10/11/2019

Flaminia Incecchi – A Estética da Guerra no Pensamento de Giovanni Gentile e Carl Schmitt

por Flaminia Incecchi

(2018)



Introdução[1]

Esta nota de pesquisa é um rascunho preliminar de minha pesquisa doutoral. O objetivo do projeto é estabelecer um diálogo entre Giovanni Gentile (1875-1944) e Carl Schmitt (1888-1985). O diálogo que eu quero apresentar, se apoia em várias comunalidades entre os dois pensadores, tanto biográficas como intelectuais. Tanto Schmitt como Gentile estiveram envolvidos com os regimes nazista e fascista, Schmitt como jurista e Gentile como reformador e Ministro da Educação. Intelectualmente, eles partilham de vários traços: afiliações teóricas e interesses, bem como críticas a abordagens e tradições similares. Os dois pensadores enfatizam a concretude, bem como um interesse na história conceitual. Ainda que por motivos diferentes, Schmitt e Gentile foram extremamente críticos do positivismo, do liberalismo, do mecanicismo, de quaisquer teorias que adotem uma abordagem intelectualista (transcendental) da política e do direito (Schmitt), e da filosofia (Gentile). O diálogo leva a uma comparação de suas interpretações da guerra, que eu analiso através de uma moldura oferecida pela estética. No que segue, eu forneço uma breve apresentação de Gentile, seguida por um rascunho de minha leitura das interpretações da guerra feitas por Schmitt e Gentile, e para onde eu estou apontando no seu uso da estética.


Comentários Introdutórios

Gentile foi uma das maiores figuras intelectuais do século XX. Nascido em 1875 em Castelvetrano (Sicília), Gentile recebeu sua formação intelectual na Scuola Normale Superiore em Pisa. Em 1893, Gentile começou seus estudos universitários na Faculdade de História sob a orientação de Alessandro D’Ancona, um famoso historiador da literatura italiana. Enquanto vivia em Pisa, Gentile conheceu Donato Jaja, um pensador neo-hegeliano que despertará um profundo fascínio pela filosofia no jovem Gentile, o que mudará a direção de seus estudos da história para a filosofia (Turi, 1995, p. 19). A obra de Jaja se apoiava nos estudos hegelianos italianos do período do Risorgimento, particularmente os de Bertrando Spaventa, um pensador majoritariamente desconhecido que tentou uma reforma da dialética hegeliana, bem como buscou usar o pensamento de Hegel como manual para o programa político italiano (Piccone, 1977, p. 51). Quando Gentile começou seus estudos universitários, figuras como Jaja eram periféricas na paisagem intelectual da virada do século. Graças ao domínio hegemônico do positivismo na filosofia, o discurso era majoritariamente ocupado pelo realce e fomento de conexões entre os métodos filosófico e científico, marginalizando a metafísica e, especialmente, o Idealismo. Em 1896, Gentile iniciou uma correspondência com Benedetto Croce, que à época era uma voz jovem, bem sucedida e dissidente no cenário intelectual. Gentile leu diversos artigos em que Croce criticava a metodologia histórica do positivismo[2]. A relação Croce-Gentile dará origem ao movimento neo-idealista, que virá ocupar a cena intelectual italiana por quase meio século.

Apesar de Gentile ser principalmente conhecido por seu envolvimento político e por sua contribuição para a filosofia, a sua obra espelha a sua formação intelectual. Suas obras são uma combinação de história conceitual e cultural, filosofia (metafísica, estética, ética), filosofia do direito, filosofia da história, filosofia da educação (pedagogia), e filosofia política. A carreira intelectual extremamente prolífica de Gentile começou em 1896, e continuou ininterrupta até seu assassinato em 1944. O corpus de Gentile consiste de mais de 50 volumes[3]. Fora da academia, o envolvimento político de Gentile era fundamentalmente de orientação cultural. Durante o regime fascista, ele foi Ministro da Educação (1922-1924) reformando inteiramente o sistema educacional italiano. Naquele período, ele também escreveu vários artigos pró-fascistas, bem como escreveu o Origens e Doutrina do Fascismo (1928), um texto delineando a filosofia por trás do fascismo. Por essas atividades, Gentile ainda está sujeito ao damnatio memoriae, seu papel como ideólogo do fascismo, uma “mancha” não facilmente esquecida, maculando seu nome até hoje. Como resultado disso, hoje, as contribuições intelectuais de Gentile são essencialmente negligenciadas em todos os campos nos quais ele foi ativo. Apenas uns poucos dos textos de Gentile estão disponíveis em outros idiomas[4], e à luz da negligência nas fontes primárias, não é surpreendente que os estudos sobre Gentile sejam poucos. A maior parte da literatura recente objetiva reintroduzir o seu pensamento, ou mais precisamente retirar Gentile do esquecimento no qual ele se encontra atualmente. Apesar da vastidão e riqueza de seu pensamento, bem como de sua influência sobre Collingwood, Gramsci e Croce, Gentile ainda não foi redescoberto.

