por Sergio Fernández Riquelme
(2012)
1 – Atrás das pistas do projeto distributista: da questão operária ao desenvolvimento humano
A economia, tal como a havia fundamental a Escola de Salamanca, havia deixado de ser uma ciência social a serviço do verdadeiro desenvolvimento humano. A industrialização, e seus “milagres técnicos”, a haviam convertido em uma idolatria capaz de substituir a vinculação tradicional do homem com seu entorno, material e espiritualmente, em benefício da planificação eficiente de um Mercado dominado pela plutocracia (sob o mito do “laissez-faire”) e da planificação burocrática de um Estado nas mãos de facções partidárias. Como ele captou com os reformistas agrários britânicos do final do século XIX, e em certa medida popularizou G.K. Chesterton (1874-1976), “three acres and a cow” eram suficientes para tornar o homem independente do salário fabril e do impulso estatal, e ligado à herança de seus antepassados e à terra natal (Chesterton, 2006).
Este foi o diagnóstico comum a uma geração de pensadores anglossaxões que, no início do século XX, fundaram uma doutrina econômica de claras conotações político-sociais, como foi o distributismo. Uma geração liderada por Hilaire Belloc (1870-1953) e o próprio G.K. Chesterton, marcadamente heterodoxa ao questionar os dogmas liberal-capitalistas na pátria pioneira da Revolução Industrial e do colonialismo moderno (através de seu apoio ao socialismo de guilda), e ao assumirem, mediante sua conversão, os postulados da nascente Doutrina Social Católica em um país oficialmente anglicano (Fernández Riquelme, 2009).
Mas “a história é presente”, como assinala Zubiri (1981), e a reconstrução historiográfica do distributismo pode ser de notável importância diante do devir contemporâneo das formas plurais da chamada economia social. O impacto do “desenvolvimento humano” no seio do pensamento sociológico e a teorização econômico política, diante dos desafios assinalados sobre a sustentabilidade ecológica dos modelos de crescimento dominantes e sobre uma globalização do conhecimento que questiona os meios de redistribuições de recursos, demonstra a oportunidade e viabilidade do multiforme setor econômico-social (terceiro setor, cooperativismo, iniciativa social privada, associacionismo, community care). Mas principalmente frente as demandas de eficácia e qualidade na prestação e gestão dos recursos em uma consigna humanista e comunitária, especialmente no pleno debate sobre a viabilidade financeira do papel intervencionista do Estado e sobre a equidade real na liberdade de funcionamento do Mercado (Sem, 1997).
O distributismo, pois, para além da caducidade de algumas de suas propostas (especialmente a representação corporativa), e após o esgotamento da velha questão social operária, presidida pela dialética capital-trabalho, pode lançar luz sobre essa filosofia social capaz de recuperar o papel central da família, da pequena empresa e do mundo rural, diante da emergente necessidade de um desenvolvimento integral e autônomo local para o atual tempo histórico mundializado. Assim, nos encontramos com uma versão particular da Doutrina Social da Igreja, sempre impulso da civilização do amor como resposta da Igreja aos desafios da globalização para além da simples dimensão material de desenvolvimento e crescimento (Pérez Andreo, 2008), tal como assinalou Bento XVI:
“...necessita-se de olhos novos e de um coração novo, que superem a visão materialista dos acontecimentos humanos e que vislumbrem no desenvolvimento esse ‘algo mais’ que a técnica não pôde oferecer. Por este caminho, se poderá conseguir aquele desevolvimento humano e integral, cujo critério orientador se encontra na força impulsora da caridade na verdade” (Bento XVI, 2009, n. 77).
2 – Uma versão anglossaxã do Catolicismo Social
A primeira grande referência para este movimento foi o impacto da doutrina social católica, que terá na Encíclica Rerum Novarum (1891) seu ponto de partida, graças à influência inicial na configuração do movimento do sacerdote irlandês Vincent McNabb (1863-1943), e sua visão tomista sobre os objetivos da economia racionalizada moderna, e da estrutura social e política planificadora de sacrificar a família no altar da “eficiência” (McNabb, 1942).
Frente as novas exigências de uma sociedade crescentemente industrializada e com uma “questão social” definida como problema operário, Leão XIII diagnosticou as injustiças socioeconômicas estabelecidas pelo emergente sistema capitalista, definidas pela desigual situação das classes e grupos sociais em relação aos meios de produção, e a crescente situação de proletarização de amplas camadas sociais; mas igualmente sublinhou os perigos de um socialismo autoritário que negava a legítima propriedade privada, fruto do trabalho familiar, e que postulava uma transformação radical da sociedade, capaz de erradicar a realidade eclesiástica e alterar a instituição familiar.
Frente a ambas ideologias, protagonistas da dialética capital-trabalho, a nova doutrina social católica propunha uma reflexão atualizada de seu magistério, que buscava superar esta “fratura” contemporânea retomando o ideal de “harmonia social”. Nele, a estrutura social devia se fundar em uma justiça redistributiva onde convivessem os direitos dos trabalhadores (em especial um salário justo e digno para cobrir as necessidades familiares e permitir a poupança comunitária) e os direitos dos empresários (à propriedade privada legitimamente obtida e a sua capacidade de obter benefício justo de seu labor). “Trabalhar é se ocupar de fazer algo com o objeto de adquirir as coisas necessárias para os usos diversos da vida e, acima de tudo, para a própria conservação: Tu ganharás o pão com o suor de teu rosto” (Leão XIII, 1891: 14).
Estas linhas mestras foram completadas por Pio XI na Encíclica Quadragesimo Anno (1931), quarenta anos depois da Rerum Novarum. Nela, o Papa confrontava as “res novae” surgidas na era do entreguerras: a expansão do poder dos grupos financeiros, no âmbito nacional e internacional, e o crescimento dos totalitarismos ideológicos. E diante disso, se defendia um “novo regime social” para além do estatismo socialista e do individualismo liberal, fundado nos princípios de solidariedade e de colaboração, reconstruindo a base econômica da sociedade, e aplicando a lei moral como reguladora das relações humanas, com o fim de “superar o conflito de classes e chegar a uma nova ordem social baseada na justiça e na caridade” (Pio XI, 1931: 23-24).
