por Carlos Xavier Blanco
(2018)
Finalmente contamos novamente, em nossa língua espanhola, com o trabalho de Walter Schubart (1897-1942), Europa e a Alma do Oriente.
Este pensador, filósofo, eslavista, teólogo, é muito pouco conhecido em nosso país. Ele era um alemão báltico, um "ocidental no Oriente", e isso é um fato em si mesmo: é preciso levar em conta que os teutões se expandiram em direção ao leste, em direção ao que hoje é a Rússia e os países bálticos, desde os tempos medievais, contribuindo grandemente para a cultura dessas nações e deixando bolsões de população germânica, bolsões que as tragédias da guerra e os inevitáveis reajustamentos de fronteiras na Europa modificaram notavelmente. Schubart, de origem teutônica, no entanto, era muito próximo, geograficamente e psiquicamente, da grande Rússia.
Schubart é um filósofo, parece, destinado a ser uma ponte. A ponte entre o Ocidente, que está imerso na ruína e na decadência, e um Oriente que vê como promessa e salvação do europeu. O Ocidente e sua terra natal, a Alemanha, estão condenados. Não apenas o hitlerismo, mas também as forças liberais e "democráticas" que irão combatê-lo na Segunda Guerra Mundial são sintomas de uma perda da alma.
O europeu medieval era "o homem gótico". Em sua versão degenerada, o homem gótico tornou-se por volta do século XVI em "homem prometéico". O homem prometéico que desafia os deuses, querendo roubar seu fogo, que é basicamente o pecado de hybris, de insolência, falando como grego. O olhar esperançoso de Schubart, eslavista por formação, filósofo das culturas e religiões, se põe sobre a Rússia, a Grande Mãe dos povos eslavos que pode ser um dia, uma vez superado o episódio do bolchevismo, a salvação desse “homem prometeico", que é um tipo de homem degenerado e seduzido pelo dinheiro e pela técnica. A mãe Rússia vai resgatar o potro desenfreado da Europa Ocidental, prestes a despencar por pura loucura. Mas o germano-balto que foge de um nazismo que se expande para o leste, casado com uma judia, cairá cara a cara com o bolchevismo, cujas garras causarão sua morte. Um campo de prisioneiros no Cazaquistão será o lugar onde Walter e sua esposa Vera desaparecerão.
A partir dessas linhas animamos à leitura do livro que a Ediciones Fides volta a apresentar para o público que lê na língua de Cervantes. Animamos também a que se empreendam investigações em espanhol sobre um filósofo tão pouco conhecido, pelo menos em nossa língua.
Pioneiros na difusão do livro e de seu autor nos tempos recentes, é justo dizê-lo, foram Manuel Fernández Espinosa, na Revista del Movimiento Raiganbre e Antonio Moreno Ruíz. Nos blogs que apontamos, assim como nas republicações devidas ao sítio virtual “Cultura Transversal”, eu pude tomar contato com a figura e o livro de Schubart. Envio meu agradecimento a essas pessoas e sítios virtuais. O leitor poderá conhecer neles algo mais sobre o filósofo Schubart e sobre o livro aqui reeditado.
A partir de 1946 há uma tradução para o espanhol pelo cônego Antonio Sancho Nebot, na editora Studium. O livro não é fácil de conseguir, apesar de seu interesse indubitável. Para chegar a ter ciência dele, cheguei de maneira um tanto natural, mas incidental, depois de meus estudos sobre a filosofia de Oswald Spengler. Há semelhanças e paralelos entre os dois autores e, no começo, eu pensei ter visto em Schubart um autor que tomava caminhos semelhantes ao autor brilhante de A Decadência do Ocidente. Afinal, ambos os filósofos eram alemães, contemporâneos. Afinal, eles falavam sobre um tema semelhante: o tema de que "o Ocidente", enquanto civilização, estava em perigo. Ambos também prognosticavam: algo novo virá, uma era, uma superação do estado atual das coisas. Eu pensei que eu pudesse haver apenas diferenças terminológicas e de matiz, mas dois homens que se dedicaram a ser "filósofos da cultura", dois pensadores da mesma nacionalidade étnica e linguagem, alemães, habitantes de um mundo europeu precipitado no abismo, conscientes de nosso profundo e sério declínio enquanto europeus, poderiam ser complementares, semelhantes, próximos. Um erro. A leitura deste livro que vocês têm em mãos me levou imediatamente, desde o início, até uma direção marcadamente diferente. A direção é marcada pela questão religiosa.
Em Schubart existe uma visão cristã e espiritual da existência que contrasta vividamente com o ateísmo ou irreligiosidade de Spengler. Este último vem a considerar que a religião é um elemento dentro da alma de um povo, um acidente com respeito à verdadeira substância ou unidade da história, que é a Cultura, que, em sua fase senil terminal se torna Civilização. É por isso que, sobre o tema do cristianismo, Oswald Spengler não concorda com sua completa identificação com o europeu. Havia uma Europa pagã – não-cristã - como haverá uma Europa pós-cristã. A religião cristã em si não aparece em Spengler como uma substância homogênea. Quando usamos o mesmo termo - "cristianismo" - para nos referirmos a civilização grecorromana, no processo de tornar-se "cavernícola" e "arábica" (III-VIII séculos AD) ou para se referir ao brilho da civilização faustiana nórdico-europeia (séculos X-XVI), situando ali o "renascimento" da mesma corretamente no XII (nascimento das universidades, da arte gótica, da grande escolástica) não estamos brincando com as palavras, especialmente com a palavra "cristandade"? Estamos caindo no mesmo tipo de armadilha sacerdotal que consiste em impor uma teologia "êmica" (no sentido de Kenneth Pike, autorrepresentada como única verdadeira) ao próprio curso da história?
Spengler, portanto, desfaz a própria idéia de "religião cristã" porque, para ele, a unidade ou entidade chamada "Cultura" é anterior. O cristianismo multissecular dos negros etíopes não seria, de acordo com isso, o mesmo cristianismo que o dos cavaleiros teutônicos ou francos da época das Cruzadas. O cristianismo dos "arameus" das terras desérticas do Oriente Próximo e Médio, ascético e inimigo da carne, não teria nada a ver com os Cavaleiros da Reconquista espanhol ou o dos condottieri italianos. Os moçárabes que e martirizavam na Córdoba moura do século IX não teria nada a ver com os seus irmãos de fé e raça, sob as ordens dos reis asturianos, atacavam e repovoavam as terras usurpadas previamente pelos maometanos. Existe um cristianismo específico de cada cultura e civilização. Na Espanha da Idade Média coexistiam os cristianismos ascético-cavernícolas (moçárabes) e faustianos ou góticos (reinos do norte).
No livro de Schubart, no entanto, há uma alma européia-cristã que atravessa as eras. É um tipo de essência que se vai modulando. Em cada aeon brilha e atua um arquétipo diferente, e diante desse brilho e efeito os eventos históricos exteriores (dinastias, guerras, revoluções) não podem senão retardar ou acelerar o que o próprio curso do arquétipo tem que dar de si. A mudança de aeon é um evento interno, um devir da alma de um povo. E esse devir em Schubart não tem adjetivo ou acidental. É um devir religioso em si mesmo. Isso explica que o leitor encontrará neste texto numerosos capítulos que correspondem a uma Psicologia dos Povos. Há uma psicologia dos russos, dos alemães, dos franceses, dos ingleses, dos espanhóis... As principais nações da Europa são neste trabalho objeto de um estudo psicológico.
