28/10/2019

Alberto Buela – Uma Leitura da Carta sobre o Humanismo de Martin Heidegger

por Alberto Buela

(2019)



Com Silvio Maresca temos feito, por televisão, um programa chamado “Disenso”, sobre metapolítica e filosofia, desde 2012, o qual pode ser consultado por youtube. E depois de ter entrevistado a quase todos que tentam fazer filosofia na Argentina (se sobrou alguém, o convidamos a participar), passamos a nos ocupar de temas filosóficos e este comentário é um deles.

A Carta, escrita em 1946 e publicada em 1947, é uma resposta a três perguntas realizadas pelo professor Jean Beaufret quando terminava a Segunda Guerra Mundial.

A primeira é: Como dar sentido outra vez à palavra humanismo? A resposta a esta pergunta ocupa a maior parte da Carta, que chega em minha edição até a página 54. A segunda é: É possível a relação entre a ontologia e a ética, que chega à página 66 e a terceira é: Como salvar o elemento de “aventura” que pressupõe toda investigação sem fazer da filosofia um simples “aventureirismo”?, que ocupa as duas últimas páginas do opúsculo.

Vemos como as respostas às perguntas não estão em proporção uma com a outra e é a dimensão da primeira resposta que dá título à Carta.

Heidegger começa a Carta como se fosse Aristóteles: a essência do obrar é o levar a cabo. Levar a cabo quer dizer: desdobrar algo na plenitude de sua essência, conduzir este algo a sua plenitude, producere.

Heidegger começa como termina, quando fala do pensar e afirma que sua trindade é: “o rigor da reflexão, a cuidadosa solicitude do dizer e a sobriedade da palavra”. A clareza com que começa e termina envolve um texto livre onde Heidegger “heideggereia” de uma maneira que lhe é bastante própria.


O ponto central é sobre a essência da verdade, tema que havia sido uma conferência de mesmo nome em 1930. No momento em que se produz “a virada de Heidegger”, que vem em Ser e Tempo (1927), de afirmar que “a verdade é para o Dasein o que o Dasein é para a verdade”, isto é, a verdade como adequação, para afirmar que a verdade é aletheia, ou seja, desvelamento. Assim afirma: “o homem deve, antes de falar, deixar que o ser lhe fale de novo”. 

O humanismo não é outra coisa que pensar e cuidar que o homem seja humano e não inumano, isto é, fora de sua essência. E ele dá três versões de humanismo: 

a) A do marxismo, onde o homem humano se encontra em sociedade pois esta lhe garante alimentação, vestimenta, reprodução, suficiência econômica. O erro fundamental do marxismo seria o de reduzir o ente a “material de trabalho”. E afirma na linha seguinte: “A essência do materialismo se oculta na essência da técnica”.
b) A segunda versão é a do cristianismo, que vê o homem como filho de Deus para quem o mundo é apenas um trânsito rumo ao mais além.
c) A terceira é a visão do mundo grecorromano, para o qual o homem humano se situa frente ao homo barbarus. A Paideia foi traduzida por humanitas. “Em Roma encontramos o primeiro humanismo... e a Renascença dos séculos XIV e XV na Itália é um renascimento da romanidade”. E esta é a versão e visão que chega a todo o humanismo moderno a partir do século XVIII com Goethe, Schiller e Kant que se retrotrai à Antiguidade, para o qual “o inumano é agora a pretensa barbárie da escolástica gótica da Idade Média”. 

Nada mais longe, esta última, da opinião de Heidegger, que passa a desenvolver a partir daqui a tese da Carta, segundo a qual a cultura humanista, por causa de sua racionalidade moderna, a da razão calculista, não poderia nos trazer senão a Segunda Guerra Mundial, com sua civilização da técnica com a qual colaboraram tanto o gigantismo norte-americano como o marxismo soviético.

Isso foi assim porque a figura metafísica que potencializa o humanismo é a subjetividade. Esta subjetividade é a figura que dá nome ao homem ilustrado elevado a sujeito histórico pela metafísica moderna.

Assim, a Segunda Guerra não foi, como afirmam os marxistas da Escola de Frankfurt, Adorno e Horkheimer, em Dialética do Iluminismo, uma guerra inter-imperialista, mas a razão da grande guerra teria sido o erro antropológico a que a metafísica moderna da subjetividade conduziu.

