30/12/2010

O Caminho para o Sagrado

Nos séculos XV e XVI, o Renascimento foi genuinamente um re-nascimento, uma ressurreição. "Ele envolveu", como Ernest Renan disse, "ver a Antigüidade face-a-face". Porém, esse renascimento não foi uma jornada para trás nem uma simples ressurgência do passado, mas ao contrário um ponto de partida para uma nova aventura espiritual, uma nova aventura da alma faustiana, a partir de então triunfante porque finalmente despertou para si mesma. Hoje o "neo-paganismo", do mesmo modo, não é uma regressão. É, ao contrário, a escolha deliberada de um futuro mais autêntico, mais harmonioso, mais poderoso - uma escolha que projeta para o futuro, para novas criações, para o Eterno de onde viemos.

Se alguém reconhece que algo é grande, diz Heidegger, "então no início dessa grandeza reside algo ainda maior." O paganismo hoje claramente requer, em primeiro lugar, uma certa familiaridade com as antigas religiões indo-européias, sua história, sua teologia, sua cosmogonia, seu sistema simbólico, seus mitos e os mitemas dos quais eles são compostos - familiaridade de conhecimento, mas também familiaridade espiritual; familiaridade epistemológica, mas também familiaridade intuitiva. O paganismo não é apenas uma questão de acúmulo de conhecimento sobre as crenças das diversas regiões da Europa, bem como não podemos ignorar as características que os distinguem, às vezes profundamente. O paganismo também requer, acima de tudo, identificar a projeção dessas crenças, a transposição de um certo número de valores que, como herdeiros de uma cultura, nos pertencem e nos concernem diretamente. (Isso, como conseqüência, leva à reinterpretação da história dos dois últimos milênios como a história de um combate espiritual fundamental.)


Essa recuperação das tradições pagãs é uma tarefa considerável. Não apenas as religiões da velha Europa não tem nada a ceder ao monoteísmo em termos de riqueza ou de complexidade espiritual e teológica, mas nós podemos até mesmo dizer que nesse terreno elas geralmente prevalecem. Porém, quer as religiões pagãs são de fato mais ricas e mais complexas do qeu o monoteísmo não é a questão mais importante. O que é importante é que elas nos dizem respeito, e de minha parte eu tiro mais lições do contraste simbólico de Janus e Vesta, mas entendimento ético da Orestéia ou da história do desmembramento de Ymir, do que das aventuras de José e seus irmãos ou da história do quase-assassinato de Isaque.

Além dos próprios mitos, é aconselhável buscar por alguma concepção de divindade e do sagrado, algum sistema de interpretação do mundo, alguma filosofia. Mesmo para declarar a descrença na existência de Deus, como Bernard-Henri Lévy faz, pressupõe-se um monoteísmo implícito. Nossa época ainda permanece profundamento judaico-cristã em como ela concebe a história e nos valores essenciais que assume, ainda que as igrejas e sinagogas estejam vazias. Por sua vez, um pagão não precisa crer literalmente em Júpiter ou Wotan, ainda que isso não seja mais ridículo do que uma crença literal em Jeová. O paganismo contemporâneo não consiste em erigir altares à Apolo ou em reviver a adoração de Odin. Ele implice, ao invés, em olhar por trás da religião e, seguindo um procedimento tradicional, buscar o "equipamento mental" do qual a religião é o produto, o universo interior que ela reflete, a forma de apreender o mundo que ela denota. Em resumo, implica em considerar os Deuses como "centros de valores" (H. Richard Niebuhr) e as crenças das quais eles são objeto como sistemas de valores. Os Deuses e as crenças passam, mas os valores permanecem.

Isso é para dizer que o paganismo, longe de se caracterizar por uma negação da espiritualidade ou uma rejeição do sagrado, consiste ao contrário na escolha (e na reapropriação) de outra espiritualidade, de outra forma do sagrado. Longe de se confundir com ateísmo ou agnosticismo, ele interpõe, entre o homem e o universo, uma relação fundamentalmente religiosa, a qual em sua qualidade espiritual nos parece muito mais intensa, mais séria e mais forte do que o monoteísmo judaico-cristão poderia reclamar. Longe de dessacralizar o mundo, ele o sacraliza no sentido literal do termo, já que o considera sagrado, e precisamente aí é que se encontra o pagão. Portanto, como Jean Markale escreve, "o paganismo não é a ausência de Deus, a ausência do sagrado, a ausência do ritual. Muito ao contrário, ele é a solene afirmação da transcendência que começa com o reconhecimento de que o sagrado não mais reside no Cristianismo. A Europa não é mais pagã do que quando ela busca por suas raízes, que não são judaico-cristãs."

A espiritualidade , o sentido do sagrado, fé, crença na existência de Deus, religião como ideologia, religião como sistema e como instituição - todas são noções muito diferentes e não se tocam necessariamente, e não são mais unívocas. Há religiões que não possuem qualquer Deus (Taoísmo, por exemplo); a crença em Deus não implica necessariamente a crença em um Deus pessoal. Por outro lado, imaginar que todas as preocupações religiosas poderiam ser permanentemente removidas da humanidade é, aos nossos olhos, pura fantasia. A fé não é nem repressão nem ilusão, e o melhor que a razão humano pode fazer é reconhecer que a razão sozinha não é suficiente para exaurir todas as aspirações interiores do homem. Como Schopenhauer observa: "O Homem é o único ser que é maravilhado pela própria existência; um animal bruto vive em sua tranqüilidade e não é maravilhado por nada...Esse maravilhamento, que ocorre especialmente em face da morte e em vistas da destruição e desaparecimento de todos os outros entes, é a fonte de nossas necessidades metafísicas; é por causa disso que o homem é um animal metafísico." A necessidade do sagrado é uma necessidade fundamental humana, do mesmo modo que comida ou cópula. (Se alguns escolhem abrir mão de qualquer dessas, bom para elas.) Mircea Eliade nota que "a experiência do sagrado é uma estrutura da consciência", da qual não se pode abrir mão. O Homem precisa de alguma crença ou de alguma religião - distinguimos aqui religião de ética - como ritual, como ações que o confortam por sua regularidade invariável, formando parte dos padrões habituais pelos quais ele é construído. Nesse sentido, o aparecimento recente da descrença genuína esta entre aqueles fenômenos de declínio que estão desestruturando o homem no que o torna distintivamente humano. (Será o homem que perdeu a capacidade ou o desejo de crer ainda um homem? É possível postular esse questionamento.)

"É possível," Régis Debray escreve, "ter uma sociedade sem Deus; não é possível ter uma sociedade sem religião." Ele acrescenta: "Os Estados a caminho da descrença estão também a caminho da abdicação." As considerações de Georges Bataille também são pertinentes: "A Religião, cuja essência é uma busca por uma intimidade perdida, é essencialmente um esforço da consciência clara para se tornar inteiramente auto-consciente." Isso é suficiente para condenar o liberalismo ocidental. Nós certamente estaríamos dando ao judaico-cristianismo crédito demais se rejeitássemos  todos os conceitos sobre os quais ele clama monopólio simplesmente porque os clamou. Nós não precisamos rejeitar a idéia de Deus ou o conceito de sagrado simplesmente da forma doentia pela qual o Cristianismo a expressou, mais do que precisamos romper com os princípios aristocráticos simplesmente porque eles foram caricaturizados pela burguesia.

Nós deviamos notar também que na antigüidade pré-cristã a palavra "ateísmo" é praticamente insignificante. Julgamentos antigos por "descrença" ou "impiedade" são geralmente relativos, na verdade, a outras ofensas. Quando o historiador pagão Ammianus Marcellinus afirma que "há algumas pessoas para as quais o céu está vazio de Deuses", ele especifica que elas crêem, ainda assim, em magia e nas estrelas. Em Roma eram os cristãos que eram acusados de "ateísmo", já que eles não mostravam respeito pelas imagens dos Deuses ou pelos locais de adoração. Na Grécia, o próprio pensamento racional apenas reorientou a teogonia e a cosmologia mítica. É por isso que Claude Tresmontant, após ter gratuitamente associado panteísmo a "ateísmo", foi compelido a escrever que o primeiro é "eminentemente religioso", que em verdade "é religioso demais, já que indevidamente diviniza o universo." Na Europa antiga, o sagrado não era concebido em oposição ao progano, mas sim abarcava o profano e o dava significado. Não havia necessidade de uma Igreja para mediar entre o homem e Deus; toda a cidade efetivava essa mediação, e as instituições religiosas constituíam apenas um aspecto disso. O antônimo conceitual do latino religio seria o verbo negligere. Ser religioso é ser responsável, não negligenciar. Ser responsável é ser livre - possuir os meios concretos de exercitar uma liberdade prática. Ser livre também é, ao mesmo tempo, estar conectado aos outros por uma espiritualidade comum.

Quando Lévy afirmou que "o monoteísmo não é uma forma de sacralidade, uma forma de espiritualidade, mas ao contrário, é o ódio do sagrado como tal," seu comentário é apenas aparentemente paradoxal. O sagrado envolve um respeito incondicional por algo; porém o monoteísmo, em um sentido literal, bane esse respeito, colocando-o fora da Lei. Para Heidegger, o sagrado, das Heilige, é bastante distinto da metafísica tradicional e da própria idéia de Deus. Nós dizemos, para usar uma antinomia favorecida por Emmanuel Lévinas, que o sagrado se veste como um mistério nesse mundo, que ele é baseado em uma intimidade entre o homem e o mundo, em contratos à santidade, que confia na transcendência radical do Outro. O paganismo sacraliza e portanto exalta esse mundo, enquant o judaico-cristianismo santifica, e portanto reduz e diminui esse mundo.
 (Alain de Benoist, Trecho de "Comment Peut-on Etre Païen?")

29/12/2010

O Sentido da História

por Giorgio Locchi

Muitos se interrogam hoje sobre o “sentido da História”, o mesmo é dizer sobre o fim e o significado dos fenómenos históricos. Objecto deste artigo é o exame das respostas que a nossa época dá a esta dupla interrogativa, tentando reconduzir, apesar da sua aparente diversidade, a dois modelos fundamentais, rigorosamente antagonistas e contraditórios.