Esta parte considerável do trabalho não será do agrado daqueles que, a partir de uma visão materialista da história, quer economicista ou tribunal evolucionista, ver que os povos e as nações têm "alma" ou, no caso de ter algo semelhante, é uma alma em mudança, que flutua de acordo com as circunstâncias externas: mudanças nos modos de produção, revoluções tecnológicas, reajustamentos geopolíticos e invasões militares. Os espanhóis são talvez os mais doutrinados nesta visão materialista da história, dentro da qual é injetada, como um componente básico na papila, toda uma "Lenda Negra".
Ao lêr o capítulo schubartiano dedicado a nosso povo, o leitor não pode deixar de se surpreender. Ou mudamos muito, ou o filósofo ainda vivia sob o feitiço de um tipo de espanhol que em seu tempo já havia deixado de existir. O santo, o místico, o conquistador, o cavaleiro católico, empunhando espada e rosário, onde se encontram já, às alturas do século XXI? É possível que no final dos anos 30 o filósofo germano-báltico tivesse formado a imagem de uma “Espanha Eterna”, continuação da que se considerava genuína e essencial, a Espanha imperial do século XVI, na raiz da chamada “Guerra Civil”, contenda que as mentes religiosas e tradicionalistas da época estavam dispostas a entender como “Cruzada”. Uma Cruzada da fé católica, de uma Espanha essencial e eterna contra os “sem deus” e contra o perigo vermelho. Mas o certo é que nessa contenda a mística castelhana do século XVI, ou o espírito de verdadeira (re)conquista contra “inimigos da fé” desempenhou pouco papel em nossa carnificina civil, e apesar de Schubart se mostrar conhecedor do pensamento espanhol contemporâneo (Unamuno, Ortega, Madariaga), a “radiografia” que faz de nosso povo parece psicologicamente carente de foco. Como não sou determinista ou economicista, tenho por lícito fazer radiografias psicológicas dos vários povos do planeta, mas creio que estas sofrem facilmente com problemas como a distorção ou a projeção. A chamada guerra civil espanhola de 1934-1939 (na prática, a guerra civil nasce já com a “revolução” asturiana de 1934) e o enorme peso do Siglo de Oro espanhol distorceu, em minha opinião, a visão que de nós faz Schubart.
Os espanhóis já não somos esse povo de místicos e guerreiros, de católicos ultramontanos e guerrilheiros natos, mas um povo obeso, flácido, volúvel, superficial e falador, extremamente hedonista e consumista, não muito diferente da massa humana além dos Pirineus, massa humana criada no pós-guerra europeu após a “paz” da Nova Ordem de 1945. Mas, aceitando isso, em nosso passado (e talvez em potência) há certas notas de semelhança com os russos que nos convidam à reflexão, e as finas antenas exploradoras de Walter Schubart nos ajudam. Os espanhóis e russos partilhamos traços de caráter e destino, e este seu livro nos leva a refletir sobre. É justamente na históra religiosa dos dois povos em que podemos encontrar paralelismos e complementariedades. Os espanhóis, de tradição católica, e os russos, de tradição cristã-ortodoxa, partilharam de uma história muito semelhante que poderíamos resumir nos seguintes pontos.
1) Os dois povos foram a base de grandes impérios no sentido estrito de impérios civilizadores, não depredadores. Os impérios civilizadores aglutinam diversas nações e ajudam a que povos diversos alcancem graças ao Império um status nacional-estatal. Por exemplo, os espanhóis o fizeram na América, enquanto os russos fizeram o mesmo na Ásia.
2) Os dois povos se destacaram historicamente por sua profunda religiosidade, base da criação de uma Civilização: o catolicismo no caso da Civilização imperial hispânica, a ortodoxia no caso da Civilização imperial russa. A desintegração de suas crenças, ou sua brusca alteração pela influência de ideologias estrangeiras pressupuseram a desintegração da Civilização-Império que é consubstancial aos dois povos.
3) As duas civilizações-impérios desempenharam um papel fundador e defensor da Europa por conta de sua posição geográfica e sua atuação política respectivamente, no Oeste, no caso da Espanha, e no Leste, no caso da Rússia. É o caso dos impérios que serviram de muralha de contenção: a) Diante de invasões afro-árabes, durante a Reconquista, e das ameaças turcas, durante a Idade Moderna, no caso espanhol e b) Diante de ameaças tártaras, turcas e de outros povos asiáticos, no caso russo.
4) Em contradição com seu papel defensor e fundador da identidade europeia, aos dois povos, assim como às civilizações-impérios deles emanados, foi negada sua “europeidade” ou, no mínimo, se pôs em dúvida seu caráter central e prototípico de europeidade. A derrota do império espanhol, às mãos dos poderes liberais anglo-franceses, e o desaparecimento do russo nas mãos dos bolcheviques situou estes baluartes da Europa na marginalidade.
5) Frente ao materialismo imperante na “Europa central”, franco-alemã, e no oeste atlântico anglo-americano, a espiritualidade e religiosidade espanhola e russa, cada uma com sua tradição específica (católica e ortodoxa, respectivamente) tem sido objeto de zombaria, surpresa ou estranhamento. Estes aspectos de misticismo e fervor cristão, mas também sua manifestação oposta, o ateísmo fervoroso dos “sem deus” revolucionários espanhóis e russos, são muito destacados por Walter Schubart.
6) A idiossincrasia e espiritualidade dos povos espanhol e russo demonstrou ser, segundo nosso autor, marcadamente “anti-moderna”. Já comentamos acima que a Espanha não cumpriu com as expectativas, especialmente a partir da etapa materialista e desenvolvimentista que Franco impulsionou a partir dos anos 50, etapa que incidiu em uma mentalidade consumista e hedonista do povo, se opondo às ideologias que supostamente eram para ser a medula do regime (tradicionalismo carlista, nacional-sindicalismo, etc.). As ideologias anti-modernas tiveram que se retirar diante do “inimigo americano” e da inclinação na direção da órbita atlântica, liberal-capitalista e “europeísta”. No caso russo, Schubart nos previne diante das mudanças externas que o bolchevismo levava a cabo na Rússia. Estas mudanças afetaram as superestruturas políticas, a titularidade dos meios de produção, a modernização técnica, etc., mas são mudanças materiais, ou seja, que não afetaram a “alma russa”. E esta alma russa é imune aos aparentes vaivéns e mutações bruscas da política e da economia.
