28/01/2012

Isidro Palacios - O Símbolo, o Mito e a Religião no Fantástico

por Isidro Palacios


Apologia da Barbárie

A realidade urbana em que vivemos encolheu e estreitou o mundo. O céu, o inferno, a natureza, o herói e suas provas, os silfos, as fadas... Tudo isso foi retirado e relegado a um mais além da civilização, tachando-o de primitivismo. Aqueles que seguiram acreditando em tais realidades e seus herdeiros não tiveram por menos que aceitar ser os novos bárbaros. Porém eis aqui que esse mundo bárbaro pugna agora por voltar e se levanta arremetendo contra os valores e o estilo da urbe, a qual concebem como o vírus que há que matar ou destruir culturalmente. Nossa época parece ser, por isso, uma nova idade de fronteira: um trânsito para tempos novos, carregado de signos apocalípticos. Vejamos como nos anuncia a literatura fantástica, os movimentos marginais da urbe e as aparições do misterioso. É o tempo da pós-modernidade.

O símbolo, o mito e a religião no fantástico

Se o mundo moderno conseguisse demonstrar que o fantástico é um capricho da mente, desligada da verdade, teria conseguido derrotar a esta literatura. Porém...lograram por acaso vencer os troianos aos aqueus aceitando, dentro dos muros da cidade de Tróia, o Cavalo de madeira imaginado por Ulisses? Aquele engenho, ao contrário, demonstrou ser o portador de uma crua realidade. O "Cavalo de Tróia" levava dentro os gérmens da destruição da cidade. Assim é a literatura fantástica, aparentemente falsa, mas que em seu ventre entesoura a verdade dura e esperada, segundo o bando no qual um indivíduo se encontra. E já é tarde para expulsá-la, é tarde para que prenda na sociedade contemporânea o alarme, pois os habitantes da urbe estão - próxima já a noite - demasiado despreocupados e com escassíssima vigilância, preparando a nova era de ociosidade absoluta, de festa sem entranha, da servidão do prazer indomado: a última etapa da decadência que precede a queda...e à instauração do novo.

A Verdade, a Razão e a Imagem

Partamos reconhecendo que a literatura fantástica é portadora da verdade engenhosamente encoberta. Dito de outra maneira: a astúcia do real frente a um mundo falso. Se os escritores do fantástico perdessem essa noção, sua literatura "languidesceria ou se converteria em tediosa ilusão" (Tolkien). E os leitores teriam deixado de perceber a verdade.

A imagem é o traço elemental que domina este tipo de literatura. Realmente tem muito pouco que ver com o relato especulativo, ainda que o fantástico não exclua à razão. A este respeito, temos uma frase de Tolkien que nos convém citar aqui. Diz assim: "a fantasia é uma atividade natural da mente humana, a qual certamente não destrói, nem menos ofende a razão... - e conclui - : quanto mais aguda e clara é a razão, melhores fantasias produzirá. Não é, portanto, essa literatura, irracional, nem irracionalistas os que creem nela e a seguem. Porém tampouco é racionalista porque sua atividade está inspirada, e deve seu conhecimento à visão de uma realidade extrarracional e suprarracional. Imagem não é alucinação artificial, sonho do pensamento, cobiça do "eu" individual, nem invenção. Nem toda literatura que rende culto à imagem quer dizer "imaginária", senão simplesmente a visualização do escondido e do oculto, do superior e do inferior invisíveis. Estamos, por conseguinte, diante do fato simbólico. E símbolo significa manifestação da realidade completa; expressão até o mais inefável; doutrina da totalidade; entrada a toda a criação, ou caminho certo para o espírito; arma e defesa perante a ignorância e a escravidão.

Dessa concepção da imagem nasce uma das causas de choque com o mundo de nosso tempo, que vive na prisão estreita de seu próprio racionalismo. Sobre cuja base, não somente pretendeu-se fundamentar toda sorte de utopias e erros (racionalização da economia ou capitalismo, urbanização do mundo, igualitarismo, massificação e individualismo...), senão que tentou-se e tenta-se - mediante a parapsicologia - circundar e limitar o infinito, explicar o inexplicável e racionalizar o que não se alcança. Daí que nossa civilização presente tenha condenado os homens a um fechamento no âmbito de suas vidas, a uma limitação em tudo: em sabedoria e em existência, justo o contrário do que, segundo parece, pretendia o racionalismo com sua revolução. A imagem, por sua vez, nos facilita a compreensão de um mundo totalmente aberto. Fantasia, escrevia Michael Ende em sua História Sem Fim, é um Reino Sem Fronteiras. E isto é assim, porque o símbolo é uma maravilha sem peso, um testemunho alado, que se pode elevar e remontar à altura que se queira e pousar ou penetrar em qualquer lugar. Por isso a inteligência pura, com o símbolo, pode acessar ou conseguir a mais alta, certeira e eminente realidade de todas as coisas e torná-las compreensíveis à razão, se esta vive disposta a alçar-se, mediante o símbolo ou a imagem, por cima de si mesma. Temos chegado já, com o que foi exposto até aqui, a uma das principais oposições que tem a literatura fantástica em relação com a sociedade atual: frente a um espaço e tempo fechados, o fantástico defende uma vida aberta e livre. Compreenderemos agora, nesta aproximação, as palavras de Tolkien quando se referia ao fantástico como a fuga do prisioneiro? Tanto Tarzan, Conan, como os antigos bárbaros, nunca renunciaram para sempre aos espaços abertos, à natureza. Os autores dessa literatura nos conduzem a situar de novo, no centro de nossa mente, o Monastério, o Castelo e o Bosque, com todos os seus povoadores: eremitas, magos, cavaleiros, duentes, elfos, fadas, dragões..., e nos recordam que as forças tenebrosas nos assediam e nos escravizam em nossas cidades. O aberto do símbolo ou da imagem frente à limitação e ignorância do exclusivismo racionalista, como resumo.

Mito e Religião: a Idade Média

Estamos de acordo com Alex Voglino quando diz que o fantástico é discurso mítico; não obstante, sua apreciação é incompleta já que também é discurso religioso. Em efeito, a literatura fantástica participar, ao mesmo tempo, de ambos elementos. Por um lado do Mito, que assinala uma presença real do sagrado no mundo, penetrando-o em sentido imanente e transcendendo-o para um mais além. É o espírito em tráfego, cuja visão, empapando-o todo, percebe-se sem interrupção. Dito de outra maneira: o Mito faz de cada lugar um templo, de cada árvore, de cada monte, de cada mar, uma imagem sagrada e, assim mesmo, de cada um dos dias uma festa. É o paraíso do mundo identificado com o Paraíso Terreno; é a aceitação do Cosmo, da Natureza, como Criação divina e onde todo ato humano não se concebe senão como uma continuidade do fato criador, isto é, como uma recriação. É, enfim, a ordem da transparência cristalina entre o visível e o invisível. É a vida que nos entrega a solução antes de que o problema tenha sido, tão somente, apresentado. por isso o Mito é anterior à Filosofia, porque nada tem que ver com a existência da dúvida que se resolve pela via do pensamento. Daí que tenhamos dito mais acima que o fantástico não é uma literatura que especula, senão que nos oferece imagens ou símbolos que afirmam, que não discutem. E sustentamos isto apesar que utilize, como meio de expressão, algo que em palavras de Voglino - não lhe é próprio: o romance. Mas, que outro veículo poderia ser empregado senão este?

Porém de nada serviria esta literatura se não fosse introduzido nela o elemento religioso.

Porque estando hoje o Mito perdido, a Religião o recupera; porque tendo rebelado-se o mundo, os lugares e os dias dessacralizaram-se; porque as cidades e as obras do homem sem alma quebraram a Natureza, a devastaram e a reduziram a um estado idefeso; porque a visão ocultou-se e o saber se ignora. Diante de tais coisas, a Religião surgiu como a reconquista que a misericórdia de Deus envia ao mundo, para penetrar em seu âmbito agora já hostil e desgarrado de sua Unicidade. Que outra coisa significa Religião, senão "religar-se"; voltar à Unidade; voltar a unir o que está separado? Religião é, assim, retorno à normalidade do princípio ou à antiguidade primordial, porém que, em sua instauração, não tem mais remédio que ver-se envolta em um comportamento de violência. Pode ser de outra maneira a intromissão no campo inimigo? Assim, ao menos, são sempre recebidos os profetas e os enviados do céu; por muito pacíficos que estes sejam são sempre rechaçados (Schuon). Cristo disse: Eu vim para atear fogo à terra, e como gostaria que já se tivesse ateado? (Lucas) Não vim trazer a paz, senão a espada (Mateus). E isto quer dizer: "não vim senão para dividir ou distinguir"; "não vim senão para recuperar e rechaçar". Por isso, a Religião, ao entrar na Terra e vagar por suas regiões aéres e profundas separa, por um lado, tempo e espaço profanos, à vez que desiguala aos homens marcando os fiéis dos que não o são. Neste estrondo de guerra metafísica, o Templo e a Fortaleza terão que ser à força como jóias em meio ao barro, onde isoladamente o Cosmos volta a refletir-se reintegrado, onde se recupera o Paraíso perdido.

Fora destes pontos de lealdade e resistência, por outra parte localizados em tempo e espaço outrora já consagrados pelos Mitos, em quase todos os casos, fica a "natureza perdida", fica "o deserto", onde os demônios imperam ou o homem revolucionário estende sua feiúra e destruição. E aonde, em todo momento, sabendo que se dirigia a um campo de batalha aberto, entrava o monge ou o eremita solitário: vanguarda no front da guerra oculta, fiel à doutrina do monacato primitivo. Ou aonde o Cavaleiro andante saía à luta exterior, frente a toda forma de monstruosidade, diabólica ou humana, como expressão de sua própria combatividade interior em aras de purificar-se, contra o medo, a comodidade, e a soberba. E não por terem sido alguma vez, tanto o eremita, como o cavaleiro, desertores, que a literatura fantástica os resgatou como protagonistas centrais em seus relatos. O fantástico é, certamente, uma recuperação do Mito, porém em chave religiosa, pois não poderia ser de outra maneira. Foi dito, até a saciedade, que o exemplo mais claro e estendido, pelo qual o Mito voltou a flutuar sobre as consciências, deve-se a J.R.R. Tolkien: um escritor exemplarmente crente. E, assim, quando alguém chegou a perguntar-lhe sobre a essência de sua obra-mestra - O Senhor dos Anéis - , Tolkien contestou em uma carta: O Senhor dos Anéis é, sem dúvida, uma obra fundamentalmente religiosa e católica. Chama-se assim, Religião, ao caminho de sacrifício traçado na noite. Ele é a senda no Bosque, ele é o Castelo, o Templo, e o Mosteiro; ele é a Caverna, onde se guardam agora as gemas antigas, porém às quais não se pode chegar facilmente, senão através de um inimigo poderoso: o Dragão terrível e devorador, ao qual há que matar ou domesticar. Sem esta Via Brevis não teríamos luz e nos perderíamos; nunca poderíamos saber o que foi o Mito primordial, nem chegar a sua reatualização. Isso entendeu bem a Idade Média, a Alta Idade Média. É casualidade que o fantástico busque, precisamente, nesta etapa histórica da Europa a fonte mais genuína de sua inspiração? Como já aconteceu ao melhor dos autores românticos, como Becquer, Heine, Hoffman, os irmãos Grimm, Andersen...ocorre agora também com os autores como Yeats, Machen, Chesterton, Dunsay, Williams ou Tolkien, porque não podemos esquecer que a literatura fantástica é a fiel herdeira da literatura romântica.