Mas é antes de tudo necessário explicar o significado que damos ao termo “História”. Esta precisão de vocabulário tem a sua importância. Falamos por vezes de “História natural”, de “História do cosmos”, de “História da vida”. Tratam-se, certamente, de imagens analógicas. Mas qualquer analogia, no momento em que sublinha poeticamente uma semelhança, implica também, logicamente, uma diversidade fundamental. O universo macrofísico, na realidade, não tem História: como nós o percebemos, como podemos representá-lo; não faz mais que mudar de configuração através do tempo. Nem sequer a vida tem História: o seu devir consiste numa evolução; evolui. Compreende-se então que a História é o modo de devir do homem (e só do homem) enquanto tal; só o homem “se torna” historicamente. Consequentemente, colocar-se a questão de saber se a História tem um sentido, o mesmo é dizer um significado e um fim, equivale, no fundo, a perguntar se o homem que está na História e que (voluntariamente ou não) faz a História, tem ele próprio um sentido, se a sua participação na História é ou não uma atitude racional.

Três períodos sucessivos

De todos os lados a História está hoje sob acusação. Trata-se, como veremos, de um fenómeno antigo. Mas hoje a acusação faz-se mais veementemente, mais explícita que nunca. É uma condenação total e sem apelo que nos pedem que pronunciemos. A História, dizem-nos, é a consequência da alienação da humanidade. Invoca-se, propõe-se, projecta-se o fim da História.

Predica-se o retorno a uma espécie de estado de natureza enriquecido, a paragem do crescimento, o fim das tensões, o retorno ao equilíbrio tranquilo e sereno, à felicidade modesta, mas assegurada, que seria aquela de todas as espécies viventes. Vem imediatamente à memória o nome de alguns destes teóricos, e entre esses os de Herbert Marcuse e de Claude Lèvi-Strauss, cujas doutrinas são bem conhecidas.

A ideia de um fim da História pode parecer uma das mais modernas. Na realidade não o é. Basta, com efeito, examinar as coisas mais atentamente para se dar conta de que esta ideia não é mais que o resultado lógico de uma corrente de pensamento velha, de ao menos dois mil anos, e que, desde há dois mil anos domina e conforma aquilo que hoje chamamos “civilização ocidental”. Esta corrente de pensamento é aquela do pensamento igualitário. Exprime uma vontade igualitária, que foi instintiva e quase cega no seu início, mas que, na nossa época, se tornou perfeitamente consciente das suas aspirações e do seu objectivo final. Ora, este objectivo final do projecto igualitário é precisamente o fim da História, a saída da História.

O pensamento igualitário atravessou, no curso dos séculos, três períodos sucessivos. No primeiro, que corresponde ao nascimento e desenvolvimento do cristianismo, constituiu-se sob a forma de mito. Este termo não subentende nada de negativo. Chamamos mito a todo o discurso que, desenvolvendo-se a partir de si, cria ao mesmo tempo a sua linguagem, dando assim às palavras um sentido novo, e faz apelo, recorrendo aos símbolos, à imaginação daqueles a quem é dirigido. Os elementos estruturais de um mito chamam-se mitemas. Constituem uma unidade dos contrários, mas estes contrários, não estando ainda separados, permanecem escondidos, por assim dizer invisíveis. No processo de desenvolvimento histórico a unidade destes mitemas explode, dando então nascimento a ideologias concorrentes.

Foi assim com o cristianismo, cujos mitemas acabaram por gerar as igrejas, depois as teologias e por fim as ideologias concorrentes (como aquelas da Revolução Americana e da Revolução Francesa).

O florescimento e a difusão destas ideologias corresponde ao segundo período do igualitarismo. Por relação ao mito as ideologias proclamam já princípios de acção, mas não retiram ainda as consequências, o que faz com que a sua prática seja hipócrita, céptica e ingenuamente optimista.

Chega-se então ao terceiro período, no qual as ideias contraditórias geradas dos mitemas originais resolvem-se numa unidade, que é aquela do conceito sintético. O pensamento igualitário, animado já por uma vontade tornada plenamente consciente, exprime-se sob uma forma que decreta “científica”. Pretende ser uma ciência. No desenvolvimento que nos interessa este estádio corresponde ao surgimento do marxismo e dos seus derivados (cf. em particular a doutrina dos direitos do homem).

O mito, as ideologias, a pretensa ciência igualitária, exprimem então, por assim dizer, os níveis sucessivos de consciência de uma mesma vontade; fruto de uma mesma mentalidade, apresentam sempre a mesma estrutura fundamental. O mesmo sucede, naturalmente, para as concepções da História que daí derivam, e que não diferem entre si mais que na forma e linguagem usada no discurso. Qualquer que seja a sua forma histórica, a visão igualitária da História é uma visão escatológica, que atribui à História um valor negativo e não lhe reconhece um outro sentido que o de tender, com o seu próprio movimento, à sua negação e ao seu fim.

Restituição de um dado momento

Se se examina a antiguidade pagã, nota-se como essa havia oscilado entre duas visões da História, de que uma não era mais que a antítese relativa à outra: ambas concebiam o devir histórico como uma sucessão de instantes na qual cada instante presente delimita sempre, de um lado o passado, do outro o futuro.

A primeira destas versões propõe uma imagem cíclica do devir histórico. Implica a repetição eterna de instantes, de factos ou de períodos dados. É isso que exprime a fórmula nihil sub sole novi. A segunda, que acabará, de resto, por redundar na primeira, propõe a imagem de uma linha recta que tem um início mas não um fim, pelo menos não um fim imaginável e previsível.

O cristianismo realizou, de certa forma, uma síntese destas duas divisões antigas da História, substituindo-as por uma concepção que foi definida como linear, e que é, na realidade, segmentária. Nesta visão a História tem início mas deve ter também um fim. Não é mais que um episódio, um acidente na existência da humanidade. A verdadeira existência do homem é exterior à História. E considera-se que o fim da História restitui, sublimando-o, aquilo que existia ao início. Como na visão cíclica há, então, na visão fragmentária uma conclusão pela restituição de um dado momento, mas, contrariamente ao que acontece no ciclo, este momento está agora situado fora da História, fora do devir histórico; assim que for restituído ficará congelado numa imutável eternidade; o momento histórico, sendo alcançado, já não se repetirá mais. Assim, na visão segmentária há um início da História mas a esse início junta-se um fim, de modo que a verdadeira eternidade humana não é aquela do “devir” mas a do “ser”.

Este episódio que é a História é percebido, na perspectiva cristã, como uma verdadeira maldição. A História deriva de uma condenação do homem por parte de Deus, condenação à infelicidade, ao trabalho, ao suor e ao sangue, que sanciona uma culpa cometida pelo homem. A humanidade, que vivia na feliz inocência do jardim do Paraíso, foi condenada à História porque Adão, seu antepassado, transgrediu o mandamento divino, provou o fruto da Árvore da ciência e quis-se similar a Deus. Esta culpa de Adão, enquanto pecado original, pesa sobre todo o indivíduo que vem ao mundo. É inexplicável por definição, porque o ofendido é Deus mesmo.

Mas Deus, na sua infinita bondade, aceita encarregar-se ele próprio da sua expiação: faz-se homem encarnando na pessoa de Jesus. O sacrifício do filho de Deus introduz no devir histórico o evento essencial da Redenção. Sem dúvida que esta não concerne senão aos únicos indivíduos tocados pela Graça. Mas torna agora possível o lento caminho rumo ao fim da História, para o qual a “comunidade dos santos” deverá preparar a humanidade. No fim, virá um dia em que as forças do Bem e do Mal se defrontarão numa última batalha, que resultará num Juízo final e, então, na instauração de um Reino dos céus, que tem o seu contraponto dialéctico no abismo do Inferno.

O Paraíso antes do início da História; pecado original, expulsão do jardim do Paraíso, travessia deste vale de lágrimas que é o mundo, lugar do devir histórico, Redenção, comunidade dos santos, batalha apocalíptica e Juízo final; fim da História e instauração de um Reino dos céus: tais são os mitemas que estruturam a visão mítica da História proposta pelo cristianismo, visão na qual o devir histórico do homem tem um valor puramente negativo e o sentido de uma expiação.

A visão marxista

Os mesmos mitemas encontram-se, identicamente, sob uma forma laicizada e pretensamente ciêntifica na visão marxista da História. Empregando o termo “marxista” não queremos participar no debate, muito em voga hoje, sobre o que seria o “verdadeiro pensamento” de Marx. No curso da sua existência Karl Marx pensou coisas muito diferentes e poder-se-ia discutir longamente para saber qual seria o “verdadeiro” Marx. Referimo-nos, então, àquele marxismo recebido, que foi durante muito tempo, e que se mantém afinal agora, a doutrina dos partidos comunistas e dos Estados que se reconhecem na interpretação leninista.

Nesta doutrina a História é apresentada como o resultado de uma luta de classes, o mesmo é dizer, de uma luta entre grupos humanos que se definem em relação à sua respectiva condição económica, o jardim do Paraíso da pré-história reencontra-se, nesta versão, no “comunismo primitivo” praticado por uma humanidade ainda imersa no estado de natureza e puramente predatória. Enquanto no Paraíso o homem sofria os constrangimentos resultantes dos mandamentos de Deus, as sociedades comunistas pré-históricas viviam sob a pressão da miséria. Esta pressão levou à invenção dos meios de produção agrícolas, mas esta invenção revelou-se também uma maldição. Implica, com efeito, não somente a exploração da natureza por parte do homem mas também a divisão do trabalho, a exploração do homem pelo homem e, em consequência, a alienação de todo o homem em relação a si mesmo. A luta de classes é a consequência implícita desta exploração do homem pelo homem. O seu resultado é a História.

Como se vê, são as condições económicas a determinar para os marxistas os comportamentos humanos. Por conexão lógica estes últimos conduzem à criação de sistemas de produção sempre novos, que causam, por seu turno, condições económicas novas, e sobretudo uma miséria sempre maior dos explorados. Todavia, também ali surge uma Redenção. Com o advento do sistema capitalista a miséria dos explorados atinge, com efeito, o seu culminar: torna-se insuportável. Os proletários tomam então consciência da sua condição, e esta tomada de consciência redentora tem por efeito a organização dos partidos comunistas, exactamente como a redenção de Jesus havia levado à fundação de uma comunidade de santos.

Os partidos comunistas empreenderão uma luta apocalíptica contra os exploradores. Esta poderá ser difícil mas será necessariamente vitoriosa (é o “sentido da História”). Levará à abolição das classes, porá fim à alienação do homem, permitirá a instauração de uma sociedade comunista imutável e sem classes.

E se a História é o resultado da luta de classes, não haverá, evidentemente, mais História. O comunismo pré-histórico será restituído, como o jardim do Paraíso do reino dos céus, mas de modo sublimado: enquanto a sociedade comunista primitiva estava afligida pela miséria material, a sociedade comunista pós-histórica beneficiará de uma satisfação perfeitamente equilibrada das suas necessidades.