7) O que nós chamaríamos a “comunidade orgânica” dos povos espanhol e russo, com independência de sua adoção de formas tecnocráticas modernas, instituições parlamentares, simbologia liberal, economia capitalista, etc., é, substancialmente, de corte igualitário, “fraternal”. Schubart se admirava como na Espanha tradicional os nobres e os campesinos plebeus, praticamente tratavam-se informalmente, apesar das diferenças econômicas e educativas serem enormes. No caso russo, a minúscula proporção de nobres diante de uma massa ingente de camponeses, fazia com que estes organizassem sua vida em termos igualitários, proto-socialistas. A própria espiritualidade dos dois povos é marcadamente igualitário-fraternal.
A explicação das semelhanças e diferenças entre os povos europeus, inclusive daqueles que supostamente figuram à margem, como o russo e o espanhol, dentro de um protótipo de “europeidade central”, é dada por Schubart em termos completamente religiosos, em termos de “vivência” diferencial da mensagem evangélica. De fato, à mentalidade prussiana (germânica do norte), claramente luterana, nosso autor retira toda condição espiritual. Ali onde Spengler via “o triunfo da vontade”, o forte e reto sentido do dever e do sacrifício, Schubart vê no protótipo prussiano uma frieza e um mecanicismo quase inumanos. A alma faustiana exaltada por Spengler no homem do ocidente nortista, é uma alma de gelo ávida por manipulação e domínio em Schubart. É a alma prussiano-luterana que seguiu um caminho de perdição a partir de seu núcleo inicial, comum a todos os europeus da Idade Média: o núcleo da alma gótica.
A alma gótica criou uma civilização vasta e ardente, a civilização que preencheu a Europa na Idade Média com catedrais, abadias e comunidades orgânicas. Mas este ardor, quando não procedia dos povos mediterrâneos, havia sido aportado pelos celtas, nunca pelos germânicos do norte. O cristianismo gótico foi o verdadeiro cristianismo especificamente europeu, latino e celta. Só de maneira incidental o alemão participou deste resplendor na civilização cristã europeia. E quando o germânico teve voz própria para imprimir um giro – correspondente à mudança de aeon – em nossa civilização, este giro se pareceu mais ao rígido monoteísmo mosaico e maometano do que ao “verdadeiro” (místico e fraternal) cristianismo gótico. O luteranismo e o calvinismo plantaram a semente da discórdia, e mataram a ideia de uma Igreja Universal. Como “seções” amputadas de tal Comunidade, estas confissões não fizeram outra coisa além de se subdividir em inúmeras seitas. Para Schubart isso representa, frente ao espírito universalista, o triunfo do particularismo. O ocidente moderno, frente ao gótico, vai ser o ocidente do ponto, do particular: o indivíduo (criado a partir do molde do burguês) e o Estado (criado a partir do interesse da classe burguesa). Rompida e dissolvida ficará, desde então, a comunidade orgânica (campesina, gremial, estamental, dinástica) e a bicefalia universal (Igreja e Sacro Império).
Se por alguma catástrofe cósmica, revolução mundial ou mudança de aeon, o homem ocidental deixasse de ser particularista, “sectário”, idólatra do dinheiro e da técnica, este homem europeu voltaria a ser o que era, o homem gótico. E esse homem gótico estaria mais próximo do homem do leste, do russo.
O homem do leste aos olhos de Schubart é uma espécie de cristão asiático. Esta é a condição da Rússia. A Rússia, mais que uma nação, ou um povo europeu a mais, ao lado dos outros, é toda uma Civilização. Seus territórios, tal como suas gentes, são de índole tanto europeia como asiática. A Rússia poderia ser, algum dia, a mãe que volta a tomar em seu colo dezenas de filhos desviados, os povos euro-ocidentais, e conformar uma grande união com a Ásia. Se perfila em Schubart, a partir de preocupações puramente espirituais, e de modo algum belicistas, um projeto como o da Eurásia. O projeto ansiado por nosso filósofo não é em si mesmo geopolítico, como o que em nossos dias propõe Aleksandr Dugin, mas sendo como é de índole espiritual e revolucionária, possui consequências geopolíticas também. Tratar-se-ia de que o homem euro-ocidental abandone sua forma de ser atual, que leva a velha civilização gótica à autodestrutiva civilização prometeica. Que voltemos no Ocidente a nossas raízes – medievais ou góticas – é algo que dependerá de uma mudança de aeon. E de maneira um pouco profética, Schubart já o vê ao longe: O Aeon Joânico. Este aeon pressupõe o restorno a um cristianismo “primitivo”, “original”, que é o que teriam conservado os povos eslavos e a parte do oriente europeu que teria ficado sob tutela da Igreja Ortodoxa. A única dificuldade para a realização desse cristianismo baseado no Evangelho de João (daí o termo “Joânico”) pode ser uma certa tendência anarquizante dos povos eslavos. Diz nosso autor: “Se a alma russa se encontrasse com a arte católica da direção das almas, nosso desgraçado planeta teria diante de si a última possibilidade de chegar a ser ainda um astro decente”. Mostra-se aqui a possibilidade de voltar a abraçar a “Europa do Centro” a partir das margens (antigos impérios), o hispano-católico, e o russo-ortodoxo. Deve-se ter em conta que neste Aeon joânico não há “povo escolhido”.
O equivalente moderno (desde os tempos de Cromwell) de um “povo escolhido”, de um novo israelita, é o inglês. O inglês puritano se sentia descendente de uma das tribos de Israel, e incidiu na história europeia de maneira fanática e agressiva, acreditando-se ajudado por esse Deus déspota que, iracundo, convoca os seus a uma missão cega e irrenunciável. O puritano inglês, asceta do dinheiro, trasladado à América como terra da promessa, convertido no ianque, desnaturalizou completamente o europeu. O puritano inglês criou o Império Britânico, um império talassocrático (marítimo), baseado na descontinuidade, como sua própria ilha, separada da Europa já indica com um mero olhar sobre os mapas. Os Estados Unidos chegaram a criar um país de dimensões continentais ao tomar dos índios, dos espanhóis, dos mexicanos, grandes extensões e chegar até o Pacífico. Não obstante, com o despojo dos últimos restos do Império Espanhol (1898), a política externa norte-americana toma o testemunho da britânica e prossegue a dominação talassocrática do mundo. A armada e as tropas do “atlantismo” anglo-americano não estão a serviço de outra ideia que a depredação e a extensão de um modo de vida não-europeu mas “ocidental”, ou seja, o monoteísmo quase mosaico e maometano de um deus único: o capital.
Quando a Rússia se expande, não obstante, não há em absoluto uma adscrição ideológica fixa (liberalismo, capitalismo, parlamentarismo, no caso anglo-americano) mas uma expansão espiritual de um povo que, tal como a Espanha Habsburga, parecia chamado a um destino de alcance universal. O imperialismo czarista, o pan-eslavismo, o comunismo internacional, ou agora a ideia duginiana de uma Eurásia, são modulações distintas. Este expansionismo é, frente ao talassocrático, telúrico (terrestre). Os eslavos formam uma porção nada desprezível da população europeia. É uma das suas etnias principais, um componente básico da identidade europeia não só oriental, mas central, região onde se encontra bastante ligado a outras etnias (germânicos, magiares, etc.). Mas na direção da Ásia, a Rússia enquanto ideia chegou a ser o núcleo vertebrador de centenas de povos (tártaros, mongóis, turcos, etc.) que alcançaram seu status estatal ou quase-estatal, voluntariamente ou por força, com e pelos russos.