Em efeito, é na Idade Média onde de uma forma veraz confluem, chegando a uma frutífera aliança, os resíduos visíveis da era mítico-pagã com a realidade do Cristo crucificado: não morto, senão invisibilizado pela ação do rechaço do hebraísmo oficial, ajudado pela ignorante indiferença do também oficial paganismo romano. Se o sangue do Cordeiro cai sobre os judeus e sobre o Templo, rasgando o véu e esgotando a Tradição mosaica, também faz arrasar o Império do Ocidente com os bárbaros, e não duvida em aceitar sua união, com eles, tendente a preparar - sempre envolto no fragor do grande combate cósmico - uma nova Idade, enlaçando-se com o Celtismo: a forma mais pura e frequente de paganismo que já existiu entre todos os povos europeus (Yeats). O símbolo definitivamente claro de tal aliança pagano-cristã o temos, acima de tudo na lenda do Graal medieval e artúrico. Lenda céltico-cristão na qual, um misterioso recipiente, custodiado em uma Fortaleza, ora visível, ora invisível - arquétipo do Paraíse Terreno - contem o sangue de Cristo: luminoso e vivificante. Atrás do Graal toda a Cavalaria andante se colocará em busca: Sir Gawain, Sir Lancelot, Parsifal... Igualmente céltico-cristã é a tradição de São Jorge e o Dragão. Graças a este prodígio histórico voltarão a aparecer com frequência os duentes e as fadas, em uma época em que os cristãos respeitam a seus Santos e os cavaleiros combatem inspirados na pureza de Maria Santíssima. É a Idade Média na qual São Columba, o evangelizador da Irlanda, eleva suas pregações ao céu desde os centros sagrados do paganismo celta, na segurança de que suas orações chegarão assim perante Deus. É o Tempo no qual todavía é localizável o Purgatório na terra. É a Época da discrição de espíritos, da viabilidade livre das Aparições e da busca e assinalamento do Diabo, que retrocede...O Celtismo e o Cristianismo, dessa sorte, fizeram nascer a Idade mais genuinamente europeia que já existiu desde os tempos pré-históricos: Média, enquanto centro difícil entre os extremos; Média, enquanto ponto de estreitamento, acopladamente tranquilo entre Oriente e Ocidente. Está é a Europa, definitivamente, centrada em si mesma e que de preferir algum distante acordo dos precedentes escolherá antes a Grécia que Roma.

Esta chamada Alta Idade Média que os tratadistas, como Le Goff, preferirão chamar também, não sem falta de razão, Antiguidade, com o que, entre uma e outra expressão, poderíamos dizer ou rebatizar: Antiguidade Média, em virtude do símbolo que para nós tem esta segunda palavra...esta Alta Idade Média, como dissemos, começa a ser substituída pela Baixa Idade Média, e ainda que nela se conserve todavia muito do antigo espírito, começará então a incubar os gérmens renascentistas e modernos. Para começar, o espírito cavalheiresco decai e, se no século XIII, o Purgatório parte definitivamente ao mais além post-mortem e a partir desse tempo o chamado Purgatório de São Patrício, situado no cume de uma Ilha do Condado de Donegal, na Irlanda celta, decai em um simples foco de atração de peregrinos. Neste mesmo século XIII decresce o interesse pela leitura do Livro do Apocalipse de São João, tudo um sintoma. Se escurece o acesso ao Paraíso terreno e se vai reduzindo sua população a dois personagens: Enoque e Elías, até que pouc odepois quase ninguém sabe onde se encontram estes dois; Dante apenas falará já do Paraíso Terreno na Divina Comédia... E com o Renascimento, o mundo se prepara para uma descristianização e despaganização real. Em verdade, não renasce nada do espírito antigo, senão que com o humanismo o homem começa a dar mais importância a seu "eu" individual e a seu protagonismo no mundo chegando a desdivinizar o trono e o raio (Meyrink). A Cidade, o Comércio e a Corte eclipsam o Monastério, o Castelo e o Bosque. Já o pensamento começa a conceber as modernas utopias científicas do racionalismo. De novo, a natureza das coisas se violenta, surgindo outra era de cegueira ou de invisibilização. A literatura fantástica, depois dos anos, se oporá a este sinal dos tempos, fiel a suas origens fundamentais, míticas e religiosas aqui expostas. Nela predominará a esperança do nascimento de uma nova Idade Média, remontando-se o interesse pelo Apocalipse. E com ele, assumindo, não somente o retorno de Cristo - o Sol Invicto - senão vindo junto a Ele, também, todos os Reis lendários que esperan no Paraíso e Artur, o Líder celta, oculto e imortal...

O Diabólico

Se nobre submissão e fidelidade atraem para a ordem exterior o Espírito invisível e denunciam a presença dos demônios lá onde se encontrem, com o orgulho humanista, a desobediência e a soberba se oculta ao Espírito, enquanto que o demoníaco sai de sua guarida. A rebeldia racionalista pretendeu retirar do mundo, lançar para o mais além, tanto o divino, como o diabólico. Queria ficar livre de qualquer servião, viver independente e com autonomia, em paz e comodamente, longe de sentir as sacudidas do Cosmo que arde em uma batalha universal quase desde o princípio; batalha, da qual fez eco, como ninguém, Tolkien no Silmarillión. Porém não ocorreu assim. É certo que o Espírito não morreu, porém também é verdade que o homem, com sua mentalidade revolucionária, provocou sua retirada ficando, desse modo, entregue a sua sorte e desprotegido. Não obstante, o espírito diabólico, em tal situação, encontrou facilitada sua penetrabilidade, que aproveitou sigilosamente. E justo agora, quando o tenebroso inspira os homens convencidos de sua não existência, os autores do fantástico, salvo raríssima exceção, insistem em denunciar a presença operativa do Diabo e de suas monstruosidades, assinalando-o no ápice de seu apogeu.

De fato, para a literatura fantástica, não é possível subtrair-se à neutralidade dentro dessa grande  guerra oculta e de dimensões cósmicas. Uma vez mais o fantástico nos ensina que o homem desse mundo não pode ficar na fraqueza: ou se diviniza ou se sataniza. Caída a Idade céltico-cristã e inaugurado o Renasciment e com ele as revoluções que todos conhecemos, as coisas humanas vem se satanizando: a política, a ciência, a economia...

É curiosi, e isso sabem todos os leitores dessa literatura, que os romances do fantástico despertam em que se aproxima delas uma clara repugnância pela política moderna, sem ter por que fazer distinção de sistemas ou de partidos. Isso poderia parecer chocante a primeira vista porém toda dúvida se dissipa conhecendo, por exemplo, o que o sociólogo alemão Max Weber afirmava sobre a questão política. Isso nos bastará, Weber, em O Político e o Cientista, dizia que, tarde ou cedo, quem faz política pactua com os poderes diabólicos que espreitam em torno a todo poder...quem busca a salvação de sua alma e a dos demais que não a busque pelo caminho da política...porque...o gênio ou demônio da política vive em tensão com o deus do amor.

Similar consideração depara a literatura fantástica e o tema científico. Em efeito, a atividade científica é uma fonte de poder moderna, ao mesmo tempo que mágica. Ela também foi usada pelo homem como via de usurpação e de autonomia, em relação com o Espírito, e por isso também se diabolizou. Desse modo, a ciência dista muito de ser benéfica para a vida humana, transformando-se em porta favorável que libera à força escura que espreita desde a sombra, desde as estrelas ou do abismo. Assim, por exemplo, Lovecraft, em As Montanhas da Loucura, sustenta como uma atrevida e ignorante expedição científica pode com sua perturbação, desencadear potências infernais primitivas, encadeadas ou distantes. Assim mesmo, também em Robert Bloch, com sua pequena obra: A Sombra que Fugiu do Pináculo, onde o maléfico, com toda sua tenebrosidade, encarna na pessoa de um cientista atrevido e amante da magia. O cientista de Bloch, já diabolizado, conserva uma aparente e ambígua inocência, não dedicando-se a outra coisa que difundir, com febril atividade, seu saber atômico e nuclear, fazendo pensar que o faz para ajudar à humanidade, porém a que conduzirá a sua inexorável e própria destruição. O cientista obscuro sabe e por isso atua. E em igual orientação poderíamos seguir com Gustav Meyrink em A Casa do Último Farol, onde se publica um conto inacabado e no qual Steen, um de seus personagens, será também a encarnação de um diabo que terá por missão - valendo-se da psicanálise - não fazer o bem, antes o contrário, introduzir em suas vítimas uma espécie de despertar invertido para levá-las à confusão espiritual em forma de "complexos", à vez que procurará, mediante hábeis ocultações científicas, demonstrar que os demônios só existem na imaginação dos doentes mentais.

Quanto ao econômico, o industrialismo conduziu à exploração e à devastação da Natureza, além de ter escravizado o homem ao salário e o fechado no gosto pelo consumo, uma sutil armadilha que o presente tecnológico incrementou. Assim é, na obra de Tolkien, Melkor, um Ainur - espécie de Anjo Caído - que se converteu no Supremo Senhor do Escuro por obra da distorsão de sua sede de poder; assim é Sauron, um servidor de Melkor, e Senhor dos Anéis do Poder... Melkor e Sauron são os corruptores da Natureza, abaladores do mar e da Terra. Com seus afãs de riqueza arrebatam a luz do mundo, colocando-la, na maioria das ocasiões, na custódia dos dragões, que fazem murchar tudo o que é verde e agradável, pois estas criações de Melkor foram feitas para perturbar o mundo e partir os bosques. Para Meyrink esta postura de avidez de riqueza malsã, de mesquinharia apegada, como em Tolkien, Lanza de Vasto e em tantos outros "matará" a alma fazendo de nossos contemporâneos seres que não buscam a vida eterna. Meyrink dirá: eles tratam de converter o ouro da imortalidade em gordurosas cédulas de banco.

É a usurpação do Poder o que se considerará diabólico em toda a literatura fantástica. E é neste ponto fundamental sobre o qual Tolkien erguerá toda sua obra. O Hobbit, o Senhor dos Anéis, O Silmarillion, e em cujos relatos os heróis não terão apenas outra missão além da de resistir ao mal, à tentação do Anel e sair em busca para arrebatá-lo das potências infernais e restituí-lo a sua primitiva origem, afetado por sua servidão infiel, de contaminação maléfica. Este é o sentido, excluindo todo anarquismo, que tem em Tolkien a guerra contra o poder, tal como, por exemplo, expressa na balada de Leithian, no Silmarillion.

