28/01/2012

Isidro Palacios - O Símbolo, o Mito e a Religião no Fantástico

por Isidro Palacios


Apologia da Barbárie

A realidade urbana em que vivemos encolheu e estreitou o mundo. O céu, o inferno, a natureza, o herói e suas provas, os silfos, as fadas... Tudo isso foi retirado e relegado a um mais além da civilização, tachando-o de primitivismo. Aqueles que seguiram acreditando em tais realidades e seus herdeiros não tiveram por menos que aceitar ser os novos bárbaros. Porém eis aqui que esse mundo bárbaro pugna agora por voltar e se levanta arremetendo contra os valores e o estilo da urbe, a qual concebem como o vírus que há que matar ou destruir culturalmente. Nossa época parece ser, por isso, uma nova idade de fronteira: um trânsito para tempos novos, carregado de signos apocalípticos. Vejamos como nos anuncia a literatura fantástica, os movimentos marginais da urbe e as aparições do misterioso. É o tempo da pós-modernidade.

O símbolo, o mito e a religião no fantástico

Se o mundo moderno conseguisse demonstrar que o fantástico é um capricho da mente, desligada da verdade, teria conseguido derrotar a esta literatura. Porém...lograram por acaso vencer os troianos aos aqueus aceitando, dentro dos muros da cidade de Tróia, o Cavalo de madeira imaginado por Ulisses? Aquele engenho, ao contrário, demonstrou ser o portador de uma crua realidade. O "Cavalo de Tróia" levava dentro os gérmens da destruição da cidade. Assim é a literatura fantástica, aparentemente falsa, mas que em seu ventre entesoura a verdade dura e esperada, segundo o bando no qual um indivíduo se encontra. E já é tarde para expulsá-la, é tarde para que prenda na sociedade contemporânea o alarme, pois os habitantes da urbe estão - próxima já a noite - demasiado despreocupados e com escassíssima vigilância, preparando a nova era de ociosidade absoluta, de festa sem entranha, da servidão do prazer indomado: a última etapa da decadência que precede a queda...e à instauração do novo.

A Verdade, a Razão e a Imagem

Partamos reconhecendo que a literatura fantástica é portadora da verdade engenhosamente encoberta. Dito de outra maneira: a astúcia do real frente a um mundo falso. Se os escritores do fantástico perdessem essa noção, sua literatura "languidesceria ou se converteria em tediosa ilusão" (Tolkien). E os leitores teriam deixado de perceber a verdade.

A imagem é o traço elemental que domina este tipo de literatura. Realmente tem muito pouco que ver com o relato especulativo, ainda que o fantástico não exclua à razão. A este respeito, temos uma frase de Tolkien que nos convém citar aqui. Diz assim: "a fantasia é uma atividade natural da mente humana, a qual certamente não destrói, nem menos ofende a razão... - e conclui - : quanto mais aguda e clara é a razão, melhores fantasias produzirá. Não é, portanto, essa literatura, irracional, nem irracionalistas os que creem nela e a seguem. Porém tampouco é racionalista porque sua atividade está inspirada, e deve seu conhecimento à visão de uma realidade extrarracional e suprarracional. Imagem não é alucinação artificial, sonho do pensamento, cobiça do "eu" individual, nem invenção. Nem toda literatura que rende culto à imagem quer dizer "imaginária", senão simplesmente a visualização do escondido e do oculto, do superior e do inferior invisíveis. Estamos, por conseguinte, diante do fato simbólico. E símbolo significa manifestação da realidade completa; expressão até o mais inefável; doutrina da totalidade; entrada a toda a criação, ou caminho certo para o espírito; arma e defesa perante a ignorância e a escravidão.

Dessa concepção da imagem nasce uma das causas de choque com o mundo de nosso tempo, que vive na prisão estreita de seu próprio racionalismo. Sobre cuja base, não somente pretendeu-se fundamentar toda sorte de utopias e erros (racionalização da economia ou capitalismo, urbanização do mundo, igualitarismo, massificação e individualismo...), senão que tentou-se e tenta-se - mediante a parapsicologia - circundar e limitar o infinito, explicar o inexplicável e racionalizar o que não se alcança. Daí que nossa civilização presente tenha condenado os homens a um fechamento no âmbito de suas vidas, a uma limitação em tudo: em sabedoria e em existência, justo o contrário do que, segundo parece, pretendia o racionalismo com sua revolução. A imagem, por sua vez, nos facilita a compreensão de um mundo totalmente aberto. Fantasia, escrevia Michael Ende em sua História Sem Fim, é um Reino Sem Fronteiras. E isto é assim, porque o símbolo é uma maravilha sem peso, um testemunho alado, que se pode elevar e remontar à altura que se queira e pousar ou penetrar em qualquer lugar. Por isso a inteligência pura, com o símbolo, pode acessar ou conseguir a mais alta, certeira e eminente realidade de todas as coisas e torná-las compreensíveis à razão, se esta vive disposta a alçar-se, mediante o símbolo ou a imagem, por cima de si mesma. Temos chegado já, com o que foi exposto até aqui, a uma das principais oposições que tem a literatura fantástica em relação com a sociedade atual: frente a um espaço e tempo fechados, o fantástico defende uma vida aberta e livre. Compreenderemos agora, nesta aproximação, as palavras de Tolkien quando se referia ao fantástico como a fuga do prisioneiro? Tanto Tarzan, Conan, como os antigos bárbaros, nunca renunciaram para sempre aos espaços abertos, à natureza. Os autores dessa literatura nos conduzem a situar de novo, no centro de nossa mente, o Monastério, o Castelo e o Bosque, com todos os seus povoadores: eremitas, magos, cavaleiros, duentes, elfos, fadas, dragões..., e nos recordam que as forças tenebrosas nos assediam e nos escravizam em nossas cidades. O aberto do símbolo ou da imagem frente à limitação e ignorância do exclusivismo racionalista, como resumo.