Assim, na visão marxista, a História assumirá igualmente um valor. Negativo. Nascida da alienação original do homem não tem sentido senão na medida em que, aumentando incessantemente a miséria dos explorados, contribua finalmente para criar as condições nas quais esta miséria desaparecerá, e “trabalha”, de algum modo, para o seu próprio fim.

Uma determinação da História

Estas duas visões igualitárias da História, a visão religiosa cristã e a visão laica marxista, ambas segmentárias, ambas escatológicas, implicam logicamente, uma e outra, uma determinação da História que não é obra do homem mas de qualquer coisa que o transcende. Cristianismo e marxismo não se esforçam sequer em negá-lo. O cristianismo atribui ao homem um livre arbítrio que lhe permite afirmar que Adão, tendo livremente escolhido pecar, é o único responsável da sua culpa, isto é, da sua imperfeição. É, contudo, Deus a ter feito( e logo desejado) Adão imperfeito. Da sua parte os marxistas afirmam, por vezes, que é o homem a fazer a História, ou mais exactamente, os homens enquanto pertencentes a uma classe social. Sucede, todavia, que as classes sociais são determinadas e definidas pelas condições económicas. Sucede também que é a miséria original a haver constringido os homens a entrarem no sanguinário encadeamento da luta de classes. O homem não é, pois, impelido que pela sua condição económica. É o joguete de uma situação que se origina na própria natureza enquanto jogo de forças materiais.

Disto resulta que, quando o homem joga um papel na visão igualitária da História, é um papel duma peça que não escreveu, que não poderá ter escrito, e esta peça é uma farsa trágica, vergonhosa e dolorosa. A dignidade, como a verdade autêntica do homem, situam-se fora da História, antes e depois da História.

Por outro lado, todas as coisas possuem em si a sua própria antítese relativa. A visão escatológica da História possui também a sua antítese relativa, igualitária também esta, que é a teoria do progresso indefinido. Nesta teoria o movimento histórico é representado como tendendo constantemente para um ponto zero que não é nunca alcançado. Este “progresso” pode caminhar no sentido de um “sempre melhor”, excluindo todavia a ideia de um bem perfeito e absoluto; é um pouco a visão ingénua da ideologia americana, ligada ao american way of life, e também a de um certo “marxismo desencantado”. Pode caminhar também no sentido de um “sempre pior”, sem que a medida do mal atinja alguma vez o seu culminar: é um pouco a visão pessimista de Freud, que não via como esta infelicidade que é a civilização poderia parar um dia de se reproduzir (de notar, por outra parte, que esta visão pessimista do freudianismo está actualmente em fase de ser recuperada, sobretudo por Marcuse e pelos freudomarxistas, na tese escatológica do marxismo, depois de ter desempenhado a função que sempre desempenha qualquer antítese após a invenção do Diabo, isto é, uma função instrumental).

Animar uma outra vontade

Como todos sabem é a Friedrich Nietzsche que remonta a redução do cristianismo, da ideologia democrática e do consumismo ao denominador comum do igualitarismo. Mas é também a Nietzsche que remonta o segundo modelo de visão da História que, na época actual, se opõe (subterraneamente, por vezes, mas com mais tenacidade) à visão escatológica e segmentária do igualitarismo. Nietzsche, com efeito, não quis apenas analisar, mas também combater o igualitarismo. Quis inspirar, suscitar um projecto oposto ao projecto igualitário, animar uma outra vontade, alentar um juízo de valores diametralmente diverso. Por este motivo, a sua obra apresenta dois aspectos, complementares entre si. O primeiro aspecto é propriamente crítico, poder-se-ia inclusive dizer científico. O seu objectivo é realçar a relatividade de todo o juízo de valor, de toda a moral e também de toda a verdade pretensamente absoluta. De tal maneira evidencia a relatividade dos princípios absolutos proclamados pelo igualitarismo. Mas, paralelamente a este aspecto crítico, existe um outro, que podemos definir poético, porque esta palavra deriva do grego poiein, que significa “fazer, criar”. Com este trabalho poético Nietzsche esforça-se por dar vida a um novo tipo de homem, ligado a novos valores e que extrai os seus princípios de acção de uma ética que não é aquela do Bem e do Mal, mas uma ética que é legitimo definir como suprahumanista.

Para dar uma imagem do que poderia ser uma sociedade humana fundada sobre os valores que propõe Nietzsche recorreu quase sempre ao exemplo da sociedade grega arcaica, à mais antiga sociedade romana e até às sociedades ancestrais da antiguidade indo-europeia, aristocrática e conquistadora. Isto, quase todos o sabem. Pelo contrário, não se presta suficiente atenção ao facto de que Nietzsche, ao mesmo tempo, adverte contra a ilusão que consiste em crer que seria possível “fazer regressar os gregos”, isto é, ressuscitar o mundo antigo pré-cristão.

Ora, este detalhe é de uma importância extrema, porque nos oferece uma chave necessária para melhor compreender a visão nietzschiana da História. Nietzsche ocultou voluntariamente, codificou, poder-se-ia dizer, o sistema organizador do seu pensamento. Fê-lo, como diz expressamente, de acordo com um certo sentimento aristocrático: pretende vetar aos importunos o acesso à sua casa. É a razão pela qual se contenta em entregar-nos todos os elementos da sua concepção da História, sem nunca revelar como se deve combiná-los.

Ademais, a linguagem adoptada por Friedrich Nietzsche é a linguagem do mito, o que não faz mais que acrescentar dificuldades de interpretação. A tese aqui exposta não é, pois, nada mais que uma possível interpretação do mito nietzschiano da História, mas trata-se de uma interpretação que tem o seu peso histórico, porque inspirou todo um movimento metapolítico, de fortes prolongamentos, por vezes definido como Revolução Conservadora, e que é também a interpretação daqueles que, reconhecendo-se em Nietzsche, aderem mais intimamente às suas declaradas intenções anti-igualitárias.

Os elementos, os mitemas que se vinculam à visão nietzschiana da História são sobretudo três: o mitema do último homem, o do advento do superhomem e, por fim, o do Eterno Retorno do Idêntico.

O Eterno Retorno

Aos olhos de Nietzsche, o último homem representa o maior perigo para a humanidade. Este último homem pertence à inextinguível raça dos piolhos. Aspira a uma pequena felicidade que seria igual para todos. Quer o fim da História porque a História é geradora de acontecimentos, o mesmo é dizer, de conflitos e de tensões que ameaçam esta “pequena felicidade”. Zomba de Zaratustra que predica o advento do superhomem.

Para Nietzsche, de facto, o homem não é senão uma ponte entre o símio e o superhomem, o que significa que o homem e a História não têm sentido senão na medida em que tendam a uma superação, e para fazer isto não hesitam em aceitar o seu desaparecimento, o superhomem corresponde a um fim, um fim dado a cada momento e que é, quiçá, impossível de alcançar; melhor, um fim que, no mesmo instante em que é alcançado, propõe um novo horizonte. Numa tal perspectiva a História apresenta-se, então, como uma perpétua superação humana.

Todavia, na visão de Nietzsche há um último elemento que parece, à primeira vista, contraditório em relação ao mitema do superhomem, o do Eterno Retorno. Nietzsche afirma, com efeito, que o Eterno Retorno do Idêntico comanda, também ele, o devir histórico, o que à primeira vista parece indicar que nada de novo pode produzir-se, e que qualquer superação está excluída. O facto é que, de resto, este tema do Eterno Retorno foi frequentemente interpretado no sentido de uma concepção cíclica da História, concepção que recorda fortemente aquela da antiguidade pagã. Trata-se, a nosso ver, de um sério erro, contra o qual o próprio Nietzsche nos havia precavido. Quando, sob o pórtico que tem o nome de Instante, Zaratustra interroga o Espírito de tudo o que é Pesado sobre o significado de dois caminhos eternos que, vindo de direcções opostas, se reúnem naquele ponto preciso, o Espírito de tudo o que é Pesado responde: “ Tudo o que é direito mente, toda a verdade é curva, o próprio tempo é um círculo”. Então Zaratustra replica com violência:” Espírito de tudo o que é Pesado, não simplifiques demasiado as coisas!”

Na visão nietzschiana da História, contrariamente ao caso da antiguidade pagã, os instantes não são, portanto, vistos como pontos que se sucedem sobre uma linha, seja esta recta ou circular. Para compreender sobre o que assenta a concepção nietzschiana do tempo histórico, é preciso, antes, colocá-la em paralelo com a concepção relativista do universo físico quadrimensional.

Como se sabe o universo einsteiniano não pode ser representado de forma “sensível”, porque a nossa sensibilidade, sendo de ordem biológica, não pode compreender mais que representações tridimensionais. Ao mesmo tempo, no universo histórico nietzschiano o devir do homem é concebido como um conjunto de momentos, dos quais cada um forma uma esfera no interior de uma “superesfera” quadrimensional, e na qual cada momento pode, em consequência, ocupar o centro em relação aos outros. Nesta perspectiva a actualidade de cada momento já não se chama “presente”. Pelo contrário, presente, passado e futuro coexistem em cada momento: são as três dimensões de todo o momento histórico. Os animais de Zaratustra não cantam, por acaso, ao seu mestre:” O ser começa em cada instante: em redor de cada ‘aqui’ gravita a esfera ‘além’. O centro está em todo o lado. Curvo é o caminho da eternidade”?

A escolha oferecida à nossa época

Tudo isto pode parecer complicado, assim como a teoria da relatividade é, ela também, complicada. Para ajudarmo-nos recorramos a algumas imagens. O passado, para Nietzsche, não corresponde, de facto, ao que foi “de uma vez para todas”, elemento congelado para sempre que o presente deixaria para trás de si. Do mesmo modo, o futuro não é já o efeito obrigatório de todas as causas que o precederam no tempo e que o determinam, como na visão linear da História. Em cada momento da História, em cada “actualidade”, passado e futuro são, por assim dizer, colocados em causa, configuram-se segundo uma nova perspectiva, moldam uma outra verdade. Poder-se-ia dizer, para usar uma outra imagem, que o passado não é mais que o projecto ao qual o homem molda a sua acção histórica, projecto que procura realizar em função da imagem que faz de si mesmo e que se esforça por encarnar. O passado surge então como uma prefiguração do futuro. É, no sentido próprio, a imaginação do futuro: que é um dos significados veiculados pelo mitema do Eterno Retorno.