Este tema da presença dos demônios poderia se ampliar muito, já que cada autor do fantástico o trata com diversas variações. Assim: Bouquet lembrando-nos - em contrapartida com o Espírito - que os espíritos demoníacos são visíveis; a Gogol, que procurará a existência do diabólico na Terra; enquanto que Machen, um celtizante ao extremo, também se aprofundará na essência do terror e influenciará poderosamente Lovecrafr e este, por sua vez, a M.R. James, a August Derleth e a todos os cultivadores dos Mitos de Cthulhu; por sua parte C.S. Lewis, recorrerá a Merlin - o mago inseparável do Rei Artur - para combater e vencer a Satã que reina na Terra; teríamos também que nomear a outros, como: Th. Owen, Nerval, Ewers, Hodgson, Allan Poe, Huysmans, S. Rohmer,... Sem que pudéssemos esquecer a temática fundamental sobre o vampirismo tratado por Claude Seignole, que situa o inferno em nossa terra ou por Alexei Tolstói, um russo que busca o bogatyr, o Graal dos eslavos, para citar dois extremos entre Sheridan Le Fanu, o criador de Carmilla, a mulher vampiro, e Bram Stoker que, com Dráculo, nos dá a conhecer o vampiro por excelência: Drakul, o qual em dialeto local significa "Diabo". Stoker nos mostra o "diabo" que pela primeira vez voa na noite, não com as asas de um anjo, mas com as de um morcego.

O Herói

A condenação do herói na história, reduzindo sua função a nada ou fazendo sua cabeça rolar, rompeu com a idéia aristocrática de equilíbrio, ordem ou harmonia educativa, tão necessária no seio do movimento da vida, violenta desde o princípio da Criação. Assim mesmo, o rechaço do herói, acabou com o espírito desperto, vigilante e defensivo, tão imprescindível para o guarnecimento de uma Comunidade e de cada um dos membros. E por último, esta paixão anti-heróica, refletida tantas vezes, fez tudo o que pôde para secar a vocação de exigência interior, qualidade imprescindível para que cada ser humano possa se completar, na medida de sua personalidade. Estas negações, longe de terem sido benfazejas, favoreceram uma enfermiça e crescente agitação, social e psicológica; permitiram a diabolização do mundo e deram carta de natureza a toda imperfeição, facilitando o crescimento do homem sem qualidades eminentes, do homem-massa do qual falou Ortega. Diante de tudo isso, a literatura fantástica volta a nos propôr uma resposta generalizada: o retorno do herói, e isso na consciência de ser a única esperança.

O herói, para o fantástico, fica claro que é um benfeitor e um servidor dos demais, na dupla vertente de existência exterior e metafísica ou interna. Porém, agora bem, quem pode ser herói e quem deve sê-lo? A resposta a estas duas perguntas, em uma, não deixa de merecer nossa atenção. Vejamos. Se lermos a trilogia de Coum, um dos heróis de Moorcock veremos que um herói pode ser um sobrevivente das raças antigas que se vê forçado a lutar por sua existência frente à extinção. Para Tolkien heróis podem ser heróis: os Ainur - espécie de anjos primordiais do Deus Supremo Ilúvatar -, os elfos - raça bela e superior de seres permanentes -, os homens mortais, os anões - criados por vontade de Aulë, um dos Ainur -, os aprazíveis hobbits e os magos, como Gandalf. E até as crianças podem ser heróis, como na História Sem Fim de Michael Ende. Assim pois, todos sem distinção.

Todos podem ser e todos devem sê-lo também. O heróico deve acompanhar a entranha da alma de cada ser. Não obstante, aqui cabe alguma apreciação, porque, dentre todas as raças que povoa o Reino da Fantasia, somente o homem necessita da assunção heróica para se completar enquanto pessoa. Todos os demais devem ser heróis, em função das circunstâncias, vendo se estas o pedem e dando o exemplo com suas respostas, não fugindo ou desertando jamais. Mas, se tais situações não se apresentam, nem por isso deixarão - estes seres - de ser aquilo que já são.

Somente o homem, sem o heróico, fica inacabado. Diríamos assim, que o ser humano precisa ser herói, não em função de tal ou qual circunstância, senão para completar-se enquanto homem, enquanto pessoa. A tarefa de herói é, por conseguinte, para ele, imprescindível. Sem ela é como se nossa própria escultura ficasse por concluir, imperfeita. Em efeito, um elfo é sempre um elfo, no momento mesmo de sua criação; um hobbit é sempre um hobbit, em idêntica ocasião; porém um homem nasce inacabado, tendo que terminar-se em vida pela ação heróica, quer seja mediante a espada ou sem ela. E eis aqui a razão pela qual o homem tem o maior risco, de sua existência perigosa, entre afirmar-se com humildade na tarefa de sua cooperação com a realidade divina, no altar de sua criação, ou cair vítima do orgulho de crer-se capacitado para criar a si mesmo, emancipando-se dos deuses, dos Ainur, ou de Deus.

Tendo chegado a esta conclusão, nos encontramos com o fato de que a luta heróica adquire todos os traços de uma prova pela qual cada um deve mostrar sua solicitude perante a morte, expressada aqui, não em termos tétricos, senão de desprendimento absoluto. E é precisamente esta predisposição diante da morte, com ânimo resoluto e dominado, o que derrota à potência maléfica. Refletindo sobre a "mitologia" do Silmarillión e sobre a queda luciferina, tiramos algumas idéias valiosas. Se a morte é a expressão da verdadeira submissão dos que são fiéis a seu Deus, posto que somente por ela podem divinizar-se e entrar no silêncio da Unidade divina, Melkor, como Lúcifer, rechaçam a morte, dado que, um e outro, amam o "eu" de sua individualidade ad aeternum, caindo na armadilha de seu próprio reflexo momentâneo, que é a vida à distância do ser supremo. A finalidade de ambos, com relação ao resto dos seres inteligentes que povoam também o Cosmos, será bem clara: tentar que estes rechacem a idéia da morte e exaltem a vida em sua aparência, em sua exterioridade, agora já desligada do íntimo. E para isso, nada melhor que introduzir o relaxamento no mundo, e, ao mesmo tempo - como escreve Tolkien - arrojar a sombra sobre a morte, confundindo-a com as trevas, a fim de torná-la desprezível e infundir pavor. O rechaço à morte e o medo passavam, assim, a configurar o patrimônio demoníaco de Melkor, Sauron e todos os seus seguidores, pelos quais cresciam em apego, em cobiça, em afã de poder e de existência separada de Ilúvatar e dos Ainur fiéis. E este era o patrimônio - não outro - que Melkor e Sauron pretendiam repartir entre elfos, magos, homens e hobbits.

Para os elfos, seres amantes do mar, dos bosques, das estrelas, Filhos de Ilúvatar, criados para permanecerem sobre a terra até o fim dos tempos, que não conheciam o medo e que não morriam, a não ser que fossem assassinados ou fossem consumidos pelo pesar, a prova não consistia senão em serem diligentes diante de qualquer perigo, generosos e valentes diante do combate, onde tinham que demonstrar sempre estarem dispostos a entregar, em sacrifício heróico, guerreiro, uma vida valiosa, pois do contrário, ao não poder abater a Melkor ou a Sauron e ficarem vivos no combate, passariam a engrossar a companhia dos Orcs: antigos elfos escravizados pelo poder das trevas, sem dúvida por terem rechaçado a morte.

Porém, provavelmente, dentre outras, as maiores façanhas heróicas do Reino Fantástico, nesse confronto para livrar-se do mal, nos são oferecidas pelas provas às quais são chamadas as crianças-heróis de Ende (Atreyu e o pequeno leitor Bastián Baltasar Bux); os diminutos seres Jen e Kira, únicos sobreviventes da raça Gelfing, segundo o filme O Cristal Escuro, imaginado e dirigido por Jim Henson; e por último, os famosos hobbits: Frodo, Bilbo, Mestre Gil de Ham...saídos da pena de Tolkien. Todos eles são os seres mais indefesos, e ao mesmo tempo os maiores amantes do cuidado, os menos familiarizados com a heroicidade real, com o som e brilho metálicos; os entregues a uma maior despreocupação e comodidade, e os mais vulneráveis ao medo. E sendo isto assim, a literatura fantástica os chamará à ação heróica mais difícil, porque seus triunfos ferirão ainda mais o orgulho néscio do mal gigantesco, tendo, por isso, seus trabalhos de restauração uma maior eficácia. Sobre suas costas se coloca a responabilidade mais grave: sobre as crianças de Ende, nada menos que a de salvar o Reino de Fantasia; sobre os gelfing Jen e Kira todo um misterioso Apocalipse com seu final e seu princípio integrado e restaurador; e sobre os hobbits Frodo e Bilbo a destruição dos diabólicos Anéis do Poder. A chave do motivo pelo qual isso deve ocorrer nos é dado por Mithrandir (ou Gandalf), o mago bom enviado ao mundo pelos Anjos - Ainur, para combater o Poder da Sombra e para ajudar os habitantes da Terra em que Sauron escolheu sua morada. Foi a humildade que abateu a soberba; foram o esforço, a entrega, o sofrimento, de quem não era herói por natureza, os que abateram o orgulho; foram a simplicidade, o engenho, e a aventura a contragosto que fizeram cair estrepitosamente a vaidade e recobrar inclusive sem sabê-lo, o velho estilo da Cavalaria rural, frente à afetação da Corte (Mestre Gil de Ham). Nos tempos finais, as profecias de Mithrandir não deixavam lugar a dúvidas: a ajuda chegará das mãos dos fracos quando os Sábios tiverem fracassado (Silmarillión).

A Prova no Homem

E, finalmente, falemos da prova no homem. Dentro da ordem que reconhece a fantasia, o homem é o único personagem que para ser aceito no Céu, ou para ser reconhecido digno pelos demais e saber-se ele próprio pessoa, necessita ineludivelmente ter passado pela prova. Nela, o homem conquista sua purificação. É na prova que a pessoa põe para reluzir o que é. E isso é tão fundamental, tão imprescindível a sua vida, que - sem ela -, nem os homens, nem os Anjos, nem Deus podem, em verdade, conhecê-lo e valorizá-lo. O mundo atual, por sua vez, não quer saber nada da prova, por isso tem que se conformar em conhecer o homem e se conhecer, não enquanto é, mas sim quanto a sua aparência.

Por existir, a prova já era uma realidade no Paraíso. Mas no Reino da Fantasia - este perigoso país - cobra o sentido de um novo jogo, não já tranquilo, senão arriscado e perigoso. Perfila-se, desse modo, como uma espécie de Purgatório em vida que, não somente completa a perfeição do homem polindo-o de suas rugosidades, senão que, ademais, introduz na mente humana o elemento de luta aristocrática, de cooperação humana com a divindade para a própria salvação. É curioso que a presença do Purgatório se tenha mudado para longe, para o Céu post-mortem, coincidindo com o triunfo da urbe frente ao campo, na Idade Média final, e com o primeiro albor dos valores e estilo anti-heróicos da burguesia e de outros seres desenraizados. Pois ao se retirar o Purgatório da Terra, se abolia a exigência da prova e se preparava uma ilusória civilização sem moléstias, hedonista, divertida e de falsos humildes, pois o burguês e o plebeu, são justamente o contrário, magistrais exemplos de soberba: por acaso eles, com suas revoluções, não cercearam todo princípio superior, toda Autoridade do alto? Não aboliram a presença de Deus para não ter a quem se dobrar e submeter? Não é a revolução uma rebeldia contra a Obediência, aos Reis, aos Senhores, aos Santos...? Não romperam estes tipos humanos incompletos o Poder que vem de cima, usurpando-o com o poder que brota de baixo? Com isso, o mundo fechava definitivamente o caminho de recuperação do Paraíso, conformando-se com um simulacro de complacência diabólica. Porque ninguém mais satisfeito com a queda da prova do que o Senhor do Escuro.