O destino de Schmitt hoje não poderia ser mais diferente: nós temos duas biografias (Bendersky, 1983; Mehring, 2014), bem como uma biografia intelectual (Balakrishnan, 2002). Em “Controvérsias sobre Carl Schmitt: Uma Revisão da Literatura Recente”, Caldwell (2005) escreve: “Os autores dos livros em revisão aqui o veem de maneira variada como um liberal oitocentista, um fascista na linha italiana, como um conservador revolucionário, como crítico de Marx, como um antissemita, e como um brilhante teórico da democracia” (357). Essa passagem retra a ampla variedade de maneiras pelas quais a obra de Schmitt tem sido lida, e não dá conta da multiplicidade de artigos que lidam com comparações entre Schmitt e outros pensadores, as tentativas de usar o pensamento de Schmitt hoje, e os esforços da esquerda para usar Schmitt como crítico da democracia liberal, bem como a recepção do pensamento de Schmitt em várias partes do mundo. Isso demonstra que apesar da natureza controversa da persona de Schmitt, tal como de algumas de suas ideias, Schmitt foi agora aceito em círculos acadêmicos.

Um projeto que crie um diálogo entre Schmitt e Gentile é um exercício novo na academia anglo-americana e italiana. No meu conhecimento, a única obra em que Schmitt e Gentile aparecem no mesmo parágrafo é um artigo co-escrito por Lacoue-Labarthe e Nancy (1990), eles escrevem:

“Aqui seria necessário demonstrar rigorosamente que tipos de relacionamentos a ideologia, concebida assim como Weltanschauung total, mantém com o que Arendt chama ‘dominação total’ (OT, p. 436), ou seja, com o que Carl Schmitt – se baseando aqui na autoridade tanto do discurso propriamente fascista (o de Mussolini e Giovanni Gentile) como do conceito jüngeriano de “mobilização total” (que forneceu uma primeira definição da tecnologia como poder mundial total) – chamou de Estado Total” (293).

Infelizmente, não há qualquer evidência de que Schmitt leu Gentile, e Lacoue-Labarthe e Nancy não fornecem qualquer referência que indique o oposto. O objetivo desta pesquisa é simular um diálogo entre Schmitt e Gentile, lançando luz sobre as semelhanças e ligações entre os dois. Ao fazê-lo, este projeto preenche várias lacunas acadêmicas. Primeiramente, contribui para estudos sobre Schmitt ao fornecer uma investigação de sua abordagem da guerra, e ao explorá-la através de uma lente estética. Em segundo lugar, lança luz sobre a profundidade do pensamento de Gentile, tanto político como filosófico. Finalmente, para o âmbito da estética, mostrando como um conceito (guerra) pode reter um qualificador estético.