Mito e Religião: a Idade Média

Estamos de acordo com Alex Voglino quando diz que o fantástico é discurso mítico; não obstante, sua apreciação é incompleta já que também é discurso religioso. Em efeito, a literatura fantástica participar, ao mesmo tempo, de ambos elementos. Por um lado do Mito, que assinala uma presença real do sagrado no mundo, penetrando-o em sentido imanente e transcendendo-o para um mais além. É o espírito em tráfego, cuja visão, empapando-o todo, percebe-se sem interrupção. Dito de outra maneira: o Mito faz de cada lugar um templo, de cada árvore, de cada monte, de cada mar, uma imagem sagrada e, assim mesmo, de cada um dos dias uma festa. É o paraíso do mundo identificado com o Paraíso Terreno; é a aceitação do Cosmo, da Natureza, como Criação divina e onde todo ato humano não se concebe senão como uma continuidade do fato criador, isto é, como uma recriação. É, enfim, a ordem da transparência cristalina entre o visível e o invisível. É a vida que nos entrega a solução antes de que o problema tenha sido, tão somente, apresentado. por isso o Mito é anterior à Filosofia, porque nada tem que ver com a existência da dúvida que se resolve pela via do pensamento. Daí que tenhamos dito mais acima que o fantástico não é uma literatura que especula, senão que nos oferece imagens ou símbolos que afirmam, que não discutem. E sustentamos isto apesar que utilize, como meio de expressão, algo que em palavras de Voglino - não lhe é próprio: o romance. Mas, que outro veículo poderia ser empregado senão este?

Porém de nada serviria esta literatura se não fosse introduzido nela o elemento religioso.

Porque estando hoje o Mito perdido, a Religião o recupera; porque tendo rebelado-se o mundo, os lugares e os dias dessacralizaram-se; porque as cidades e as obras do homem sem alma quebraram a Natureza, a devastaram e a reduziram a um estado idefeso; porque a visão ocultou-se e o saber se ignora. Diante de tais coisas, a Religião surgiu como a reconquista que a misericórdia de Deus envia ao mundo, para penetrar em seu âmbito agora já hostil e desgarrado de sua Unicidade. Que outra coisa significa Religião, senão "religar-se"; voltar à Unidade; voltar a unir o que está separado? Religião é, assim, retorno à normalidade do princípio ou à antiguidade primordial, porém que, em sua instauração, não tem mais remédio que ver-se envolta em um comportamento de violência. Pode ser de outra maneira a intromissão no campo inimigo? Assim, ao menos, são sempre recebidos os profetas e os enviados do céu; por muito pacíficos que estes sejam são sempre rechaçados (Schuon). Cristo disse: Eu vim para atear fogo à terra, e como gostaria que já se tivesse ateado? (Lucas) Não vim trazer a paz, senão a espada (Mateus). E isto quer dizer: "não vim senão para dividir ou distinguir"; "não vim senão para recuperar e rechaçar". Por isso, a Religião, ao entrar na Terra e vagar por suas regiões aéres e profundas separa, por um lado, tempo e espaço profanos, à vez que desiguala aos homens marcando os fiéis dos que não o são. Neste estrondo de guerra metafísica, o Templo e a Fortaleza terão que ser à força como jóias em meio ao barro, onde isoladamente o Cosmos volta a refletir-se reintegrado, onde se recupera o Paraíso perdido.

Fora destes pontos de lealdade e resistência, por outra parte localizados em tempo e espaço outrora já consagrados pelos Mitos, em quase todos os casos, fica a "natureza perdida", fica "o deserto", onde os demônios imperam ou o homem revolucionário estende sua feiúra e destruição. E aonde, em todo momento, sabendo que se dirigia a um campo de batalha aberto, entrava o monge ou o eremita solitário: vanguarda no front da guerra oculta, fiel à doutrina do monacato primitivo. Ou aonde o Cavaleiro andante saía à luta exterior, frente a toda forma de monstruosidade, diabólica ou humana, como expressão de sua própria combatividade interior em aras de purificar-se, contra o medo, a comodidade, e a soberba. E não por terem sido alguma vez, tanto o eremita, como o cavaleiro, desertores, que a literatura fantástica os resgatou como protagonistas centrais em seus relatos. O fantástico é, certamente, uma recuperação do Mito, porém em chave religiosa, pois não poderia ser de outra maneira. Foi dito, até a saciedade, que o exemplo mais claro e estendido, pelo qual o Mito voltou a flutuar sobre as consciências, deve-se a J.R.R. Tolkien: um escritor exemplarmente crente. E, assim, quando alguém chegou a perguntar-lhe sobre a essência de sua obra-mestra - O Senhor dos Anéis - , Tolkien contestou em uma carta: O Senhor dos Anéis é, sem dúvida, uma obra fundamentalmente religiosa e católica. Chama-se assim, Religião, ao caminho de sacrifício traçado na noite. Ele é a senda no Bosque, ele é o Castelo, o Templo, e o Mosteiro; ele é a Caverna, onde se guardam agora as gemas antigas, porém às quais não se pode chegar facilmente, senão através de um inimigo poderoso: o Dragão terrível e devorador, ao qual há que matar ou domesticar. Sem esta Via Brevis não teríamos luz e nos perderíamos; nunca poderíamos saber o que foi o Mito primordial, nem chegar a sua reatualização. Isso entendeu bem a Idade Média, a Alta Idade Média. É casualidade que o fantástico busque, precisamente, nesta etapa histórica da Europa a fonte mais genuína de sua inspiração? Como já aconteceu ao melhor dos autores românticos, como Becquer, Heine, Hoffman, os irmãos Grimm, Andersen...ocorre agora também com os autores como Yeats, Machen, Chesterton, Dunsay, Williams ou Tolkien, porque não podemos esquecer que a literatura fantástica é a fiel herdeira da literatura romântica.