Ainda que a Rússia, há bastante tempo, possua cidades, e muito grandes, é a estepe a configuradora de sua paisagem e, portanto, de sua alma. O russo, como o espanhol, leva dentro de si um camponês. A enorme massa de camponeses, bastante dispersa porém, em enormes estepes, é a base dessa “alma russa” buscada por nosso filósofo. Por isso se encontra muito mais perto daquilo que nós, os ocidentais em geral, fomos uma vez: camponeses “góticos”, tão próximos quanto dos camponeses indianos ou chineses, nações “que são mais do que nações”, pois são também civilizações assentadas sobre massas campesinas. Pode parecer paradoxal, pois “civilização” procede de cives, o cidadão e a cidade que, em um dado momento da história deixa de ser excrescência do campo, da aldeia e da colheita e se converte em garra artificial que espreme o campo. Como Spengler, Schubart enxerga a queda do homem prometeico ocidental em sua forma artificiosa de vida urbana, vinculada essencialmente ao materialismo, ao cálculo, à frieza. O homem prometeico está ligado às coisas, é materialista e põe ordem formal nelas. O homem joânico (russo) está ligado às almas, é alma entre as almas, e esse desprendimento das coisas lhe faz perder realismo e eficácia. A união do material e do formal, da alma que sente e ama (matéria, mater, mãe) e da objetividade necessária para que a alma alcance suas metas e forje destinos (forma) é o que poderia representar uma Eurásia, um abraço entre um tipo de homem que morre, se dissolve, o ocidental, e um tipo de homem que não resplandecerá sob o Aeon que lhe corresponde. E isto escreve nosso autor mesmo sob o jugo soviético mais duro: “A Europa moderna é forma sem vida. A Rússia é vida sem forma”.
O que fará falta, quando o bolchevismo desapareça e a guerra mundial seja esquecida, é uma síntese. A síntese entre valor e virtude. O ocidental possui vigor voluntarioso e fixação nos objetivos. O oriental (russo-joânico), virtude e humanismo. A síntese é uma espécie de Eurásia.
A degradação do homem gótico, do europeu cristão medieval, dividida sua unidade ancestral em distintos espécimes que passaram a se chamar de “Estados nacionais”, poderia ser detida convenientemente nessa era joânica e eurasiática. O homem gótico existiu ainda em continuidade perfeita no espanhol do Siglo de Oro. Este, frente ao que se costuma dizer de forma insensata, não representava a “romanidade”. O romano antigo era duro, pragmático, supersticioso e idólatra, mas não místico. O império espanhol só por acidente foi depredador (porque todo empreendimento humano é suscetível de erro, maldade e corrupção), mas foi por vocação império ordenador. O projeto do César Carlos era elevar a Idade Média à nova era, a Universitas Christiana. Era o projeto de realizar de maneira universal e efetiva o humanismo. O Império era instituição, ou seja, maquinário militar, dinástico, administrativo, a serviço de uma Nova Roma não depredadora, mas ordenadora, ordenadora a partir do fervor cristão. Mas não há ordem sem caos gerado colateralmente, não há ação sem reação. A reforma religiosa, as monarquias “nacionais”, burguesas in nuce, são o próprio produto do rechaço ao Século Espanhol.
A hegemonia francesa, e depois inglesa, que abarca os séculos XVIII e XIX, é o triunfo do homem prometeico frente ao homem gótico tardio, o homem imperial que foi protagonista no século espanhol. Por isso, durante muito tempo ser “moderno” em nosso país significava exatamente ser “anti-espanhol”. O Iluminismo, o afrancesamento e, depois, o liberalismo e todas as ideologias posteriores a ele não eram nada além de tentativas de renunciar a uma idiossincrasia, imitar potências estrangeiras, ou seja, se render diante daquilo contra o que se haviam levantado nossos ancestrais durante longos séculos.
A derrota do homem imperial espanhol, no início do século XVIII, pressupôs a ascensão de uma nova dinastia, os Bourbon, e o início do ciclo estrangeirizante na Espanha, sua mudança de forma, substituindo-se o Império pelo “Estado-Nação” ao modo francês. Mas já no século XIX, o ciclo passa a ser anglossaxão. Uma Espanha afrancesada (ilustrada, jacobina) tanto como anglossaxonizada (liberal-capitalista), é uma Espanha impossível do ponto de vista anímico ou essencial. Justamente como a Rússia ilustrada de Pedro o Grande ou a Rússia materialista e tecnólatra dos bolcheviques é impossível a longo prazo para a Rússia essencial.
A influência do anglossaxão é pérfida, nefasta na alma dos outros povos da Europa. Schubart possui ideias muito claras sobre o anglossaxão:
“Daí o matiz pragmático da filosofia inglesa, ainda quando se ocupa do transcendental; e daí o caráter sacro do espírito russo, ainda quando se dedica a tarefas de ordem prática. A filosofia inglesa termina onde começa a verdadeira. Foram os ingleses os primeiros que rebaixaram a ciência a uma disciplina de cálculo. A concepção mecânica do mundo é uma invenção inglesa. O instinto de presa determina o pensar inglês mesmo no caso de não estar diretamente a serviço de um fim utilitário, como no que concerne a concepção mecânica da natureza. O inglês vê no mundo uma gigantesca fábrica. Inglaterra, a pátria do capitalismo e da máquina a vapor, difundiu por todo o orbe terráqueo essa atmosfera de vapor de carvão e cobiça em que a alma se afoga. Desde as guerras napoleônicas o mundo se tornou puritano em grau espantoso. Com razão se chama ao século XIX de século inglês”.
O rei Midas da lenda, convertia em ouro tudo que tocava, e demasiado tarde compreendeu que o essencial na vida não é ouro, que o ouro só é uma via ou instrumento. O anglossaxão, por meio de uma espécie de monoteísmo puritano, converte em mercadoria tudo que o cerca, e o dinheiro é seu Deus onipotente. Já não há sabedoria, nem mesmo ciência: tudo é cálculo e manipulação. O russo, por sua vez, é “tradicional”: se desprende do mundo, vive o mundo de maneira fraterna, amorosa, como comunhão das almas. Não há no tradicionalismo russo-ortodoxo esse “espírito de presa” que, equivocadamente, Spengler generalizava ao homem ocidental (faustiano), e mesmo ao Homo Sapiens em sua totalidade. Não. Essa alma selvagem, de fera predadora, é especificamente anglossaxã. E se o espírito insular do inglês havia cortado dele muitas amarras com a grande família gótica do continente, isso era ainda pior no caso norte-americano. Diz Schubart:
“Que horrendos abismos tem a alma inglesa é demonstrado pela história dos reis britânicos, história mais cruel e pródiga em assassinatos do que muitas outras. Napoleão, que conhecia seus contrários, chamou os ingleses de uma raça completamente selvagem. Sem o freio do espírito de nobreza o inglês seria insuportável. Se lhe for retirado esse freio, não sobra nada além do...americano. O americanismo crasso é anglossaxonismo sem o ideal do gentleman, forma degenerada do modo de ser inglês, mundo prometeico, não mitigado por valores góticos. Nisso funda o esfoçro que fazem muitos colonizadores do Novo Mundo por se livrarem na medida do possível das tradições do passado europeu”.