Há algumas diferenças disciplinares entre Schmitt e Gentile, que se traduzem nos campos para os quais eles contribuíram, bem como no modo de teorização que eles empregam. Gentile, por exemplo, não fez contribuição à teoria política, enquanto os escritos de Schmitt nunca alcançaram a complexidade e rigor filosóficos dos de Gentile. Apesar da natureza e do escopo distintos de suas contribuições intelectuais, Gentile e Schmitt de fato partilham de alguns fundamentos teóricos comuns. Uma dessas comunalidades é a ênfase no concreto. Em vários pontos, Schmitt expõe a ineficiência de uma visão “científica” dos conceitos, e sugere uma abordagem concreta de sua análise. A posição filosófica de Gentile é a formulação de um tipo de idealismo – idealismo atual ou espiritualismo absoluto – que objetiva refutar o transcendentalismo das correntes filosóficas anteriores. Para Gentile (1912) o positivismo, o intelectualismo e as formas anteriores de idealismo envolvem a existência de uma realidade que é anterior ao pensamento (232). Tal realidade é intocada pelo pensamento humano, que só desempenha um papel periférico naquelas perspectivas metafísicas. O papel do pensamento nessas perspectivas é periférico, um “espectador” ao invés de um “ator”, porque ele simplesmente reflete o que já foi delineado (seja pela mente de Deus, pelas leis da natureza, ou pela necessidade e fatalidade) (Gentile, 1922, p.6). Esta forma de pensamento, Gentile (1922) chama “abstrata” (43). Para isso, ele justapõe “pensamentos concretos” – nomeadamente, o pensamento que é capaz de moldar a realidade, antes do que nada existe (Gentile, 1922, p. 4). Portanto, o centro do sistema filosófico de Gentile é o pensamento humano, concreto. A centralidade desempenhada pelo pensamento concreto em Gentile, explica a sua refutação de qualquer teoria que reduz as iniciativas humanas (políticas, jurídicas, históricas e filosóficas) a mecanismos. Ainda que de maneiras diferentes, Schmitt e Gentile teorizam com uma atenção particular para o concreto, o que os leva a pesquisar as origens, definições e metamorfoses de conceitos. Portanto, há um sentido no qual tanto Schmitt como Gentile se ocupam da ideia de “ruptura”. A ruptura de Schmitt é a fé na exceção, e a ruptura de Gentile é o sentido no qual o espírito humano pode – e deve – ser situado no centro das discussões teóricas, rompendo assim um discurso que, desde sua origem, havia sustentado a existência de alguma entidade anterior ao pensamento.

Schmitt e Gentile sobre a Guerra

Um leitor de Schmitt poderia notar que seu pensamento e consequentemente, a sua caneta, parecem ter duas faces. Por um lado, somos confrontados com Schmitt o jurista, cuja prosa analítica e sintética está essencialmente orientada para a ordem e para a política estatal. Por outro lado, às vezes encontramos uma caneta diferente, uma que parece abandonar momentaneamente a normatividade da ordem que caracteriza a sua obra, em favor de tendências decisionistas e quase-irracionalistas, bem como uma forma de fé no extraordinário. Este Schmitt abandona o frio estilo lapidar em favor de uma prosa metafórica, obscura, e, às vezes, profética. Neste projeto, eu quero mostrar que as duas faces de Schmitt se relacionam com sua profunda fascinação pela guerra. Em “O Conceito do Político” (Schmitt, 1996, p. 25-26) Schmitt diz a seus leitores que uma definição do político só pode ser dada se descobrirmos as “categorias políticas específicas”. Estas devem ser independentes de outras categorias dos empreendimentos humanos, como a ética, a estética, e assim por diante. Para Schmitt (1996), “a distinção política específica à qual as ações e motivos políticos podem ser reduzidos é aquela entre amigo e inimigo” (26). Agora, diferentemente de outras antíteses (ou seja, belo e feio na estética; e bem e mal na ética), apenas a política possui o “máximo grau de intensidade”, o que quer dizer que “o inimigo político... [é] existencialmente algo diferente e alienígena, de modo que no caso extremo conflitos com ele são possíveis” (27). Portanto, o político é a única antítese que pode levar ao combate justificado, porque o inimigo ameaça nossa própria existência e nosso modo de vida. Assim sendo, a distinção política (amigo/inimigo) envolve essencialmente a possibilidade de guerra. Duas passagens do “Conceito” merecem ser citadas para entendermos a abordagem que Schmitt faz da guerra. A primeira passagem aponta para a guerra como o resultado das antíteses políticas entre amigo e inimigo: 

“A guerra se segue da inimizade. A guerra é a negação existencial do inimigo. É a consequência mais extrema da inimizade. Ela não deve ser comum, normal, algo ideal ou desejável. Mas ela deve permanecer, não obstante, uma possibilidade real enquanto o conceito do inimigo permanecer válido (33)”.