Em efeito, é na Idade Média onde de uma forma veraz confluem, chegando a uma frutífera aliança, os resíduos visíveis da era mítico-pagã com a realidade do Cristo crucificado: não morto, senão invisibilizado pela ação do rechaço do hebraísmo oficial, ajudado pela ignorante indiferença do também oficial paganismo romano. Se o sangue do Cordeiro cai sobre os judeus e sobre o Templo, rasgando o véu e esgotando a Tradição mosaica, também faz arrasar o Império do Ocidente com os bárbaros, e não duvida em aceitar sua união, com eles, tendente a preparar - sempre envolto no fragor do grande combate cósmico - uma nova Idade, enlaçando-se com o Celtismo: a forma mais pura e frequente de paganismo que já existiu entre todos os povos europeus (Yeats). O símbolo definitivamente claro de tal aliança pagano-cristã o temos, acima de tudo na lenda do Graal medieval e artúrico. Lenda céltico-cristão na qual, um misterioso recipiente, custodiado em uma Fortaleza, ora visível, ora invisível - arquétipo do Paraíse Terreno - contem o sangue de Cristo: luminoso e vivificante. Atrás do Graal toda a Cavalaria andante se colocará em busca: Sir Gawain, Sir Lancelot, Parsifal... Igualmente céltico-cristã é a tradição de São Jorge e o Dragão. Graças a este prodígio histórico voltarão a aparecer com frequência os duentes e as fadas, em uma época em que os cristãos respeitam a seus Santos e os cavaleiros combatem inspirados na pureza de Maria Santíssima. É a Idade Média na qual São Columba, o evangelizador da Irlanda, eleva suas pregações ao céu desde os centros sagrados do paganismo celta, na segurança de que suas orações chegarão assim perante Deus. É o Tempo no qual todavía é localizável o Purgatório na terra. É a Época da discrição de espíritos, da viabilidade livre das Aparições e da busca e assinalamento do Diabo, que retrocede...O Celtismo e o Cristianismo, dessa sorte, fizeram nascer a Idade mais genuinamente europeia que já existiu desde os tempos pré-históricos: Média, enquanto centro difícil entre os extremos; Média, enquanto ponto de estreitamento, acopladamente tranquilo entre Oriente e Ocidente. Está é a Europa, definitivamente, centrada em si mesma e que de preferir algum distante acordo dos precedentes escolherá antes a Grécia que Roma.

Esta chamada Alta Idade Média que os tratadistas, como Le Goff, preferirão chamar também, não sem falta de razão, Antiguidade, com o que, entre uma e outra expressão, poderíamos dizer ou rebatizar: Antiguidade Média, em virtude do símbolo que para nós tem esta segunda palavra...esta Alta Idade Média, como dissemos, começa a ser substituída pela Baixa Idade Média, e ainda que nela se conserve todavia muito do antigo espírito, começará então a incubar os gérmens renascentistas e modernos. Para começar, o espírito cavalheiresco decai e, se no século XIII, o Purgatório parte definitivamente ao mais além post-mortem e a partir desse tempo o chamado Purgatório de São Patrício, situado no cume de uma Ilha do Condado de Donegal, na Irlanda celta, decai em um simples foco de atração de peregrinos. Neste mesmo século XIII decresce o interesse pela leitura do Livro do Apocalipse de São João, tudo um sintoma. Se escurece o acesso ao Paraíso terreno e se vai reduzindo sua população a dois personagens: Enoque e Elías, até que pouc odepois quase ninguém sabe onde se encontram estes dois; Dante apenas falará já do Paraíso Terreno na Divina Comédia... E com o Renascimento, o mundo se prepara para uma descristianização e despaganização real. Em verdade, não renasce nada do espírito antigo, senão que com o humanismo o homem começa a dar mais importância a seu "eu" individual e a seu protagonismo no mundo chegando a desdivinizar o trono e o raio (Meyrink). A Cidade, o Comércio e a Corte eclipsam o Monastério, o Castelo e o Bosque. Já o pensamento começa a conceber as modernas utopias científicas do racionalismo. De novo, a natureza das coisas se violenta, surgindo outra era de cegueira ou de invisibilização. A literatura fantástica, depois dos anos, se oporá a este sinal dos tempos, fiel a suas origens fundamentais, míticas e religiosas aqui expostas. Nela predominará a esperança do nascimento de uma nova Idade Média, remontando-se o interesse pelo Apocalipse. E com ele, assumindo, não somente o retorno de Cristo - o Sol Invicto - senão vindo junto a Ele, também, todos os Reis lendários que esperan no Paraíso e Artur, o Líder celta, oculto e imortal...