Ambos os textos assentaram as bases da doutrina social católica, definida como um conjunto doutrinário integrado na missão evangelizadora da Igreja em relação à ordem social de cada tempo histórico, e como um “humanismo integral e solidário” capaz de delimitar os elementos jurídicos e institucionais da política social. Uma doutrina que se desdobrava como a “dimensão social da fé”, enquanto reflexão teológica e moral à luz do Evangelho com um sentido prático. A fé pretendia levar a sua plenitude o significado da ordem social, ressaltando a função da família (célula primeira e vital da sociedade), iluminando a dignidade do trabalho (atividade do homem destinada à sua realização), defendendo a importância dos valores morais (fundados na lei natural), reivindicando uma maior justiça social, apostando no desenvolvimento material sustentável, reclamando uma correta gestão das funções públicas, e assinalando a necessidade de um livre mercado submetido a imperativos éticos superiores; tudo isso “sem perder de vista o caminho do direito e a consciência da unidade da família humana”, e em prol da construção de uma autêntica civilização, orientada para a busca de um desenvolvimento humano integral e solidário (Pontifício, 2005: n. 5).
“Transformar a realidade social com a força do Evangelho”; este foi o fim genético de um magistério social construído ao longo do tempo. Uma doutrina com profunda unidade que “concerne a todo homem e se dirige a todos os homens”, mas que atendia especialmente “aos irmãos necessitados que esperam ajuda, a muitos oprimidos que esperam justiça, a muitos desempregados que procuram trabalho, a muitos povos que esperam respeito, e a um progresso que esteja orientado ao verdadeiro bem da humanidade de hoje e do amanhã”. Assim aparece como um método orgânico na busca de soluções para os problemas da vida social, promovendo que o discernimento, o juízo e as opções respondam à realidade, assim como para que a solidariedade e a esperança possam incidir eficazmento também nas complexas situações atuais. Agora bem, diante do transucro do tempo e da mudança dos contextos sociais, a doutrina social aparece como um instrumento para o discernimento moral e pastoral dos complexos acontecimentos que caracterizam nosso tempo; como um guia para inspirar, no âmbito individual e coletivo, os comportamentos e opções que permitam olhar para o futuro com confiança e esperança; como um compromisso novo, capaz de responder às exigências de nosso tempo, adaptado às necessidades e aos recursos do homem.
A Igreja “vive no mundo e, sem ser do mundo” (Jo 17, 14-16), ao estar chamada a servi-lo seguindo sua própria e íntima vocação. Para isso, propõe um humanismo integral e solidário, que possa animar uma nova ordem social, econômica e política, fundada na dignidade e na liberdade de toda pessoa humana, que se atualiza na paz, na justiça e na solidariedade, realizada se cada homem e mulher e suas comunidades souberem cultivar em si mesmos as virtudes morais e sociais e difundi-las na sociedade. Esta natureza define uma doutrina humanista capaz de enraizar tradição e modernidade, ao colocar como eixo o homem “inteiro, corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade”, apontando para a razão da existência humana, esclarecendo as injustiças do progresso, e ressaltando a necessidade de se conhecer a si mesmo. Assim, a pessoa humana, considerada em sua integridade, é o centro da doutrina social. Nela se materializa o princípio personalista, traduzido da realidade evangélica do imago dei (a pessoa humana, criatura à imagem de Deus), o significado da lei natural, e a “constância da universalidade do pecado e da universalidade da salvação” (Pontificio, 2005: nn. 105-106).
O magistério social da Igreja atende, portanto, à pessoa humana em suas múltiplas dimensões, sempre sob a observância da “unidade da pessoa”, a abertura à transcendência da mesma, sua existência única e irrepetível, a defesa de sua liberdade (submetida sempre ao limite da responsabilidade fundada na verdade e na lei natural), o respeito à dignidade humana (igual para toda pessoa), e o fomento da sociabilidade humana (frente ao individualismo desagregador). Os princípios fundamentais desta doutrina se situam na dignidade do ser humano, no bem comum, no destino universal dos bens, na subsidiariedade, na participação, na solidariedade, nos valores fundamentais da vida social (verdade, liberdade e justiça), e no pressuposto da caridade. E estes foram os princípios que iluminaram o nascimento do distributismo.
3 – O Socialismo de Guilda: Sonho de uma Nova Democracia
A estes princípios morais e sociais, primeiro elo na corrente do distributismo, se uniram as ideias de uma corrente socialista denominada como guildismo (guild socialismo). Dentro do fabianismo inglês (precursor do Partido Trabalhista) esta tendência se organizou como movimento intelectual defensor de um modelo de “democracia pós-industrial” fundada na organização de guildas (corporações ou grêmios) como base da produção e do consumo. A partir da facção denominada como “Fabian Arts Group” (criada em 1907 e expulsa em 1923) difundiram a ideia de que estas instituições próprias da Idade Média britânica deviam ser restauradas, tal como Arthur Penty (1875-1937) desenvolveu em “Restoration of the Guild System” de 1906 e concretizou em “Distributism: A Manifesto” de 1937.
No seio do diário emblemático desta corrente, “The New Age”, se propunha sua adaptação e difusão no mundo industrial, sendo notável a influência dos estudos corporativos do historiador e jurista alemão Otto von Gierke, graças a sua influência em F.W. Maitland, J.N. Figgis e H. Krabbe. Esta revista, surgida em 1894 como manifesto do socialismo cristã, se converteu na ponta de lança do guildismo, das mãos de seu novo editor A.R. Orage (1873-1934), partidário, pela influência de Georges Sorel, do “Social Credit Movement” junto a C.H. Douglas (1879-1952). Paralelamente, S.G. Hobson publicou “National Guilds: An Inquiry into the Wage System and the Way Out” (publicado em 1914), onde assentou as linhas mestras do guildismo, assinalando seu modelo de organização corporativa frente ao controle estatista ou a pressão sindical.