A segunda passagem elabora a função da guerra como negação existencial do inimigo, e aponta para o fato de que a guerra é justificável apenas na situação extrema da inimizade e através da antítese política:

“Não há propósito racional, nenhuma norma não importa quão verdadeira, nenhum programa não importa quão exemplar, nenhum ideal social não importa quão belo, nenhuma legitimidade, nenhuma legalidade que possa justificar o massacre de homens por homens por esta razão. Se a destruição física da vida humana não for motivada por uma ameaça existencial ao próprio modo de vida, então ela não pode ser justificada (49)”.

Aqui, Schmitt reitera indiretamente o argumento anterior segundo o qual a distinção política é a única antítese ou motivo que justamente motiva o combate. Dessas passagens, podemos fazer a inferência justificada de que Schmitt não está exaltando ou encorajando a guerra. Ademais, ele parece fornecer uma razão para a guerra defensiva, ao invés de ofensiva, na medida em que o combate só é justificado em caso de negação existencial. Ainda, em “O Conceito” parece que a guerra representa um teste final de fé na, bem como de validade da entidade política. Schmitt nos diz que o Estado é a entidade política por excelência, porque apenas ele possui “a verdadeira possibilidade de decidir em uma situação concreta sobre o inimigo e a habilidade de combate-lo com o poder que emana da entidade” (45). Para além disso, o jus belli para Schmitt, “implica uma dupla possibilidade: o direito de demandar de seus próprios membros uma prontidão para morrer e matar sem hesitação os inimigos” (46). No mesmo texto, Schmitt também nos recorda que se outra entidade decide sobre a distinção política, então aquela entidade se tornará a entidade política, substituindo o Estado precisamente porque a nova entidade porta poder decisório. Essa menção da decisão política nos traz ao tratamento que Schmitt dá ao estado de exceção. Em “Teologia Política”, Schmitt (2006) escreve: “Na exceção, o poder da vida real rompe a crosta de um mecanismo que se tornou torpe pela repetição” (5). Depois, Schmitt (2006) argumenta que “todos os conceitos relevantes da teoria moderna do Estado são conceitos teológicos secularizados... a exceção na jurisprudência é análoga ao milagre na teologia” (36).

As passagens de “O Conceito do Político” e de “Teologia Política” mostram os dois Schmitt(s) que eu ilustrei acima. Enquanto no primeiro texto a guerra recebe um tratamento sistemático e frio e é mencionada por ser parte de um fenômeno inevitável, a distinção política amigo/inimigo, no segundo texto somos apresentados com uma imagem diferente. A abordagem da situação extrema em “Teologia Política” é adornada com uma metáfora poderosa, que dá ao leitor a impressão de que Schmitt quase deseja que o estado de exceção se materialize. O agere necessário no estado de exceção parece derrotar o infindo deliberare liberal. Prima facie equiparar a exceção a um milagre parece apontar para a materialização da exceção enquanto milagre. Naquele caso, leríamos a materialização de um milagre como algo desejável, fruto da Providência. Esse movimento interpretativo, típico da leitura majoritária de Schmitt como pensador irracionalista em cuja mente as sementes do nazismo sempre existiram, não é a única leitura disponível. A definição que David Hume dá de milagre pavimenta o caminho para uma segunda interpretação. Na opinião de Hume, um “milagre é uma violação das leis da natureza” (Hume, 2007, p.83). Isso apresenta um milagre como uma suspensão temporal das leis da natureza, tal como a exceção demanda uma suspensão temporal das leis do Estado. O que acontece depois de um milagre e de uma exceção é a mesma coisa: normalidade e ordem. Após lidar com a exceção, o Estado retorna a seu funcionamento normal. Em minha opinião, a leitura que Schmitt faz da exceção não poderia ser mais diferente do diagnóstico benjaminiano que Agamben faz de nosso mundo político, onde o estado de exceção teria se tornado um paradigma de governo (Agamben, 2005, p. 6-7). Para Schmitt, o ponto é que nossas estruturas políticas e jurídicas devem ser capazes de reagir de maneira apropriada e oportuna ao estado de exceção. Que o estado de exceção não pode ser codificado é parte de sua natureza, caracterizada por sua própria excepcionalidade que a situa fora do paradigma estabelecido das regras. A interpretação que eu propus pretende mostrar que Schmitt, longe de defender um estado de exceção perpétuo, tem fé naquele momento por causa do poder milagroso que ele porta. Como resultado desse poder, a exceção se torna mais interessante do que a regra. Portanto, ainda que não seja um defensor da exceção, Schmitt é fascinado por seu poder porque em face da exceção, os desejos do liberalismo de oblitera-la revelam sua inadequação.