O Diabólico

Se nobre submissão e fidelidade atraem para a ordem exterior o Espírito invisível e denunciam a presença dos demônios lá onde se encontrem, com o orgulho humanista, a desobediência e a soberba se oculta ao Espírito, enquanto que o demoníaco sai de sua guarida. A rebeldia racionalista pretendeu retirar do mundo, lançar para o mais além, tanto o divino, como o diabólico. Queria ficar livre de qualquer servião, viver independente e com autonomia, em paz e comodamente, longe de sentir as sacudidas do Cosmo que arde em uma batalha universal quase desde o princípio; batalha, da qual fez eco, como ninguém, Tolkien no Silmarillión. Porém não ocorreu assim. É certo que o Espírito não morreu, porém também é verdade que o homem, com sua mentalidade revolucionária, provocou sua retirada ficando, desse modo, entregue a sua sorte e desprotegido. Não obstante, o espírito diabólico, em tal situação, encontrou facilitada sua penetrabilidade, que aproveitou sigilosamente. E justo agora, quando o tenebroso inspira os homens convencidos de sua não existência, os autores do fantástico, salvo raríssima exceção, insistem em denunciar a presença operativa do Diabo e de suas monstruosidades, assinalando-o no ápice de seu apogeu.

De fato, para a literatura fantástica, não é possível subtrair-se à neutralidade dentro dessa grande  guerra oculta e de dimensões cósmicas. Uma vez mais o fantástico nos ensina que o homem desse mundo não pode ficar na fraqueza: ou se diviniza ou se sataniza. Caída a Idade céltico-cristã e inaugurado o Renasciment e com ele as revoluções que todos conhecemos, as coisas humanas vem se satanizando: a política, a ciência, a economia...

É curiosi, e isso sabem todos os leitores dessa literatura, que os romances do fantástico despertam em que se aproxima delas uma clara repugnância pela política moderna, sem ter por que fazer distinção de sistemas ou de partidos. Isso poderia parecer chocante a primeira vista porém toda dúvida se dissipa conhecendo, por exemplo, o que o sociólogo alemão Max Weber afirmava sobre a questão política. Isso nos bastará, Weber, em O Político e o Cientista, dizia que, tarde ou cedo, quem faz política pactua com os poderes diabólicos que espreitam em torno a todo poder...quem busca a salvação de sua alma e a dos demais que não a busque pelo caminho da política...porque...o gênio ou demônio da política vive em tensão com o deus do amor.

Similar consideração depara a literatura fantástica e o tema científico. Em efeito, a atividade científica é uma fonte de poder moderna, ao mesmo tempo que mágica. Ela também foi usada pelo homem como via de usurpação e de autonomia, em relação com o Espírito, e por isso também se diabolizou. Desse modo, a ciência dista muito de ser benéfica para a vida humana, transformando-se em porta favorável que libera à força escura que espreita desde a sombra, desde as estrelas ou do abismo. Assim, por exemplo, Lovecraft, em As Montanhas da Loucura, sustenta como uma atrevida e ignorante expedição científica pode com sua perturbação, desencadear potências infernais primitivas, encadeadas ou distantes. Assim mesmo, também em Robert Bloch, com sua pequena obra: A Sombra que Fugiu do Pináculo, onde o maléfico, com toda sua tenebrosidade, encarna na pessoa de um cientista atrevido e amante da magia. O cientista de Bloch, já diabolizado, conserva uma aparente e ambígua inocência, não dedicando-se a outra coisa que difundir, com febril atividade, seu saber atômico e nuclear, fazendo pensar que o faz para ajudar à humanidade, porém a que conduzirá a sua inexorável e própria destruição. O cientista obscuro sabe e por isso atua. E em igual orientação poderíamos seguir com Gustav Meyrink em A Casa do Último Farol, onde se publica um conto inacabado e no qual Steen, um de seus personagens, será também a encarnação de um diabo que terá por missão - valendo-se da psicanálise - não fazer o bem, antes o contrário, introduzir em suas vítimas uma espécie de despertar invertido para levá-las à confusão espiritual em forma de "complexos", à vez que procurará, mediante hábeis ocultações científicas, demonstrar que os demônios só existem na imaginação dos doentes mentais.

Quanto ao econômico, o industrialismo conduziu à exploração e à devastação da Natureza, além de ter escravizado o homem ao salário e o fechado no gosto pelo consumo, uma sutil armadilha que o presente tecnológico incrementou. Assim é, na obra de Tolkien, Melkor, um Ainur - espécie de Anjo Caído - que se converteu no Supremo Senhor do Escuro por obra da distorsão de sua sede de poder; assim é Sauron, um servidor de Melkor, e Senhor dos Anéis do Poder... Melkor e Sauron são os corruptores da Natureza, abaladores do mar e da Terra. Com seus afãs de riqueza arrebatam a luz do mundo, colocando-la, na maioria das ocasiões, na custódia dos dragões, que fazem murchar tudo o que é verde e agradável, pois estas criações de Melkor foram feitas para perturbar o mundo e partir os bosques. Para Meyrink esta postura de avidez de riqueza malsã, de mesquinharia apegada, como em Tolkien, Lanza de Vasto e em tantos outros "matará" a alma fazendo de nossos contemporâneos seres que não buscam a vida eterna. Meyrink dirá: eles tratam de converter o ouro da imortalidade em gordurosas cédulas de banco.