Para os heróis, a vida era, por conseguinte, um Purgatório na Terra: um atravessar a água da limpeza, fecundidade e transparência simbólicas e rituais, e um atravessar o fogo devorador e purificador ao mesmo tempo. A própria Igreja cristão havia participado dessa Tradição fazendo descer "aos infernos" o próprio Cristo, não porque este o necessitasse, para provar a todos que era Deus, e para reensinar que a viagem aos infernos, de ida e volta, completaria o homem e o transformaria, de simples mortal condicionado a ser imortal e divinizado. "Eu digo: Deuses sois", recordava o Crucificado a seus seguidores. Pois bem, esta Tradição cristã, mantida por São Gregório Magno, chegaria a sua máxima expressão no chamado Purgatório de São Patrício, que tão enorme penetração teve em todos os escritos e tratadistas mais relevantes da era medieval (Santiago de Vitry, Estêvão de Bourbon, Humberto de Romans, Jacobo de Varazze, Gossouin de Metz), passando também, sem dúvida, por Dante e chegando até Calderón de la Barca que lhe dedicou uma peça teatral.

É importante esta referência ao Purgatório de São Patrício porque nele, não de uma forma literária, senão histórica, fica patente o selo céltico-cristão de que antes falamos, e a possibilidade real de uma iniciação heróica e cavalheiresca que, como veremos, chegará a marcar muitos autores dessa literatura do fantástico, inclusive escritores desse gênero que pouco terão que ver com o espírito da Cavalaria como Bloch ou Lovecraft.

Estando Patrício evangelizando à céltica Irlanda e vendo os escassos progressos que realizava pediu ajuda a Jesus Cristo. Este lhe apareceu e lhe mostrou o lugar de um fosso ou um poço redondo e escuro, dentro de uma caverna, e lhe disse: quem movido por um autêntico espírito de penitência e sacrifício, pasar um dia e uma noite naquele buraco, resistindo aos perigosos assédios dos demônios, vencendo as visões do inferno, com suas torturas, e vendo também as alegrias do Paraíso e da Vida Eterna, sairia daquele lugar completamente transformado. Tratava-se, em efeito, de uma ordália ou juízo de Deus tão do gosto pagano-cristão, e mediante o qual se verificava uma iniciação ou prova religiosa. Esta prova conduzia à conquista e à afirmação da vitória do homem sobre o medo, pois as visões demoníacas não tinham por finalidade causar dor física ou moral, senão paralizar infundindo pavor. Um monge, à entrada do recinto, recordava que, com a ajuda de Cristo, invocando seu nome, se poderia resistir e triunfar, porém em caso contrário, o Cavaleiro poderia chegar desaparecer, como a outros visitantes havia sucedido. A Tradição nomeia o primeiro em lograr a glória nessa "descida" restaurada. Chamava-se Owein, jovem guerreiro, que na peça calderoniana toma o nome hispano-gótico de Ludovico Enio.

Contemplamos assim que esta idéia de prova consiste em uma viagem aos infernos, de ida e de volta; uma concepção que não pode identificar-se com uma fuga ou abandono do próprio. Mais exatamente, o contrário: uma viagem que tem que demonstrar se um homem é valente ou se não é. No Silmarillión este princípio de prova, de ida e de volta, é fundada por Beren, um homem para quem o amor por uma donzela élfica está condicionado ao êxito de sua empresa: recuperar o anel-simaril em poder de Melkor. O amor, sob esta ótica, quer dizer prêmio, não uma qualidade que se adquire sem mais nem menos.

Por outro lado, destaca, neste aspecto, o princípio da solidão ou do cavaleiro ou herói solitário, questão, que a literatura fantástica tomará igualmente do medievalismo céltico-cristão. Com isso, primeiramente se sustenta, que os "trabalhos" de salvação e purificação não são tarefas coletivas, senão singulares e, segundo, o homem deve atuar sabendo que se exercita em um mundo no qual teve lugar a invisibilidade do Espírito, pela rebeldia do homem e do diabo e, portanto, tem que se resignar a viver na prova "somente", confiando tudo a suas forças, porém na esperança de intuir que o Espírito não morreu, senão que o acompanha e inclusive o ajuda em silêncio. Dessa solidão trata toda a literatura fantástica, porém também as vitórias que dela se desprendem, tão extraordinárias, tão superiores, tão misteriosas, que não poderiam produzir-se sem o herói, ainda sem dar-se conta, não fora favorecido pela presença do Espírito. Não obstante, esta solidão supõe assim mesmo um perigo, já que o herói crendo-se falsamente isolado no mundo e acompanhado de sua força, beleza e engenho, pode chegar a se precipitar no envaidecimento. Não ocorre isto nem a Conan o Cimério de Howard, nem aos elfos, hobbits e heróis de Tolkien, nem mesmo ao selvagem de Burroughs - Tarzan -, o qual, em um primeiro momento atraído diante da descoberta da idéia do Deus desconhecido, termina finalmente crendo que aquele Ser Supremo existe, ainda que não saiba bem descobri-lo, porém que em todo caso permanece desconhecido, não concebido para seus, até certo ponto, inimigos, os negros. Porém sim cai nessa armadilha Corum, o Cavaleiro de Moorcock, que, ciumento em sua solitária individualidade, protesta contra a instrumentalização da qual pode ser objeto por parte dos deuses da ordem ou dos deuses do caos em suas guerras.

Esta percepção da proximidade ou distância que os heróis solitários tem em relação ao Espírito Invisível nos leva a iniciar a reflexão sobre a qualidade heróica. Em efeito, há camponeses excessivamente brutais, de um barbarismo muito primitivo, que tendem a manifestar ou ensinar que a força sobre-humana que possuem reside em seu "naturalismo" físico ou muscular, que são os casos de Conan e Tarzan. E, por sua vez, temos heróis mais delicados, de uma barbárie mais refinada, cuja força, também sobre-humana, é intangível, sutilmente espiritual. É a potência dos que não tem rostos ferozes ou curtidos, nem braços de aço, senão semblantes iluminados, como os elfos, como Gandalf. A imagem do Dragão se apresente, diante de uns e de outros, de forma bem distinta. Assim podemos ver às monstruosidades com as quais Conan se enfrenta e que são destroçadas pela descomunal espada, ou esmagadas ou afogadas por seus punhos e braços. Enquanto que, por exemplo, os Dragões que nos apresenta Tolkien diante de seus heróis hobbits podem chegar a ser derrotados ou enganados pelo vigor do engenho. É a dupla vertente heróica do "lobo" e da "raposa". Conan terá um pouco de raposa, porém sua peculiaridade de "fora-da-lei" solitário, enfrentando à civilização e saqueando as cidades, será de lobo. E como Huán, o cão-lobo enviado pelos Ainur, ambos saberão vencer derramando o sangue com seus dentes. Por sua vez, Giles, o granjeiro tranquilo do Pequeno Reino, será acima de tudo uma "raposa" que vencerá o Dragão com astúcia, chegando a domesticá-lo e colocá-lo a seu serviço. Vemos, portanto, que o Dragão requer em seu combate, dois tipos de heróis: um exterior e outro interior; um forta para matar ou esmagar à serpente e outro sutil para quebrar suas asas, porque o dragão é isso: Serpente alada. Isto quer dizer que seu aspecto feroz está em relação com sua inteligência envolvente e que somente um herói qeu em si mesmo reúna ambas as dimensões: força e astúcia espiritual, estará em condições de vencê-lo verdadeiramente. Porém a essa vitória do "lobo" e da "raposa", a fim de não ficar em uma sacralidade predominantemente horizontal, se incorpora, ademais, a verticalidade da pura mansidão do "cordeiro", dando a tal vitória uma absoluta transcendentalidade. Por isso, tradicionalmente, é São Jorge o vencedor do Dragão por antonomásia mítica e religiosa, isto é: o herói cristão que, assumindo em si à barbárie da brutalidade sem cortesia e a barbárie do antigo e primitivo paganismo do Bosque, do Mar e da Caverna, funde tudo isso ao espírito doce e delicado, à inteligência pura e à misericórdia. Confluem nele, desse modo, uma vez mais, os elementos célticos e cristãos para propormos a síntese final do Cavaleiro perfeito, ideal da Idade Média, o tempo que foi, como se disse, verdadeira alquimia e ponto de união dos contrários. E é este o ideal que salta até nós, passando pelas novelas do fantástico de maneira noturna, calada, e que nos convida, como faz Tolkien, a ver nosso mundo atual como uma "terra média" e onde, sem quase saber como, podemos voltar a encontrar ao Dragão cultural: aquele que encobriu sua feiúra e ferocidade sob suas envolventes asas. Redescobrir este mundo como prova e não como falso paraíso é um dos principais aportes da literatura fantástica contra esta civilização escura.

26/01/2012

Quem Financia o Fórum Social de Porto Alegre

Por La haine – 22 de Fevereiro de 2005



O Fórum Social Mundial (FSM) é o evento central do movimento antiglobalização (que agora prefere ser chamado alterglobalizador). Na teoria reúne pessoas e organizações que lutam contra o predomínio das multinacionais, a favor dos desfavorecidos e por “outro mundo possível”. Mas de onde vêm os fundos que financiam este evento?

Segundo os organizadores do V FSM, o orçamento total do Fórum Social Mundial é de 38.856.090 de dólares (29.935.354 €), dos quais somente 6,4% provêm das inscrições dos participantes. Isso significa que 93,6% dos fundos para o FSM originam-se de doações de outras fontes.

A fundação Ford financia totalmente a preparação do FSM com 2.269.000 de dólares.

Em relação ao financiamento do evento em si, a grande maioria das doações vêm de organizações não governamentais.

2.432.538 de dólares (6,2% do financiamento total) originam-se de ONG’s religiosas (católicas e protestantes).

12.006.821 de dólares (30,7%) vêm de doações de outras ONG’s (das quais 4.398.800 de Oxfam, fortemente vinculada à igreja: na Espanha chama-se Intermon-Oxfam).

É preciso ter em mente que se rastrearmos a origem dos fundos destas ONG’s veremos que em grande dos governos. A maioria dos fundos de Oxfam, do governo da Grã-Bretanha e os da outra grande patrocinadora, HIVOS (que coloca 3.645,502 de dólares) do governo holandês. Ambos os governos devem considerar-se pouco “antiglobalizadores”: possuem tropas estacionadas no Iraque a serviço dos EUA. Deve-se destacar que estas duas ONG’s financiaram conjuntamente 60% do IV Fórum Social Mundial, realizado em Mumbai (Índia).

14.323962 de dólares (36%) vêm das instituições governamentais do Brasil (7.916.550 do governo federal, 1.602.000 do Estado do Rio Grande do Sul e 4.805.412 da Prefeitura de Porto Alegre). Acontece que tanto o Estado do Rio Grande do Sul quanto o município de Porto Alegre estão sendo governados pela direita, enquanto o governo federal tem feito o pagamento da dívida externa que estrangula a prioridade econômica e política do Brasil (algo bem pouco “antiglobalizador”). Para isso é necessário adicionar 2.136.000 de dólares (5,8%) fornecidos pelos Correios e pela Caixa Econômica Federal, empresas públicas. 

A Fundação Irmãos Rockefeller (Rockefeller Brothers Foundation) contribui com 356.445 dólares. E os municípios italianos com 240.300 dólares.

Finalmente, as empresas Eletrobrás e Petrobrás e o Banco do Brasil (sociedades de economia mista pública e privada) colaboram com 8.098.500 de dólares (20%).