Finalmente, o economista e escritor G.D.H. Cole (1889-1959), influenciado pelos escritos medievalistas de William Morris e recuperando a figura do “socialista utópico” Robert Owen, deu corpo institucional à corrente mediante a criação da National Guilds League em 1915, e semelhança doutrinária ao mesmo mediante seus textos “Self-Government in Industry” (de 1917) e “Guild Socialism Restated” (de 1920), onde se continha sua visão de uma sociedade fundada em cooperativas de produção e consumo participativas, alternativas a um Estado burocrático ou a um marxista. Nele situava os grêmios como base não para uma utópica restauração medieval, mas como “grandes agências democraticamente controladas para se encarregar da indústria” (Cole, 1964: 33).
4 – As Chaves da Economia Política do Distributismo
O distributismo pretendia responder as grades questões da ciência econômica desde sua própria perspectiva, gerada no agrarismo tradicional britânico, perfilada pela doutrina social católica, e projetada parcialmente no guildismo: o que é necessário produzir? Para quem? De que maneira? A resposta para estas perguntas dos primeiros distributistas anglossaxões se centrou, em primeiro lugar, em uma filosofia moral e social que situasse o “econômico” em uma perspectiva humanista: gerar e respeitar um trabalho digno que produzisse o necessário para atender as necessidades básicas de todo homem e todos os homens de uma maneira justa e cooperativa. E em segundo lugar, em um sistema onde as exigências morais fundadas nas “primeiras verdades” (as leis naturais), corrigissem os inevitáveis egoísmos do livre mercado e dos controles abstratos do Estado moderno. Um homo economicus verdadeiramente humano aparecia, pois, desenhado de maneira alternativa à calvinista e liberal “mão invisível” de Adam Smith (Antuñano, 2004).
Com base nestes axiomas, desde o final do século XIX e princípio do XX, surgiu na Inglaterra este movimento político-econômico autodefinido como “distributism” através da chamada “Liga Distributista” e do período “GK’s Weekly”, seu órgão de expressão, do qual Chesterton foi editor e diretor até seu falecimento. A partir da mencionada publicação foi se definindo esta doutrina político-econômica, a qual partia da crítica ao capitalismo liberal nas mãos da plutocracia, e ao socialismo estatista nas mãos da ditadura (Sada Castaño, 2005). O segundo se centrava, pois, em construir uma sociedade de “pequenos proprietários”, para assegurar a cada família a propriedade privada necessária para garantir seu próprio sustento). E, o terceiro elemento aparecia em uma “filosofia do homem” que o situava no centro da economia, do mundo, libertando-o das cadeias do maquinismo e do salário. Mas uma economia a serviço do homem para sua realização plena (material e espiritualmente), nunca concretizada em qualquer partido político, e destroçada a esquerda e a direita do espectro ideológico. Apesar disso, Chesterton apontava para o seguinte: “O distributismo ideal só é improvável; um comunismo ideal só é impossível; mas um capitalismo ideal é inconcebível” (Chesterton, 1927: 11).
Assim, a ordem social justa proposta pelo magistério social católico partia de três realidades naturais e objetivas: a família, a comunidade e a corporação. Quanto à primeira, devia ser defendida como a “célula social básica” encarregada da educação e da subsistência de seus membros, e auxiliada a ser convertida em proprietária de seus meios de existência (com o objetivo de converter os operários em proprietários, já que – como assinalava – “os homens, sabendo que trabalham o que é seu, põem maior esmero e entusiasmo”). Quanto à comunidade, esta devia se apoiar em um conjunto cada vez mais amplo de proprietários capazes de assegurar sua existência e compartilhar com seus concidadãos, partindo da tese de hospitalidade e solidariedade coletiva recuperada dos antigos mosteiros ingleses por Penty. E em relação à corporação, se propunha um sistema misto de associacionismo laboral (tomando como referente os velhos grêmios medievais) onde colaboraram os distintos estratos da produção de um setor determinado.
No contexto da Inglaterra imperial e industrializadora, relatada com maestria pelo próprio Charles Dickens (1812-1870) em suas consequências humanas (espirituais e materiais), do minoritário catolicismo britânico partiu a doutrina do distributism. Belloc e Chesterton encabeçaram uma proposta que esboçava um sistema econômico novo centrado na extensão da propriedade dos meios de produção ao conjunto da cidadania, convertendo cada família em proprietária de seu lar e, se possível, dos meios necessários para produzir e ganhar seu sustento (o capital), superando a concentração injusta dos meios de produção pelas elites capitalistas ou o controle excessivo dos mesmos pela burocracia estatal.
Neste esquema, três princípios, essenciais na doutrina social católica, se sobressaíam: a subsidiariedade (defendendo a autonomia dos corpos sociais intermediários), a solidariedade (situando a “comunhão” como eixo transversal), e a cooperação (mediante distintos tipos de cooperativas locais de produção autofinanciadas e de participação equitativa). Por isso, este primeiro distributismo, como o próprio magistério, não militava expressamente em nenhum partido, não abraçava nenhuma ideologia e não simpatizava nem com a Monarquia nem com a República enquanto sistema. Eram fieis, unicamente, ao mandato evangélico e à lei natural.
Um exemplo concreto destas primeiras ideias se deu na Guilda de St. Joseph e St. Dominic (1907-1989); nela, um grupo de artistas, escritores e artesãos criaram em Ditchling (Inglaterra) uma comunidade católica de produção e de consumo, baseada nos valores de irmandade, solidariedade e serviço, destacando o tipógrafo e escultor Eric Gill (1882-1940) ou o pintor e poeta Hilary Pepler (1878-1951), tomando como referente o ideário e a práxis do Arts and Crafts Movement do escritor William Morris (1834-1896) e o arquiteto Charles Voysey (1857-1941).