É a usurpação do Poder o que se considerará diabólico em toda a literatura fantástica. E é neste ponto fundamental sobre o qual Tolkien erguerá toda sua obra. O Hobbit, o Senhor dos Anéis, O Silmarillion, e em cujos relatos os heróis não terão apenas outra missão além da de resistir ao mal, à tentação do Anel e sair em busca para arrebatá-lo das potências infernais e restituí-lo a sua primitiva origem, afetado por sua servidão infiel, de contaminação maléfica. Este é o sentido, excluindo todo anarquismo, que tem em Tolkien a guerra contra o poder, tal como, por exemplo, expressa na balada de Leithian, no Silmarillion.

Este tema da presença dos demônios poderia se ampliar muito, já que cada autor do fantástico o trata com diversas variações. Assim: Bouquet lembrando-nos - em contrapartida com o Espírito - que os espíritos demoníacos são visíveis; a Gogol, que procurará a existência do diabólico na Terra; enquanto que Machen, um celtizante ao extremo, também se aprofundará na essência do terror e influenciará poderosamente Lovecrafr e este, por sua vez, a M.R. James, a August Derleth e a todos os cultivadores dos Mitos de Cthulhu; por sua parte C.S. Lewis, recorrerá a Merlin - o mago inseparável do Rei Artur - para combater e vencer a Satã que reina na Terra; teríamos também que nomear a outros, como: Th. Owen, Nerval, Ewers, Hodgson, Allan Poe, Huysmans, S. Rohmer,... Sem que pudéssemos esquecer a temática fundamental sobre o vampirismo tratado por Claude Seignole, que situa o inferno em nossa terra ou por Alexei Tolstói, um russo que busca o bogatyr, o Graal dos eslavos, para citar dois extremos entre Sheridan Le Fanu, o criador de Carmilla, a mulher vampiro, e Bram Stoker que, com Dráculo, nos dá a conhecer o vampiro por excelência: Drakul, o qual em dialeto local significa "Diabo". Stoker nos mostra o "diabo" que pela primeira vez voa na noite, não com as asas de um anjo, mas com as de um morcego.

O Herói

A condenação do herói na história, reduzindo sua função a nada ou fazendo sua cabeça rolar, rompeu com a idéia aristocrática de equilíbrio, ordem ou harmonia educativa, tão necessária no seio do movimento da vida, violenta desde o princípio da Criação. Assim mesmo, o rechaço do herói, acabou com o espírito desperto, vigilante e defensivo, tão imprescindível para o guarnecimento de uma Comunidade e de cada um dos membros. E por último, esta paixão anti-heróica, refletida tantas vezes, fez tudo o que pôde para secar a vocação de exigência interior, qualidade imprescindível para que cada ser humano possa se completar, na medida de sua personalidade. Estas negações, longe de terem sido benfazejas, favoreceram uma enfermiça e crescente agitação, social e psicológica; permitiram a diabolização do mundo e deram carta de natureza a toda imperfeição, facilitando o crescimento do homem sem qualidades eminentes, do homem-massa do qual falou Ortega. Diante de tudo isso, a literatura fantástica volta a nos propôr uma resposta generalizada: o retorno do herói, e isso na consciência de ser a única esperança.

O herói, para o fantástico, fica claro que é um benfeitor e um servidor dos demais, na dupla vertente de existência exterior e metafísica ou interna. Porém, agora bem, quem pode ser herói e quem deve sê-lo? A resposta a estas duas perguntas, em uma, não deixa de merecer nossa atenção. Vejamos. Se lermos a trilogia de Coum, um dos heróis de Moorcock veremos que um herói pode ser um sobrevivente das raças antigas que se vê forçado a lutar por sua existência frente à extinção. Para Tolkien heróis podem ser heróis: os Ainur - espécie de anjos primordiais do Deus Supremo Ilúvatar -, os elfos - raça bela e superior de seres permanentes -, os homens mortais, os anões - criados por vontade de Aulë, um dos Ainur -, os aprazíveis hobbits e os magos, como Gandalf. E até as crianças podem ser heróis, como na História Sem Fim de Michael Ende. Assim pois, todos sem distinção.

Todos podem ser e todos devem sê-lo também. O heróico deve acompanhar a entranha da alma de cada ser. Não obstante, aqui cabe alguma apreciação, porque, dentre todas as raças que povoa o Reino da Fantasia, somente o homem necessita da assunção heróica para se completar enquanto pessoa. Todos os demais devem ser heróis, em função das circunstâncias, vendo se estas o pedem e dando o exemplo com suas respostas, não fugindo ou desertando jamais. Mas, se tais situações não se apresentam, nem por isso deixarão - estes seres - de ser aquilo que já são.

Somente o homem, sem o heróico, fica inacabado. Diríamos assim, que o ser humano precisa ser herói, não em função de tal ou qual circunstância, senão para completar-se enquanto homem, enquanto pessoa. A tarefa de herói é, por conseguinte, para ele, imprescindível. Sem ela é como se nossa própria escultura ficasse por concluir, imperfeita. Em efeito, um elfo é sempre um elfo, no momento mesmo de sua criação; um hobbit é sempre um hobbit, em idêntica ocasião; porém um homem nasce inacabado, tendo que terminar-se em vida pela ação heróica, quer seja mediante a espada ou sem ela. E eis aqui a razão pela qual o homem tem o maior risco, de sua existência perigosa, entre afirmar-se com humildade na tarefa de sua cooperação com a realidade divina, no altar de sua criação, ou cair vítima do orgulho de crer-se capacitado para criar a si mesmo, emancipando-se dos deuses, dos Ainur, ou de Deus.