Para Schmitt, a guerra nunca seria o ponto da política, “mas como possibilidade perpetuamente presente ela é a principal pressuposição que determina de maneira característica a ação e pensamento humanos e, assim, cria um comportamento especificamente político” (Schmitt, 1996, p. 34). A sua afirmação descritiva de que a guerra poderia se materializar, associada com a afirmação normativa de que ela não deveria se materializar, é de importância vital em minha análise de Schmitt como pensador ordenador. Através da afirmação de que a guerra é uma perpétua possibilidade lógica resultante de uma distinção política necessariamente nevitável, Schmitt fornece um argumento modal. Com isso eu quero dizer que Schmitt aponta para a possibilidade de que o conflito surja de uma condição necessário do mundo político. Através do reconhecimento dessa situação fática, Schmitt então compreende que a guerra é um momento revelador de várias maneiras. Primeiro, a disposição de morrer é um aspecto crucial do político: “Se comandado a ir à guerra, o agente schmittiano obedecerá porque seu fim último é a preservação da entidade política à qual ele pertence” (Slomp, 2009, p. 164). Se o Estado não é mais capaz de fazer a distinção amigo/inimigo, então o Estado se desintegrará e sucumbirá diante de alguma entidade política real emergindo de outro lugar. Portanto, no momento da guerra, ou na possibilidade perpétua da guerra, a questão do pertencimento é fundamental. Falando de forma grosseira, um agente não arriscará sua vida por uma entidade política da qual ele não se sente parte, revelando assim as suas lealdades a um grupo político. Este fato (ou melhor, onde se encontram as lealdades) só se tornará manifesto no antagonismo mais extremo. Em minha leitura de Schmitt, a questão da guerra é uma questão extrema, mas reveladora. Segundo, se a exceção se materializasse, o Estado enquanto unidade estaria sob risco, o que explica a razão pela qual Schmitt quer deixar carte blanche para os canais que permitem lidar com a exceção o mais rápido possível. Porém, em virtude dessa força potencialmente devastadora, a exceção tem o poder de derrotar uma ordem inefetiva. Eu baseio a minha leitura da abordagem que Schmitt faz da guerra como uma “política de distância” nos dois argumentos delineados acima. A afirmação de que Schmitt fornece uma política de distância da guerra é compatível com ambos, tanto com o Schmitt normativo como com o Schmitt irracionalista, e mais importantemente, dá conta de sua coexistência. Ainda que suas teorias sejam caracterizadas por uma normatividade da ordem, Schmitt é fascinado pela guerra. Essa fascinação é evidente no poder revelador que a guerra possui, bem como na habilidade que a exceção tem de derrotar o mecanismo liberal. Schmitt, portante, contempla esteticamente a guerra à distância, sem convidá-la diretamente às suas imagens políticas e jurídicas. Porém, a sua própria contemplação estética pode gerar um certo número de respostas, bem como moldar o comportamento político de forma ampla.

