por Aleksandr Dugin
Ultrapassando o limite
Quando a questão é sobre definir o fenômeno da agressão, as pessoas mais comumente apelam a esferas emocionais, psicológicos e sentimentals, deixando de levar em consideração, como é comum no mundo moderno, os aspectos mais profundos e metafísicos do fenômeno. Na veia da tradição humanista apareceu por conta própria a atitude negativa em relação a agressão, que é considerada como algo sujeito à eliminação total ou (o que é mais realista) a redução. Porém, a agressão é tão intimamente ligada à natureza humana, que ela remete a si mesma constantemente - tanto no quotidiano, na psicologia da vida privada e na realidade política de guerras, conflitos, lutas. Tentemos compreender a agressão, abstraindo-nos de todas as opiniões estereotípicas usuais - pacifistas, escandalosamente apologéticas, psicanalíticas ou socialmente deterministas.
A agressão como um fenômeno poderia ser melhor definida como um "ultrapassar violento de limites". Exatamente aí sua qualidade essencial consiste, essa qualidade é reconhecida em conflitos do quotidiano, em uma ocorrência criminal, em um conflito militar em larga escala. Um criminoso violentamente transgride os limites da ética social, da moral, da integridade física ou econômica de um humano ou uma comunidade. Isto é agressão. Um exército violentamente ultrapassa a fronteira de um país hostil ou de linhas defensivas do inimigo. Isso também é agressão. Finalmente, ideólogos, rompendo os modos estereotipados de pensamento, violentamente ultrapassa os limites dos clichês mentais. E isto também é agressão.
Não apenas a existência social ou exclusivamente humana está plena de vários tipos de limites, transgredindo os quais dá origem a vários tipos de agressão. A estrutura de toda realidade é construída simplesmente em vários limites, separando cada coisa e cada modo de existência de todos os outros. Em algum sentido, o próprio limite faz de cada coisa o que ela é por si própria, sendo a corporificação da diferença, diferenciando em relação aos outros objetos. No sentido mais geral, a agressão também pode ter uma dimensão cósmica, universal, expressa através da interferência violenta de um em outro. Há exemplos abundantes de agressão nos reinos animal e vegetal, nos quais a existência de uma espécie ou um indivíduo é muitas vezes sustentada pelo uso de violência contra outros, que gera a roda contínua de transformações, assimilação e adaptações do ambiente e dos seres do Universo. Consequentemente, a agressão é algo geral, universal, e integral à base da própria realidade.
Vae Victis
O ultrapassar violento do limite possui dois aspectos: um é relativamente negativo, o outro é relativamente positivo. O sujeito da agressão, isto é o ser que realiza um ataque agressivo contra outro (contra o objeto da agressão), busca estender seus próprios limites por tal ação, busca fortalecer, aperfeiçoar, preencher sua própria natureza. Tomando a vida da vítima, um predador aplaca sua fome, sustenta sua própria existência, obtendo recursos necessários para seu organismo. A agressão militar expande territórios e multiplica a riqueza da parte vitoriosa, e mesmo uma briga de bar fortalece a auto-confiança do vencedor, sua fé em si mesmo e sua satisfação moral. Em resumo, na agressão a expansão positiva do sujeito, expandindo sua esfera de potencialidades, é realizada.
Mas o objeto, sujeito a agressão, a vítima devorada ou espancada, a nação subjugada, etc., ao contrário, como resultado do rompimento dos limites (mútuo no processo dado), apenas perde o que tinha antes, reduz sua esfera de potencialidades. O objeto se torna um botim para o sucesso alheio, um bode expiatório. Em certo sentido, o próprio fato da agressão o transforma em objeto, de fato, quando previamente, antes do ataque, ele poderia possuir a ilusão de seu próprio caráter subjetivo, dando início a agressões contra outros seres, objetos, nações. Este é o aspecto negativo do "ultrapassar violento de fronteiras".
Na civilização pré-humanista e em civilizações não-humanistas (tradicionais), que existem até hoje, ambos aspectos da agressão eram considerados em conjunto, como dois elementos mutuamente complementares, inscritos na estrutura primordial do Universo. O símbolo chinês "Yin e Yang" é um exemplo perfeito deste dualismo fatalista. O fragmento branco do círculo representa o sujeito aqui; o negro representa o objeto correspondentemente.
