por Pierre Le Vigan
(2024)
Heidegger (1889-1976) continua no centro das preocupações do nosso tempo. O livro de Baptiste Rappin Heidegger et la question du management – um gestor que vai muito além do mundo empresarial – é uma prova disso. Assim como a influência de Heidegger no pensamento do falecido Pierre Legendre ou em Michel Maffesoli. Em outras palavras, Heidegger é inatual, o que lhe permite continuar sendo atual. O padre jesuíta William John Richardson (1963) distinguiu um primeiro Heidegger, até 1927, com a publicação de Ser e Tempo, de um segundo Heidegger, posterior a 1927. Essas periodizações não são inúteis, pois indicam uma mudança de perspectiva, principalmente porque Ser e Tempo está inacabado, e Heidegger considerou mais prudente modificar seu ângulo de visão, em vez de tentar completá-lo a partir de uma posição que já não era inteiramente sua. Foi o clássico passo ao lado que os grandes intelectuais deram. No entanto, uma mudança de perspectiva não exclui a constância de alcançar o mesmo objetivo. Esse objetivo é pensar sobre o que, em termos “acadêmicos”, chamamos de diferença ontológica. Em termos mais correntes, é o abismo, a "boca da sombra", a ameaça do nada, a consciência da presença do nada e o dever singular de encará-la sem se afundar nela. Como nos lembra Antoine Dresse, os antimodernos são frequentemente tão modernos que não têm ilusões sobre os ideais da modernidade. O que caracteriza Heidegger é seu repúdio ao niilismo, sem negar por um momento a realidade de sua ameaça.
A diferença ontológica: é a diferença entre o ser e o ente, entre o ser e os entes. Para ser mais preciso, deveríamos falar de diferença ôntico-ontológica. O ôntico é o âmbito do que é, é "o que é". O ontológico é o domínio do ser. Mas, é claro, não se pode pensar um sem o outro, nem fazer um sem o outro, e por isso, tanto para Heidegger quanto para nós, trata-se de pensar o entre (Zwischen), o que se interpõe entre essas duas noções e o que as mantém unidas. Heidegger aborda essa questão da diferença ontológica (para usar uma palavra mais simples que ôntico-ontológica) em Os conceitos fundamentais da fenomenologia de 1927 (Gallimard, 1985). A observação de Heidegger é que existe uma história do ser na medida em que existe uma história das diferentes maneiras em que o ser foi pensado. No entanto, o ser foi pensado sistematicamente como sendo, e a questão do ser em si, na medida em que não é estritamente o ser, nem os entes, nem apenas a soma dos entes, é uma questão que foi reduzida à questão da deidade, à questão dos deuses e, sobretudo, com os monoteísmos, à questão de Deus, ou seja, de uma instância fora do mundo (François Jaran, La métaphysique du Dasein, Vrin, 2010). Isso é a ontoteologia. É o que deu origem à sucessão de diferentes sistemas metafísicos, ou seja, explicações do mundo de acordo com um princípio que não é o próprio mundo.
Separação entre ser e entes
O princípio mesmo da ontoteologia baseia-se no fato de que existe uma desconexão entre o ser e o que é. Os entes são coisas singulares, deixando de lado o fato de que são uma manifestação da natureza, da physis (a physis é a totalidade das coisas da natureza, mas também o próprio motor da natureza. Sobre esse ponto, ninguém pode explicá-lo melhor do que Spinoza: a natureza é “natureza naturada” e é “natureza naturante”). A ontoteologia tenta remediar essa cisão (entre ser e ente), mas de uma maneira causal e não "holística". Explicando onde está a causa de um (o ser), em vez de buscar o que mantém um unido ao outro. A filosofia, assim, escolhe o caminho da teologia para responder à questão do que é o ser. O resultado é definir – ou pelo menos dar uma importância central – a um ente supremo, um supra-ente, um ente primordial. Um ente primordial anterior aos entes do mundo. Esse é Deus nos monoteísmos. Uma vez resolvida essa questão, a tarefa da ontologia será pensar o que os entes têm em comum entre si.