5 – Uma Economia a Serviço do Homem: O Humanismo Radical de G.K. Chesterton
Chesterton advertiu que esta doutrina não era apenas uma defesa da propriedade familiar ou de uma economia cooperativista; constituía, essencialmente, um meio a serviço da natureza divina do ser humano e sua sociedade. Por isso, este humanismo radical e espiritual será um dos princípios centrais do ideário de Chesterton ao que dará originalidade: o valor sacramental da dignidade essencial de toda pessoa, e a defesa da mesma em todas as suas dimensões, da sua família e comunidade pequena até a grande sociedade. O distributismo considerava o direito à propriedade familiar como um direito humano fundamental, e assim, legítimo e amplamente difundido. Em “What’s Wrong with the World” de 1910, Chesterton assinalou que “a propriedade é apenas a arte da democracia”; um tipo de espaço vital onde o ser humano se autorrealizava para além de sua mera consideração como produtor e consumidor, já que “todo homem deve ter algo que possa lhe dar forma de sua própria imagem, assim como ele é forma da imagem do céu. Mas porque não é Deus, mas somente uma imagem gravada de Deus, sua autoexpressão deve lidar com limites; propriedade com limites que são estritos e ainda pequenos” (Chesterton, 2006: 33).
Por isso, a ideia da propriedade privada do distributismo era radicalmente diferente da do liberalismo ortodoxo, que se parecia, na sua opinião, ao bolchevismo por um dado: o “monopólio”. Uma coincidência monopolística que encobria duas maneiras de esconder “o roubo” (usura, espólio), e por isso chegava a escrever, em sua característica ironia, que:
“...um punguista é obviamente um campeão do empreendimento privado, mas talvez seria um exagero dizer que o punguista é um campeão da propriedade privada. Capitalismo e comercialismo tratara, no melhor dos casos, de disfarçar o punguista com algumas das virtudes do pirata. A questão sobre o comunismo é que ele só reforma o punguista proibindo os bolsos” (Chesterton, 2006: 22).
Por isso, e diante de ambos os “piratas”, para Chesterton a grande oportunidade de preservar a independência da propriedade se encontrava nas velhas comunidades autenticamente humanas como a família e as comunidades; estas últimas, recordando a herança dos grêmios recuperada pelo guildismo ou as comunidades cristãs dos mosteiros (Chesterton, 2006). O verdadeiro “progresso” do capitalismo dependia, em sua opinião, não das formas monopolísticas, mas das pequenas oficinas, das pequenas granjas, dos pequenos negócios e das pequenas abadias (estas tragicamente destruídas na Inglaterra durante o reinado de Henrique VIII). As primeiras, apoiadas pela correção policial do “direito dos pobres” e seus famosos centros de internação e “preparação laboral” (as workhouses), conduziu grandes massas de trabalhadores à escravidão salarial, assegurando a eles durante todo o tempo de que este era o único caminho para a riqueza e a civilização. O puritanismo industrial inglês, marcado pela integração do ideal calvinista no anglicanismo oficial, marcou um ponto de inflexão. Estado e Mercado destruíam a exigência do "bom samaritano” (Chesterton, 2000).
As teses distributistas de Chesterton foram objeto de crítica pelo socialismo e pelo liberalismo do século XX. Ambas ideologias assinalavam que raiava a ucronia, ao defender um regresso impossível às formas medievais e gremiais de organização social e econômica. Mas Chesterton argumentava, contrariamente, que:
“...dizem sempre de nós que pensamos que podemos recriar o passado, ou a bárbara simplicidade da superstição do passado; aparentemente sob a impressão de que queremos regressar ao século XIX (e) que tal ou qual tradição se foi para sempre, que este ofício ou credo se foi para sempre, mas não se atrevem a encarar o fato de que seu próprio tráfico e vulgar comércio se foi para sempre. Nos chamam de reacionários se falamos sobre reviver a fé ou sobre o renascimento do catolicismo. Mas seguem calmamente colando seus papeis com o cabeçalho do Renascimento do Comércio. Que chamado do passado distante! Que voz tumular!” (Chesterton, 2000:24).
Em sua obra “The Outline of Sanity” de 1917, Chesterton recordava o fim desse liberalismo radical, responsável pela proletarização de milhões de seres humanos (restringindo a prosperidade a uns poucos) e pela colonização escravizadora em meio mundo (em especial das crianças trabalhadoras). Assim, assinalava que:
“...eles dizem que é utopia; e estão certos. Eles dizem que é idealismo; e estão certos. Eles dizem que é quixotesco; e estão certos. Merece cada nome que indique que eles retiraram tão completamente a justiça do mundo; cada nome que demonstre que tão remota deles e da sua alma está o padrão de vida honroso; cada nome que enfatize e repita o fato de que a propriedade e a liberdade estão apartados eles e dos seus, por um abismo entre o céu e o inferno”. (Chesterton, 2005: 100)
Seria necessária provar, portanto, em seu tempo moderno cheio de tentativas ideológicas quase futuristas, os antigos ideais. Por isso, sentenciava que “os homens não se cansaram do cristianismo; eles nunca encontraram cristianismo suficiente para poder se cansar dele. Os homens nunca se cansaram da justiça política, eles se cansaram de esperar por ela”. (Chesterton, 2000: 32)
Para Chesterton, os grandes capitalistas de sua época eram os verdadeiros inimigos da propriedade privada. “Eles – se referindo aos Rothschilds e aos Rockefellers – que não querem a sua própria terra, mas a dos outros. É a negação da propriedade que o Duque de Sutherland seja dono de todas as granjas em um estado. Tal como seria a negação do matrimônio se ele tivesse todas as nossas mulheres em um harém”. Por isso, o capitalismo devia significar algo mais; não a mera propriedade, nem mesmo o uso do capital pago na forma de salários. “A verdade é que o que chamamos de capitalismo deveria ser chamado de proletarianismo. O ponto não é que algumas pessoas tenham capital, mas que a maioria das pessoas só tenha salários porque não tem capital”. A acumulação ingente e injusta da riqueza não era apenas capitalismo, era basicamente opressão; enquanto que as diferenças entre ricos e pobres surgidas da relação industrial não eram funcionais, mas pura escravidão. “Ninguém mais do que Satã ou Belzebu poderia gostar da situação atual da riqueza ou pobreza” (Chesterton, 2010: 215-216).