As duas faces de Schmitt foram detectadas previamente nos estudos sobre o autor. Por exemplo, Wolin (1990) sugeriu uma reconciliação através daquilo que ele chama de existencialismo político. Ele escreve: “Há preceitos ‘existencialistas’ específicos que lhe permitem unir tanto um decisionismo radical como uma filosofia concreta da ordem. Há pouca dúvida de que ele percebia a união consumada dessas duas doutrinas no Führerstaat de Adolf Hitler” (394). Eu quero distanciar minha interpretação dessa leitura. O que eu proponho é uma investigação das duas faces de Schmitt e explicar o apelo oscilante do fascínio de Schmitt pela guerra como um fascínio estético. Há vários artigos que lidam com a estética em Schmitt. Alguns se concentram na influência de Shakespeare sobre Schmitt (Pan: 1987; Pye: 2009). Esses artigos não exploram a dimensão estética de um aspecto do pensamento de Schmitt. Outras contribuições identificam um ângulo estético nas teorias de Schmitt. No meu conhecimento, a primeira desse tipo é Wolin (1992), onde o autor afirma que Schmitt dá ao estado de emergência uma “justificativa quase esteticista” (434). A exceção necessariamente rompe um estado tranquilo de normalidade típico da sociedade burguesa, com isso, a emergência adquire um poder estético como subjugadora da Lebensphilosophie liberal. O tratamento estético que Schmitt dá à exceção é uma “estética do horror” (termo emprestado de Bohrer) dentro do qual há uma tendência a “propagar uma semântica temporal da ruptura, da descontinuidade e do choque” (Wolin, 1992, p. 433). O trecho de Wolin exemplifica uma tendência comum na literatura sobre a estética de Schmitt: a negligência em definir e, assim, ocupar o termo “estética” com uma definição. O que significa que algo – um conceito, um momento, ou uma teoria – seja estético? Em Wolin (1992) parece que “o estético” é tomado como significando o poder espantosamente violento da exceção. Se minha modesta leitura de Wolin estiver correta, pareceria que “estético” poderia ser substituído com palavras próximas a “mistificador”, “místico”, “assombroso”, mostrando assim que não há nada de especial no atributo “estético”. Em outras palavras, o “estético” neste sentido é usado como palavra, ao invés de como conceito.

Como eu mencionei antes, Gentile não foi teórico político, de modo que seu tratamento da guerra é radicalmente diferente em escopo e natureza do de Schmitt. Os escritos de Gentile sobre a guerra podem ser localizados em três segmentos teóricos e temporais. Primeiro, os “Fondamenti dela Filosofia del Diritto [Fundamentos da Filosofia do Direito] (1916). Segundo, as peças jornalísticas imediatamente anteriores à Primeira Guerra Mundial, coletadas em “Guerra e Fede” [Guerra e Fé] (1919), e aqueles escritos imediatamente após a guerra, agora em “Dopo la Vittoria” [Após a Vitória] (1920). Terceiro, nas obras do período fascista, particularmente “I Profeti del Risorgimento Italiano” [Os Profetas do Ressurgimento Italiano] (1923), e “Origens e Doutrina do Fascismo” (1928). Aqui eu vou focar no primeiro e terceiro segmentos.