Consequentemente, é claro que, na visão que Nietzsche nos propõe, o homem assume a inteira responsabilidade do devir histórico. A História é uma obra sua. O que vale por dizer que assume também a inteira responsabilidade de si mesmo, que é verdadeiramente e totalmente livre; faber suae fortunae. Esta liberdade é uma liberdade autêntica, não uma liberdade condicionada pela Graça divina ou por constrangimentos de uma situação material económica. É também uma liberdade real, vale por dizer, uma liberdade que consiste na possibilidade de escolher entre duas opções opostas, opções existentes em todos os momentos da História e que sempre colocam em causa a totalidade do ser e do devir do homem (se estas opções não fossem sempre realizáveis a escolha não seria senão uma falsa escolha, a liberdade uma falsa liberdade, a autonomia do homem uma aparência).

Ora, qual é a escolha oferecida ao homem da nossa época? Nietzsche diz-nos que esta escolha deve fazer-se entre o “último homem”, isto é, o homem do fim da História, e o impulso rumo ao superhomem, isto é, a regeneração da História. Nietzsche considera que estas duas opções são tão reais como fundamentais. Afirma que o fim da História é possível, que deve ser seriamente examinado, exactamente como é possível o seu contrário: a regeneração da História. Em última instância o êxito dependerá dos homens, da escolha que farão entre os dois campos, o do movimento igualitário que Nietzsche chama o movimento do último homem e o outro movimento, que Nietzsche se esforçou por suscitar, que já suscitou, e que chama o “seu” movimento.

Duas sensibilidades

Visão linear, visão esférica da História: encontramo-nos aqui confrontados com duas sensibilidades diferentes que não pararam de se opor, que se opõem e que continuarão a opor-se. Estas duas sensibilidades coexistem na época actual.

Num espectáculo como aquele das pirâmides, por exemplo, a sensibilidade igualitária verá, do ponto de vista moral, um símbolo execrável, já que somente a escravidão, a exploração do homem pelo homem, permitiram conceber e realizar estes monumentos. A outra sensibilidade, pelo contrário, será, antes de tudo, tocada pela unicidade desta expressão artística e arquitectónica, por tudo aquilo que pressupõe de grande e de espantoso no homem que ousa fazer a História e deseja construir o seu destino…

Tomemos um outro exemplo. Oswald Spengler, num texto famoso, recordou aquela sentinela romana que, em Pompeia, se deixou engolir pela lava porque nenhum superior o havia dispensado do dever. Para uma sensibilidade igualitária, ligada a uma visão segmentária da História, um tal gesto é totalmente desprovido de sentido. Em última análise não pode senão condená-lo, ao mesmo tempo em que condena a História, porque aos seus olhos este soldado foi vítima de uma ilusão ou de um erro “inútil”. Pelo contrário, o mesmo gesto tornar-se-á imediatamente exemplar do ponto de vista da sensibilidade trágica e suprahumanista, que compreende, intuitivamente poder-se-á dizer, que este soldado romano não se tornou verdadeiramente um homem senão comportando-se de acordo com a imagem que fazia de si, vale por dizer, a imagem de uma sentinela da cidade imperial.

Citámos Spengler. Isto leva-nos a colocar, depois dele, o problema do destino do Ocidente. Spengler, como se sabe, era pessimista. Segundo ele o fim do Ocidente está próximo e o homem europeu não pode fazer mais, como o soldado de Pompeia, que cumprir o seu papel até ao fim, antes de morrer como um herói trágico no abraço do seu mundo e da sua civilização. Mas em 1980( época da primeira publicação do presente artigo) é para o fim de toda a História que tende o Ocidente.

É ao retorno à “felicidade imóvel da espécie” que apelam os seus desejos, sem ver nada de trágico nesta perspectiva, pelo contrário. O Ocidente igualitário e universalista tem vergonha do seu passado. Tem horror desta especificidade que fez a sua superioridade durante séculos, enquanto no seu subconsciente percorria caminho a moral que se consagrou. Porque este Ocidente bimilenário é também um Ocidente judaico-cristão, que acabou por se descobrir enquanto tal e que hoje sofre as consequências disso. Certamente, este Ocidente também veiculou durante longo tempo uma herança grega, céltica, germânica, romana, e aí encontrou a sua força. Mas as massas ocidentais, privadas de verdadeiros mestres, renegam esta herança indo-europeia. Só pequenas minorias, dispersas aqui e ali, olham com nostalgia as realizações dos seus mais longínquos antepassados, se inspiram em valores que foram os seus e sonham em ressuscitá-los. Tais minorias podem parecer risíveis e talvez o sejam efectivamente. E todavia, uma minoria, talvez mesmo ínfima, pode sempre chegar a guiar uma massa.

Esta é a razão pela qual o Ocidente moderno, este Ocidente nascido do compromisso constantiniano e do in hoc signo vinces, se tornou esquizofrénico. Na sua imensa maioria quer o fim da História e aspira à felicidade na regressão. E, ao mesmo tempo, estas pequenas minorias procuram fundar uma nova aristocracia e esperam um Retorno que, enquanto tal, não poderá jamais produzir-se (não regressam os “gregos”) mas que pode transformar-se em regeneração da História.

Rumo a uma regeneração da História

Aqueles que adoptaram uma visão linear ou segmentária da História têm a certeza de “estar do lado de Deus”, como dizem uns, de “ ir no sentido da História”, como dizem os outros. Os seus adversários não podem ter qualquer certeza.

Se se acredita que a História é feita pelo homem e só pelo homem, que o homem é livre e que livremente forja o seu destino, é preciso admitir que esta liberdade pode, no limite, colocar em causa, e talvez abolir, a própria historicidade do homem. Ocorre-lhes, repetimo-lo, considerar que o fim da História é possível, mesmo se é uma eventualidade que rejeitam e contra a qual se batem. Mas se o fim da História é possível, também a regeneração da História o é, em qualquer momento. Porque a História não é nem o reflexo de uma vontade divina nem o resultado de uma luta de classes predeterminada pela lógica da economia, mas de uma luta que empreendem entre eles os homens em nome das imagens que fazem, respectivamente, de si mesmos e às quais, realizando-as, pretendem adequar-se.

Na época em que vivemos alguns não encontram outro sentido na História senão na medida em que esta tenda à negação da condição histórica do homem. Para outros, ao contrário, o sentido da História não é outro que o sentido de uma imagem do homem, uma imagem usada e consumada pelo marco do tempo histórico. Uma imagem nascida no passado mas que molda sempre a sua actualidade. Uma imagem que não podem, portanto, realizar senão com uma regeneração do tempo histórico. Esses sabem que a Europa não é já mais que um monte de ruínas. Mas, com Nietzsche, sabem também que uma estrela, se deve nascer, não pode nunca começar a brilhar senão num caos de poeira obscura.

A Guerra é a Mãe de todas as Coisas

"O patriotismo - vimos nós e demonstramos - é a base do instinto social, é, mesmo, o único instinto social verdadeiro; não é de resto, mais que um egoísmo coletivo, ou, melhor, a forma colectiva do egoísmo, base de toda a vida psíquica. Demonstramos também que, ao contrário da inteligência - que busca compreender e, pois que o busca, não pode odiar aquilo cuja compreensão a atrai -, o instinto odeia tudo quanto não seja ele, que o instinto é, portanto, radicalmente antagonista; que, portanto, a atitude normal de qualquer nação com relação às outras é o ódio; que a guerra é, por conseguinte, o estado natural da humanidade, não sendo a paz, evidentemente, mais que um estado de preparação para a guerra.
É esta a velha tese do povo inglês, do damned foreigner; é esta a teoria para sempre célebre de Heráclito, quando, comentando o desejo de Homero, de que as guerras cessassem de vez, diz que se as guerras cessassem, a própria vida cessaria, porque a 'guerra', diz, 'é a mãe de todas as coisas'. E assim é (...).
A tese, com efeito, pode ser alargada, e aplicada não só ao egoísmo nacional, como também ao egoísmo dos indivíduos. Se o amor é fonte de toda a vida física, o ódio é a fonte de toda a vida psíquica. É do ódio entre homem e homem que a civilização nasce, é da concorrência entre homem e homem que o progresso surge, é do conflito entre nação e nação que a humanidade recebe o seu impulso. Só a paz é infecunda, só a concórdia é improfícua, só o humanitarismo é anti-humanitário. E assim morre, ante a análise sociológica, o último dos falsos princípios da Democracia moderna.
E como vimos que a base do instintivismo social é o sentimento patriótico; como vimos que o instinto é radicalmente antagonista, sabemos, por conclusão, que não há instinto patriótico que não seja antagonista e guerreiro. No que pacifista, portanto, a democracia moderna é radicalmente inimiga do sentimento patriótico, radicalmente antipatriótica e antinacional."
(Fernando Pessoa)

28/12/2010

Noam Chomsky - As Dez Estratégias de Manipulação Midiática

por Noam Chomsky

1 - A Estratégia da Distração:

O elemento primordial do controle social é a estratégia da distração que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio ou inundação de contínuas distrações e de informações insignificantes. A estratégia da distração é igualmente indispensável para impedir que o público se interesse pelos conhecimentos essenciais, na área da ciência, da economia, da psicologia, da neurobiologia e da cibernética. "Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado, sem nenhum tempo para pensar; de volta à granja como os outros animais (citação do texto 'Armas silenciosas para guerras tranqüilas')".

2 - Criar Problemas e depois Oferecer Soluções:

Este método também é chamado "problema-reação-solução". Cria-se um problema, uma "situação" prevista para causar certa reação no público, a fim de que este seja o mandante das medidas que se deseja fazer aceitar. Por exemplo: deixar que se desenvolva ou se intensifique a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos, a fim de que o público seja o demandante de leis de segurança e políticas em prejuízo da liberdade. Ou também: criar uma crise econômica para fazer aceitar como mal necessário o retrocesso dos direitos sociais e o desmantelamento dos serviços públicos.

3 - A Estratégia da Gradualidade:

Para fazer com que se aceita uma medida inaceitável, basta aplicá-la gradualmente, a conta-gotas, por anos consecutivos. É dessa maneira que condições sócio-econômicas radicalmente novas (neoliberalismo) foram impostas durante as décadas de 1980 e 1990: Estado mínimo, privatizações, precariedade, flexibilidade, desemprego em massa, salários que já não asseguram rendas decentes, tantas mudanças que teriam provocado uma revolução se tivessem sido aplicadas de uma única vez.