Este capitalismo desenfreado significava, como já adiantamos, simples “usura”; uma ação equívoca e injusta tendente a justificar a desigualdade ilegítima entre possuidores e trabalhadores, convertida em doutrina econômica pelo calvinismo e legitimada politicamente pelo primeiro liberalismo abstencionista. Por isso, foi condenada pelos Pais da Igreja e pelo magistério da Igreja para ser superada recuperando a história solidária do ser humano. Desta maneira, Chesterton assinalava que “poderia ser muito difícil para as pessoas modernas imaginar um mundo em que os homens não são admirados geralmente por sua cobiça e por esmagar seus vizinhos; mas estes estranhos remendos de um paraíso terreno ainda existem no mundo” (Chesterton, 2006: 24). Assim, o início da transformação da economia mundial significava começar a realizar “qualquer coisa, por pequena que seja, que impeça a consecução do projeto capitalista”. “Façam qualquer coisa que adie a consecução. Salve uma loja de cem lojas. Salve um imóvel de cem imóveis, mantenha aberta uma porta de cem portas; pois enquanto esteja aberta uma porta, não estamos aprisionados”, defendia Chesterton, já que a história humana estava aí “para ensinar que as tendências podem retroceder, e que um obstáculo pode ser o ponto decisivo do retrocesso” (Chesterton, 2006: 55-56).
As “recomendações” de Chesterton se traduziam em um tipo de legislação promotora de uma sociedade de pequenos proprietários: 1) normas impositivas que desencorajassem a venda das propriedades pequenas às grandes empresas; 2) lei de proteção e restauração da propriedade das pessoas mais humildes contra a agressão empresarial; 3) proteção e fomento público dos projetos familiares e cooperativistas, através de tarifas locais; 4) sistema de subsídios gerais para os projetos citados no ponto anterior; 5) reconhecimento público dos “voluntários heroicos” capazes de se sacrificarem para assumir a responsabilidade por pequenas empresas.
Nestas linhas, Chesterton propunha uma “economia a serviço da pessoa” frente a hora crítica que se abria no mundo ocidental. Diante desse grande empreendimento desumanizado, responsável pela crise econômica dos anos 30, e diante da “tirania dos trustes” monopolistas, era necessário retornar à “verdade simples” que vinculava o homem a suas mãos artesãs, a sua terra de origem, com autonomia empreendedora. “Já não há diferença de teor ou classe entre a ordem coletivista e a ordem comercial comum – assinalava Chesterton – o comércio tem a sua burocracia e o comunismo a sua organização. As coisas privadas já são públicas no pior sentido da palavra, quer dizer, são impessoais e desumanizadas. E as coisas públicas já são privadas no pior sentido da palavra; ou seja, são misteriosas e secretas, e estão extremamente corrompidas”. Só essa verdade poderia libertar o ser humano essa “roda do destino” que o convertia em escravo da “religião da técnica”, em trabalhador assalariado submetido ao sistema fordista, em pessoa convertida em apêndice da máquina. Era o momento histórico de um “espírito novo” capaz de devolver o sentido comum às sociedades aceleradas, de situar à pequena propriedade no signo da política social. Por isso, assinalava que “as pessoas sempre têm ideais quando já não podem ter ideias” (Chesterton, 2010: 121-122).
6 – Frente a Ameaça do “Estado Servil” - A Advertência de Hilaire Belloc
O distributismo se situava, assim, como alternativa diante de um capitalismo vigente que só permitia o verdadeiro direito à propriedade a uns poucos, e diante de um socialismo emergente incapaz de reconhecer aos homens e suas famílias o acesso à propriedade de seus meios de vida e produção sob controle do Estado ou dos coletivos operários). Por isso, o escritor e historiador anglo-francês Hilaire Belloc, presidente da União de Oxford, defendeu uma distribuição ampla, justa e familiar sob o marco de um Estado distributivo, que integraria “uma aglomeração de famílias de diversos níveis de riqueza, mas com o maior número possível de proprietários dos meios de produção”, o que significava uma extensão da liberdade operária e da consolidação da família através da extensão dos “bens produtivos” (não especulativos), que geram a riqueza e bem-estar imprescindíveis para a autonomia e a sobrevivência (do lar e da terra até as ferramentas artesanais e os implementos agrícolas). Uma forma de ser e viver a economia que teria dado sentido ao trabalho da fé católica, à qual se havia convertido, na construção, como demonstrava em diferentes textos historiográficos, da moderna civilização europeia; “a fé é Europa e Europa é a fé”, sentenciou (Belloc, 2008: 22).
Como apontava Belloc em “O Estado Servil” de 1912, desta maneira a nova sociedade industrial poderia ajudar a maioria da população a possuir um autêntico “espaço social dominado” (Forsthoff, 1967), a manter a sua subsistência sem depender da utilização da propriedade dos demais, de maneira familiar (pequenas produções ou pequenas empresas) ou comunitária (cooperativas artesanais, agrárias), capaz de preservar a verdadeira liberdade humana; sem ela, a concentração capitalista injusta poderia dar passagem à revolução socialista capaz de arrebatar a propriedade privada ao conjunto da sociedade civil em um tipo de sociedade comunista, autêntica manifestação final de um “estado servil” onde os seres humanos voltariam a trabalhar, como escravos tal como nos tempos anteriores ao surgimento do cristianismo (Belloc, 2010).