Sobre o papel “antiglobalizador” da Fundação Ford e da Fundação Irmãos Rockefeller não precisamos nem falar.

Todos estes fundos são administrados pela Associação Brasileira de ONG’s (Abong) e pelo Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas). Ibase, por sua vez, é fortemente financiado... pela Fundação Ford.

Cabe a pergunta: porque as ONG’s financiadas pelos governos mais pró-capitalistas e submetidos à vontade do governo Bush, as sociedades de economia mista, as Fundações Ford e Rockefeller, as igrejas, a direita brasileira e o governo Lula, servo fiel das receitas do FMI, financiam um evento que “organiza a luta contra a “globalização”, o “neoliberalismo” e o predomínio das multinacionais”?  Não creio que estejam equivocados. Não há dúvida de que sabem bem onde colocam seu dinheiro.

Mas então o que fazem os companheiros que de boa fé participam destes fóruns acreditando lutar contra as multinacionais e o imperialismo? Pois tenho medo do que estão fazendo...

*os dados financeiros e governamentais se referem ao mês de fevereiro de 2005

22/01/2012

O Cérebro do Mundo: Os Verdadeiros Objetivos da Globalização - Uma Opinião da Argentina

por Adrian Salbuchi




"Aqueles que não aprendem com a história estão condenados a repeti-la" - George Santayana

Mais e mais pessoas estão assumindo uma opinião cada vez mais crítica do fenômeno mundial chamado globalização. Não que elas sejam contra a cooperação construtiva entre nações soberanas do mundo em objetivos comuns, mas sim que elas rejeitam este atual modelo de globalização.

Como agora a temos, a globalização pode ser definida como uma ideologia que identifica o Estado-Nação soberano como seu principal inimigo. Ela busca, então, enfraquecê-lo, dissolvê-lo e eventualmente destrui-lo como instituição social de modo a substitui-lo com novas estruturas administrativas supranacionais globais.  Essas estruturas ligam-se com os objetivos políticos e interesses econômicos de um pequeno número de grupos altamente concentrados e muito poderosos que hoje movem e manobram o processo de globalização em uma direção bastante específica.

Esses grupos consistem em interesses privados que hoje alcançaram algo sem precedentes na história humana e que pode ser descrito como a privatização do poder em escala global. A globalização é uma descrição incompleta daquilo que os ex-presidentes americanos Woodrow Wilson, Franklind D. Roosevelt, Harry Truman e George Bush, cada um em diferentes tempos históricos descreveu como uma "nova ordem mundial".

Uma Nova Ordem Mundial! Claramente, quando o ex-presidente Bush indiscretamente usou este termo há uma década, o Sistema rapidamente o silenciou e substituiu o termo pelo termo mais neutro e indefeso "globalização" que, não obstante hoje possui apenas um significado: Neoimperialismo anglo-americano a nível planetário e absoluto.

Quem são eles? O que eles querem?

O processo que nós descrevemos não é de maneira alguma anônimo ou secreto, porque os grupos de influência promovendo e dirigindo a globalização estão em plena vista da opinião pública: corporações multinacionais especialmente as Fortune 500 que correspondem a 80% da economia americana; a estrutura financeira global que inclui bancos, fundos de investimento, bolsas de valores e mercados de commodities, monopólios midiáticos, principais universidades da Ivy League, organizações multilaterais internacionais e, mais importante, postos governamentais chave nos EUA e outras nações industrializadas.

O que não é imediatamente óbvio é o fato de que todos os jogadores nessa roda de poder global possuem uma coisa em comum: seus principais gerentes, investidores, estrategistas, banqueiros, funcionários governamentais, acadêmicos, e cotistas pertencem à mesma rede de think-tanks. Essa rede forma um centro comum dirigindo a roda do poder global em seu curso.

Entre esses importantes think-tanks - que são realmente centros de planejamento geopolítico - o papel do Conselho de Relações Exteriores, a Comissão Trilateral, o Instituto Real de Assuntos Internacionais, a Instituição Brookings, a Corporação RAND, e o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, entre outros, são de vital importância.

Um pouco de história

Para entender corretamente o mundo atual precisa-se olhar para ontem, de modo a  ver como as coisas ficarão como são. Foi em 1919 quando um pequeno grupo de banqueiros influentes, advogados, políticos e acadêmicos todos os quais estavam fazendo parte das negociações de paz em Paris entre os Aliados vitoriosos e as Potências Centrais conquistadas da Europa se encontraram no Hotel Majestic e chegaram a um acordo transcendental: eles decidiram criar um "think tank"; um tipo de "clube de cavalheiros" ou loja a partir da qual eles pudessem desenhar o tipo de "nova ordem mundial" que acomodaria apropriadamente os interesses coloniais da aliança anglo-americana.

Em Londres, esse think tank teria o nome de Instituto Real de Assuntos Internacionais (RIIA), enquanto nos EUA ele seria conhecido como o Conselho de Relações Exteriores (CFR), baseado na cidade de Nova Iorque. Ambas organizações tinham o selo inequívoco da estratégia social de gradualmente impôr uma ordem socialista como meio de controle das massas que então estava sendo promovida pela Sociedade Fabiana, financiada pelo Grupo Távola Redonda que por sua vez foi criado, controlado e financiado pelo magnata sul-africano Cecil Rhodes, pela dinastia financeira internacional dos Rothschilds, e pela Coroa Britânica.

O CFR conseguiu seu apoio inicial das famílias mais ricas, poderosas e influentes nos EUA que incluíam os Rockfeller, os Mellon, os Harriman, os Morgan, os Schiff, os Kahn, os Warburg, os Loeb, e os Carnegie (este último em particular através de sua própria organização de fachada, o Fundo Carnegie para a Paz Internacional).

De modo a expressar e assim propagar sua influência entre círcuos de elite, uma das primeiras medidas do CFR consistiu em fundar seu próprio jornal que até hoje continua sendo a principal publicação sobre geopolítica e ciência política: Foreign Affairs. Entre os primeiros diretores do CFR, nós encontramos Allan Welsh Dulles, uma figura chave na comunidade de inteligência americana que posteriormente consolidaria a estrutura de espionagem da CIA; o jornalista Walter Lippmann, diretor e fundador do Nova República; J.P. Morgan, advogado corporativo; os banqueiros Otto H. Kahn, e Paul Moritz Warburg, este último um imigrante alemão que veio aos EUA e em 1913 projetou e promoveu a legislação que levou à criação do Banco da Reserva Federal que até hoje controla a estrutura financeira dos EUA. Quando a Segunda Guerra Mundial terminou em 1945, o Banco da Reserva Federal foi suplementado pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial, ambos os quais foram projetados pelo CFR na Conferência Bretton Woods em 1944.

Outro membro do CFR e um dos seus primeiros diretores foi o geógrafo e presidente da Sociedade Geográfica Americana, Isaiah Bowman, que redesenharia o mapa da Europa Central após a Primeira Guerra Mundial impulsionando assim tempos de grande turbulência que levariam à Segunda Guerra Mundial. Foram os advogados do CFR como Owen D. Young (presidente da General Electric) e Charles Dawes (J.P. Morgan Bank), que na década de 20 projetaram os planos de "refinanciamento" para as dívidas de reparação de guerra da Alemanha impostas pelo Tratado de Versalhes. Foram os diretores do Banco da Reserva Federal e membros do CFR que gerariam as distorções monetárias que levaram à crise financeira de 29 e à Depressão subsequente. Foram os diretores da CFR que através de poderosos meios midiáticos como as redes de radiodifusão NBC e CBS e jornais como o The Washington Post e o The New York Times pressionariam a opinião pública a romper a neutralidade isolacionista dos EUA e colocariam a nação e outra guerra europeia em 1939, a qual eles próprios vinham promovendo desde o início da década de 30.

A Segunda Guerra Mundial

Logo no início da guerra europeia na qual os EUA só tomariam parte formalmente em 1941, membros do CFR estabelecer o Grupo de Estudos Guerra e Paz que literalmente tornou-se parte do Departamento de Estado, e projetou suas principais políticas externas em relação à Alemanha, Itália, Japão e seus aliados. Depois, eles começaram a preparar para ainda outra "nova ordem mundial" após a então previsível vitória aliada. Dessa maneira, o CFR projetou e promoveu a criação das Nações Unidas para gerir a política global e algumas de suas agências econômicas principais como o FMI e o Banco Mundial, através de seus membros Alger Hiss, John J. McCloy, W. Averell Harriman, Harry Dexter White e muitos outros.

Uma vez que a guerra terminou, o presidente americano Harry Salomon Truman estabeleceria a doutrina de segurança nacional que foi baseada na doutrina de contenção da expansão soviética, por sua vez baseada na proposta de um outro membro do CFR e à época embaixador americano em Moscou, George Kennan, que descreveu suas idéias em um famoso artigo seminal do Foreign Affairs que ele assinou com o pseudônimo "X"; bem como na diretiva de segurança nacional NSC68 emitida pelo Conselho de Segurança Nacional que foi esboçada pelo membro do CFR Paul Nitze. O mesmo pode ser dito do assim chamado Plano Marshall projetado por uma força-tarefa da CFR e posteriormente implementado por W. Averell Harriman.

Estruturas de Poder

Ainda que seja uma organização pouco conhecida entre a opinião pública, o CFR é muito poderoso e tem crescido em influência, prestígio e amplitude de atividades. Tanto que hoje nós podemos dizer sem dúvida que ele conforma o "cérebro mundial" silenciosamente dirigindo o curso dos muitos complexos e altamente voláteis processos sociais, políticos, financeiros, e econômicos através do mundo. Não há um povo, região ou aspecto da vida humana que não seja afetada pela influência do CFR, conscientemente ou inconscientemente e é o fato de que ele não obstante tem sido capaz de permanecer "por trás dos bastidores" que faz do CFR tão excepcionalmente poderoso.

Hoje, o CFR é uma organização discreta possuindo mais de 3.600 membros, as pessoas mais capazes, poderosos e influentes em suas respectivas profissões, instituições, corporações, cargos de governo e ambientes sociais. Desse modo, o CFR reúne os principais funcionários corporativos de instituições financeiras, gigantes industriais, a mídia, organizações de pesquisa, acadêmicos, altos oficiais militares, chefes de governo, reitores de universidades, líderes sindicais e investigadores de centros de estudos. Seus objetivos fundamentais consistem em identificar e avaliar uma ampla gama de fatores políticos, econômicos, financeiros, sociais, culturais e militares abrangendo cada aspecto imaginável da vida pública e privada nos EUA, seus principais aliados e no resto do mundo. Hoje, graças ao enorme poder exercido pelos EUA, a amplitude das atividades do CFR literalmente abrange todo o planeta.

Suas pesquisas e investigações são realizadas por diferentes forças-tarefa e grupos de estudo dentro do CFR que identificam oportunidades e ameaças, avaliam forças e fraquezas, e projetam estratégias a longo prazo para promover seus interesses ao redor do mundo, cada um com seus respectivos planos táticos e operativos. Ainda que tarefas tão intensivas e amplas sejam realizadas dentro do CFR, a questão principal para compreender seu enorme sucesso está no fato de que o CFR per se, jamais faz nada sob seu próprio nome, ao invés são seus membros individuais que o fazem, e isso através de seus cargos formais como presidentes e diretores das principais corporações, instituições financeiras, instituições multilaterais internacionais, mídia, e cargos de governo, universidades, forças armadas, e sindicatos. Eles jamais invocam ou mesmo fazem referência ao CFR como sendo o principal centro de planejamento e coordenação.