4 - A Estratégia de Diferir:

Outra maneira de fazer aceitar uma decisão impopular é a de apresentá-la como "dolorosa e necessária", obtendo a aceitação pública, no momento, para uma aplicação futura. É mais fácil aceitar um sacrifício futuro que um sacrifício imediato. Primeiro, porque o esforço não é empregado imediatamente. Logo, porque o público, a massa, tem sempre a tendência a esperar ingenuamente que "tudo vai melhorar amanhã" e que o sacrifício exigido poderá ser evitado. Isso dá mais tempo ao público para se acostumar à idéia da mudança e de aceitá-la com resignação quando chegue o momento.

5 - Dirigir-se ao Público como Crianças:

A maioria da publicidade dirigida ao grande público utiliza discurso, argumentos, personagens e entonação particularmente infantis, muitas vezes próximos à debilidade, como se o espectador fosse uma criatura de pouca idade ou um deficiente mental. Quanto mais se tente buscar enganar o espectador, mais se tende a adotar um tom infantilizante. Por quê? "Se dirige-se a uma pessoa como se ela tivesse a idade de 12 anos ou menos, então, em razão da sugestionabilidade, ela tenderá, com certa probabilidade, a uma resposta ou reação também desprovida de sentido crítico como a de uma pessoa de 12 anos ou menos de idade (ver 'Armas silenciosas para guerras tranqüilas')".

6 - Utilizar o Aspecto Emocional muito mais do que a Reflexão:

Fazer uso do aspecto emocional é uma técnica clássica para causar um curto-circuito na análise racional, e finalmente no sentido crítico dos indivíduos. Por outra parte, a utilização do registro emocional permite abrir a porta de acesso ao inconsciente para implantar ou enxertar idéias, desejos, medos e temores, compulsões, ou induzir comportamentos...

7 - Manter o Público na Ignorância e na Mediocridade:

Fazer com que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os métodos utilizados para seu controle e escravidão. "A qualidade da educação dada às classes sociais inferiores deve ser a mais pobre e medíocre possível, de forma que a distância da ignorância que planeja entre as classes inferiores e as classes superiores seja e permaneçam impossíveis de alcançar para as classes inferiores (ver 'Armas silenciosas para guerras tranqüilas')".

8 - Estimular o Público a Ser Complacente com essa Mediocridade:

Promover ao público a crença de que é moda o fato de ser estúpido, vulgar e inculto...

9 - Reforçar a Auto-Culpabilidade:

Fazer crer ao indivíduo que é somente ele o culpável por sua própria desgraça, por causa da insuficiência de sua inteligência, de suas capacidades, ou de seus esforços. Assim, no lugar de rebelar-se contra o sistema econômico, o indivíduo se auto-desvaloriza e se culpa, o que gera um estado depressivo, um de cujos efeitos é a inibição de sua ação. E, sem ação, não há revolução!

10 - Conhecer aos Indivíduos Melhor do que Eles Conhecem a Si Mesmos:

No transcurso dos últimos 50 anos, os avanços acelerados da ciência geraram uma crescente brecha entre os conhecimentos do público e aqueles possuídos e utilizados pelas elites dominantes. Graças à biologia, à neurobiologia e à psicologia aplicada, o "sistema" tem desfrutado de um conhecimento avançado do ser humano, tanto de forma física como psicologicamente. O sistema tem conseguido conhecer melhor ao indivíduo comum do que ele se conhece a si mesmo. Isso significa que, na maioria dos casos, o sistema exerce um controle maior e um grande poder sobre os indivíduos, maior que o dos indivíduos sobre si mesmos.

27/12/2010

Os autênticos

"Nós, os verdadeiros, os autênticos, os implacáveis inimigos da burguesia, nos rimos de sua putrefação. Nós não somos burgueses.Somos os filhos da guerra e dos confrontos civis. Somente quando toda esta pantomima gire e gire sem cessar no vazio e se esfume, ao fim logrará desenvolver-se o que todavia nos sobra de natural, de elemental, de autêntico."
(Ernst Jünger)

26/12/2010

Pan-Nacionalismo

"Aqui é apenas adequado dizer que o desaparecimento das Nações não nos teria empobrecido menos do que se todos os homens tivessem se tornado idênticos, com uma única personalidade e um único rosto. As Nações são a riqueza da humanidade, suas personalidades coletivas; a menor das quais veste suas próprias cores especiais e porta dentro de si uma faceta especial das intenções divinas."
(Aleksandr Solzhenitsyn, Trecho do discurso quando do recebimento do Nobel de Literatura em 1970)

25/12/2010

A Estética Moderna ou O Triunfo da Vulgaridade

por Luis Sánchez de Movellán de la Riva

A actual tendência da arte de massas, ao afirmar que não existem diferenças entre a alta cultura e a cultura popular, leva à neutralização de toda a obra de arte e literatura pela normativa dos meios de comunicação e pela propensão à conformidade a respeito dos gostos aleatórios das massas. Não há dúvida de que vivemos uma estetização muito ampla do mundo social; as fronteiras entre arte e realidade desvanecem-se. Ambas as esferas acercam-se ao que Jean Baudrillard denominou “simulacro universal”.

A indústria da propaganda, as relações públicas e os “mass media” contribuíram decisivamente para isso. Mas trata-se de uma estetização que não merece esse nome: é um nivelamento para baixo, para a fealdade generalizada, para a estreiteza intelectual e ética de uma cultura pré-fabricada para moldar e uniformizar consciências. A perda do sentido de diferença entre arte autêntica e vulgaridade comercial, e a homogeneização coerciva entre arte, política e vida quotidiana, não só aniquilam a transcendência do belo e o legado do humanismo e minam a base da criatividade artística e intelectual, como convertem a praxis da esfera política num jogo inofensivo, onde tudo permanece sempre como está. Este fenómeno de estetização generalizada é uma encenação da uniformidade própria do mundo comercial e termina transformando-se numa “anestética”: numa anestesia. A euforia obrigatória e vazia da propaganda, o predomínio de um desenho frio e universal, produzem o mesmo efeito que um narcótico: a embriaguez termina num atordoamento.

A concepção de que qualquer objecto pode ser arte e que tudo, por isso, pode ser estetizado, constitui a base da propaganda e da indústria de publicidade. Esta última transforma qualquer coisa que deva ser vendida num objecto de aparência atractiva segundo os cânones do relativismo imperante; os especialistas da publicidade asseguram com razão que podem vender qualquer coisa, como os artistas contemporâneos afirmam que podem converter qualquer coisa em arte. 

A estetização de tudo transforma tudo, efectivamente, em algo superficial, como o embrulho dos objectos a vender. Este desenvolvimento foi favorecido pela transformação da arte numa variante do desenho industrial: exterior apetitoso, conteúdo nulo.

A indústria da cultura, tão apreciada agora por “democratizar” o consumo de bens culturais, não tem por objectivo nem melhorar a vida, nem propagar outro paradigma de melhor sociedade, nem fomentar uma “nova arte”, nem promover uma moral diferente, mas antes forçar consentimento e submetimento às modas do dia. A indústria da cultura cria necessidades secundárias, mediante sistemas de publicidade muito refinados que usam o subconsciente e a psicologia profunda. O resultado é a destruição da consciência crítica, a repressão da individualidade genuína, a desumanização dos processos de consumo, a eliminação da capacidade de eleição e, sobretudo, – como apontara Herbert Marcuse – o debilitar da responsabilidade pessoal, da consciência moral, da culpa e da consciência de culpabilidade.

A preservação de princípios aristocráticos, ou seja, razoáveis, na esfera estética obriga a impugnar o novo dogma artístico-relativista: tudo é arte e todos somos artistas. Esta posição, imensamente generalizada hoje em dia e legitimada pelas correntes pós-modernistas, postula que não há diferenças substanciais entre o saudável e o doentio, entre a lucidez e a loucura, entre a elegância e a vulgaridade, entre o sagrado e o profano, entre o festivo e o quotidiano, entre o belo e o feio, e, obviamente, entre o artístico e o prosaico. Estas deliberadas simplificações, que caracterizam sobretudo as artes plásticas contemporâneas acarretam uma traição à função transcendente da beleza, do talento e da fantasia constante nas genuínas obras de arte e literatura. 

Debaixo da desculpa da experimentação e amparando-se numa presumível busca de novos meios de expressão, as artes contemporâneas documentam a terrível orfandade de ideias, de cultura artística, de destreza artesanal do “quefazer” plástico dos nossos dias. A pretensa espontaneidade dos artistas contemporâneos é, no fundo, – como assinala Vargas Losa –, «o critério imposto por um mercado interferido e manipulado por máfias de galeristas e marchands e que de nenhuma maneira revela gostos e sensibilidades artísticas, só operações publicitárias, de relações públicas e, em muitos casos, simples intrujices».

Pese a sua aparência revolucionária e desenfadada, espontânea e turbulenta, o igualitarismo cultural significa, no fundo, uma ratificação da massiva fealdade da civilização industrial na sua etapa actual, uma justificação do momentâneo, uma condenação das tendências estéticas dissidentes e uma apologia dos gostos convencionais e banais difundidos pelos mass media. A luta contra o belo – que parece ser o conteúdo da arte na época actual – representa, segundo Marcuse, um movimento repressivo e reaccionário, que tem profundas raízes na história do ascetismo pequeno burguês e anti-intelectual.

No mundo moderno, a fealdade irremissível dos aglomerados urbanos, a sujidade e a insegurança neles prevalecentes, o péssimo gosto dos grandes projectos públicos e o derrube das formas civilizadas de trato social – a selvajaria convertida em norma sob o lema da informalidade e da espontaneidade – têm que ver com as normas estéticas que, consciente ou inconscientemente, defendem e transmitem as elites políticas e económicas da sociedade. Estes grupos, que no presente assumiram a responsabilidade governamental e educativa dos seus países, têm, em geral, uma origem provinciana, relativamente modesta, e não beneficiaram de uma educação excelente, digna desse nome. 

Abraçam com verdadeiro fervor uma estética e um modo de vida marcados pelos gostos dos estratos médios e inferiores das suas sociedades, pelo consumismo plutocrático e o culto da vulgaridade.

A cultura contemporânea de massas não pode deixar de participar em numerosos fenómenos negativos associados inextrincavelmente ao mundo actual, como são a anomia colectiva, a perda dos laços primários, a decomposição das identidades pessoais, a atomização dos indivíduos, a corrupção no âmbito político e empresarial, o aumento da delinquência, o incremento da desigualdade social e a crescente insegurança do espaço público.