Mas Belloc ressaltava que o distributismo não era uma nova doutrina político-econômica. Pressupunha, como tomou do cardeal Henry Edward Manning (1808-1892), a nova perspectiva histórica do programa econômico milenar da Europa Católica, atualizado por Leão XIII, diante do reinado de um “capitalismo selvagem” e a ameaça de um “socialismo laicista”. Assim, esta doutrina apostava em uma nova democracia corporativa (após sua experiência como deputado liberal) que dissolvesse o Parlamento demoliberal e institucionalizasse comitês de representantes das organizações da sociedade civil, tomando como referência as guildas medievais. Agora bem, “The Servile State” surgiu, como reconhecia o próprio Belloc, para argumentar e demonstrar uma “verdade” que fundava o distributismo mas acima de tudo, que reconhecia a “liberdade verdadeira para o ser humano”. Diante de uma “sociedade moderna, na qual só uns poucos possuem os meios de produção, encontrando-se necessariamente em equilíbrio instável”, a liberdade se convertia em mero trabalho obrigatório para a maioria de despossuídos e em impossibilidade real de mudar de status. A lei positiva divida, neste esquema, os homens entre aqueles “livres economicamente e politicamente, em posse, ratificada e garantida, dos meios de produção”, e aqueles “sem liberdade econômica ou política, mas aos quais, por sua própria falta de liberdade, se assegurará em princípio a satisfação de certas necessidades vitais e um nível mínimo de bem-estar, abaixo do qual seus membros não devem cair”.
Por isso, era necessário recuperar a lei natural como garantidor da distribuição justa e legítima, em função tanto do mérito como da solidariedade, para evitar a perpetuação desse “estado servil” (Belloc, 2010: 45-46). Em relação a isso, Belloc e Cecil Chesterton escreveram conjuntamente a obra “The Party System” em 1910, onde aspiravam reformar o tradicional sistema de partidos por um novo sistema de rotação de grupos sociais no exercício do poder (integrado por representantes de cada partido). Para M. Ward esta obra constituía uma poderosa crítica política e moral do tradicional sistema demoliberal britânico, totalmente nas mãos dos dirigentes dos partidos dinásticos (Ward, 1992). Ademais, cabe destacar que este foi um referencial notável, apesar das críticas ao liberalismo ortodoxo presente na doutrina distributista de Belloc, na obra de um dos maiores expoentes da Escola de Viena, Friedrich von Hayek (1889-1992) em “Caminho à Servidão” (publicado em 1944) como argumento contra a dominação socialista do Estado (Hayek, 2003).
7 – O Distributismo na América do Norte – O Movimento do Trabalhador Católico e Dorothy Day
As ideias de Belloc e Chesterton chegaram aos EUA nas mãos do “The American Review”, publicada e editada por Seward Collins (1899-1952), vinculando-as ao agrarismo sulista e nacionalista. Mas adquiriu uma fisionomia doutrinária distinta nas mãos do “Catholic Worker Movement”, organização fundada em 1933 por Dorothy Day (1897-1980) e por Peter Maurin (1877-1949), ativistas desiludidas com o primeiro socialismo norte-americano, e influenciados pela experiência das cooperativas locais impulsionadas pelo “Antigonish Movement” canadense (gerado a partir da Universidade São Francisco Xavier por Jimmy Tompkins, Moses Coady, Hugh MacPherson e A.B. MacDonald). Assim nasceu com uma primeira e urgente finalidade: ajudar os desamparados e pobres de Nova Iorque, mediante comunidades independentes e localizadas. Mas apostavam, em segundo lugar, em uma mudança econômico-social no lugar que havia se convertido na primeira potência capitalista do mundo. Como assinalava Day:
“...a meta do distributismo é a propriedade familiar da terra, de oficinas, de lojas, dos transportes, dos comércios, das profissões e assim por diante. Propriedade familiar é o meio de produção tão amplamente distribuído ao ponto de ser a marca da vida econômica da comunidade – este é o desejo da distribuição. É também o desejo do mundo”. (The Catholic Worker, 1948)
Dorothy Day chegou às teses distributistas a partir de sua conversão ao catolicismo depois de sua primeira experiência anarquista. Marcada pelas leituras de seu contemporâneo G.K. Chesterton e com a colaboração de Maurin, fundou o movimento do Trabalhador Católico a partir da centralidade existencial de sua fé. Como marcou Maurin em seus “Ensaios Fáceis”, o Estado-Nação moderno havia se tornado religião política nas mãos do monopólio capitalista ou da ditadura do proletariado. Frente a falsa “Santa Mãe Estado”, Day e Maurin encontraram no distributismo a doutrina adequada e real para confrontar os problemas do monopólio capitalista e da revolução socialista. Todo ser humano havia sido criado à imagem e semelhança de Deus, e merecia condições de vida dignas e humanizadoras, assim como a liberdade de ser proprietário de sua própria existência terrena.
A defesa distributista de uma autêntica propriedade privada, ampla e legitimamente difundida, era o requisito para uma ordem social justa. Uma ordem conformada por um conjunto de famílias proprietárias de seus lares e negócios, e uma sociedade de proprietários harmonicamente relacionados. E nesta sociedade, o Estado devia desempenhar um papel subsidiário em relação às funções naturais das comunidades menores onde o ser humano nasce e se socializa, ajudando a cada um de seus membros na sua plena realização enquanto proprietários. Day e Maurin defendiam, pois, a propriedade privada para todos.