Tendo chegado a esta conclusão, nos encontramos com o fato de que a luta heróica adquire todos os traços de uma prova pela qual cada um deve mostrar sua solicitude perante a morte, expressada aqui, não em termos tétricos, senão de desprendimento absoluto. E é precisamente esta predisposição diante da morte, com ânimo resoluto e dominado, o que derrota à potência maléfica. Refletindo sobre a "mitologia" do Silmarillión e sobre a queda luciferina, tiramos algumas idéias valiosas. Se a morte é a expressão da verdadeira submissão dos que são fiéis a seu Deus, posto que somente por ela podem divinizar-se e entrar no silêncio da Unidade divina, Melkor, como Lúcifer, rechaçam a morte, dado que, um e outro, amam o "eu" de sua individualidade ad aeternum, caindo na armadilha de seu próprio reflexo momentâneo, que é a vida à distância do ser supremo. A finalidade de ambos, com relação ao resto dos seres inteligentes que povoam também o Cosmos, será bem clara: tentar que estes rechacem a idéia da morte e exaltem a vida em sua aparência, em sua exterioridade, agora já desligada do íntimo. E para isso, nada melhor que introduzir o relaxamento no mundo, e, ao mesmo tempo - como escreve Tolkien - arrojar a sombra sobre a morte, confundindo-a com as trevas, a fim de torná-la desprezível e infundir pavor. O rechaço à morte e o medo passavam, assim, a configurar o patrimônio demoníaco de Melkor, Sauron e todos os seus seguidores, pelos quais cresciam em apego, em cobiça, em afã de poder e de existência separada de Ilúvatar e dos Ainur fiéis. E este era o patrimônio - não outro - que Melkor e Sauron pretendiam repartir entre elfos, magos, homens e hobbits.

Para os elfos, seres amantes do mar, dos bosques, das estrelas, Filhos de Ilúvatar, criados para permanecerem sobre a terra até o fim dos tempos, que não conheciam o medo e que não morriam, a não ser que fossem assassinados ou fossem consumidos pelo pesar, a prova não consistia senão em serem diligentes diante de qualquer perigo, generosos e valentes diante do combate, onde tinham que demonstrar sempre estarem dispostos a entregar, em sacrifício heróico, guerreiro, uma vida valiosa, pois do contrário, ao não poder abater a Melkor ou a Sauron e ficarem vivos no combate, passariam a engrossar a companhia dos Orcs: antigos elfos escravizados pelo poder das trevas, sem dúvida por terem rechaçado a morte.

Porém, provavelmente, dentre outras, as maiores façanhas heróicas do Reino Fantástico, nesse confronto para livrar-se do mal, nos são oferecidas pelas provas às quais são chamadas as crianças-heróis de Ende (Atreyu e o pequeno leitor Bastián Baltasar Bux); os diminutos seres Jen e Kira, únicos sobreviventes da raça Gelfing, segundo o filme O Cristal Escuro, imaginado e dirigido por Jim Henson; e por último, os famosos hobbits: Frodo, Bilbo, Mestre Gil de Ham...saídos da pena de Tolkien. Todos eles são os seres mais indefesos, e ao mesmo tempo os maiores amantes do cuidado, os menos familiarizados com a heroicidade real, com o som e brilho metálicos; os entregues a uma maior despreocupação e comodidade, e os mais vulneráveis ao medo. E sendo isto assim, a literatura fantástica os chamará à ação heróica mais difícil, porque seus triunfos ferirão ainda mais o orgulho néscio do mal gigantesco, tendo, por isso, seus trabalhos de restauração uma maior eficácia. Sobre suas costas se coloca a responabilidade mais grave: sobre as crianças de Ende, nada menos que a de salvar o Reino de Fantasia; sobre os gelfing Jen e Kira todo um misterioso Apocalipse com seu final e seu princípio integrado e restaurador; e sobre os hobbits Frodo e Bilbo a destruição dos diabólicos Anéis do Poder. A chave do motivo pelo qual isso deve ocorrer nos é dado por Mithrandir (ou Gandalf), o mago bom enviado ao mundo pelos Anjos - Ainur, para combater o Poder da Sombra e para ajudar os habitantes da Terra em que Sauron escolheu sua morada. Foi a humildade que abateu a soberba; foram o esforço, a entrega, o sofrimento, de quem não era herói por natureza, os que abateram o orgulho; foram a simplicidade, o engenho, e a aventura a contragosto que fizeram cair estrepitosamente a vaidade e recobrar inclusive sem sabê-lo, o velho estilo da Cavalaria rural, frente à afetação da Corte (Mestre Gil de Ham). Nos tempos finais, as profecias de Mithrandir não deixavam lugar a dúvidas: a ajuda chegará das mãos dos fracos quando os Sábios tiverem fracassado (Silmarillión).