A fuga para esta armadilha é voltar a ouvir o ser. O homem tem que estar aberto ao ser através da “ek-sistência”, recuperar seu caráter “ek-stático”. Não é invertendo a velha frase de que a essência precede a existência, como faz Sartre afirmando que a existência precede a essência que vamos nos libertar da metafísica da modernidade, mas sim “ek-sistindo” em estado de abertura ao ser.

Como nenhum dos humanismos experimentados considerou a peculiar dignidade do homem, nós propomos o estado de “abertura” ao ser e à verdade como possibilidade de um novo humanismo.

O desenraizamento é um dos defeitos mais notáveis do humanismo moderno. “É a marca do esquecimento do ser”. O homem não é o senhor do ente, no sentido de que seu fim seja dominar todas as coisas, ele é “o pastor do ser”, onde ele adquire a pobreza essencial do pastor.

Chegados a este ponto (pag. 44) Heidegger repete a primeira pergunta “Você me pergunta como restaurar sentido ao termo humanismo?”. Afirmando que a essência do homem repousa na “ek-sistência”. Que a essência do homem é essencial para a verdade do ser. Que quando se fala contra todo o humanismo presente isso não significa ser inumano, “porque se fala contra o humanismo se teme uma defesa da bárbara brutalidade”, da mesma maneira que pensar contra a lógica não quer dizer que defendamos a irracionalidade; que pesar contra os valores seja uma defesa do desvalor; que postularmos um “Ser-no-Mundo” nos leve à negação da transcendência; ou que a morte de Deus nos faça postular o ateísmo, ou que quando se fale contra o politicamente correto derivemos em um niilismo.

E termina esta parte com um juízo lapidar sobre a ideia do homem como sujeito: “Acima de tudo, o homem nunca é homem enquanto ‘sujeito’ do lado de cá do mundo, seja este ‘sujeito’ tomado como ‘Eu’ ou como ‘nós’. Tampouco ele é simplesmente um sujeito que sempre se relaciona ao mesmo tempo com objetos, de modo que sua essência esteja sempre na relação sujeito-objeto. O homem é, antes de tudo, ex-sistente em sua essência, em sua abertura do ser”.

Vem logo a segunda pergunta: É possível precisar a relação entre ontologia e ética? 

Ao que Heidegger responde brevemente dizendo que a ética predominante da modernidade tem sido a ética das normas, do dever ser, que tem como base a ética kantiana e como projeção política prática a moral burguesa, mas que tanto a ética como a ontologia são disciplinas filosóficas estabelecidas a partir de Platão, que os pensadores anteriores a ele não conhecem enquanto tais.

E apresenta o caso de Heráclito, relatado por Aristóteles, que quando é visitado por alguns turistas estes o encontram se aquecendo ao lado de uma fogueira. Estes se desiludem com o filósofo e este lhes responde: também aqui se apresentam os deuses. Esta é a tradução livre de um fragmento cuja tradução corrente é: o caráter é o daimon de cada homem. 

De modo tal que temos que retroceder aos pré-socráticos para encontrarmos uma resposta que não é outra que o pensar a verdade do ser, que é, ao mesmo tempo, o fundamento da ética e da ontologia “e que é desnecessário chama-las assim”.

A terceira das perguntas: como salvar o elemento de “aventura” que pressupõe toda investigação sem fazer da filosofia um simples “aventureirismo”?, ao que Heidegger concede piedosamente as últimas duas páginas da Carta, para não dizer a Beaufret, soyons serieux. “Necessário é, na atual penúria do mundo, menos filosofia, mas mais atenção solícita ao pensar; menos literatura, mas mais cuidado das letras”. Para bom entendedor meia palavra basta, e termina dizendo: “O pensar recolhe a linguagem no dizer simples. A linguagem é a linguagem do ser como as nuvens são as nuvens do céu”. 

A Carta sobre o Humanismo (1947) não só é uma recapitulação de tudo que Heidegger pensou durante os 20 anos que mediam entre Ser e Tempo (1927) e que produziram “a virada” heideggeriana, mas também, e principalmente, todo um manifesto sobre como se deve fazer filosofia daqui em diante.