Os membros do CFR são efetivamente poderosos já que nós encontramos hoje entre eles (e nós precisamos fazer referência a apenas um punhado dos 3600 membros do CFR), pessoas como David Rockfeller, Henry Kissinger, Bill Clinton, Zbignew Brzezinski, Samuel Huntington, Francis Fukuyama, a ex-secretária de estado Madeleine Albright, o especulador internacional George Soros, o juiz da Suprema Corte Stephen Breyer, o CEO da Lowes/CBS Laurence A. Tisch, o atual secretário de estado General L. Colin Powell, o CEO da General Electric Co. Jack Welsh, o CEO da CNN W. Thomas Johnson, o presidente e CEO do The Washington Post/Newsweek/International Herald Tribune Katherine Graham, o vice-presidente dos EUA, ex-secretário de defesa e ex-CEO da Halliburton Richard Cheney, o presidente George Bush, o ex-conselheiro de segurança nacional do presidente Clinton Samuel "Sandy" Berger, o ex-diretor da CIA John M. Deutch, o governador do Banco da Reserva Federal Alan Greenspan, o presidente do Banco Mundial James D. Wolfensohn, o CEO da CS First Boston Bank e ex-governador do Banco da Reserva Federal Paul Volcker, os repórteres Mike Wallace e Barbara Walters, o ex-CEO do CitiGroup John Reed, os economistas Jeffrey Sachs e Lester Thurow, o ex-secretário do tesouro, ex-CEO da Goldman Sachs e o atual diretor do CitiGroup Robert E. Rubin, o ex-secretário de estado e "mediador" durante a Guerra das Malvinas entre Argentina e Grã-Bretanha General Alexander Haig, o "mediador" no conflito dos Balcãs Richard Holbrooke, o CEO da IBM Louis V. Gerstner, o senador democrata George J. Mitchell, o congressista republicano Newt Gingrich, e a atual conselheira de segurança nacional Condoleeza Rice, entre muitos outros.

No mundo dos negócios, as principais corporações do ranking da Fortune 500 possuem todas elas um diretor sênior que é um membro do CFR. Essas corporações juntas possuem um valor de mercado combinado quase duas vezes maior que o PIB dos EUA, concentram a maior parte da riqueza e poder do país, e controlam recursos chave e tecnologias ao redor do mundo. Juntos elas empregam mais de 25 milhões de pessoas só nos EUA e são responsáveis por 75% de seu PIB. Em resumo, elas manejam um poder e influência gigantescos nos EUA e em nosso planeta.

Nós assim encontramos aqui a chave para a enorme efetividade do CFR em que suas decisões e planos são esboçados e acordados em seus encontros, conferências e forças-tarefa por trás de portas fechadas, e então colocados em prática por seus diferentes membros cada um a partir de seus postos formais em diferentes organizações. E que postos poderosos são esses!

Se, por exemplo, houve uma série de planos relativos, digamos, à globalização da economia e do sistema financeira, ou quais países terão paz e prosperidade e quais terão guerra e fome, então nós podemos supor que a ação coordenada de personalidades como o presidente dos EUA, seus secretários do estado, defesa, comércio e tesouro, o diretor da CIA, os principais banqueiros e investidores, capitães da indústria, meios de mídia, repórteres e escritores, oficiais militares e acadêmicos, diretores do FMI, Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio, será capaz de coordenar ações concretas, eficazes e sem dúvida quase irresistíveis. Isso tem sido assim pelos últimos oitenta anos.

Poder real e poder formal

De modo a realmente entender como o mundo realmente funciona, nós devemos primeiro entender a diferença entre poder formal e poder real. O que a mídia propaga com um diariamente em seus veículos de notícia na televisão, rádio e na imprensa não é nada senão os resultados concretos e vísiveis das ações das estruturas de poder formal, particularmente aquelas dos governos nacionais e das estruturas financeiras e corporativas tecnocráticas e supranacionais. Porém, as influências de poder real são muito menos visíveis e eles são aqueles que planejam o que ocorrerá no mundo, quando e onde ocorrerá e quem fará.

O poder formal é de curto prazo e possui alta visibilidade; o poder real é de longo prazo e praticamente não possui visibilidade. O poder formal é "público", o poder real é "privado". Como os EUA são a única superpotência planetária hoje, é razoável concluir que essa estrutura de poder global como aquilo que realmente administra provisoriamente esse governo mundial a partir de seu território e de suas estruturas políticas e econômicas. Isso de modo algum implica que a maioria das pessoas dos EUA necessariamente formam parte desse esquema de coisas, mas sim que suas elites e classes governantes sim. Nós estamos então falando de um grupo de influência que opera dentro dos EUA (como também por dentro da Grã-Bretanha, Alemanha, e Japão, e através de seus agentes na Espanha, Argentina, Brasil, Coréia, e muitos outros países), mas que não está necessariamente identificado com a população dos EUA (nem de qualquer outros países com cujos povos, necessidades e interesses eles não precisam concordar).

De modo a melhor compreender a verdadeira natureza dos EUA, nós devemos ter em mente que especialmente no que se refere a sua política externa a "Administração" americana como eles tão aptamente chamam seu governo, é baseado em Washington DC., que é o assento do poder formal dos EUA, enquanto suas estruturas de poder real estão localizadas na cidade de Nova Iorque. Ou seja, os EUA são administrados a partir de Washington DC, mas governados a partir de Nova Iorque. Uma vez que entendamos isso, então muitas outras coisas se encaixam automaticamente. Adicionalmente, o verdadeiro centro de poder planetário situa-se não em Nova Iorque, mas em Londres...

Que isso deva ser assim é compreensível quando lembramos que o exercício do poder real demanda conformidade com um conjunto de regras e condições cuja continuidade abarca anos e décadas de modo a alcançar objetivos de longo prazo e estratégicas complexas que, por sua vez, abarcarão todo o planeta, suas nações e recursos. Isso demanda planejamento de longo prazo: 20, 30, 50 anos a frente. Essas elites sabem bem que não há ameaça maior à continuidade e consistência política no planejamento e execução dessas estratégias globais, do que tê-las subjugadas ao processo democrático que impõe uma alta visibilidade sobre seus líderes que devem ouvir a voz do público a cada passo que dão, e as constantes interrupções de poder que os processos eleitorais democráticos representam.

O quão melhor é operar discretamente, a partir do que se poderia formalmente chamar de um mero clube de cavalheiros como o CFR, nos quais homens e mulheres poderosos e influentes podem ser funcionários, diretores e presidentes por décadas sem ter que prestar explicações a quem seja exceto seus próprios pares. Dessa maneira, 3.600 pessoas poderosas podem exercer enorme influência política, econômica, financeira e midiática sobre incontáveis milhões através do planeta. É desnecessário dizer que a mídia impõe o "politicamente correto" que pode ser expresso simplesmente por dois partidos políticos principais, democratas e republicanos nos EUA, trabalhistas e conservadores no Reino Unido, CDU e SPD na Alemanha, radicais e justicialistas na Argentina, que são meras variações dos mesmos elementos fundamentais. Na prática, democracias ocidentais estáveis todas conformaram ao que é na prática um sistema unipartidária com facções internas levemente diferentes.

O que nós estamos descrevendo é na verdade o foco central de uma verdadeira rede de homens e mulheres poderosos, considerando que o CFR é por sua vez suplementado por uma miríade de instituições similares tanto dentro como fora dos EUA. Entre essas podemos mencionar um punhado: O Instituto Hudson, a Corporação RAND, o Instituto Brookings, a Comissão Trilateral, o Fórum Econômico Mundial, o Instituto Aspen, o Instituto Americano de Iniciativas, a Sociedade Alemã para Política Externa, e o Fundo Carnegie para a Paz Internacional.

Todos esses think tanks reúnem os homens e mulheres mais inteligentes, preparados, criativos, e ambiciosos de uma grande gama de campos e disciplinas. Eles são pagos e recompensados muito bem economicamente e socialmente, enquanto eles se alinhem claramente e completamente com as crenças básicas dos objetivos políticos do CFR. Estes são nada menos que a criação de um governo mundial privado, a erosão sistemática das estruturas de todas os Estados-Nação soberanos (ainda que, naturalmente, nem todos do mesmo jeito, na mesma velocidade ou ao mesmo tempo), a padronização dos valores culturais e normas sociais, a difusão do sistema financeiro globalizado de base usurário-especulativa, e o gerenciamento de um sistema de guerra global de modo a manter a coesão social necessária de suas próprias massas através da intimidação e alinhamento permanentes contra inimigos reais ou imaginários da "democracia", dos "direitos humanos", da "liberdade" e da "paz".

Assim, de modo a melhor compreender o mundo, precisamos ler e avaliar o que o CFR ou melhor, seus membros individuais - diz e propaga, já que muitas de suas atividades não são secretas, mas ao invés meramente discretas. Qualquer pessoa visitando sua sede na Park Avenue e na 68th Street em Nova Iroque como este que subscreve já fez várias vezes em anos recentes, será capaz de obter uma cópia grátis de seu mais recente Relatório Anual que descreve suas principais atividades e a lista completa dos 3.600 membros. Então a informação está abertamente disponível para todos os que querem procurar.

Cabe, porém, a nós ter o trabalho de cruzar todas as informações relativas aos membros do CFR com o que cada um realmente faz em suas atividades profissionais, corporativas, acadêmicas e governamentais. Nós também precisamos olhar para a história moderna e avaliar a influência excepcional que o CFR tem tido ao longo do século XX tanto por conta própria como em conjunção com suas organizações associadas, assim promovendo e influenciando ideologias, eventos públicos, guerras, formação de alianças, crimes políticos, atividades secretas, guerra psicológica, crises econômicas e financeiras, a promoção e destruição de personalidades políticas e empresariais, e outros eventos de grande impacto muitos dos quais claramente difíceis de admitir ou confessar, todas as quais porém marcaram o curso da humanidade em nossos tempestuosos tempos modernos.

Pareceria que nós todos somos mantidos ocupados demais e fascinados como espectadores passivos do turbilhão de eventos que tem lugar a cada dia no mundo de modo a garantir que nenhum de nós pense em olhar para qualquer outro lugar em busca de explicações adequadas para as crises graves de hoje, o que nos permitira identificar não tanto os efeitos e resultados chocantes de muitas dessas decisões políticas e ações secretas que são tomadas, mas sim suas causas e fontes reais e concretas.

De modo a essa gigantesca guerra psicológica, pois é disso que se trata - vencer, a mídia de massa desempenha um papel essencial e vital que não pode ser suficientemente enfatizado. Pois eles são os instrumentos cujo objetivo é minar e neutralizar a capacidade de pensamento independente entre a população mundial. Este é o papel de mídias de massa como a CNN, CBS, NBC, The New York Times, The Daily Telegraph, Le Figaró, The Economist, The Wall Street Journal, o Corrieri della Sera, Le Monde, Washington Post, a Time, o Newsweek, US News & World Report, Business Week, RTVE, todas as quais são dirigidas por membros do CFR ou de suas organizações associadas nos EUA e outros lugares.

