Como ele explica, no "Oriente Próximo" (falar do mundo islâmico teria sido mais preciso), "a palavra qutb, 'pólo', não designa somente o soberano, mas, mais geralmente, aquele que dita a lei e é a cabeça da tradição de um dado período histórico". (Ricognizioni 50) (mais precisamente, o qutb, "o pólo", representa o ápice da hierarquia iniciática). Porém, todo um capítulo em Revolta Contra o Mundo Moderno, o terceiro da primeira seção, se apóia na idéia dessa função tradicional e faz uso precisamente dos termos "pólo" e "polar". O que é estranho é que o capítulo não contém qualquer referência explícita à tradição islâmica, ainda que os nomes de mestres esotéricos islâmicos como Ibn 'Arabi, Hallaj, Rumi, Hafez, Ibn Ata', Ibn Farid e Attar sejam mencionados em diversas obras de Evola.
A primeira menção de Ibn 'Arabi, al-shaykh al-akbar (doctor maximus), aparece em um glossário não assinado da Introdução à Magia, mas que certamente pertence a Evola: o caso de Ibn 'Arabi é citado para ilustrar "a inversão de papéis em relação ao estado em que, a dualidade tendo sido criada, a imagem divina encarnando o Eu superior se torna para o místico como um ser distinto" (IaM, I, 71). Para expandir essa idéia, Evola se refere à doutrina correspondente no sufismo:
"É interessante notar que no esoterismo islâmico há um termo específico para indicar essa mudança: shath, que significa literalmente 'troca de partes' e expressa o nível em que o místico absorve a imagem divina, a sente como si mesmo e sente a si mesmo, ao invés, como outra coisa, e fala como uma função daquela imagem. Há, na verdade, no Islã, certos 'sinais certos' pelos quais distinguir o shath objetivo de um mero sentimento ilusório em uma pessoa" (IaM, I, 71).
Em adição, ele relembra que "o fim de Al-Hallaj, que é considerado como um dos principais mestres do esoterismo islâmico (sufismo)", foi uma consequência de sua divulgação do segredo que está conectado à realização da mais alta condição. Evola retorna a esse ponto em outro lugar em sua obra, escrevendo:
"Em realidade, se certos iniciados com qualificação indubitável foram condenados e às vezes até mortos (o caso mais popular tendo sido o de al-Hallaj no Islã), isto é porque eles ignoraram aquela regra (a regra do segredo); não foi então uma questão de 'heresia', mas de razões práticas e pragmáticas. Segundo um dito: 'O sábio não deve perturbar com sua sabedoria aquele que não sabe'." (O Arco e a Clava, 108)
A outra breve alusão a Ibn 'Arabi encontrada em Introdução à Magia também é devida a Evola; no texto chamado Esoterismo e Misticismo Cristão e assinado com o pseudônimo "Ea", ele nota que o que está ausente no ascetismo cristão, apesar da disciplina do silêncio, é "a prática do grau mais interiorizado dessa disciplina, que não apenas consiste em pôr um fim à palavra falada, mas também ao pensamento (a noção de Ibn 'Arabi de 'não falar consigo mesmo')" (IaM, III, 281).
Em Metafísica do Sexo, tendo apontado que o Islã, "lei destinada à pessoa engajada no mundo, não para o asceta" (MS 262), não sustenta "a idéia da sexualidade como algo pecaminoso e obsceno" (MS 256), de modo que antes do concurso sexual com a mulher o homem pronuncia a seguinte fórmula "Bismillah al-Rahman al-Rahim" (Em Nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso), Evola observa que Ibn 'Arabi "chega ao ponto de falar de uma contemplação de Deus na mulher, de uma ritualização do orgasmo sexual em conformidade com valores metafísicos e teológicos" (MS 257).
A isso se seguem duas longas citações do Fusus al-Hikam (Os Selos da Sabedoria), da tradução de Titus Burckhardt, seguidas por essa conclusão:
"Nessa teologia sufística do amor, deve-se ver a amplificação e a elevação a uma consciência mais lúcida do mundo ritual com a qual o homem daquela civilização assumiu mais ou menos distintamente e experimentou relações conjugais em geral, partindo da santificação que a Lei Corânica confere ao ato sexual em uma estrutura não só monogâmica, como também poligâmica. Daí deriva o significado especial que a procriação pode adquirir, compreendida precisamente como a administração da prolongação da força criativa divina existente no homem" (MS 258).