Heidegger propõe – e essa é sua novidade – abordar a tarefa da ontologia sem pressupor o primeiro estágio da reflexão ontoteológica, que nos leva pelo caminho de Deus, o ente supremo. Para isso, Heidegger enfatiza não as análises do mundo como dotado de um "motor imóvel" ou "primeiro motor imóvel" (Aristóteles), mas através de uma abordagem original do mundo, muitas vezes antissocrática ou moderna, que seria poética (Hölderlin, Novalis...). São as abordagens que interrogam o mundo por meio do assombro. Por que existe o dom? Por que existe um nascimento do mundo? (E quem se importa com quem o pariu?). A Heidegger interessa a pura fenomenologia do mundo. Trata-se, portanto, de buscar o sentido do ser fora da ontoteologia. Em que “região” do ser podemos esperar sentir sua presença? A resposta é: no domínio do sagrado (Heilige).
Para nos aproximarmos do sagrado, que não é Deus, e que certamente não é o contrário do divino, temos que ir além da questão da criação do mundo e nos perguntar sobre a presença no mundo, uma questão muito mais fundamental. Esta questão da presença no mundo e da presença do mundo, até em nós, vai além de qualquer problemática do sujeito, seja o sujeito-homem ou o sujeito-Deus. De fato, é muito certo que fazemos parte do mundo e que, portanto, nunca poderemos ser observadores do mundo sem participar dele. É isso que o conceito de Dasein nos ajuda a compreender. Se Heidegger utiliza o conceito de Dasein, então devemos entendê-lo como Da-sein. Este termo, que às vezes foi traduzido como "existência humana enquanto presente no mundo", é, de forma mais geral e essencial, o elo perdido entre o ser e os entes. O Da-sein é experimentado com um “passo atrás” (Schritt zurück) que permite esquecer a perspectiva sujeito-objeto e ver o mundo como uma coincidência de contrários, entre o ser e os entes, e até mesmo como a identidade de contrários, que são apenas duas faces, uma interna, a outra externa, de uma mesma coisa.
Presença do ser
Da-sein, etimologicamente "ser-aí" (a palavra provém de Goethe), é "estar-aí". É o fato de estar aí. O que é estar aí? É precisamente o ser. É o "aí" do ser. É a presença do ser, que é ser enquanto presença. O Da-sein não é um sujeito do mundo. É a abertura ao mundo. É o Aberto. "Com todos os olhos, a criatura vê o Aberto" (Rilke, Oitava Elegia de Duíno). "Venha ao aberto, amigo" (Hölderlin, Um passeio pelo campo). O Aberto, o Da-sein, é a interrogação assombrada do ser e do mundo. Sobre o ser do mundo, para dizer em termos resolutamente pós-teológicos. O Da-sein é, portanto, o que supera a cisão, a fenda, a ruptura (Spaltung) entre o ser e os seres. Afirmar o Da-sein, liberar o acesso a ele, é abrir o acesso ao aí do ser. É limpar o caminho em direção ao aí do ser. Significa que não há, por um lado, as coisas triviais do mundo, os seres, e, por outro lado, algo sagrado fora do mundo, que, portanto, não pode ser sagrado porque é inacessível. (O repúdio do sagrado do ponto de vista cristão é um tema abordado por René Girard, que, no entanto, não tem o monopólio da interpretação do cristianismo). Ao superar essa cisão entre o que é e o sagrado, entre o que é e o que está, tomamos consciência da fonte, da origem de tudo o que é. Tomamos consciência e confiança de que a physis se transforma no que é. Admiramos e nos maravilhamos com o milagre do nascimento. O Da-sein é precisamente o que lança uma ponte nesse entre, entre a margem do ôntico (os seres) e a margem do ontológico (o ser).
Construir uma ponte que nos permita ver de um nível mais elevado. A ponte torna presente a paisagem, o espaço, o mundo. O Da-sein é um sentido da presença das coisas que nos permite compreender sua hecceidade (ou ecceidade), ou seja, como ela está presente com todas as suas características específicas. Da mesma forma que a substância do Amor se manifesta no ato de apego amoroso, a substância do Pão se manifesta no "pão de cada dia" das orações cristãs. É a atualização de uma substância, como aponta Michel Maffesoli. Da potência ao ato, segundo Aristóteles.