No simbolismo dos sexos, o primeiro é identificado com o princípio masculino (yang), o segundo é identificado com o princípio feminino (yin). Daí segue-se a "legitimação" comum da agressão, que era peculiar ao mundo tradicional, no qual não entraria na mente de ninguém opôr artificialmente o humano a forças básicas da realidade. Certamente, as civilizações mais refinadas obscureceram por todos os meios as leis da agressão a nível social, de modo que a diferença dos costumes bárbaros estava a disposição. Porém, em todos os casos o direito de "ultrapassar violentamente os limites" foi preservado, ainda que de forma sublimada, tanto nos casos de guerra como nos casos de repressão individual, cuja aplicação era função de algumas organizações tradicionais especiais - o protótipo da polícia atual. Os feitos de conquistadores, subjugadores, destruidores foram cantados em lendas e épicos, que são todas construídas sobre a fórmula "Vae Victis!" ("Ai dos vencidos!").
Legitimação da Agressão na Tradição
Qual é a justificativa metafísica da agressão em civilizações tradicionais, além da observação direta da estrutura da natureza?
A questão é que a tradição considerava o próprio fato da existÊncia de limites como a expressão da imcompletude do Universo em relação a sua Causa, concebida como algo Absoluto, Uno e para além de todos os limites. Consequentemente, a aspiração pela expansão da própria existência, pela expansão existencial, pela "transgressão de limites" (em latim é transcendere, "transcender") era considerada como um impulso profundo de movimento na direção do divino, como o eco da perda do Absoluto, implantado no mundo e nos entes do mundo.
Certamente, práticas metafísicas e ascéticas neste caso poderiam ser chamadas de a forma pura da agressão. Nestas práticas os iniciados buscavam transgredir todos os limites, levar ao máximo seu próprio "ego" a um estado absoluto, colocando sob agressão não apenas alguns objetos, mas toda a realidade como um todo. No caminho da autodeificação direta o máximo do umpulso agressivo é concentrado, pois o Divino é simplesmente o cancelamento de barreiras e limites, constituindo a essência do não-divino, imanente. Aliás, daí segue a palavra hebraica "Satã", literalmente significando "barreira", "obstáculo", isto é "limite", compreendido como algo negativo. Saindo disso, é simples dar o próximo passo e explicar o mecanismo da assim chamada "demonização de um adversário", cujos exemplos são tão abundantes nas lendas, épicos, e ensinamentos religiosos tradicionais. O que serve como um obstáculo no caminho da expansão de uma nação, país, religião, mais estreitamente a comunidade de um povo e, finalmente, um humano; o que limita a vontade deste último à totalização, à expansão da existência, tudo issi automaticamente cai sob o signo de "Satã", obtém a qualidade do mal teológico, e consequentemente, a agressão se torna legitimada no mais alto nível. Graças a tal "demonização de um adversário" ou de uma vítima, sua objetificação ocorre, retirando eles sua qualidade subjetiva, abstraindo da solidariedade específica, social ou religiosa.
Irã contra Turânia, Aqueus contra Troianos, Israelitas contra Goyim, Muçulmanos contra Giaours, Deuses contra Titãs, e às vezes até mulheres (amazonas) contra homens - os vários paradigmas do dualismo, nascidos do impulso primordial para a agressão, são abundantes nas mais antigas crônicas, códigos religiosos, lendas poéticas e daí em diante. Pela justificativa de seu próprio campo, o povo da Tradição justificou, na verdade, algo que é mais - o próprio princípio da agressão, a própria vontade primordial do "ultrapassar violento de limites", a aspiração pela totalização do seu próprio caráter subjetivo (independentemente de como isso possa ser expressado - seja através de afiliação nacional ou religiosa, ou tribal).
Anti-Agressão
No mundo moderno ocorreu o rompimento com tradições de séculos, que modificaram completamente as estruturas mentais e sociais da humanidade moderna em comparação com longos milênios do passado. "Iluminismo", humanismo, racionalismo e outras tendências "progressistas" expressam o sistema de estimações e valores, contradizendo completamente as orientações básicas da sociedade tradicional. Isso certamente (e talvez do modo mais expressivo) tocou o princípio da agressão.
A Idade europeia do Iluminismo implantou nas pessoas uma visão unilateral da agressão, uma visão exclusivamente da perspectiva da vítima.