Implicações para a Argentina

Nesse contexto, nós podemos dizer que a mídia local na Argentina, e nossos políticos estão todos alinhados ao processo de globalização, e estão engajados em alcançar três objetivos fundamentais:

1. Ocultar da opinião pública como o mundo realmente funciona, sabendo que se nós não pudermos compreender e diagnosticar a origem de nossos problemas e fraquezas, nós dificilmente poderíamos encontrar as soluções adequadas para eles. Assim nós somos ludibriados em acreditar que nós estamos em "paz", quando na verdade uma verdadeira e violenta guerra total está sendo travada contra a Argentina há mais de meio século nos âmbitos político, econômico, financeiro, midiático, educacional, tecnológico e ambiental. É primariamente uma guerra psicológica.

2. Nos fazer acreditar que nós estamos em uma situação difícil, mas que "as coisas vão melhorar" desde que nós alcancemos um novo acordo com o FMI, privatizemos ainda mais nossos interesses públicos, reformemos nossos governos federais e provinciais ao agrado do Banco Mundial, reformemos nossa legislação trabalhista e social de modo que os "investidores internacionais" sorriam para nós, e façamos nosso dever de casa implementando as "receitas" do FMI e do Banco Mundial. A verdade é que dizer que estamos em uma "situação difícil" é uma subestimação absurda. A Argentina está em situação terminal e se não acordarmos para essa realidade em alguns anos, no máximo em uma década, nós deixaremos de existir como país.

3. Nos fazer acreditar que, queiramos ou não, não há nada que possamos fazer para parar a "globalização". A verdade é, porém, que há uma miríade de coisas que podem ser feitas para neutralizar os efeitos adversos da globalização. Estas basicamente implicam recuperar o Estado-Nação de modo que ele se conforme com suas funções básicas e fundamentais de:

- integrar forças sociais internas em conflito;

- prever todas as possíveis ameaças e oportunidades internas e externas, e

- liderar a Nação em um curso político defendendo seu interesse nacional.

Essas funções implicam a existência de um Estado-Nação soberano que a Argentina não é mais hoje. Nós nos tornamos uma colônia e nós devemos, como um primeiro passo, promover uma verdadeira Segunda Declaração de Independência de modo a então fundar uma Segunda República. As implicações e aspirações para nossa região e mais além no mundo seriam realmente momentosas. Adicionalmente, devemos ter em mente e está além do escopo desse breve artigo entrar em detalhes, que a infraestrutura financeira global está à beira de um colapso controlado que é algo que o CFR vem cuidadosamente planejando ao longo de seus programas Projeto de Vulnerabilidades Financeiras, e Nova Arquitetura Finnaceira Internacional. Conforme nos tornamos conscientes dessas realidades, a estrada que devemos trilhar se torna cada vez mais clara também e, na verdade, as coisas então não parecem ser tão complexas quanto havíamos pensado. É tudo basicamente uma questão de pensarmos com nossa própria cbeça e não com a de nossos inimigos; de começar a avaliar e defender nossos interesses nacionais, o que implica ter nossa própria perspectiva dos eventos, interesses e forças globais, e então defendê-los segundo nossas necessidades, verdadeiras possibilidades e idiossincrasia. Em verdade, nós precisamos "reinventar a roda" porque o próprio CFR nos dá um modelo para um planejamento e administração política, econômica, financeira e social para o poder nacional. Por que não aprender com eles? Por que não formar nossa própria rede de think tanks reunindo uma grande gama de interesses, jogadores e pensadores locais e regionais de diferentes campos, colocando todos para trabalhar na promoção dos interesses nacionaias da Argentina e seus vizinhos, de modo a recuperar nossa soberania e a autodeterminação para nossos povos de maneira consistente e coerente, independentemente do que as potências mundiais queiram nos impor? Isso implicaria compreender o que a globalização realmente é: uma gama de ameaças e oportunidades enormes que nós precisamos evitar e tirar vantagem, conforme seja o caso. Em cada questão que tenha um impacto potencial sobre nós, nós precisamos começar a compreender quais são nossas forças e fraquezas de modo a sermos capazes de enfrentá-los, se não hoje, então certamente no futuro. Isso requer planejamento adequado. Planejamento de médio e longo prazo. Isso demanda tentar estar sempre um passo adiante do Inimigo, de alcançar e manter uma vantagem sobre eventos futuros.

Sem dúvida isso poderia nos levar a projetar políticas consistentes com nossos interesses nacionais, as quais em muitas instâncias não coincidirão com os interesses dos poderosos atuais, para cujo fim nós precisamos buscar e trabalhar em proximidade com nações e organizações na América Central e do Sul, África, Ásia, e Europa, com um objetivo comum de neutralizar os efeitos negativos do domínio global. Em verdade issi implicaria criar uma Nova Argentina. Nós temos muitos dos instrumentos necessários à disposição; nós temos milhões de compatriotas preparados para aceitar o desafio, faltando apenas explicar a eles claramente o que está em jogo; e milhões mais além de nossas fronteiras com quem podemos trabalhar por uma Causa comum.

Então é uma questão de entender que na política há dois tipos de pessoas: aqueles que são atores na arena política e aqueles que apenas observam. O Conselho de Relações Exteriores é um ator central na arena política global onde eles fazem sua força ser sentida. Não seria a hora de fazermos o mesmo em nosso país?

18/01/2012

Sujeito Sem Limites

por Aleksandr Dugin



Ultrapassando o limite

Quando a questão é sobre definir o fenômeno da agressão, as pessoas mais comumente apelam a esferas emocionais, psicológicos e sentimentals, deixando de levar em consideração, como é comum no mundo moderno, os aspectos mais profundos e metafísicos do fenômeno. Na veia da tradição humanista apareceu por conta própria a atitude negativa em relação a agressão, que é considerada como algo sujeito à eliminação total ou (o que é mais realista) a redução. Porém, a agressão é tão intimamente ligada à natureza humana, que ela remete a si mesma constantemente - tanto no quotidiano, na psicologia da vida privada e na realidade política de guerras, conflitos, lutas. Tentemos compreender a agressão, abstraindo-nos de todas as opiniões estereotípicas usuais - pacifistas, escandalosamente apologéticas, psicanalíticas ou socialmente deterministas.

A agressão como um fenômeno poderia ser melhor definida como um "ultrapassar violento de limites". Exatamente aí sua qualidade essencial consiste, essa qualidade é reconhecida em conflitos do quotidiano, em uma ocorrência criminal, em um conflito militar em larga escala. Um criminoso violentamente transgride os limites da ética social, da moral, da integridade física ou econômica de um humano ou uma comunidade. Isto é agressão. Um exército violentamente ultrapassa a fronteira de um país hostil ou de linhas defensivas do inimigo. Isso também é agressão. Finalmente, ideólogos, rompendo os modos estereotipados de pensamento, violentamente ultrapassa os limites dos clichês mentais. E isto também é agressão.

Não apenas a existência social ou exclusivamente humana está plena de vários tipos de limites, transgredindo os quais dá origem a vários tipos de agressão. A estrutura de toda realidade é construída simplesmente em vários limites, separando cada coisa e cada modo de existência de todos os outros. Em algum sentido, o próprio limite faz de cada coisa o que ela é por si própria, sendo a corporificação da diferença, diferenciando em relação aos outros objetos. No sentido mais geral, a agressão também pode ter uma dimensão cósmica, universal, expressa através da interferência violenta de um em outro. Há exemplos abundantes de agressão nos reinos animal e vegetal, nos quais a existência de uma espécie ou um indivíduo é muitas vezes sustentada pelo uso de violência contra outros, que gera a roda contínua de transformações, assimilação e adaptações do ambiente e dos seres do Universo. Consequentemente, a agressão é algo geral, universal, e integral à base da própria realidade.

Vae Victis

O ultrapassar violento do limite possui dois aspectos: um é relativamente negativo, o outro é relativamente positivo. O sujeito da agressão, isto é o ser que realiza um ataque agressivo contra outro (contra o objeto da agressão), busca estender seus próprios limites por tal ação, busca fortalecer, aperfeiçoar, preencher sua própria natureza. Tomando a vida da vítima, um predador aplaca sua fome, sustenta sua própria existência, obtendo recursos necessários para seu organismo. A agressão militar expande territórios e multiplica a riqueza da parte vitoriosa, e mesmo uma briga de bar fortalece a auto-confiança do vencedor, sua fé em si mesmo e sua satisfação moral. Em resumo, na agressão a expansão positiva do sujeito, expandindo sua esfera de potencialidades, é realizada.

Mas o objeto, sujeito a agressão, a vítima devorada ou espancada, a nação subjugada, etc., ao contrário, como resultado do rompimento dos limites (mútuo no processo dado), apenas perde o que tinha antes, reduz sua esfera de potencialidades. O objeto se torna um botim para o sucesso alheio, um bode expiatório. Em certo sentido, o próprio fato da agressão o transforma em objeto, de fato, quando previamente, antes do ataque, ele poderia possuir a ilusão de seu próprio caráter subjetivo, dando início a agressões contra outros seres, objetos, nações. Este é o aspecto negativo do "ultrapassar violento de fronteiras".

Na civilização pré-humanista e em civilizações não-humanistas (tradicionais), que existem até hoje, ambos aspectos da agressão eram considerados em conjunto, como dois elementos mutuamente complementares, inscritos na estrutura primordial do Universo. O símbolo chinês "Yin e Yang" é um exemplo perfeito deste dualismo fatalista. O fragmento branco do círculo representa o sujeito aqui; o negro representa o objeto correspondentemente.

No simbolismo dos sexos, o primeiro é identificado com o princípio masculino (yang), o segundo é identificado com o princípio feminino (yin). Daí segue-se a "legitimação" comum da agressão, que era peculiar ao mundo tradicional, no qual não entraria na mente de ninguém opôr artificialmente o humano a forças básicas da realidade. Certamente, as civilizações mais refinadas obscureceram por todos os meios as leis da agressão a nível social, de modo que a diferença dos costumes bárbaros estava a disposição. Porém, em todos os casos o direito de "ultrapassar violentamente os limites" foi preservado, ainda que de forma sublimada, tanto nos casos de guerra como nos casos de repressão individual, cuja aplicação era função de algumas organizações tradicionais especiais - o protótipo da polícia atual. Os feitos de conquistadores, subjugadores, destruidores foram cantados em lendas e épicos, que são todas construídas sobre a fórmula "Vae Victis!" ("Ai dos vencidos!").

Legitimação da Agressão na Tradição

Qual é a justificativa metafísica da agressão em civilizações tradicionais, além da observação direta da estrutura da natureza?

A questão é que a tradição considerava o próprio fato da existÊncia de limites como a expressão da imcompletude do Universo em relação a sua Causa, concebida como algo Absoluto, Uno e para além de todos os limites. Consequentemente, a aspiração pela expansão da própria existência, pela expansão existencial, pela "transgressão de limites" (em latim é transcendere, "transcender") era considerada como um impulso profundo de movimento na direção do divino, como o eco da perda do Absoluto, implantado no mundo e nos entes do mundo.