A Prova no Homem

E, finalmente, falemos da prova no homem. Dentro da ordem que reconhece a fantasia, o homem é o único personagem que para ser aceito no Céu, ou para ser reconhecido digno pelos demais e saber-se ele próprio pessoa, necessita ineludivelmente ter passado pela prova. Nela, o homem conquista sua purificação. É na prova que a pessoa põe para reluzir o que é. E isso é tão fundamental, tão imprescindível a sua vida, que - sem ela -, nem os homens, nem os Anjos, nem Deus podem, em verdade, conhecê-lo e valorizá-lo. O mundo atual, por sua vez, não quer saber nada da prova, por isso tem que se conformar em conhecer o homem e se conhecer, não enquanto é, mas sim quanto a sua aparência.

Por existir, a prova já era uma realidade no Paraíso. Mas no Reino da Fantasia - este perigoso país - cobra o sentido de um novo jogo, não já tranquilo, senão arriscado e perigoso. Perfila-se, desse modo, como uma espécie de Purgatório em vida que, não somente completa a perfeição do homem polindo-o de suas rugosidades, senão que, ademais, introduz na mente humana o elemento de luta aristocrática, de cooperação humana com a divindade para a própria salvação. É curioso que a presença do Purgatório se tenha mudado para longe, para o Céu post-mortem, coincidindo com o triunfo da urbe frente ao campo, na Idade Média final, e com o primeiro albor dos valores e estilo anti-heróicos da burguesia e de outros seres desenraizados. Pois ao se retirar o Purgatório da Terra, se abolia a exigência da prova e se preparava uma ilusória civilização sem moléstias, hedonista, divertida e de falsos humildes, pois o burguês e o plebeu, são justamente o contrário, magistrais exemplos de soberba: por acaso eles, com suas revoluções, não cercearam todo princípio superior, toda Autoridade do alto? Não aboliram a presença de Deus para não ter a quem se dobrar e submeter? Não é a revolução uma rebeldia contra a Obediência, aos Reis, aos Senhores, aos Santos...? Não romperam estes tipos humanos incompletos o Poder que vem de cima, usurpando-o com o poder que brota de baixo? Com isso, o mundo fechava definitivamente o caminho de recuperação do Paraíso, conformando-se com um simulacro de complacência diabólica. Porque ninguém mais satisfeito com a queda da prova do que o Senhor do Escuro.

Para os heróis, a vida era, por conseguinte, um Purgatório na Terra: um atravessar a água da limpeza, fecundidade e transparência simbólicas e rituais, e um atravessar o fogo devorador e purificador ao mesmo tempo. A própria Igreja cristão havia participado dessa Tradição fazendo descer "aos infernos" o próprio Cristo, não porque este o necessitasse, para provar a todos que era Deus, e para reensinar que a viagem aos infernos, de ida e volta, completaria o homem e o transformaria, de simples mortal condicionado a ser imortal e divinizado. "Eu digo: Deuses sois", recordava o Crucificado a seus seguidores. Pois bem, esta Tradição cristã, mantida por São Gregório Magno, chegaria a sua máxima expressão no chamado Purgatório de São Patrício, que tão enorme penetração teve em todos os escritos e tratadistas mais relevantes da era medieval (Santiago de Vitry, Estêvão de Bourbon, Humberto de Romans, Jacobo de Varazze, Gossouin de Metz), passando também, sem dúvida, por Dante e chegando até Calderón de la Barca que lhe dedicou uma peça teatral.

É importante esta referência ao Purgatório de São Patrício porque nele, não de uma forma literária, senão histórica, fica patente o selo céltico-cristão de que antes falamos, e a possibilidade real de uma iniciação heróica e cavalheiresca que, como veremos, chegará a marcar muitos autores dessa literatura do fantástico, inclusive escritores desse gênero que pouco terão que ver com o espírito da Cavalaria como Bloch ou Lovecraft.

Estando Patrício evangelizando à céltica Irlanda e vendo os escassos progressos que realizava pediu ajuda a Jesus Cristo. Este lhe apareceu e lhe mostrou o lugar de um fosso ou um poço redondo e escuro, dentro de uma caverna, e lhe disse: quem movido por um autêntico espírito de penitência e sacrifício, pasar um dia e uma noite naquele buraco, resistindo aos perigosos assédios dos demônios, vencendo as visões do inferno, com suas torturas, e vendo também as alegrias do Paraíso e da Vida Eterna, sairia daquele lugar completamente transformado. Tratava-se, em efeito, de uma ordália ou juízo de Deus tão do gosto pagano-cristão, e mediante o qual se verificava uma iniciação ou prova religiosa. Esta prova conduzia à conquista e à afirmação da vitória do homem sobre o medo, pois as visões demoníacas não tinham por finalidade causar dor física ou moral, senão paralizar infundindo pavor. Um monge, à entrada do recinto, recordava que, com a ajuda de Cristo, invocando seu nome, se poderia resistir e triunfar, porém em caso contrário, o Cavaleiro poderia chegar desaparecer, como a outros visitantes havia sucedido. A Tradição nomeia o primeiro em lograr a glória nessa "descida" restaurada. Chamava-se Owein, jovem guerreiro, que na peça calderoniana toma o nome hispano-gótico de Ludovico Enio.

Contemplamos assim que esta idéia de prova consiste em uma viagem aos infernos, de ida e de volta; uma concepção que não pode identificar-se com uma fuga ou abandono do próprio. Mais exatamente, o contrário: uma viagem que tem que demonstrar se um homem é valente ou se não é. No Silmarillión este princípio de prova, de ida e de volta, é fundada por Beren, um homem para quem o amor por uma donzela élfica está condicionado ao êxito de sua empresa: recuperar o anel-simaril em poder de Melkor. O amor, sob esta ótica, quer dizer prêmio, não uma qualidade que se adquire sem mais nem menos.