O lado leve desse fenômeno, baseado na vontade do Absoluto, de alcançar o caráter total, de uma máxma extensão de um sujeito até a esfera do Divino, deixou de ser compreensível, concreto e ontologicamente enraizado, e, consequentemente, foi identificado com a "sobrevivência", com atavismo, com barbarismo inerte, com o defeito temporal e fundamentalmente retificável da civilização. Tendo perdido sua legitimidade metafísica, a agressão veio a ser percebida como transgressão injusta da integridade do que foi proclamado valor supremo em si mesmo - um indivíduo humano, uma sociedade, etc. Daí segue toda tendência "jusnaturalista", que foi desenvolvida desde os tempos de Rousseau. Posto que a expansão existencial deixou de ser metafisicamente justificada, a vítima apresentou suas próprias reivindicações de "segurança total", isto é, do imperativo artificial e elevado ao mais alto imperativo ético de defesa contra agressão. A agressão foi efetivamente banida. Com isso, em particular, o estatuto jurídico "democrático" geral, que proíbe a propaganda de guerra, está conectado.
Passou a ser possível modificar as fundações culturais e sociais da sociedade, ao passo que estava naturalmente além dos poderes de qualquer um modificar as tendências básicas tanto do cosmo como de seres humanos. Portanto a agressão jamais desapareceu ou da história, ou do quotidiano, ou da natureza selvagem. Ela apenas começou a ser percebida como um mal, como a reivindicação de um ser limitado em utilizar outro, que emerge espontaneamente de tempos em tempos.
Posto que o processo de totalização do sujeito foi excluído, a agressão passou a ser considerada como mera aquisição quantitativa, acúmulo de sujeitos externos, como egoísmo trivial e vulgar, como a fatal "luta pela vida". Portanto toda a agressão veio a ser gradualmente reduzida meramente à esfera econômica e todas as suas manifestações em outras esferas foram estritamente culpadas pela "opinião pública". "Segurança total" e "direitos humanos" foram daí em diante garantidos pela transferência da agressão para a esfera dos padrões materiais abstratos - dinheiro, capital.
Gênese Metafísica do Terrorismo
Conforme o modo ocidental de pensamento se tornou mais e mais popular, conforme o sistema capitalista, liberal alcançou seu caráter global, o descrédito tanto da agressão como de suas manifestações estava se desenrolando. Isso alcançou esferas políticas, culturais, e ideológicas. A civilização, completamente baseada na defesa exclusiva dos interesses da vítima, aspirou a gradualmente se afastar dessas instituições, estruturas e modelos de comportamento, que como partes integrais foram preservadas na comunidade humana desde seu estado tradicional "pré-humanista". Com essa tendência o pacifismo, o sufrágio feminino, e as tendências para o enfraquecimento do aparato estatal, a ideologia dos "direitos humanos" e daí em diante se misturam - tudo o que compõe a fachada ideológica do liberalismo atual, que se tornou um modelo social e político, dominando o planeta.
Na última fase este processo fez emergir o fato, de que praticamente todas as formas de agressão - a vida quotidiana, política, estética e daí em diante - foram "banidas" e limites passaram a ser considerados como algo inviolável e sagrado. Junto com isso outro fenômeno emergiu - a tendência para a "superação inviolável dos limites", à mundialização do mundo, à mistura "suave" de todos os sujeitos, pessoas e entes em um caldeirão comum, em Um Mundo. Após afirmar a inviolabilidade dos limites, o cancelamento dos limites foi afirmado, mas dessa vez a questão não era uma de expansão e totalização do sujeito, do agressor, mas de mobilizar vítimas meramente objetivo cosmos comum. A forma perfeita de tal ideologia é o modelo, conhecido como "ideologia suave", no qual a questão é a de misturar uns com os outros os ingredientes mais variados, no caso de eles estarem desprovidos de um princípio agressivo claramente expresso, do caráter subjetivo. No aspecto histórico, ao mesmo tempo, quando os primeiros sinais da ideologia suave apareceram (isto é nos fins da década de 60/início da década de 70 de nosso século), o fenômeno adjacente emergiu: o terrorismo moderno. Certamente, o terrorismo existia antes também, mas até certo momento ele permaneceu um fenômeno razoavelmente lumpen, no qual as manifestações mais intensivas de agressão política estavam concentradas, confrontando com o muro inabalável do Sistema. O terrorismo moderno, porém, é bastante diferente da tendência política radical dos revolucionários do século XIX/início do XX, pois ele tende a se converter de ser um meio político e pragmático para um fim a ser um fenômeno independente, autosuficiente e representante um tipo especial de ideologia. Os representantes da civilização, baseados na ideologia suave, gradualmente expandiram a noção "terrorismo", tendo incluído todas aquelas manifestações que contrastavam com as fundações básicas de sua própria doutrina. Em outras palavras, o terrorismo tornou-se um sinônimo para agressão no sentido metafísico mais geral. Todos os componentes da realidade presente, que não se confinaram a normas, impostas por uma "comunidade global de vítimas", foram gradualmente levadas ao pólo terrorista. Partidos políticos, queram alternativas ao sistema liberal, tendências religiosas, até nações inteiras passaram ao setor do "terrorismo", sendo lá levadas pela expansão do modelo ocidental.