Já não se trata de uma busca pelas causas do ser, mas de uma busca pelos modos como o ser é uma abertura sobre o ser, na qual carrega uma porção de mundo, um fragmento de mundo, um mundo em redução (fractais), mas, ao mesmo tempo, aí, no qual atesta a realidade do mundo. Esse é o projeto de Heidegger, tanto antropológico quanto "filosófico" (ele preferia "pensamento" a "filosofia"). E a realidade do mundo é a presença do mundo. Uma presença que se manifesta de diferentes maneiras. O Da-sein consiste em observar o modo de ser das coisas como testemunha do mistério do ser. O modo de ser das coisas, sua hecceidade, que é também sua hexis (Aristóteles) ou seu habitus (em Tomás de Aquino, Bourdieu e muitos outros). É a disposição do ser dos entes, e em particular dos seres humanos. É o modo como estamos no mundo, de maneira simultaneamente singular e aberta à plenitude do mundo, à sua totalidade, à toda sua extensão (Ganzheit). Essa singularidade é o que une o específico e o universal. É o vínculo entre os sentidos, o sentido, e o entendido, o racional, o intelectual, o consciente.
Esquecer o vínculo
O esquecimento do ser – o tema com que frequentemente se resume o pensamento de Martin Heidegger – é, na verdade, o esquecimento do Da-sein, o esquecimento do que liga, do que lança pontes entre o ser e os seres. Através desse esquecimento, o mundo se reduz a algo que pode ser detido. Reduz-se a um dispositivo (Gestell). Um dispositivo no qual os seres (as coisas do mundo) são instrumentalizados, mas no qual nós mesmos, ao querermos ser o sujeito de um mundo que seria nosso objeto, nos tornamos o objeto de um dispositivo. Nesse sentido, poderíamos dizer que a modernidade era o mundo em que os elementos estavam à disposição do homem "como senhor e possuidor da natureza" (Descartes) e que a pós-modernidade consiste em que a relação sujeito-objeto vai perdendo importância, com o próprio homem se tornando um objeto dos dispositivos, digitalizações e outros processos, arrastado por fluxos cuja finalidade é cada vez mais difícil de adivinhar e, em todo caso, de controlar. É o que se chamou de reino da técnica ou inserção na megamáquina. Heidegger vê nisso o objetivo último da metafísica. E ele considera necessário ir além para abrir-se a uma nova sabedoria em relação ao homem e ao mundo, ou a uma ecosofia (Félix Guattari, O que é ecosofia?, 2018 - textos de 1985-1992, As três ecologias, 1989. O tema da ecosofia também é abordado por Michel Maffesoli à sua própria maneira).
Essa nova sabedoria pode ser ilustrada com uma visão do mundo como o Quadratura (Geviert). Os quatro elementos desse lugar (topos) são a terra, o céu, os mortais e os deuses. Mortais: ou seja, os seres humanos. Esse tema, que é abordado em "Olhar o que é" (Einblick in das was ist), é um conjunto de quatro conferências proferidas em Bremen em dezembro de 1949 (em Questões IV) e consiste em ver o mundo além da opção de captura ilimitada e sem forma estética. A Quadratura pode permitir imaginar uma "recuperação" da nossa relação com o mundo, uma reorganização dessa relação e, portanto, uma cura (Verwindung). É um tema dos Holzwege, dos caminhos "que não levam a lugar algum", como diz a tradução francesa, que são, na verdade, como bem sabem os excursionistas, caminhos que levam a algum lugar, desde que se saiba para onde se vai. Um tema e uma forma de superar nossa crise (Krinein), que é uma doença do juízo: já não conseguimos julgar, desjulgamos ou decidimos.
Essa sensação de estar aí (Da-sein), essa presença na presença, esse "encontro conosco mesmos" (Henri Michaux), essa estratégia de atenção (ao mundo), é talvez o que pode nos permitir sentir a unicidade do sagrado, ou seja, o fato de que ele é Um em múltiplas formas, da mesma maneira que a Trindade se manifesta em múltiplas formas, apesar de que Deus é Um, e em todo caso a divindade é Una. Uma atualização plural de uma substância comum. Talvez então seja possível aproximar-se de uma certa serenidade (Gelassenheit), de uma certa igualdade de alma, que permita uma (relativa) paz do espírito (apatheia). Mais uma vez, é a atenção à presença do ser que afastará aquilo que bloqueia o caminho que conecta o ser e os seres. O Da-sein: uma e outra vez.