Outra passagem do Fusus al-Hikam serve para ilustrar, na Metafísica do Sexo, a "chave para a técnica islâmica" (MS 349, que consiste em assumir "a dissolução através da mulher" como um símbolo da extinção no Divino. Relativo à mesma ordem de idéias é o significado da "Experiência entre os árabes" de Gallus (pseudônimo de Enrico Galli Angelini), um texto na Introdução à Magia do qual Evola cita alguns extratos relativos às "práticas orgiásticas para fins místicos (...) atestadas (...) no mundo árabe-persa" (MS 372).
No que Jalal ad-Din Rumi tinha para dizer sobre a dança ("Aquele que conhece o poder da dança da vida não teme a morte, porque ele sabe que o amor mata") (MS 128), Evola distingue outra "chave" das técnicas iniciáticas islâmicas, "a chave para as práticas de uma corrente ou escola do misticismo islâmico que tem sido transmitida por séculos e que considera Jalal ad-Din Rumi como seu mestre" (MS 370).
Na poesia sufi árabe-persa, conhecida de Evola através da Antologia della Mistica Arabo-Persiana de M.M. Moreno (Laterza, Bari 1951), ele discerne temas de uma certa relevância para sua "metafísica do sexo": por exemplo, ao aplicar simbolismo masculino à alma do iniciado, de forma que, como ele escreve, "a divindade (...) é considerada como uma mulher: ela não é a 'noiva celestial', mas a 'Amada' ou a "Amante'. Este é, por exemplo, o caso em Attar, Ibn Farid, Gelaleddin el-Rumi, etc" (MS 293).
Todo um glossário em Introdução à Magia, que pensamos poder ser atribuído a Evola, é dedicado a uma técnica caracteristicamente sufi, o dhikr. A correspondência entre essa técnica islâmica, o mantra hindu e a repetição de nomes sagrados praticada no hesicaísmo é particularmente enfatizada. (IaM, I, 396-397). O glossário também menciona Al-Ghazzali, o citando em outras páginas que são certamente atribuíveis a Evola (IaM, II, 135-136 e 239).
Ainda mais frutífero foi o encontro de Evola com o hermetismo islâmico: em verdade, de todos os autores muçulmanos, o mais citado por Evola é Geber, que é Jabir ibn Hayyan. No que concerne o papel desempenhado pelos hermetistas islâmicos, Evola escreve:
"Entre os séculos VII e XII era conhecido entre os árabes, que se tornaram os instrumentos do renascimento, no Ocidente medieval, do legado antigo da tradição sapiencial pré-cristã". (MG 150)
Em seu estudo especial sobre a tradição hermética, Evola usa um grande número de citações tomadas de textos islâmicos compilados por Barthelot e Manget. Como dissemos, ele privilegia Geber: mas se considerarmos a massa do corpus de Geber, isso não é surpreendente; Razi também é mencionado e um número de livros anônimos são citados, entre os quais o famoso Turba Philosophorum, traduzido ao italiano, no segundo volume de Introdução à Magia. Sobre o Turba Philosophorum, Evola diz que ele é "um dos textos hermético-alquímicos mais antigos do Ocidente" (TH 8); em realidade, em 1931, o ano em que a primeira edição de A Tradição Hermética foi publicada, J. Ruska indisputavelmente demonstrou a origem árabe do texto em questão.
III
Como é sabido, uma grande parte da obra de Evola se baseia em certos ensinos tradicionais que foram tornados acessíveis pelos escritos de René Guénon. Evola portanto deve muito as obras deste, de onde ele tirou conceitos e os adaptou a sua própria "equação pessoal". Ainda assim, dado o pertencimento de Guénon ao Islã e a derivação islâmica de certos ensinamentos fundamentais em sua obra, não seria irrelevante considerar o que Evola escreveu sobre a integração de Guénon na tradição islâmica:
"Guénon estava convicto de que certos depositários da Tradição ainda sobreviviam, apesar de tudo, no Oriente. Praticamente falando, ele teve contatos em primeira mão com o mundo islâmico onde cadeias iniciáticas (sufi e ismaelitas) continuavam a existir em paralelo à tradição exotérica (i.e. religiosa). Ele então se 'islamizou' completamente. Tendo se estabelecido no Egito, ele recebeu o nome de Sheikh Abdel Wahid Yasha e também a nacionalidade egípcia. Ele teve um segundo casamento com uma árabe" (R 210).