Antes as massas tinham vergonha da sua vulgaridade; agora proclamam orgulhosamente o seu “direito à vulgaridade” e tratam de o impor triunfalmente onde quer que seja. As massas desfrutam de um notável bem-estar material, mas desprezam os esforços científicos e teóricos que são a pré-condição do avanço técnico. O narcisismo destas massas educadas somente na técnica – mas com um bem-sucedido verniz modernizador – é contraposto à austeridade, auto-exigência e auto-disciplina do homem selecto de Ortega y Gasset.

Em definitivo, as gentes – como observou Octavio Paz – vivem mais anos mas as suas vidas são mais vazias, as suas paixões mais débeis e os seus vícios mais fortes. A marca do conformismo é o sorriso impessoal que sela todos os rostos.

Economia Livre?

"Alguns dirão que somos nazistas, que somos fascistas; eu lhes pergunto em quê país do mundo a economia é realmente livre. Quando não a orienta o governo, a orientam os grandes consórcios financeiros, com esta diferença: o governo a orienta em benefício de todos os habitantes do país e os consórcios capitalistas em benefício de suas caixas registradoras."
(Juan Domingo Perón)

24/12/2010

A Nação: Sangue e Tradição!

por Ernst Jünger

Tradição: para uma estirpe dotada da vontade de voltar a situar a ênfase no âmbito do sangue, é palavra brava e bela. Que a pessoa singular não viva somente no espaço. Que seja, pelo contrário, parte de uma comunidade pela qual deve viver e, sucedida a circunstância, sacrificar-se, esta é uma convicção que cada homem com sentimento de responsabilidade possui e que postula à sua maneira particular com os seus meios particulares. A pessoa singular não se encontra, no entanto, ligada a uma comunidade superior unicamente no espaço, mas, de uma forma mais significativa, ainda que invisível, também no tempo. O sangue dos antepassados está latente, fundido com o seu, ele vive dentro de reinos e vínculos que eles criaram, custearam e defenderam. Criar, custear e defender: esta é a obra que ele recebe das mãos daqueles e que deve transmitir com dignidade. O homem do presente representa o ardente ponto de apoio interposto entre o homem do passado e o homem do futuro. A vida relampeja como o rastilho incendiado que corre ao largo da mecha que ata, unidas, as gerações… queima-as, certamente, mas mantém-nas enlaçadas entre si, do princípio ao fim. Em breve também o homem presente será igualmente um homem do passado mas, para conferir-lhe calma e segurança, permanecerá a ideia de que as suas acções e gestos não desaparecerão com ele mas antes constituirão o terreno sobre o qual os vindouros, os herdeiros, se refugiarão com as suas armas e instrumentos.

Isto transforma uma acção num gesto heróico que nunca pode ser absoluto nem completo como fim em si mesmo e que, pelo contrário, encontra-se articulado por meio de um conjunto dotado de sentido e orientação, dados pelos actos dos predecessores e apontando ao enigmático reino daqueles que ainda estão para vir. 

Obscuros são os dois lados e encontram-se mais para cá e mais para lá da acção, as suas raízes desaparecem na penumbra do passado, os seus frutos caem na terra dos herdeiros… a qual não poderá nunca vislumbrar quem actua e que é todavia nutrida e determinada por estas duas vertentes nas quais justamente se funda o seu esplendor intemporal e a sua sorte suprema. É isto que distingue o herói e o guerreiro face ao mercenário e ao aventureiro: e é o facto de que o herói extrai a sua força de reservas mais elevadas do que as que são meramente pessoais, e que a chama ardente da sua acção não corresponde ao clarão ébrio de um instante mas ao fogo cintilante que funde o futuro com o passado. Na grandeza do aventureiro há algo de carnal, uma irrupção selvagem, e em verdade não privada de beleza, em paisagens variadas… mas no herói cumpre-se aquilo que é fatalmente necessário, fatalmente condicionado: é o homem autenticamente moral e o seu significado não repousa unicamente em si mesmo, nem só no seu dia de hoje, mas é para todos e para todo o tempo.

Qualquer que seja o campo de batalha ou a posição perdida na qual se esteja, ali onde se conserva um passado e se deve combater por um futuro, não há acção que esteja perdida. A pessoa singular certamente pode andar perdida mas o seu destino, a sua sorte e a sua realização, valem em verdade como o crepúsculo que favorece um objectivo mais elevado e mais vasto. O homem privado de vínculos morre, e a sua obra morre com ele, porque a proporção dessa obra era medida só em relação a ele mesmo. O herói conhece o seu crepúsculo mas o seu crepúsculo assemelha-se àquele sangue vermelho do sol que promete uma manhã nova e mais bela. Assim devemos recordar também a Grande Guerra: como um crepúsculo ardente cujas cores já antecipam uma alvorada sumptuosa. Assim devemos pensar nos nossos amigos caídos e ver no seu crepúsculo o sinal da realização, o assentimento mais duro dirigido à própria vida. 

E devemos olhar longe, com um desprezo imundo, perante o juízo dos negociantes, daqueles que sustêm que “tudo isto foi absolutamente inútil”, se queremos encontrar a nossa fortuna vivendo no espaço do destino e fluindo na corrente misteriosa do nosso sangue, se queremos actuar numa paisagem dotada de sentido e significado, e não vegetar no tempo e no espaço onde, nascendo, tenhamos chegado por casualidade.

Não: o nosso nascimento não deve ser uma casualidade para nós! Esse nascimento é o acto que nos radica no nosso reino terrestre, o qual, com milhares de vínculos simbólicos, determina o nosso posto no mundo. Com ele convertemo-nos em membros de uma nação, por meio de uma comunidade estreita de laços nativos. E daqui vamos depois ao encontro da vida, partindo de um ponto sólido, mas prosseguindo um movimento que teve início muito antes de nós e que muito depois de nós terá o seu fim. Nós percorremos apenas um fragmento desta avenida gigantesca, neste trecho, todavia, não devemos transportar apenas uma herança inteira mas devemos estar à altura de todas as exigências do tempo.

E agora, certas mentes abjectas, devastadas pela imundície das nossas cidades, surgem para dizer que o nosso nascimento é um jogo de azar, e que “poderíamos perfeitamente ter nascido franceses como alemães”. Certo, este argumento vale precisamente para quem assim pensa. Eles são homens da casualidade e do azar. É-lhes estranha a fortuna que reside no sentir-se nascido por necessidade no interior de um grande destino e de sentir as tensões e lutas desse destino como nossas, e com elas crescer ou inclusive perecer. Essas mentalidades sempre surgem quando a sorte adversa pesa sobre uma comunidade legitimada pelos vínculos do crescimento, e isto é típico delas. 

Reclama-se aqui a atenção sobre a recente e bastante apropriada inclinação do intelecto de insinuar-se parasitariamente e nocivamente na comunidade de sangue, e a nela falsear a essência em nome do raciocínio… isto é, através do conceito, à primeira vista correcto, de “comunidade de destino”. Da comunidade de destino, no entanto formaria também parte o negro que, surpreendido na Alemanha ao início da guerra, foi envolto no nosso caminho de sofrimento, nas senhas do pão racionado. Uma “comunidade de destino”, neste sentido, é constituída por passageiros de um barco a vapor que se afunda, muito diferentemente da comunidade de sangue: formada esta pelos homens de um navio de guerra que descende até ao fundo com a bandeira ondulando.

O homem nacional atribui valor ao facto de haver nascido entre confins bem definidos: nisto ele vê, antes de tudo, uma razão de orgulho. Quando acontece que trespasse esses confins, não sucede nunca que flua sem forma para além deles mas de modo a alargar com isso o seu espaço no futuro e no passado. A sua força reside no facto de possuir uma direcção, e portanto uma segurança instintiva, uma orientação de fundo que lhe é conferida em dote conjuntamente com o sangue e que não precisa das luminárias mutáveis e vacilantes de conceitos complicados. Assim a vida cresce numa maior unidade, e assim devém ela mesmo unidade, pois cada um dos seus instantes reingressa numa conexão dotada de sentido.

Claramente definido pelos seus confins, por rios sagrados, por férteis vales, por vastos mares: tal é o mundo no qual a vida de uma estirpe nacional se imprime no espaço. Fundada numa tradição e orientada para um futuro longínquo: assim se imprime ela no tempo. Ai daquele que corta as próprias raízes!, esse converter-se-á num homem inútil e num parasita. Negar o passado significa também renegar o futuro e desaparecer entre as ondas esquivas do presente. 

Para o homem nacional, por outro lado, subsiste um perigo grande: o de esquecer-se do futuro. Possuir uma tradição comporta o dever de viver a tradição. A nação não é uma casa na qual cada geração, como se fosse um novo estrato de corais, deva acrescentar tão-somente um piso mais, ou onde, por meio de um espaço preestabelecido de uma vez por todas, não sirva outra coisa que continuar a existir, mal ou bem. Um castelo, um palácio burguês, dir-se-ão construídos de uma vez para sempre. Prontamente, todavia, uma nova geração, incentivada por novas necessidades, vê a obrigação de impor importantes modificações. Ou, por outro lado, a construção pode acabar por arder num incêndio, ou terminar destruída, e então um edifício renovado e transformado vem a ser construído sobre os antigos cimentos. Muda a fachada, cada pedra é substituída, e todavia, como se encontra ligada à raça, perdura um sentido do todo específico: a mesma realidade que foi num princípio. Talvez se possa dizer que somente durante o Renascimento ou na idade barroca tenha existido uma construção perfeita. Por acaso então se detinha uma linguagem de formas válida para todos os tempos? Não, mas aquilo que existia então permanece de algum modo oculto no que existe hoje.

Trocar a própria vida por um instante de poesia

"A lei é um acúmulo de tentativas incansáveis de bloquear o desejo de um homem de transformar sua vida em um instante de poesia. Certamente não seria certo deixar que todo mundo trocasse sua vida por uma linha de poesia escrita em uma poça de sangue. Mas a massa dos homens, carecendo de valor, passam suas vidas sem sentir o mínimo toque desse desejo. A lei, portanto, por sua própria natureza, é dirigida a uma minúscula minoria da humanidade."
(Yukio Mishima)

23/12/2010

O Mercado

"A 'lei do mercado' – ou seja, a lei dos mercadores – tomou o lugar dos imperativos da soberania nacional, da preservação do patrimônio, do enraizamento das culturas, da retransmissão da herança. Tudo pode ser cedido a quem mais ofereça, àquele que mais coloque sobre a mesa. A riqueza que não possa ser objeto de comércio ou troca não vale nada. O próprio homem não vale mais do que valem as coisas que possui. O homem 'tecnomorfiza-se'. Torna-se um objeto. (...) A rentabilidade material dita-nos a curto prazo o que devemos fazer; determina a nossa opção."
(Robert de Herte)

21/12/2010

Niilismo

"Pressupõe um retrocesso o atar-se às fórmulas esclerosadas do Iluminismo. O dogmatismo social nos deixa completamente indefesos perante o juízo de nossa época. Inclusive se nos salvamos de sermos destruídos em uma guerra, nossas vidas terão que mudar se queremos salvar nossa vida da auto-destruição. Nos resulta inevitável revisar as definições fundamentais da vida e das sociedades humanas. É verdade que o homem está acima de tudo? É verdade que não há espírito superior acima dele? É verdade que a vida do homem e as atividades sociais se vêem determinadas, em primeiro lugar, pelo crescimento material? Pode-se permitir promover tal expansão às custas de nossa integridade espiritual?"
(Aleksandr Solzhenitsyn)

20/12/2010

Eleições

por Francis Parker Yockey

No que concerne a "eleições" que tem estado em voga por quase dois séculos da existência da Civilização Ocidental, tanto na Europa como em suas áreas dominadas espiritualmente em outros lugares, uma importante lei dos organismos políticos é demonstrada.