Em “A Longa Solidão” de 1952, texto autobiográfico, Dorothy Day definiu a essência distributista do Movimento do Trabalhador Católico, ao ressaltar os pontos centrais de sua doutrina: a) posse legítima dos meios de produção para os trabalhadores; b) supressão do trabalho fabril em cadeias de montagem; c) a organização descentralizada das fábricas ; d) a conversão da “responsabilidade” individual e coletiva em máxima político-social; e) a recuperação dos velhos ofícios artesanais; f) a difusão da posse da propriedade privada; f) e a reparação das formas de vida agrárias e rurais. Sobre estes princípios Day apoiou a criação de grupos cooperativos baseados na ajuda mútua, o apoio financeiro das paróquias, projetar universidades agrônomas, e difundir o ideal da “dação fraternal” (já que, como recordava Day, “aqueles que tem capital devem dar”, porque “o amor é uma troca de presentes, disse São Inácio”).
O fruto mais visível desta experiência foram as Casas de Hospitalidade do Trabalhador Católico, fundadas com base no ideal monástico beneditino das “casas de hóspedes”. Eram centro de apoio desinteressado para todos os necessitados, vistos em sua dignidade como “embaixadores do Senhor”. Frente ao ideal calvinista da pobreza como um mal e como um castigo, estes Centros situavam o ser humano necessitado no núcleo da atenção social. Assim, Day sentenciava que:
“...o distributismo pode ser um sonho; três acres e uma vaca podem ser um chiste; as vacas podem ser animais fabulosos; a liberdade pode ser uma palavra; o empreendimento privado pode ser a caça a um ganso selvagem, que não pode ser seguido pelo mundo.
Mas para as pessoas que falam como se a propriedade e o empreendimento privado fossem os princípios ativos agora em operação – essas pessoas estão tão cegas e surdas e mortas para todas as realidades de sua própria existência diária que elas podem ser removidas do debate”. (Day, 2002: 23-24)
Dorothy Day sempre soube que certos grupos católicos não compreenderiam seu trabalho. Ou melhor, acreditava que se limitava a uma crítica capitalista, ou melhor, outro experimento coletivista de “comunistas disfarçados, lobos disfarçados de ovelhas” (Day, 2002: 110). Mas também insistiu que sua obra se baseava, escrupulosamente, nos princípios da Doutrina Social Católica, tal como aprendeu de Joseph T. Nolan, equidistante das ideologias e atenta ao favorável e ao desfavorável contido em toda proposta econômica e social; assim se posicionou em o “Trabalhador Católico” (julho-agosto 1948):
• Fomentar a propriedade do trabalhador, e proteger o direito à propriedade privada, meio para desproletarizar o trabalhador, já que “a família é mais perfeita quando está enraizada na propriedade” (Leão XIII, 1891: 17);
• Impulsionar a propriedade agrária, ao ser a “terra a forma mais natural de propriedade”, e a “primeira e mais importante de todas as artes e o lavrador do solo ainda representa a ordem natural das coisas ordenadas por Deus” (Pio XI, 1931: 21);
• Gerar uma nova filosofia de trabalho responsável e cooperativa, capaz de superar a usura e a especulação.
8 – O Horizonte do Distributismo: O Desenvolvimento Humano Integral
O desenvolvimento contemporâneo do distributismo mostra distintas propostas sobre o papel deste modelo de economia social em relação ao Estado e ao Mercado. O mais famoso dos distributistas da segunda metade do século XX foi o economista alemão Ernst Friedrich Schumacher (1911-1977), que apostou, como estatístico e assessor sediado na Inglaterra (especialmente no National Coal Board), por um modelo de organização econômica tecnificada e descentralizada popularizada em seus trabalhos “Small is Beautiful” (1973) e “A Guide For The Perplexed” (1977), contra o materialismo histórico e científico; e desenvolvida através do Intermediate Technology Development Group para a América Latina e o Caribe a partir do paradigma das “soluções práticas” ou Practical Action (Pérez Adán, 1988). No primeiro de seus trabalhos, “O Pequeno é Belo”, considerado um dos livros mais influentes do século XX, ele pegava a tradição distributista original adaptando-a aos desafios de um mundo moderno onde o ser humano se definia, na sua opinião, em termos materiais, prescindindo de sua dimensão transcendental e, portanto, de sua alma (Schumacher, 2001).
Em primeiro lugar assinalava, frente a um mundo mecanicista e individualista, que isolava o homem de Deus e de suas comunidades, e que levava a própria Criação à autodestruição através do esgotamento de seus recursos, para Schumacher era necessária uma nova reação ecossocial. Definido como pensador “ecoconservador”, insistia no uso adequado dos recursos naturais, fruto da Criação e sempre limitados como matéria-prima, que deviam ser considerados como capital, ao sere fator decisivo que contribui, junto com o trabalho e a inventividade humanos, à produção, mas que deve ser resposto adequadamente para impedir seu esgotamento, pois este levaria ao colapso do sistema produtivo (Videla, 2001). Em segundo lugar, Schumacher atendia à dimensão espiritual do Trabalho; o sistema produtivo devia fomentar a criatividade e a autorrealização do trabalhador para uma geração sustentável de bens e recursos, assim como um consumo responsável centrado tanto nas necessidades materiais como nas espirituais. Em terceiro lugar, abordou a urgência de uma economia a serviço do homem frente a uma “economia impessoal” caracterizada pelo gigantismo empresarial e pela racionalidade tecnológica das economias de escala. Voltar a compreender e a contemplar a “beleza do pequeno” era o antídoto diante da “monstruosidade da organização” moderna, que tendia a alienar o indivíduo, e a subordinar a sua criatividade, e a cercear a sua liberdade (Schumacher, 2001). E em quarto lugar, alertava para a destruição da família como núcleo da sociedade, para um individualismo hedonista e consumista que convertia a “felicidade” não em compartilhar (do amor à comunhão) mas em consumir (devorando os recursos naturais).