Os “Fundamentos” foram concebidos como um curso de palestras sobre filosofia do direito dadas em 1916 aos estudantes da Faculdade de Jurisprudência na Universidade de Pisa. O texto é uma análise tipicamente atualista da disciplina, tanto em seu escopo como em sua teleologia. Em um capítulo lidando com o conceito de dialética como desenvolvimento, e o lugar do indivíduo na sociedade, Gentile (2003) escreve: “a guerra não tem seu fim em si mesma; a guerra é a instauração da paz, resolução de uma dualidade ou pluralidade na vontade coletiva, cuja realização é imanente no conflito, representando a sua verdadeira raison d’être, e seu significado correto” (72). Ele continua argumentando que a guerra é o resultado de interesses particulares, que ainda ainda estão para compreender a sua própria particularidade – interesses que só podem ser pacificados pelo ordálio da guerra. Ele então especifica que o conflito deve ser entendido não como uma fase transitória entre individualismo e uma substância universal que nega o individualismo, mas como um momento necessário na vida dialética do espírito, pois não pode haver paz sem guerra (Gentile, 2003, p.73). Assim, filosoficamente, Gentile compreende a guerra como um fenômeno dialético que é parte do processo de unificação da multiplicidade de vontades na sociedade. Neste sentido, a guerra é tanto o sinal de uma falta de unidade, como o primeiro passo para a sua resolução. Politicamente, Gentile foi um firme apoiador da entrada da Itália na Primeira Guerra Mundial[5], o que despertou seu interesse pelos Fasci di Combattimento (Bedeschi, 2004, p.74). “I Profeti” perpassa a tradição especificamente italiana do Risorgimento, com suas principais figuras (Giuseppe Mazzini e Vincenzo Gioberti no âmbito teórico, e Goffredo Mameli e Giuseppe Garibaldi no prático) e os aspectos fundamentais de seu pensamento. O objetivo de “I Profeti” é ressuscitar a filosofia e a concepção de vida do Risorgimento e continuar seu projeto no novo momento histórico da Itália: o fascismo. Dado que a guerra havia sido a ideia fundamental dos fascistas, Gentile (2004) mostra as maneiras pelas quais a guerra e o conflito eram centrais no pensamento de Mazzini e no exemplo vivo de Mameli. Gentile define Mazzini como “o educador, o apóstolo: a ideia tornada pessoa” (212), pavimentando assim o caminho para uma exploração de seu pensamento dirigida a seu próprio emprego como fonte de inspiração para o povo italiano. Mais interessante é a afirmação de que Mazzini é o profeta da Itália fascista, a qual partilharia todos os postulados da filosofia de Mazzini (Gentile, 2004, p. 152). Os leitores logo aprendem que a filosofia de Mazzini forma uma concepção religiosa da vida (Gentile, 2004, p. 17) que abarca uma concepção de ética segundo a qual os deveres (a santidade do dever) sempre precede os direitos, e consequentemente, onde direitos não podem ser reivindicados a não ser que se cumpram deveres. Politicamente, Mazzini usa a primazia dos deveres para construir o argumento de que as pessoas têm o dever de formar um povo, e consequentemente uma nação. A construção da nação deve ser alcançada “não através da solidariedade, mas através da luta e da guerra: aquela guerra que – como escreveu Mazzini em 1855 – ‘é sagrada como a morte, e como a morte, dá acesso a uma vida mais sagrada, e a um ideal mais elevado’”. (Gentile, 2004, p.22). A ideia de que a nação é criada pelo conflito e pela guerra se adequa com a crença de Mazzini de que “a vida não é nem espetáculo nem lazer, mas luta, sacrifício... direitos não podem ser obtidos de cima, devem ser conquistados pela insurreição e pelo martírio” (Gentile, 2004, p. 26). Assim, para Gentile, a fé no projeto mazziniano do Risorgimento não deve ser abandonada, mas reaquecida no novo espírito italiano. No pensamento mazziniano de Gentile, a guerra é a estratégia de unificação. Uma estratégia que parece não ter sido abandonada mesmo em tempos de paz, pois pela parece ser a própria essência da vida. Neste sentido, Gentile (2004) inclui Mameli na lista de “profetas” escrevendo que “ele é o mártir por excelência: o mártir cuja vida e morte iluminam as origens dessa Itália” (158). Mais adiante, Gentile (2004) cita Mazzini sobre a morte de Mameli: “Mazzini escreveu que Mameli não deve ser lamentado por sua morte, pois ele morreu ‘de bela morte, combatendo em nome de Deus e do Povo’” (163).