O anglossaxão se gaba de ser pai da ideia de tolerância. É sabido que esta ideia iluminista dos franceses teve suas origens na Inglaterra. Sem Locke, não haveria enciclopedistas, não haveria Voltaire, não existiria Montesquieu, não se teria dado depois, “por dedução”, a Revolução de 1789. Pois bem, seguindo a lição de Nietzsche, Schubart descobre o segredo da tolerância inglesa que, aplica a outras culturas, esconde uma raiz: o desprezo: “A própria tolerância inglesa em relação às culturas estrangeiras – certamente uma boa qualidade moral – deve ser atribuída em parte ao desprezo que o inglês sente por toda cultura”.
O multiculturalismo oficial, e até obrigatório, que se impôs em todo o Ocidente é, nietzscheanamente falando, um fariseísmo de consciência suja. Um sentimento de superioridade que aflige o anglossaxão mas com o qual já não se sabe o que fazer, já não há como deter sua exaltação. Um racismo vergonhoso é o que restou da “tolerância” anglossaxã. Quando os anglossaxões ergueram seu império talassocrático, o afã de escravizar ou se aproveitar do nativo, de uma ou outra forma, predominou sobre o afã de evangelizar, ocidentalizar, integrar. Agora, Agora, com esses domínios descolonizados, os nativos pouco ou nada “ocidentalizados” vêm ao Velho Mundo acreditando de pés juntos na “tolerância” e nivelação cultural de que ouviram falar, desses filósofos brancos que ensinaram a eles a via de uma emancipação. Não esqueçamos que o relativismo cultural e a exaltação do bom selvagem são produtos refinados nos laboratórios acadêmicos da antropologia social e cultural anglo-americana, e constituem a fonte justificadora de milhares de ONGs imigracionistas, antirracistas, etc. São filhas do próprio pecado anglo-americano de sua história de colonização-descolonização.
O russo também será bom complemento e contrapeso do prussiano. O prussiano (não tanto o alemão do sul, o bávaro, o austríaco, devido a seu catolicismo) apareceu aos olhos dos outros europeus como um tipo de fera sádica. Mas Schubart adverte quanto a esse erro. O prussiano não é sádico, especialmente em situações de guerra. Ele é frio. É um povo com o coração gelado. Schubart, tal como Spengler, não duvida ao comparar o romano com o prussiano. Também o romano era catoniano, austero e tradicionalista, ou o legionário, um homem duro, disciplinado, aparentemente privado de sentimento. É o tipo de homem necessário para forjar um império telúrico (terrestre). Mas enquanto Spengler via nesse novo romano do século XX, o soldado prussiano, uma esperança, um porvir, Schubart vê uma catástrofe. Se bem também é catastrófico o resultado do trato que o prussiano recebe das outras nações da Europa. O alemão do norte é o grande incompreendido da Europa, justamente porque ele foi o arquétipo do ocidental moderno, que se impôs aos outros, filho direto da Reforma:
“Com a Reforma o alemão contribuiu de um modo decisivo para o nascimento da cultura prometeica. Desde então se ‘acreditava’ no norte da Alemanha, como em nenhuma outra parte, no homem prometeico. Contra este tipo, contra o portador consequente da cultura heroica, contra o apaixonado fanático pelo sentimento de ponto, se dirige o ódio anti-alemão. É um ódio latente da Europa por si mesma. Os herdeiros do ideal gótico odeiam o rude conquistador deste ideal. Daí que odeie com a maior veemência os prussianos (protestantes), muito menos os bávaros (católicos) e absolutamente nada os austríacos. De modo que em último termo é a posição especial do alemão em relação ao cristianismo e de suas incorporações modernas que suscitou e que explica o ódio contra ele. O mundo sempre está pronto para trata-lo como a um apóstata que abandonou o círculo cultural comum do Ocidente e agora se encontra fora como inimigo, à margem como...o judeu”.
O espanhol imperial era um gótico tardio, e no século XVI lutou para buscar essa universalidade (catolicidade) em toda a Cristandade. Mas nesse mesmo século nasce o homem prometeico. Este é um tipo de homem reformado no espiritual, desgarrado do tronco comum da Idade Média, contraposto a tudo o que havia marcado o destino de todo o continente desde os tempos das grandes invasões bárbaras. Conservou a dureza do antigo romano, sua disciplina e sentido de dever e a obediência, mas falhou em sua arte de legislar e civilizar, de fazer-se amar pelo subjugado. O espanhol imperial era, como o cavaleiro da Reconquista, um lutador, mas também um repovoador e civilizador. O subjugado não tinha alternativa a se integrar nessa ordem espiritual ou fugir. O prussiano, ao contrário, não integra, não busca ser amado. E resulta irônico que o judeu e o prussiano apareçam em “Europa e a Alma do Oriente” como duas figuras gêmeas: representam uma marginalidade e um perigo. A Europa tradicional, aquela na qual o aeon joânico pretenderá se abraçar à Rússia, pretenderá, por impulso idêntico, exorcizar o prussiano que leva dentro de si.
Assim é descrito o homem prometeico – o prussiano, o ocidental protestante do norte: é frio e não se faz querer, como tampouco quer a si mesmo. Como filósofo cristão que é, Schubart sabe que a ciência, a ordem social, os empreendimentos políticos e culturais não são nada sem amor. E a este homem prometeico falta por completo o amor, começando pelo amor por suas próprias criações. Isso nos leva a uma civilização suicida. A vontade de poder do homem prometeico tão somente leva à destruição não só de seu povo, mas de todos os que caem sob seu raio de influência. O que Spengler vê como a fase final de toda cultura envelhecida, cansada da vida e convertida em civilização cinzenta e rígida (como sucedeu com os romanos, ávidos por serem bárbaros para simular uma vida que já não tinham), Schubart o considera como caso único na história. O suicídio do Ocidente, de que tanto se começou a falar no clima das guerras mundiais, é em realidade o suicídio do homem prometeico, esse tipo de humanidade que perdeu a harmonia, que destrói o que toca até destruir a si mesmo. Adiantamos esta ideia nas próprias palavras de nosso pensador:
“Os últimos esforços da cultura ocidental já não têm outro objetivo que o de aniquilar todo o gigantesco aparato técnico, pelo qual o homem se separa assim do céu como da terra. Tudo se encaminha para tornar maximamente fundamentais e esgotadoras as futuras guerras universais, envolver nelas o maior número possível de homens (também mulheres e crianças), investir o máximo possível de dinheiro e entregar tudo isso à destruição. (Se agora a ciência militar convida à guerra total, serve de um modo imediato às intenções da Providência). A última guerra europeia chegou a ser – dentro da técnica – a técnica da aniquilação. As potências técnicas se levantam contra o homem. A criatura mata seu Criador. Uma tragédia golem, de proporções gigantescas histórico-universais.