Sob condições "democráticas" ocorre o fenômeno conhecido como "eleições." Foi a teoria da "democracia" surgindo em meados de 1750 de que o poder "absoluto" do monarca, ou da aristocracia, dependendo das condições locais, deve ser rompido, e esse poder transferido ao "povo". Esse uso da palavra "povo" demosntra novamente a natureza necessariamente polêmica de todas as palavras usadas politicamente. "Povo" era meramente um negativo; meramente queria negar que a dinastia, ou que aristocracia, pertencia ao "povo". Era, portanto, uma tentativa de negar ao monarca ou à aristocracia existência política; em outras palavras, essa palavra implicitamente os definia como inimigos no sentido político autêntico. Foi a primeira vez na história ocidental que uma teoria intelectualizada tornou-se o foco da movimentação política. Onde quer que o monarca ou a aristocracia fossem estúpidos ou incapazes, onde quer que eles olhassem para trás, ao invés de se adaptarem ao novo século, eles caíram. Onde quer que eles assumissem por si mesmos as teorias e as interpretassem oficialmente, eles mantiveram seu poder e seu comando.

A técnica de transferir esse poder "absoluto" ao "povo" deveria ser por meio de plebiscitos, ou "eleições". A proposta teórica era dar o poder a milhões de seres humanos, a cada um sua milionésima fração do poder político total existente. Isso, é claro, era impossível de um modo que até mesmo os intelectuais puderam ver, então o compromisso seria o de "eleições" através das quais cada indivíduo no organismo poderia "escolher" um "representante" para si mesmo. Se o representante fizesse algo, através de uma ficção satisfatória era acordado que cada pequeno indivíduo "representado" havia feito aquilo ele mesmo.

Em pouco tempo tornou-se óbvio para os homens interessados no poder, ou para si mesmos pessoalmente, ou para aplicar suas idéias, que se eles trabalhassem previamente a essas "eleições" para influenciar as mentes da população votante, ele seria "eleito." Quando maior os meios próprios de persuasão das massas de eleitores, mais garantida seria sua "eleição" subseqüente. Os meios de persuasão eram o que se tinha à disposição: retórica, dinheiro, imprensa. Como as eleições eram eventos grandiosos, dispondo de enormes quantidades de poder, apenas aqueles que comandavam meios correspondentes de persuasão poderiam controlá-las.  A Oratória se mostrou, a Imprensa se apresentou como a senhora da terra, e o poder do Dinheiro se entronou acima de todos. Um monarca não podia ser comprado; que suborno poderia dobrá-lo? Ele não podia ser pressiondo por usurários - ele não podia ser processado. Mas políticos partidários, vivendo em tempos nos quais os valores se tornaram cada vez mais valores monetários, podiam ser comprados. Assim, a democracia apresentou a figura do populacho sob a compulsão das eleições, os delegados sob a compulsão do Dinheiro, e o Dinheiro sentando no trono do Monarca.

Então, o poder absoluto permaneceu - como deve ser em qualquer organismo, pois é uma lei existencial de cada organismo que: O poder dentro de um organismo seja constante, e se indivíduos, grupos ou idéias dentro do organismo diminuírem em poder, outros indivíduos, grupos ou idéias aumentam em poder de modo correspondente.

Essa Lei da Constância do Poder Intra-Orgânico é existencial, pois se uma diminuição do poder em um lugar não se transmita para algum outro lugar do organismo, o organismo adoece, enfraquece, e pode perder sua existência política como unidade independente. A história da América do Sul de 1900 à 1950 é rica em exemplos de revoluções triunfantes contra regimes, tirando destes o poder - que então passava aos Estados Unidos da América, e enquanto tal condição permanecesse, o país no qual tal revolução tivesse ocorrido seria uma colônia do imperialismo ianque.

Tradução por Raphael Machado

19/12/2010

Espírito Prussiano

por Gunther Bardey

Em 25 de Fevereiro de 1947 uma decisão pela Comissão Aliada de Controle em Berlim declarou a liquidação do Estado da Prússia. Como justificativa para essa decisão foi afirmado que ela havia sido tomada segundo os interesses da paz, já que a Prússia havia sido a fonte do militarismo no mundo. Desde esses tempos o conceito de Prussianismo tem sido difamado na Alemanha como nenhum outro jamais foi. Os alemães que tomaram a frente nessa auto-acusação são muito naturalmente aqueles que haviam sido apontados pelos Estados vitoriosos à posições responsáveis nas novas províncias. Não há discussão: a idéia de Prussianismo não é nem atacada nem defendida, mas ignorada. Nacional Socialismo, militarismo e neo-fascismo foram atacados, mas a palavra “Preussentum” foi simplesmente varrida da língua alemã “reeducada”, e não mencionada. A Prússia devia ser considerada morta. Mas estaria a velha Prússia realmente morta? A resposta é que ela vive no indivíduo. Ela possui o valor de um estilo de vida, o que Prussianismo tem sido no mundo, desde que sua idéia foi pela primeira vez deliberadamente inculcada.

Até no exterior, quando alguma personalidade se torna proeminente entre seus associados por seu senso de dever, seu amor pela ordem e sua austeridade é dito dele até hoje que “ele é quase um Prussiano”. (Esse título de honra foi dado por um jornal americano ao General Lucius D. Clay, por seu trabalho como comandante militar em Berlim.)

A idéia do Prussianismo penetrou profundamente na consciência do mundo, porque as virtudes da ética Prussiana eram na verdade virtudes que são buscadas por outros Estados e povos; enquanto na Alemanha há hoje apenas umas poucas pessoas que tem um conceito claro sobre ela, já que suas virtudes não são aquelas consideradas atraentes em um modo pseudo-democrático de vida. A Prússia tem que estar morta! Esse é o desejo daqueles políticos que não percebem que um conceito ético não pode ser destruído pela violência. 



O que, então, é Prussianismo?

Enquanto alguns viam na Prússia um Estado similar a outros Estados, outros a consideravam como a base de sua existência. Enquanto alguns elogiavam a lei e a ordem Prussianas, outros condenavam o militarismo Prussiano. E essa última foi a única definição de Prussianismo que os vencedores e seus pretorianos usaram, sem qualquer exame real dos fundamentos de seu julgamento, em Potsdam, em Nuremberg e em 25 de Fevereiro de 1947 em Berlim. E desde então tem havido silêncio.

Nessa conexão, porém, deve ser de interesse voltarmos nossa atenção para aquele conceito de militarismo que é descrito como “Prussiano”. É um slogan; e nenhuma definição clara ou não ambígua do que significa jamais foi dado. Dificilmente vale a pena examinar que propagandas irresponsáveis e demagogias foram enfiadas no conceito do chamado “Militarismo Prussiano”. Se, porém, alguém entendo militarismo como sendo a autoridade absoluta de uma casta militar, então pode-se responder que jamais houve um domínio absoluto de soldados profissionais nem na Prússia ou na Alemanha.

O Major General Hans von Seeckt escreveu em 1929 sobre esse tema do militarismo o seguinte comentário, que ainda é válido atualmente: “A França orgulhosamente treina seu povo como uma nação armada. Não seria isso militarismo? E a América, que tão conscienciosamente hasteia a bandeira da paz, ensina em suas universidades – isso é um fato – a arte da guerra para futuros oficiais, recruta a juventude educada para os corpos de oficiais, e prepara sua indústria para a mobilização. Eu gostaria de chamar isso de patriotismo, mas aqui em casa é chamado de militarismo.”

A Prússia, porém, não representa apenas um Estado, mas também um princípio, e Prussianismo é uma ética viva. Assim como uma filosofia só pode ser explicada segundo seus princípios, assim também uma ética é justificada pelas virtudes que ela produz. 



O Estado da Prússia fazia demandas particularmente severas do indivíduo, assim como requisitava que seus Reis fossem os primeiros servos do Estado. O sentimento Prussiano pelo Estado não era nem ideológico nem metafísico; ele expressava a si mesmo acima de tudo como um conceito ético. Apenas a capacidade era valorizada, não a intenção; sucesso não era o critério, mas realização. Deveres ao Estado não era realizados pelo auto-interesse, mas pelos mais elevados motivos de serviço. Jamais houve, em qualquer Estado, um serviço civil mais pobre e mais auto-sacrificante, mas no passado era uma grande honra estar a serviço da Prússia.

Deve ter havido algum mistério em um Estado que não tinha nada a oferecer a não ser os frutos amargos do dever, e ainda assim em cujo serviço números sem fim de pessoas extremamente hábeis e talentosas se sacrificaram – pessoas de todos os outros países alemães e mesmo de toda a Europa. Eles se tornaram Prussianos por sua própria vontade, através de sua aceitação do dever de serviço. Eles vieram, de fato, à Prússia para viver uma vida de serviço, pois eles não poderiam viver sem deveres à realizar e um propósito superior diante deles, como Hermann Hesse expressou.

Quem eram eles, e de onde vieram? Moltke e Blücher haviam nascido em Mecklemburg, Ernst Moritz Arndt era um Sueco e Keyserlingk era um Balto; de Nassau veio Freiherr von Stein, Gneisenau e Hegel era Suábios e Lentulus era Suíço. Havia os saxões Scharnhost, Grolmann e Hardenberg; Marechal Keith era escocês e Corbierre um francês. E o que moveu os muitos nobres independentes, cujos pedigrees eram mais velhos e cujas honras imperiais maiores do que as dos Reis Prussianos, à servir na Prússia? Por gerações os Duques de Brunswick e Mecklemburg, a nobreza da Turíngia e de Anhalt, escolheram servir o Estado Prussiano. Eles ofereceram suas vidas não pelo Rei da Prússia, mas pela ética do dever. Assim todos eles se tornaram o que eles não puderam por nascimento, Prussianos através da devoção ao dever. 