Posteriormente, o professor inglês Joseph Pearce, da Universidade de Ave Maria (EUA), e retomando o ideário primigênio de Chesterton e Belloc, continuou com as teses de Schumacher em “Small is Beautiful” (2001) sobre a ideia de uma economia “como se as famílias importassem”. Diante do modelo mecanicista do homo oeconomicus que trabalha e consome de maneira racional atendendo aos níveis de salários e preços, e cuja satisfação resulta diretamente proporcional a seu nível de consumo, defendia a “ilógica” altruísta da instituição familiar, e das pequenas empresas frente às economias de escala e a padronização.
No desenvolvimento atual das teses distributistas podemos citar a linha mantida pela “Distributist Review” a partir do tradicionalismo católico. Dirigida por John Médaille, define o distributismo como uma “terceira via” ou economia paralela frente os “desmandos do capitalismo” e a ineficácia do Estado (Médaille, 2010). Reivindicando os clássicos (Belloc, Chesterton, Penty e McNabb) e sendo fieis ao magistério católico (em busca do “reinado social de Jesus Cristo”), estabeleciam duas dimensões: uma macroeconômica “útil para as decisões prudenciais do estadista”, e focalizada no estabelecimento de um sistema capaz de dotar a cada homem de um trabalho digno e satisfatório para satisfazer as necessidades básicas, materiais e espirituais, de suas famílias; e outra microeconômica, localizada na “administração do lar”, aplicada “especificamente à situação atual da família tradicional católica” (Chojnowski, 2011).
Para o professor norte-americano Peter E. Chojnowski as famílias alcançariam um trabalho digno e um lar estável apenas através da “posse de propriedade familiar real”, e através de uma organização econômica nova que “satisfizesse as mesmas necessidades que o sistema capitalista, mas de maneira diferente”. Ambos os princípios levariam a criar comunidades autossuficientes, onde seus membros se comprometeriam livremente a colaborar organizativa, moral e economicamente. Dita participação das famílias e comunidades significaria “renunciar a sua consciência capitalista”, usando “suas habilidades, talentos e trabalhos” para contribuir para a satisfação das necessidades de todas as famílias da comunidade. Sobre o sentido de irmandade baseado na adesão à tradição, se propunha a construção de comunidades similares às guildas, como corpos corporativos que englobavam todos os membros de um certo tipo de labor, que integraria trabalho e fé, articuladas sobre empresas de propriedade familiar, escolas tradicionais católicas, programas de aprendizado e cooperativas de crédito.
A pluralidade mencionada na evolução do distributismo impulsionou diferentes sensibilidades como modelo de economia social. Assim, nos encontramos com as teses do jornalista Herbert Sebastian Agar (1897-1980) sobre o modo de vida “sulista” como modelo para refederalizar os EUA, como em “The Price of Union: The Influence of the American Tempero on the Course of History” (1950); do jornalista e político conservador norte-americano Leo Brent Bozell (1926-1997) e sua revista Triumph (fundada em 1966), em colaboração com o tradicionalismo católico espanhol; do etnólogo e religioso anglicano (temporalmente convertido ao catolicosmo) William Purcell Witcutt (1910-1970), colaborador pontual da revista dirigida por Chesterton; ou do antigo pastor metodista e militante comunista Douglas Arnold Hyde (1911-1996).
Posteriormente aparecem a defesa do ensaísta e historiador Charles A. Coulombe sobre a universalidade e atualidade da doutrina social católica como sistema adequado para a reorganização da economia capitalista (palpável em suas obras “Everyman Today Call Rome” de 1987 e “The Pope’s Legion” de 2009); de Justin Barrett no que concerne a defesa da família como núcleo da autonomia social e econômica, a partir do nacionalismo conservador irlandês (no seio do movimento “Family Solidarity”); do pensador e teólogo anglicano Phillip Blond, fundador do think-tank “ResPublica” sobre a necessidade de uma nova sociedade conservadora sob o projeto tory da “Big Society” (Blond, 2010); do projeto familiar e agrarianista do professor norte-americano de história Allan C. Carlson, diretor do “Family in America Studies Center” e secretário do “World Congress of Families” (Carlson, 2003); do conservador libertário Bill Kauffman, defensor de um neoconservadorismo anti-estatal, ruralista, distributista e anti-imperialista para a América do século XX (Kauffman, 2008); do sacerdote espanhol José María Arizmendiarrieta Madariaga (1915-1976), fundador da Mondragón Corporación Cooperativa, impulsionado como sistema de produção local integrador e superador dos meios e instrumentos do capitalismo através de fórmulas de gestão e distribuição participativas (Molina, 2005); ou do humanista norte-americano Wendell Berry e sua teorização da economia local (familiar, comunitária e ecológica), como “harmonização entre o homem e a natureza”, já que “sem economias locais prósperas, as pessoas não tem poder e a terra não tem voz” (Berry, 1972).
Em suma, pode resultar difícil vislumbrar a influência das teses distributistas no pensamento econômico-político atual assim como na própria política social; o escasso eco de suas propostas originárias em seu próprio meio (catolicismo social em uma nação oficialmente anglicana) ou sua conexão com a limitada projeção do socialismo guildista o explicam. Mas o seu indubitável influxo em movimentos cooperativos contemporâneos, sua conexão com a reconfiguração progressiva do magistério social católico, e sua participação no debate sobre o “desenvolvimento humano” como nova questão social nos advertem de sua presença tanto no pensamento social como econômico da “era da globalização” (García e Pulgar, 2010). A sua sobreposição geral às ideologias hegemônicas, a sua posição crítica contra a partidocracia (estatista) e a plutocracia (capitalista, a sua equidistância em relação aos sistemas político-sociais vigentes, a sua conexão com experiências setoriais concretas, a sua capacidade de adaptação local; estes são alguns dos possíveis traços que explicam a possível vigência de certas ideias distributistas no início do século XXI, na configuração da questão social do século XX). "Três acres e uma vaca” poderiam ser, literalmente, uma simples ucronia tradicionalista, mas se demonstra como um ideal humanista transversal na reconfiguração da política social contemporânea.
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