Por outro lado, destaca, neste aspecto, o princípio da solidão ou do cavaleiro ou herói solitário, questão, que a literatura fantástica tomará igualmente do medievalismo céltico-cristão. Com isso, primeiramente se sustenta, que os "trabalhos" de salvação e purificação não são tarefas coletivas, senão singulares e, segundo, o homem deve atuar sabendo que se exercita em um mundo no qual teve lugar a invisibilidade do Espírito, pela rebeldia do homem e do diabo e, portanto, tem que se resignar a viver na prova "somente", confiando tudo a suas forças, porém na esperança de intuir que o Espírito não morreu, senão que o acompanha e inclusive o ajuda em silêncio. Dessa solidão trata toda a literatura fantástica, porém também as vitórias que dela se desprendem, tão extraordinárias, tão superiores, tão misteriosas, que não poderiam produzir-se sem o herói, ainda sem dar-se conta, não fora favorecido pela presença do Espírito. Não obstante, esta solidão supõe assim mesmo um perigo, já que o herói crendo-se falsamente isolado no mundo e acompanhado de sua força, beleza e engenho, pode chegar a se precipitar no envaidecimento. Não ocorre isto nem a Conan o Cimério de Howard, nem aos elfos, hobbits e heróis de Tolkien, nem mesmo ao selvagem de Burroughs - Tarzan -, o qual, em um primeiro momento atraído diante da descoberta da idéia do Deus desconhecido, termina finalmente crendo que aquele Ser Supremo existe, ainda que não saiba bem descobri-lo, porém que em todo caso permanece desconhecido, não concebido para seus, até certo ponto, inimigos, os negros. Porém sim cai nessa armadilha Corum, o Cavaleiro de Moorcock, que, ciumento em sua solitária individualidade, protesta contra a instrumentalização da qual pode ser objeto por parte dos deuses da ordem ou dos deuses do caos em suas guerras.

Esta percepção da proximidade ou distância que os heróis solitários tem em relação ao Espírito Invisível nos leva a iniciar a reflexão sobre a qualidade heróica. Em efeito, há camponeses excessivamente brutais, de um barbarismo muito primitivo, que tendem a manifestar ou ensinar que a força sobre-humana que possuem reside em seu "naturalismo" físico ou muscular, que são os casos de Conan e Tarzan. E, por sua vez, temos heróis mais delicados, de uma barbárie mais refinada, cuja força, também sobre-humana, é intangível, sutilmente espiritual. É a potência dos que não tem rostos ferozes ou curtidos, nem braços de aço, senão semblantes iluminados, como os elfos, como Gandalf. A imagem do Dragão se apresente, diante de uns e de outros, de forma bem distinta. Assim podemos ver às monstruosidades com as quais Conan se enfrenta e que são destroçadas pela descomunal espada, ou esmagadas ou afogadas por seus punhos e braços. Enquanto que, por exemplo, os Dragões que nos apresenta Tolkien diante de seus heróis hobbits podem chegar a ser derrotados ou enganados pelo vigor do engenho. É a dupla vertente heróica do "lobo" e da "raposa". Conan terá um pouco de raposa, porém sua peculiaridade de "fora-da-lei" solitário, enfrentando à civilização e saqueando as cidades, será de lobo. E como Huán, o cão-lobo enviado pelos Ainur, ambos saberão vencer derramando o sangue com seus dentes. Por sua vez, Giles, o granjeiro tranquilo do Pequeno Reino, será acima de tudo uma "raposa" que vencerá o Dragão com astúcia, chegando a domesticá-lo e colocá-lo a seu serviço. Vemos, portanto, que o Dragão requer em seu combate, dois tipos de heróis: um exterior e outro interior; um forta para matar ou esmagar à serpente e outro sutil para quebrar suas asas, porque o dragão é isso: Serpente alada. Isto quer dizer que seu aspecto feroz está em relação com sua inteligência envolvente e que somente um herói qeu em si mesmo reúna ambas as dimensões: força e astúcia espiritual, estará em condições de vencê-lo verdadeiramente. Porém a essa vitória do "lobo" e da "raposa", a fim de não ficar em uma sacralidade predominantemente horizontal, se incorpora, ademais, a verticalidade da pura mansidão do "cordeiro", dando a tal vitória uma absoluta transcendentalidade. Por isso, tradicionalmente, é São Jorge o vencedor do Dragão por antonomásia mítica e religiosa, isto é: o herói cristão que, assumindo em si à barbárie da brutalidade sem cortesia e a barbárie do antigo e primitivo paganismo do Bosque, do Mar e da Caverna, funde tudo isso ao espírito doce e delicado, à inteligência pura e à misericórdia. Confluem nele, desse modo, uma vez mais, os elementos célticos e cristãos para propormos a síntese final do Cavaleiro perfeito, ideal da Idade Média, o tempo que foi, como se disse, verdadeira alquimia e ponto de união dos contrários. E é este o ideal que salta até nós, passando pelas novelas do fantástico de maneira noturna, calada, e que nos convida, como faz Tolkien, a ver nosso mundo atual como uma "terra média" e onde, sem quase saber como, podemos voltar a encontrar ao Dragão cultural: aquele que encobriu sua feiúra e ferocidade sob suas envolventes asas. Redescobrir este mundo como prova e não como falso paraíso é um dos principais aportes da literatura fantástica contra esta civilização escura.