A cultura ocidental anseia por sua própria aniquilação. Perecedouro é tudo que é mortal, mas a forma de seu ocaso é particular, própria. A cultura ocidental não será vencida pelos conquistadores estrangeiros como a dos incas e astecas. Tampouco morrerá de velhice, por esgotamento de forças, como a romana. Mata a si mesma na pletora de suas forças. Este suicídio de toda uma cultura é um caso único na história humana”.
Este novo Prometeu desencadeou forças poderosas, terríveis. A técnica, como diria Heidegger, é sua única metafísica. E sem sua subordinação a fins espirituais, amorosos, essa técnica é demoníaca em todas as ordens. A guerra não pode ser senão o verdadeiro império da técnica. Mas este império da técnica que nos trouxe o homem prometeico, na verdade, é um apocalipse, uma queda infinita na barbárie. A pior barbárie jamais registrada pela história que superará todas as invasões e crueldades é a barbárie dessa humanidade que fugiu da harmonia e renunciou a ela. Diz assim:
“Um ambiente apocalíptico envolve hoje a terra. O sentimento de uma próxima catástrofe não nos abandona. Não há já nada da segurança que o homem moderno havia sonhado e quase realizado; não existe a ordem terrena do viver que antes de 1914 anotávamos como ser imperdível pela humanidade. A história política se desenvolve outra vez com as formas rudes que nós havíamos julgados erroneamente como próprias de circunstâncias já desaparecidas. O ódio racial volta a ser – como nos tempos primitivos – o motivo da formação política de poderio, ao invés dos motivos dinásticos, estatais e econômicos a que estávamos acostumados. O sistema de reféns volta a estar em vigor. Se tira proveito de mulheres e crianças inocentes para se vingar de seus maridos e pais. E isso em meio a uma cultura da personalidade, cultura que predicou ser cada um responsável por seus atos. Outra vez eclodem guerras sem declaração de guerra, como as invasões dos hunos e dos tártaros. Dirigem-se também contra mulheres, crianças e anciãos como nos tempos bárbaros. Outra vez a religião adquire o caráter de martírio. As coisas se abrem até o fundo e desnudam toda sua problemática. O que sabíamos nós da morte? Conhecíamos seu espectro, de paletó e cartola, civilizado como nós mesmos. O que eram para nós a guerra, a insurreição, a revolução? Palavras vazias, sem perigo. Quando sentados nos bancos da escola líamos nos clássicos latinos sobre desterros e expulsões, reféns e espiões, listas de proscrição e confiscos, podíamos formar de tudo isso uma ideia clara? Quando a Bíblia nos falava de homens temerosos a Deus, que se permitiram morrer por sua fé, podíamos ainda vibrar com tais feitos? Hoje em dia todos esses aspectos espantosos da história adquirem vida nova, depois de terem se distanciado tanto de nós que quase os víamos se dissolvendo nas névoas das lendas. Outra vez, tudo é problemático, como no princípio da cultura. A vida voltou a sua inquietação originária”.
Lendo estas linhas, qualquer um poderia estremecer ao ver como seu solo, o solo da civilização em que foi criado e em que forjou seu ser, desmorona em um abismo. Mas, por sua vez, o leitor pode se assombrar com a imensa fé, o ardente otimismo do filósofo que, em meio ao caso e à destruição, ainda assim augura um novo aeon, o aeon joânico, o tempo de São João no qual uma Europa renascida, se solidificará, de maneira mais humana, mais espiritual, com a ajuda da Rússia, não da Rússia comunista, que também desmoronará, mas da Rússia essencial. Sentindo que “o desmoronamento próximo da cultura ocidental é inevitável”, ainda assim Schubart alerta em seguida que “não se pode renovar a humanidade senão a partir dos abismos do tormento”.
Por todo lado o autor deste livro observa sinais de mudança. Quase adota o tom de um profeta. A mudança de aeon se detecta nas próprias ciências. O surgimento de um paradigma mais organicista e vitalista, o progresso nas ciências biológicas, em detrimento do mecanicismo e do positivismo do século XIX, o aparecimento de uma psicologia menos associacionista, uma verdadeira “ciência da alma”. Igualmente a irrupção da Religião na história dos povos, como motor, como Campo de Marte, uma força irresistível. Que grande erro o dos agnósticos oitocentistas! Deus e as tradições voltam a ser importantes, inclusive para a matança e a dominação, mas importantes. O mundo mesmo, o mundo dos fatos históricos, está se encarregando de demonstrar que os ocidentais já começamos a deixar de ter vontade de sê-lo, que estamos cansados de ser prometeicos, que voltamos com nostalgia e com olhos entreabertos para um Oriente onde ainda existe comunidade orgânica, tradição, harmonia. É certo que a esse Oriente igualitário e fraternal falta hierarquia e vontade de sair de seu estancamento. Eis aqui a proposta schubartiana: síntese, não abandono. O autor proclama uma síntese entre o europeu ocidental e o oriental (russo). O russo como ponte para a grande Ásia, e o russo como o orgânico, harmônico e tradicional que falta ao ocidental.
Schubart afirma que nossa época é um interregno. Os momentos em que o morto não está totalmente morto, e o nascente não terminou de nascer. É um tempo apocalíptico, de grandes catástrofes e sofrimentos. Não há parto sem dor. As mudanças de aeon não são apenas mudanças nos “modos de produção”. São mudanças rítmicas na história do mundo, mutações nas quais um "arquétipo" sucede a outro. Se quisermos insistir, a visão schubartiana da História é uma visão decididamente idealista. Idealista sem rodeios, próxima em muitos aspectos à do grande psicólogo suíço Carl Gustav Jung. Também Jung fala, em seus escritos sobre a história e a sociedade, de arquétipos e mudanças de aeon. A mutação histórica é uma cópia da verdadeira mutação: a anímica. A alma do homem, diferencialmente enraizada segundo uma paisagem determinada na qual nasce e se cria, se transforma segundo um “ritmo” ou “ciclo” misterioso, mas que é consubstancial a tudo que é vivo. Grandes pensadores, normalmente pensadores de língua alemã, chegaram nessa intuição do ritmo ou ciclo: Goethe, Spengler, Jung, Schubart. O que parece profecia ou arte advinhatória, a saber, farejar que se inicia uma nova era, na realidade não é nada além de conhecimento do ritmo. Esse ritmo precisa de um material constante e uma força de deslocamento.
O material constante, relativamente estável, é a paisagem, que imprime seus traços à alma. O papel concedido à paisagem na conformação dos povos é similar em Schubart e em Jung. Viver em grandes planícies ou viver em países montanhosos marca grandes diferenças na alma, muito mais profundas do que a cor da pele ou a forma dos crânios. E, como fez Spengler, este papel é de condição material, base sobre a qual o tempo molda e atua, nunca é o papel verdadeiramente determinante. Em uma mesma unidade étnica, bastante homogênea no biológico (unidades como: alemães, espanhóis, italianos) as diferenças norte-sul podem ser profundíssimas em seu interior. De outra parte, o solo em que se vive exerce uma estranha influência inclusive sobre o próprio soma. Raças de origem diversa chegam a convergir e coincidir no mesmo solo e paisagem. Mas é evidente que a raça, como substância moldável pelos aeons, não é um fator determinante. A teoria de Schubart é oposta a toda raciologia. O aeon é que unifica e conforma as verdadeiras unidades histórico-culturais e as faz mutar. Tal como a raça não é em si mesma uma constante, tampouco há um caráter nacional invariante. Muito bem podemos constatar isso no caso dos espaespanhóisa imagem exterior que oferecemos desde o aeon gótico-imperial em comparação com o aeon prometeico (decadência e destruição para o homem espanhol).