Na obra “Origens” de 1928, se referindo à importância da guerra para os fascistas, ele escreve: “A guerra foi vista como uma maneira de cimentar a nação como apenas a guerra pode, criando um único pensamento para todos os cidadãos, um único sentimento, uma única paixão, e uma esperança comum, uma ansiedade vivida por todos, dia após dia – com a esperança de que a vida do indivíduo possa ser vista e sentida por todos – mas que transcende os interesses particulares de qualquer um” (Gentile, 2009, p.2). Após a muito disputada intervenção na guerra, quando a fé na restauração da paz e da ordem no Estado italiano parecia vã, Gentile (2009) escreveu que os fascistas nunca perderam a esperança: “apesar dos desapontamentos e da angústia que vieram com a paz – continuaram a ter fé na guerra, e no que a vitória naquela guerra significava. Eles buscaram restaurar a Itália para si mesma, através do restabelecimento da disciplina e do reordenamento das forças políticas e sociais dentro do Estado” (18). Portanto, em “Origens” Gentile argumenta a favor da participação da Itália na guerra, porque ele (como os Fasci) acreditava que a guerra era a única maneira de restaurar um senso de “italianidade”. Lutando na mesma guerra, o fragmentado povo italiano desenvolveria um senso de irmandade e amizade que era inexistente à época, apesar da experiência do Risorgimento. Assim, a guerra se torna o próprio fenômeno distintivo da vida política. Ainda que isso pareça, prima facie, similar ao que Schmitt escreve em “O Conceito”, na obra de Gentile nós encontramos um perpétuo chamado às armas, ao martírio e à guerra. Ademais, aquela mesma guerra é a resposta moral a uma vida moral, a uma concepção de política que é necessariamente religiosa e ética. Assim, no próprio ato de morrer pela própria nação, o homem se torna um herói e um mártir. A guerra é, portanto, fundamental nesta concepção da vida política e da política viva, onde as linhas separando entre um significado pessoal da vida e a teleologia nacional são quase inexistentes. Ao situar a guerra no centro dessa imagem política, Gentile convida questões de realização moral, bem como de unidade estética. Enquanto em Schmitt, a guerra está sempre à distância, contemplada como possibilidade perpétua para uma miríade de questões políticas e jurídicas, mas nunca convidada à vida política. Neste sentido, eu chamei a postura de Schmitt em relação a guerra de uma política de distância, e a de Gentile uma política de proximidade. Nas obras políticas de Gentile, a guerra figura de duas maneiras: teoricamente, como o momento dialético necessário no conflito de interesses, que quando materializado reseta a ordem política, e de uma perspectiva política, como a resposta moral ao problema político-existencial da Itália, isto é, a ausência de uma nação. O encontro entre Schmitt e Gentile revela vários traços intrigantes da guerra, indetectáveis em pensadores liberais e na tradição liberal. Entre esses traços: a destruição criativa da guerra – a criação de uma nova ordem suscitada pela destruição violenta da antiga; o poder unificador do combate – o horror, a violência, e o trauma, podem unificar um povo de uma maneira muito mais profunda do que qualquer outro evento e fenômeno. Através do diálogo entre Gentile e Schmitt, uma espacialidade interessante em relação a guerra emerge: uma política de distância (Schmitt) contra uma política de proximidade (Gentile). 

Notas

[1] - Gostaria de expressar meus sinceros agradecimentos aos meus supervisores neste projeto, Dr. Gabriella Slomp e Dr. Vassilios Paipais, por seu apoio, conselho e encorajamento.
[2] - Croce vinha atacando a tentativa de Pasquale Villari de relegar a história a ciência. Como resposta a Villari, Croce publicou "A História posta sob o Conceito Geral de Arte" (1893), que negava as semelhanças entre história e ciência, destacando ao contrário os traços comuns entre arte e história, ambas preocupadas com a bela representação dos indivíduos.
[3] - A publicação das obras completas de Gentile foi tentada e interrompida pelas seguintes editoras: Treves (Milão), por Sansoni (Florença) em 1936 - dirigida pelo filho de Gentile, Federico, que em 1946 delegou a tarefa à Fondazione Giovanni Gentile per gli Studi Filosofici (Fundação Giovanni Gentile para Estudos Filosóficos) baseada em Roma. Em 2001 a Le Lettere (ex-Sansoni) republicou as obras completadas de Gentile seguindo a divisão projetada por Ugo Spirito e Vito Bellezza. A bibliografia completa das obras de Gentile foi compilada por Bellezza em 1950, e publicada como o terceiro volume da série "Giovanni Gentile. La Vita e Il Pensiero" sob os cuidados da Fundação Gentile.
[4] - Infelizmente, apenas três desses textos existem em inglês. Eles são: "Teoria da Mente como Ato Puro", traduzido da terceira edição por H. Wildon Carr. Londres, MacMillian and Co., 1922. "Gênese e Estrutura da Sociedade", traduzido por H.S. Harris. Urbana, Ill. University of Illinois Press, 1960. "A Filosofia da Arte", traduzida por Giovanni Gullace, Ithaca, NY. Cornell University Press, 1972.
[5] - Ao contrário de Croce

Bibliografia

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