O terrorismo tornou-se gradualmente o último asilo do sujeito, buscando a totalização no mundo, onde esse desejo havia sido banido. Então não é surpreendente, que a doutrina de agressão independente gradualmente tornou-se a doutrina do puro terror para além dos interesses mais estreitas de um partido, nação, ou religião.
A Primeira Linha
O fenômeno do puro teror é a última palavra na história da agressão e na luta liberal contra ele. O tempo do "terrorismo em nome dos interesses estreitos de um partido" acabou. Mais e mais pessoas percebem o caráter pragmático de uma filiação partidária concreta no caso de suas escolhas existenciais pessoais. Ademais, a indefensabilidade das ideologias clássicas em face de uma ideologia suave mundialista absorvedora e dissolvedora torna-se mais e mais aparente.
O levante radical de maio de 1968 levou ao triste e insípido reformismo reduzido, à paródia social-democrata. A intifada palestina resultou na colusão de Arafat com Tel-Aviv. Como resultado da quebra do sistema soviético os restos decadentes da guerrilha estão abandonados na América Latina. O terrorismo de direita foi derrotado ainda antes. A derrota doutrinária e ideológica de todos os "inimigos da sociedade aberta" era iminente.
Mas a pesar de todos os substitutos, propostos pelos adeptos da ideologia suave (agressividade ecêntrica e puramente visual na moda juvenil; incontáveis sucessos de TV com sangue e corpos; remoção da proibição de produções sadomasoquistas, etc.), um tipo especial de pessoas foi preservado, dos quais a agressão é inseparável, que experimentam o desejo incessante pungente pela "totalização do sujeito", excedendo as fronteiras da esfera do transcendente. São estes que começam a esboçar os contornos de uma nova ideologia, uma ideologia universal para além de clichês obsoletos e ultrapassados.
Em 1994 na Itália o livro de Enrico Galmozzo foi publicado com o nome "Sujeito sem limites" - "Il soggetto senza limite". Seu autor é um dos fundadores da organização terrorista de extrema-esquerda "Primeira Linha", Prima Linea, que competia com as famosas "Brigadas Vermelhas". É extremamente significativo, que o livro do anarco-comunista de extrema-esquerda Galmozzi é dedicado a d'Annunzio, o fundador do partido fascista na Itália, o aderente da aristocracia e, finalmente, o homem, que via de regra aderia a àla da extrema-direita. Enrico Galmozzi brilhantemente analisa o fenômeno de d'Annunzio do ponto de vista existencial e traça paralelos muito interessantes entre ele e figuras do anarquismo e até mesmo entre ele e Lênin. O que é mais importante, a questão aqui não é interpretar d'Annunzio do ponto de vista esquerdista, mas na busca de um critério universal, que poderia unir pessoas de um mesmo tipo metafísico para além de diferenças ideológicas. A fórmula, que foi encontrada por Galmozzi para o nome de seu livro, parece tão afortunada que poderia servir como um slogam comum, universal para todos os oponentes do "campo de concentração suave" do mundialismo moderno.
"Sujeito sem limites" é a realização mais pura possível do sentido metafísico de agressão, é um slogan surpreendentemente preciso, expressando a natureza interior do Puro Terror. De agora em diante tudo dependerá apenas da habilidade de "pessoas solitárias" abandonarem as ilusões ideológicas prévias, tendo reconhecido a necessidade metafísica e inevitabilidade de uma nova sistematização de uma esfera social - não segundo a escala "o direitista contra o esquerdista", mas segundo a escala "amigos da agressão" contra "inimigos da agressão".
E quem sabe, se a integração mundialista das pessoas, que são objetos, pessoas, que são vítimas, em uma comunidade planetária liberal, em um Único Objeto Absoluto provoque a emergência de um novo e último caráter da história mundial - o Sujeito Absoluto, Sujeito sem limites, que cometerá o ato conclusivo do drama escatológico.