Para saber para onde vamos, temos de saber de onde procedemos. Na era gótica nasce propriamente a Europa:
“A época gótica criou a unidade espiritual do Ocidente. Até então, não existiam na Europa mais que tribos e povos. Desde que essa época se extinguiu, volta a haver formações particulares: Estados nacionais. O que ainda hoje em dia temos de sentimento ocidental comum, é o resto exíguo de uma herança preciosa, que logo se consumirá. O conceito e o fato ‘Ocidente’, pertencem à cultura gótica. Esta era uma cultura sintética. Nela prevaleciam as forças de união. Daí que um de seus objetivos principais fosse: nivelar o contraste existente entre o Norte e o Meio Dia, e não consentir nenhuma divisão regional. Nas viagens dos imperadores alemães a Roma, na fundação do império romano da nação alemã, e também nas especulações da escolástica se expressam a vontade firme de fundir a cultura gótico-cristã com as antigas culturas mediterrâneas. Não obstante, se deixou sentir durante todo o aeon gótico a tensão Norte-Sul; penetrou profundamente até na época prometeica. Ainda o sentimento de vida que vemos em Goethe experimentava seu influxo. A segunda parte do Fausto é o intento mais grandioso, ainda que malogrado, de reconciliar o Norte com o Meio Dia, os germânicos com os gregos. Com o romantismo, último eco da cultura gótica, cessa a força de atração do Meio Dia. O que significam para o europeu atual as culturas antigas? Lembranças, pontos de descanso, paixões...mas não mais um destino”.
Há uma grande coincidência entre os filósofos da cultura, os historiadores, etc., de que a Europa é o fruto de uma síntese Norte-Sul, uma síntese que começou a se dar precisamente após uma catástrofe: a queda de Roma (476). O Norte bárbaro, germânico, ansiava por um Sul romano, civilizado. Mas essa síntese, quase em uma linguagem hegeliana, não foi uma simples mistura. A síntese consistiu na negação do bárbaro no germânico, em um anseio por civilização, de uma parte, e, de outra, a síntese consistiu em uma barbarização do romano, em seu desejo de se entregar e de relaxar sua ideia, no acesso no interior do Império de todo um barbarismo interior. Então, quando os bárbaros já habitam dentro, os bárbaros extraliminares se encontram com passo franco.
Na Idade Média esta síntese dinâmica, que sempre tem algo de tensão e rasgadura interna, continuou sem cessar, amadurecendo. Ortega y Gasset falou do rosto dúplice, como de Jano, que possuía o europeu medieval, com um rosto olhando para a antiga Roma, para a ideia de Império que nunca quis abandonar, para um Sul mediterrâneo que era também como o quadro de uma idade áurea perdida, e o outro rosto olhando para um Norte mais selvagem, mais próximo à barbárie originária, mas barbárie regeneradora. Essa Europa pristina que se forma no gótico, com sua tensão sintética interna está magistralmente descrita, nos parece, no parágrafo acima reproduzido. A própria ideia de um Sacro Império, ideia estritamente feudal, cristã, inédita e inaudita para o homem antigo, encarna muito bem a tensão sintética interna do Medievo. Recolhe-se o fogo nunca apagado do Império enquanto ideia, uma ordem emanada desde um centro, um centro civilizador, um nomos sobre a terra. Mas por outro lado, sob o signo característico dos povos germânicos, não morre de todo o particularismo, o espírito do “ponto”, a desagregação, o bandeamento. Quando Schubart fala dos alemães, destaca neles sua tendência à desunião, seu “aldeanismo”. Durante os longos séculos em que os povos do norte se cristianizaram e se “romanizaram”, o Sul era visto como um ideal distante mas ansiado, um elemento formador, construtor. Mas o longínquo, o “ideal” acaba sendo odiado quando não se alcança. E eis aqui o germânico rebelde, “particularista”, com sua Reforma religiosa, com seu ataque contra a unidade do Império, dominante o século XVI e XVII. A cultura prometeica é a rebeldia contra uma Roma nunca alcançada, a rebelião contra o imperial-católico espanhol.
A antonomia fundamental não vai ser entre Norte e Sul neste interregno que nos separa do novo aeon joânico, vem nos dizer o autor de “Europa e a Alma do Oriente”. A geografia espiritual onde vai se dar o contraste e luta espiritual será entre Oriente e Ocidente:
“’Oriente’ e ‘Ocidente’ não são apenas conceitos geográficos, mas também espirituais. A Europa destroçada, estreita, dividida, é dominada por um espírito da paisagem que não é a da Ásia, com as extensões de suas planícies ilimitadas. A Europa, conforme suas condições e forças locais, tende a outro tipo de homem que o Oriente. Da Ásia saíram todas as grandes religiões, da Europa nunca saiu nem mesmo uma. Em uma só ocasião chegou o Ocidente a uma cultura religiosamente orientada – na época gótica – e ainda então contra ressentimentos e ataques. Duas vezes, na cultura romana antiga e na prometeica, esteve sob o signo do homem heroica, o que na Ásia – excetuando o caso dos povos semíticos – raras vezes coalha”.
O ponto de vista schubartiano é “cristianocêntrico” e esquece, ou desconhece, todo rastro de espiritualidade pagã na Europa do Ocidente. Os povos celtas e germânicos, tal como os antigos gregos e eslavos, possuíam uma riquíssima (e ainda viva) vida religiosa que o cristianismo não pôde pagar, e que inclusive integrou, dando caráter a esse cristianismo faustiano, tão distinto do cavernícola ou arábico (para empregar as distinções spenglerianas). A religiosidade da Europa pré-cristã, certamente, não era ascética. Os povos indo-europeus, em geral, não “fogem do mundo”, sentem-se parte dele, querem intervir nele. São os povos que Schubart chama de “heroicos” (os gregos homéricos, os antigos germânicos...). Se o tipo de homem indo-europeu se inclina mais para a vida estática ou contemplativa, esta não tem por que significar uma ascese ou exercício de repulsa pelo mundo e pela vida. Outra coisa será que o grande acervo espiritual dos eslavos nos inunde, quiçá correlativamente a seu enorme peso demográfico (e suas possibilidades natalistas frente ao suicídio que os ocidentais nos temos imposto) e sua desmesura territorial. E outra coisa será que uma ascensão geopolítica do poder russo e de seus aliados “tradicionalistas” nos influencie, reoriente, colonize, etc. Mas nosso filósofo vê com muita clareza: “o centro de gravidade corre para o Oriente”.