Certamente, práticas metafísicas e ascéticas neste caso poderiam ser chamadas de a forma pura da agressão. Nestas práticas os iniciados buscavam transgredir todos os limites, levar ao máximo seu próprio "ego" a um estado absoluto, colocando sob agressão não apenas alguns objetos, mas toda a realidade como um todo. No caminho da autodeificação direta o máximo do umpulso agressivo é concentrado, pois o Divino é simplesmente o cancelamento de barreiras e limites, constituindo a essência do não-divino, imanente. Aliás, daí segue a palavra hebraica "Satã", literalmente significando "barreira", "obstáculo", isto é "limite", compreendido como algo negativo. Saindo disso, é simples dar o próximo passo e explicar o mecanismo da assim chamada "demonização de um adversário", cujos exemplos são tão abundantes nas lendas, épicos, e ensinamentos religiosos tradicionais. O que serve como um obstáculo no caminho da expansão de uma nação, país, religião, mais estreitamente a comunidade de um povo e, finalmente, um humano; o que limita a vontade deste último à totalização, à expansão da existência, tudo issi automaticamente cai sob o signo de "Satã", obtém a qualidade do mal teológico, e consequentemente, a agressão se torna legitimada no mais alto nível. Graças a tal "demonização de um adversário" ou de uma vítima, sua objetificação ocorre, retirando eles sua qualidade subjetiva, abstraindo da solidariedade específica, social ou religiosa.

Irã contra Turânia, Aqueus contra Troianos, Israelitas contra Goyim, Muçulmanos contra Giaours, Deuses contra Titãs, e às vezes até mulheres (amazonas) contra homens - os vários paradigmas do dualismo, nascidos do impulso primordial para a agressão, são abundantes nas mais antigas crônicas, códigos religiosos, lendas poéticas e daí em diante. Pela justificativa de seu próprio campo, o povo da Tradição justificou, na verdade, algo que é mais - o próprio princípio da agressão, a própria vontade primordial do "ultrapassar violento de limites", a aspiração pela totalização do seu próprio caráter subjetivo (independentemente de como isso possa ser expressado - seja através de afiliação nacional ou religiosa, ou tribal).



Anti-Agressão

No mundo moderno ocorreu o rompimento com tradições de séculos, que modificaram completamente as estruturas mentais e sociais da humanidade moderna em comparação com longos milênios do passado. "Iluminismo", humanismo, racionalismo e outras tendências "progressistas" expressam o sistema de estimações e valores, contradizendo completamente as orientações básicas da sociedade tradicional. Isso certamente (e talvez do modo mais expressivo) tocou o princípio da agressão.

A Idade europeia do Iluminismo implantou nas pessoas uma visão unilateral da agressão, uma visão exclusivamente da perspectiva da vítima.

O lado leve desse fenômeno, baseado na vontade do Absoluto, de alcançar o caráter total, de uma máxma extensão de um sujeito até a esfera do Divino, deixou de ser compreensível, concreto e ontologicamente enraizado, e, consequentemente, foi identificado com a "sobrevivência", com atavismo, com barbarismo inerte, com o defeito temporal e fundamentalmente retificável da civilização. Tendo perdido sua legitimidade metafísica, a agressão veio a ser percebida como transgressão injusta da integridade do que foi proclamado valor supremo em si mesmo - um indivíduo humano, uma sociedade, etc. Daí segue toda tendência "jusnaturalista", que foi desenvolvida desde os tempos de Rousseau. Posto que a expansão existencial deixou de ser metafisicamente justificada, a vítima apresentou suas próprias reivindicações de "segurança total", isto é, do imperativo artificial e elevado ao mais alto imperativo ético de defesa contra agressão. A agressão foi efetivamente banida. Com isso, em particular, o estatuto jurídico "democrático" geral, que proíbe a propaganda de guerra, está conectado.

Passou a ser possível modificar as fundações culturais e sociais da sociedade, ao passo que estava naturalmente além dos poderes de qualquer um modificar as tendências básicas tanto do cosmo como de seres humanos. Portanto a agressão jamais desapareceu ou da história, ou do quotidiano, ou da natureza selvagem. Ela apenas começou a ser percebida como um mal, como a reivindicação de um ser limitado em utilizar outro, que emerge espontaneamente de tempos em tempos.

Posto que o processo de totalização do sujeito foi excluído, a agressão passou a ser considerada como mera aquisição quantitativa, acúmulo de sujeitos externos, como egoísmo trivial e vulgar, como a fatal "luta pela vida". Portanto toda a agressão veio a ser gradualmente reduzida meramente à esfera econômica e todas as suas manifestações em outras esferas foram estritamente culpadas pela "opinião pública". "Segurança total" e "direitos humanos" foram daí em diante garantidos pela transferência da agressão para a esfera dos padrões materiais abstratos - dinheiro, capital.

Gênese Metafísica do Terrorismo

Conforme o modo ocidental de pensamento se tornou mais e mais popular, conforme o sistema capitalista, liberal alcançou seu caráter global, o descrédito tanto da agressão como de suas manifestações estava se desenrolando. Isso alcançou esferas políticas, culturais, e ideológicas. A civilização, completamente baseada na defesa exclusiva dos interesses da vítima, aspirou a gradualmente se afastar dessas instituições, estruturas e modelos de comportamento, que como partes integrais foram preservadas na comunidade humana desde seu estado tradicional "pré-humanista". Com essa tendência o pacifismo, o sufrágio feminino, e as tendências para o enfraquecimento do aparato estatal, a ideologia dos "direitos humanos" e daí em diante se misturam - tudo o que compõe a fachada ideológica do liberalismo atual, que se tornou um modelo social e político, dominando o planeta.

Na última fase este processo fez emergir o fato, de que praticamente todas as formas de agressão - a vida quotidiana, política, estética e daí em diante - foram "banidas" e limites passaram a ser considerados como algo inviolável e sagrado. Junto com isso outro fenômeno emergiu - a tendência para a "superação inviolável dos limites", à mundialização do mundo, à mistura "suave" de todos os sujeitos, pessoas e entes em um caldeirão comum, em Um Mundo. Após afirmar a inviolabilidade dos limites, o cancelamento dos limites foi afirmado, mas dessa vez a questão não era uma de expansão e totalização do sujeito, do agressor, mas de mobilizar vítimas meramente objetivo cosmos comum. A forma perfeita de tal ideologia é o modelo, conhecido como "ideologia suave", no qual a questão é a de misturar uns com os outros os ingredientes mais variados, no caso de eles estarem desprovidos de um princípio agressivo claramente expresso, do caráter subjetivo. No aspecto histórico, ao mesmo tempo, quando os primeiros sinais da ideologia suave apareceram (isto é nos fins da década de 60/início da década de 70 de nosso século), o fenômeno adjacente emergiu: o terrorismo moderno. Certamente, o terrorismo existia antes também, mas até certo momento ele permaneceu um fenômeno razoavelmente lumpen, no qual as manifestações mais intensivas de agressão política estavam concentradas, confrontando com o muro inabalável do Sistema. O terrorismo moderno, porém, é bastante diferente da tendência política radical dos revolucionários do século XIX/início do XX, pois ele tende a se converter de ser um meio político e pragmático para um fim a ser um fenômeno independente, autosuficiente e representante um tipo especial de ideologia. Os representantes da civilização, baseados na ideologia suave, gradualmente expandiram a noção "terrorismo", tendo incluído todas aquelas manifestações que contrastavam com as fundações básicas de sua própria doutrina. Em outras palavras, o terrorismo tornou-se um sinônimo para agressão no sentido metafísico mais geral. Todos os componentes da realidade presente, que não se confinaram a normas, impostas por uma "comunidade global de vítimas", foram gradualmente levadas ao pólo terrorista. Partidos políticos, queram alternativas ao sistema liberal, tendências religiosas, até nações inteiras passaram ao setor do "terrorismo", sendo lá levadas pela expansão do modelo ocidental.

O terrorismo tornou-se gradualmente o último asilo do sujeito, buscando a totalização no mundo, onde esse desejo havia sido banido. Então não é surpreendente, que a doutrina de agressão independente gradualmente tornou-se a doutrina do puro terror para além dos interesses mais estreitas de um partido, nação, ou religião. 

A Primeira Linha

O fenômeno do puro teror é a última palavra na história da agressão e na luta liberal contra ele. O tempo do "terrorismo em nome dos interesses estreitos de um partido" acabou. Mais e mais pessoas percebem o caráter pragmático de uma filiação partidária concreta no caso de suas escolhas existenciais pessoais. Ademais, a indefensabilidade das ideologias clássicas em face de uma ideologia suave mundialista absorvedora e dissolvedora torna-se mais e mais aparente.

O levante radical de maio de 1968 levou ao triste e insípido reformismo reduzido, à paródia social-democrata. A intifada palestina resultou na colusão de Arafat com Tel-Aviv. Como resultado da quebra do sistema soviético os restos decadentes da guerrilha estão abandonados na América Latina. O terrorismo de direita foi derrotado ainda antes. A derrota doutrinária e ideológica de todos os "inimigos da sociedade aberta" era iminente.

Mas a pesar de todos os substitutos, propostos pelos adeptos da ideologia suave (agressividade ecêntrica e puramente visual na moda juvenil; incontáveis sucessos de TV com sangue e corpos; remoção da proibição de produções sadomasoquistas, etc.), um tipo especial de pessoas foi preservado, dos quais a agressão é inseparável, que experimentam o desejo incessante pungente pela "totalização do sujeito", excedendo as fronteiras da esfera do transcendente. São estes que começam a esboçar os contornos de uma nova ideologia, uma ideologia universal para além de clichês obsoletos e ultrapassados.

Em 1994 na Itália o livro de Enrico Galmozzo foi publicado com o nome "Sujeito sem limites" - "Il soggetto senza limite". Seu autor é um dos fundadores da organização terrorista de extrema-esquerda "Primeira Linha", Prima Linea, que competia com as famosas "Brigadas Vermelhas". É extremamente significativo, que o livro do anarco-comunista de extrema-esquerda Galmozzi é dedicado a d'Annunzio, o fundador do partido fascista na Itália, o aderente da aristocracia e, finalmente, o homem, que via de regra aderia a àla da extrema-direita. Enrico Galmozzi brilhantemente analisa o fenômeno de d'Annunzio do ponto de vista existencial e traça paralelos muito interessantes entre ele e figuras do anarquismo e até mesmo entre ele e Lênin. O que é mais importante, a questão aqui não é interpretar d'Annunzio do ponto de vista esquerdista, mas na busca de um critério universal, que poderia unir pessoas de um mesmo tipo metafísico para além de diferenças ideológicas. A fórmula, que foi encontrada por Galmozzi para o nome de seu livro, parece tão afortunada que poderia servir como um slogam comum, universal para todos os oponentes do "campo de concentração suave" do mundialismo moderno.

"Sujeito sem limites" é a realização mais pura possível do sentido metafísico de agressão, é um slogan surpreendentemente preciso, expressando a natureza interior do Puro Terror. De agora em diante tudo dependerá apenas da habilidade de "pessoas solitárias" abandonarem as ilusões ideológicas prévias, tendo reconhecido a necessidade metafísica e inevitabilidade de uma nova sistematização de uma esfera social - não segundo a escala "o direitista contra o esquerdista", mas segundo a escala "amigos da agressão" contra "inimigos da agressão".

E quem sabe, se a integração mundialista das pessoas, que são objetos, pessoas, que são vítimas, em uma comunidade planetária liberal, em um Único Objeto Absoluto provoque a emergência de um novo e último caráter da história mundial - o Sujeito Absoluto, Sujeito sem limites, que cometerá o ato conclusivo do drama escatológico.