"No caso de Guénon, essa conexão (iniciática) deve ter sido realizada - como falamos antes - através de 'correntes' iniciáticas islâmicas. Mas para pessoas que não querem se transformar em muçulmanas e orientais, o caminho pessoal de Guénon tem pouco a oferecer" (R 212).
"O caso de Guénon" portanto fez Evola admitir que ainda existem, apesar de tudo, possibilidades de conexão iniciática; ademais, Evola afirma que, dadas as condições presentes, a escolha do Islã é praticamente necessária pra aqueles que não estão satisfeitos com a mera teoria.
"Nós podemos também mencionar um relatório islâmico relativo à corrente iniciática ismaelita, mais precisamente aquela do assim chamado 'Décimo Segundo Imã'. O Imã, o supremo chefe da Ordem, manifestação de um poder superior e o máximo iniciador, passou ao 'ocultamento'. Seu reaparecimento é aguardado, mas a época presente é a de sua 'ausência'.
Em nossa opinião, isso não significa que centros iniciáticos, estritamente falando, não mais existem. É certo que alguns existem, ainda que o Ocidente não seja concernente aqui e que se tenha que se voltar para o mundo islâmico e o Oriente" (O Arco e a Clava 227).
Nós tomamos essa oportunidade para notar que Evola provavelmente confundiu o movimento xiita duodecimano como um ramo particular do movimento ismaelita, e tal equívoco seria realmente excessivo, especialmente vindo de um "insider". Da mesma maneira, Evola parece pensar que o Imã é "o supremo chefe da Ordem" tanto na perspectiva ismaelita como na dos "duodecimanos"; e isso também seria uma imprecisão significativa, já que para o xiismo duodecimano, o Imã, como sucessor do Profeta, não é apenas o chefe supremo de uma Ordem, mas de toda uma comunidade.
Não obstante, isso é de importância aqui. O que importa, ao invés, é que segundo Evola uma conexão iniciática na época presente ainda é possível, desde que se volte para "o mundo islâmico e o Oriente".
No mesmo contexto, Evola levanta um problema relativo à relação existente entre centros iniciáticos e o curso da história:
"O curso da história é geralmente interpretado como uma involução e dissolução. Mas qual é a posição dos centros iniciáticos em relação às forças que operam naquela direção?" (AC 228).
Esse problema obviamente implica o Islã, como Evola escreve:
"Por exemplo, ainda que seja certo que organizações iniciáticas existem no mundo islâmico (as dos sufis), sua presença está longe de deter a 'evolução' de países árabes em uma direção antitradicional, progressista e modernista, com todas as suas consequências inevitáveis" (AC 228).
Essa questão foi levantada por Evola como parte de uma troca de idéias com Titus Burckhardt, um conhecido estudioso suíço que havia se associado com o esoterismo islâmico e residia em um país muçulmano, e que, com pleno conhecimento dos fatos, "havia ressaltado que possibilidades desse tipo (isto é, de uma conexão iniciática) sobreviviam em regiões não-européias" (O Caminho do Cinabro 2014). Nós não sabemos se, e como, o escritor suíço respondeu às objeções de Evola; em qualquer caso, pode-se dizer, em primeiro lugar, que os "países árabes", com os quais Evola parece identificar a "terra do Islã", em realidade constituem tão só 1/10 do mundo islâmico, e portanto que não seria preciso fazer sua "evolução" coincidir com o desenvolvimento da condição geral da ummah islâmica. Em segundo lugar - e, hoje, nós estamos em melhor posição para observar isso que no tempo de Evola - um "despertar islâmico" que tem se enraizado em alguns países árabes parece anunciar uma mudança radical de orientação. Finalmente, mesmo quando os "centros iniciáticos sufi" não se opõem, por sua ação, ao processo de involução geral, não é justificado afirmar que sua função é ilusória. De fato, a conexão a centros iniciáticos - dos quais procede cada transmissão regular de influências espirituais - constitui a única solução possível para quem considere reagir ao curso degenerativo do mundo moderno: um curso inevitável, já que ele está ligado às leis cíclicas precisas que governam a manifestação. É a função da conexão a um centro iniciático - e através dele ao centro supremo - garantir a continuidade da transmissão de influências espirituais para todo o período do ciclo humano atual, e assim permitir participação ao reino do Espírito até o final do ciclo. Desde tal perspectiva, o processo de involução aparece como ilusório: na verdade, ele concerne tão somente uma manifestação - que, dado seu caráter fundamentalmente contingente, representa absolutamente nada em relação ao Absoluto.