Este maior influxo da Rússia em nossas vidas, no curso senil de nossa civilização não vai ser, essencialmente, o influxo do Estado chamado “Federação Russa”. O tempo do Estado, inclusive de um Estado superpoderoso que suceda aos EUA, é já tempo passado e inessencial. O que venha da Rússia virá como mudança anímica. Diz o autor que quanto menos religião se possui, mais se recorre ao Estado. Isso vamos vendo no atual declínio ocidental: aumenta o caos nas ruas e, paradoxalmente, aumenta o controle férreo do Estado sobre as mentes, as famílias, as intimidades. O Ocidente vive hoje uma bebedeira legislativa, é o paraíso do rábula, o kantismo triunfante. A religião cristã deu lugar ao imperativo categórico. O velho espírito ordenador e legislador dos romanos se transferiu para Kant, e de Kant para Hegel. O Estado no Ocidente é a totalidade. Mas da Rússia pode vir para nós, em um aeon joânico, não o Estado, mas o Império. O Império não como Estado muito grande, como nova confederação de unidades soberanas, mas o Império como verdadeiro vínculo humano de “amor” entre os povos. Poderá parecer idealista, distante, utópico, mas este é o anseio de Walter Schubart.
Este livro também terá que nos inspirar. Somos um povo com a auto-estima ferida, às vezes cansados de nós mesmos, despedaçados em querelas internas, intolerantes com o que é próprio e submissos ao que é alheio. Somos assim desde que deixamos de estar à cabeça de um Império. Não parece que resta na Espanha um sentido do destino para levantar os escombros em uma América desespanholizada, vítima de ideologias ianques e indigenistas. Não parece que nossa voz exista e tenha força para ser ouvida em uma União Europeia própria de mascates, onde as decisões são tomadas contra nós, à margem de nós e de muito longe. Mas, surpreendentemente, lendo Schubart, poderíamos nos reconhecer nos russos. Seríamos nós, ou poderíamos chegar a ser algo como os russos do Ocidente?
Os paralelismos entre Espanha e Rússia são impactantes. Partiram ambas as nações de uma cultura gótica comum, e se viram submetidas a terríveis provas, das quais saíram muito endurecidas. Fronteiriça com a África, a Espanha narra em sua Reconquista de longos séculos a história de um povo (a princípio um enxame de povos) resistindo para que não se tornassem africanos. Fronteiriça com a Ásia, a Rússia sobreviveu aos tártaros e, como na Espanha perante os mouros, conseguiu se sobrepor à Ásia bárbara, e se sobrepor também pressupôs para esta nação a criação de um enorme império territorial. Mas o império espanhol, nascido após derrotar os mouros, se encolhe e se deixa subjugar pelo homem prometeico (hoje diríamos “atlantista”, “ocidental”), justamente como a Rússia se permitiu infectar por Prometeu através do Iluminismo ou do marxismo. Mas quem freou Napoleão? Quem viu toda revolução ou reforma liberal como intrusão anticristã e antipatriótica? Espanhois e russos, igualmente. Schubart nos explica:
“Encontra-se diante da Europa. Inacessível como um castelo. Se a Rússia, também inacessível, é o reino situado entre a Ásia e a Europa, a Espanha é o reino encravado entre a Europa e a África. O que somos nós em relação à Europa? Este é o problema do destino não apenas para os russos, mas também para os espanhóis. A esta questão dedica Unamuno seus Ensaios. As duas nações roçam a cultura prometeica, sem submergir na mesma. Enquanto o resto da Europa podia se desenvolver livremente, os espanhóis e os russos gemiam sob jugo estrangeiro. Em luta contra os infiéis – aqueles contra os mouros, estes contra os tártaros – tiveram de conservar e pôr à prova sua fé cristã. Quase ao mesmo tempo romperam a escravidão. Em 1480, Ivan III se nega a pagar o tributo ao khan tártaro; em 1492, Fernando finaliza a reconquista de Granada. Rapidamente, ambos os povos crescem em imensa amplidão e fundam reinos de extensão insólita. E, finalmente, a marcha triunfal do mundo prometeico chega a ser fatal para ambos. Certamente, conseguem rechaçar a irrupção napoleônica. Precisamente são espanhóis e russos os primeiros que, por um amor veemente pela liberdade, dão duros e cruéis golpes contra as hostes francesas. Mas, a longo prazo são impotentes contra as ideias de 1789. O vírus destrutor do ceticismo moderno e da aversão pela fé vai se inculcando mais e mais profundamente em sua alma; o século XIX chega a ser para ambos uma época de revolução incubada. Os primeiros sintomas da tensão interior coincidem outra vez na mesma época, quase no mesmo ano: a revolução liberal de Riego fracassa em 1820; o motim dos decembristas russos em 1825. O desenlace é a guerra civil, o ano de 1918 na Rússia, o de 1936 na Espanha, entre convulsões cuja veemência descobre um abismo de tormento interior e sobrepuja a tudo que a Europa estava acostumada a ver. Nos dois casos, trata-se do choque entre o gótico inato da alma e a intrusa cultura prometeica; é a decisão grandiosa e cruenta da luta entre o espírito da paisagem e o espírito da época”.
Estas palavras de Schubart perderam muita vigência. A Espanha tomou uma direção divergente em relação às Rússias. O presente da Espanha é o da prostração, do materialismo, da perda de orgulho e dignidade nacional. O corrupto Regime de 78, os cânceres contidos dentro de uma Constituição que desarticula a unidade nacional, desvincula o povo de sua história e tradição, o entrega às mãos de poderes estrangeiros e entidades supranacionais, consagra uma casta política parasitária e antinacional, substitui a comunidade orgânica por um mercado formado por átomos individuais, imbecis e hedonistas... esse Regime conseguiu em poucas décadas emudecer a alma espanhola, a alma fruto de suas paisagens e suas gestas, especialmente a Reconquista e seu Império, e conseguiu introduzir a semente diabólica, isto é, a desintegração e o ódio fratricida. Aquela espiritualidade quase russa que o filósofo fia em nossa pátria, já resulta muito difícil de encontrar. Mas o pessimismo só acelera o suicídio coletivo. Por trás de ocasos negros e horrendos é possível adivinhar renascimentos. Quiçá este livro, escrito há muitos anos e esquecido pela maioria, ao ser agora editado e recordado, dê algumas postas. Diante das ameaças e infecções presentes, como a americanização, o “europeísmo”, a “africanização”, a “islamização”, o capitalismo sem freio, o desaparecimento do humanismo, o colapso da beleza e da espiritualidade, diante de tudo isso, a Espanha pode olhar para o oriente russo e ver nele um espelho. E do império que nasce de suas cinzas lá longe, no outro extremo da Europa, voltar a aprender o que ela era: Espanha era simétrica do Império do Oriente e, em parte idêntico: O Império do Ocidente.
Frente à desintegração, ao espírito diabólico, o Império civilizador, o Império que detém a barbárie, e torna possível que desperte esse Grande Monarca adormecido, sempre temos espelhos para nos olharmos: a própria história espanhola, de uma parte, e o espelho russo, de outra.