Foi apenas na Prússia que Kant pode desenvolver sua filosofia do dever que deu ao desenvolvimento mental dos séculos 18 e 19 uma nova direção que se tornou a base fundamental de nossas conquistas científicas. O imperativo categórico de Kant deu ao sentido prussiano de dever sua expressão fundamental, e consolidou o conceito de Prussianismo de uma vez por todas. Sua máxima filosófica: “ Age somente, segundo uma máxima tal, que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal.”, continha pela primeira vez o conceito de agir em acordo com o dever puro. Quando o Rei Frederico escreveu: “Não é necessário que eu deva viver, mas é necessário que eu deva cumprir meu dever”, a máxima teórica do filósofo foi elevada pelo estadista ao princípio geral do Estado.

Só é pode compreender a ética do Prussianismo quem estiver preparado para subordinar a si mesmo a essa princípio do dever, e não fugir em busca de segurança, para sua própria lareira que ele então defenderá com cadeado duplo. Aquele que está preparado para servir alcança honra e honra tem sido desde tempos imemoriais o atributo humano maior e mais custoso.

Parece quase lendário hoje, como homens e mulheres prussianos avançaram para assumir responsabilidades nos dias mais negros do Estado. Em tempos em que as pessoas responsáveis tinham tudo a perder e nada a ganhar, quando Reis Prussianos foram reduzidos à mendigos, os melhores elementos do Prussianismo ofereceram a si mesmos com um fanático entusiasmo em assumir responsabilidade pelo Estado e fazer o juramento: “Aquele que jurou sobre a bandeira prussiana não possui mais nada dele próprio”

Essa consciência de responsabilidade a tudo abarcava. Ela não estava limitada ao cumprimento consciencioso do dever, ou a responsabilidade em relação ao Rei da Prússia. Ela se estendia acima de tudo àquelas pessoas que estavam na mesma linha de dever. 



O prussiano se sentia responsável por seus amigos e colegas, ele chamava para si mesmo responsabilidade em relação àqueles abaixo dele assim como aos seus superiores. E como os prussianos não consideravam isso um direito mas um dever moral, foi possível para o Marechal Hans Christoph von Schwerin retirar seu Monarca do campo de batalha de Mollwitz, e estar preparado para assumir responsabilidade por essa ação diante do Estado Prussiano.

Nisso surgiu a partir desse sentimento de responsabilidade o que nós podemos descrever como coragem civil. Como em nenhum outro lugar, orgulho viril no trono real existia na Prússia. Por que isso era reconhecido por todos, e todo mundo sentia que ela brotava de um profundo senso de responsabilidade, foi possível ao jovem Seydlitz responder ao seu Rei no campo de batalha de Zorndorf, quando uma ordem prematura de atacar havia sido dada: “Diga a sua Majestade que minha cabeça está a sua disposição após a batalha, mas eu lhe peço que faça uso dela agora como servirá melhor a seu propósito”. Isso não era motim mas a mais pura e elevada responsabilidade, que pessoas subordinadas destinavam voluntariamente e conscientemente à uma causa. Enquanto houver pessoas que alegremente sacrificam seu bem estar pessoal por seu senso de responsabilidade, a Prússia continuará a existir.

O conceito de modéstia está inextricavelmente ligado com o Prussianismo, como formulado no conselho do Conde Schlieffen, “Conquistem muito, mantenham-se discretos, sejam mais do que aparentam ser”. O país não pode se gabar de montanhas alta, costas banhadas pelo Sol e vales agradáveis repletos de córregos borbulhantes. Ninguém pode dizer que as florestas de pinheiros e bétulas e as charnecas arenosas não são bonitas. Mas essa beleza da paisagem Prussiana não exibe a si mesma, ela é acanhada. Então aqui também a paisagem formou caráter humano, e como o povo teve que aceitar essa terra dura e silenciosa, eles inconscientemente adquiriram sua modéstia. 



Muito foi dito sobre a simplicidade dos quartéis e departamentos governamentais prussianos, sobre a falta de decoração dos palácios e casas de campo, mas nelas viviam prussianos. Aqui, onde a única decoração era uma foto de um rei morto, o serviço era satisfatoriamente dado. Nessas salas vazias e simples mais trabalho era feito, mais serviço era dado, do que nos mais magníficos ministérios e palácios do resto do mundo. Aqui batia o coração da Prússia, não nos campos de batalha, onde era preparado sem questionar para sangrar até a última gota.

Nessa modéstia prussiana duas outras coisas estavam escondidas, que vestiam o servo do Estado com um Mythos peculiar: honestidade e clareza. Honestidade do coração e clareza da alma. No século 18, a era dourada dos aventureiros nobres ou plebeus, o prussiano agarrava-se ao seu dever. Nas listas “famosas” de aventureiros europeus não há nomes prussianos. Eles também não podem ser achados nos círculos de sonhadores políticos, militares, comerciais e científicos, “os fazedores de projetos”, como o grande Rei os chamava, que conhecia bem essa categoria de Cagliostro a Voltaire.

O oficial prussiano preferia ter seu dedinho, não, toda sua mão, arrancada, antes que ele usasse um único instrumento do serviço real para seu próprio benefício. O mais jovem oficial na Prússia preferia sentira fome por semanas do que pegar um único centavo dos fundos de manutenção do Rei como “empréstimo”.

A Prússia mantinha o domínio da legalidade; não havia polícia secreta do Estado, e certamente nenhuma inquisição de ordem espiritual ou mundana. Justiça era justiça e injustiça era injustiça, e entre os dois não havia nada a não ser o senso moral no indivíduo e a autoridade moral do Estado sobre o indivíduo. O que é tão comumente considerado como a conquista do revolucionário século 20 era realidade na Prússia – a igualdade dos cidadãos diante da lei. Apenas lá as palavras orgulhosas poderiam ser ditas: “Sua Majestade, há ainda a Suprema Corte.” 



O aristocrático oficial prussiano von Schlubhuth foi enforcado em praça pública, porque ele colocou diante de seu Rei um registro falso dos impostos adquiridos na Prússia Oriental.

Essa justiça era absoluta e onipresente, e estava expressa no “Codex Fredericianus” do Chanceler Freiherr Samuel von Cocceji. Esse código de Direito Prussiano é pouco estudado hoje, e acima de tudo as palavras escritas pelo próprio Rei em sua introdução, que ele deu como motivador principal a seu grande Chanceler: “Onde fala a lei, o próprio soberano deve permanecer em silêncio.”

Essa justiça absoluta brotou a tolerância, que também tinha seu lar na Prússia. O grande Rei disse: “Em meu Estado todo mundo pode ser feliz a sua maneira”, e essa era a garantia da liberdade de espírito; Lorde Michell escreveu em suas memórias que o cidadão na Prússia tinha assegurada mais liberdade do que em qualquer outro Estado. Era apenas através dessa justiça absoluta que o trabalho de Immanuel Kant foi possível, já que ele assumiu com antecedência a liberdade de espírito.

Essa tolerância fez da Prússia um santuário aos olhos daqueles perseguidos por suas crenças religiosas na Europa. Dezenas de milhares de Huguenotes orgulhosos adentraram a Brandenburgo do Grande Eleitor. Aqueles que foram expulsos de suas casas em Salzburgo buscaram paz e liberdade na Prússia do Rei Soldado, enquanto décadas depois vários livre-pensadores da Europa fugiram da Inquisição dos monarcas Católicos para a mesa de Frederico. Nunca houve guerra de religião na Prússia, e ministros e generais Católicos prestaram serviço leal a esse Estado Protestante.

Nem na Silésia, nem na Prússia Oriental foi uma única pessoa colocada em desvantagem devido a suas crenças religiosas, ou expulsa do serviço do Estado e assim privada de sua proteção. Ao contrário, essas minorias Católicas estavam sob proteção especial do Rei, enquanto obedecessem as leis do Estado. 

Mas se um deles infringisse as leis, então, fosse ele Príncipe Bispo de Breslau ou um pastor reformista em Halle, ele experimentava a espada afiada da justiça. A escolha de crença religiosa era deixada inteiramente para a decisão do indivíduo – o reconhecimento do Estado, porém, colocava todos sob o domínio da lei. Então entre o Estado e a Religião estava a espada da justiça, e mesmo os livre-pensadores céticos de Sans Souci teriam considerado a mistura de Cristianismo e política um ato de sacrilégio.

Como a liberdade pessoal e espiritual eram garantidas na Prússia, uma verdadeira ordem social pode surgir sobre essa base no Estado Prussiano. Pode parecer paradoxo para as pessoas hoje, quando os termos “Prussiano” e “Social” são colocadas em um relacionamento tão próximo, e ainda assim está no motto dos Reis Prussianos “Suum cuique” um reconhecimento mais verdadeiro de uma ordem social justa do que no slogan político “igualdade para todos”. Uma ordem social só pode vir à existência onde um sistema de justiça para todos existe, e só pode ser efetivo onde os deveres e direitos do povo são regulados através de seu serviço à comunidade – ou seja, ao Estado. Onde leis emergenciais e direitos especiais são promulgados de modo a criar uma ordem social isso estará natimorto, e ali surgirá seu oposto inevitável – a tirania da compulsão social.

Assim como não pode haver Europa sem Alemanha, também não pode haver Alemanha sem Prússia. Alemanha, fragmentada em quatro partes arbitrárias, nenhuma das quais podendo reivindicar o título de um Estado, não pode ser mantida sem o Ethos chamado Prussiano. Independentemente do quanto possa ser dito e escrito nas várias partes de nosso país sobre reconstrução e o começo de uma época nova e melhor, deve-se lembrar nas horas silenciosas de contemplação as palavras de Georg Stammlers sobre a Prússia, quando ele disse: - “Não há avanço sem sacrifício, e a grande palavra que cria Estados é SERVIÇO. Servir – não à humanidade, mas ao propósito, pois a humanidade é o propósito.” 

Aqueles que crêem que seus direitos tem preferência sobre seus deveres, aqueles que colocam seu ego acima da Nação, podem tomar nota de outro dito, cunhado nas horas mais negras do destino pelos soldados prussianos na fortaleza prussiana de Kustrin: - “Ninguém será esquecido, cada um receberá sua parte: um ganhará a coroa de louros, o resto o carro fúnebre.” 
Traduzido por Raphael Machado