por Mickaël Félicité
(2017)
A ascensão das contradições do nosso sistema social está se tornando, no mínimo, evidente. Da crise grega, que pode ser vista como o epifenômeno de um desastre mais global, às diferentes reformas econômicas (lei Macron), antropológicas (casamento para todos, GPA, gênero, chip RFID), judiciais (lei de vigilância), que enfrentamos impassivelmente, somando a isso o renascimento de conflitos religiosos mortíferos (jihadismo), podemos pensar que estamos na aurora de uma mudança decisiva para a nossa sociedade.
Constata-se, então, que inevitavelmente, sob a pressão dessas transformações, todo o nosso sistema político vai se decompor cada vez mais. E notamos, já, todos os dias, desde a aparição da abstenção como uma força política importante, até os diferentes casos envolvendo a liberdade de expressão, seja em torno de Dieudonné, Mermet ou mesmo de Zemmour[1], ou ainda os múltiplos escândalos democráticos e militares que as instituições de Bruxelas e a OTAN nos impõem, percebemos que atualmente é permitido apenas à nossa classe média “burguesa boêmia” pensar apenas na manutenção do seu pequeno poder de compra, a fim de mascarar o mal-estar civilizacional, de profundidade abissal, que nossa sociedade atravessa. Será essencial compreender que, nesse sentido, com os próximos anos, as críticas a esse sistema se tornarão automaticamente, de um lado, cada vez mais importantes para cada um, mas – e aí está o problema – elas também parecerão, por outro lado, tanto diversas e variadas devido à complexidade dessas evoluções.
O que fazer então? Quem pode responder aos nossos males? O embaralhamento das referências políticas operado nos últimos trinta anos, especialmente após o fim da Guerra Fria e o início da integração europeia, não facilita a tomada de consciência. A princípio, ainda é admitido ver na atual esquerda uma opção radical contra os males que nos afligem. Apesar de suas recuperações, suas contradições, observa-se que ela oferece, dizem, uma alternativa possível. Mas, sejamos lúcidos e pragmáticos: não se vê que, na prática, ela não está de forma alguma unida em torno de uma ideologia mínima que poderia estruturá-la, e que não oferece, além disso, de maneira alguma, a possibilidade de poder esperar responder a tudo o que nos afeta ao mesmo tempo? No contexto atual, parece-nos prioritário não pensar na evolução de tal ou tal aspecto doutrinário (reflexão já realizada, por outros, há muito tempo), mas sim, antes de tudo, fazer um balanço, ou seja, uma tentativa de síntese das diferentes opiniões que animam essas organizações, com o objetivo de tirar uma lição para o nosso futuro. Veremos que pode-se dizer que existem três esquerdas: uma neoesquerdista, uma neomarxista, e uma neostalinista. Uma vez estabelecida essa análise, será necessário levar a nossa lógica ao extremo, para buscar a origem dos nossos problemas; o que nos levará a questionar se as críticas, que denunciam uma parte desses movimentos enquanto aceitam outra, não veiculam os mesmos pressupostos que aquilo que acreditam invalidar? Ao delinear o mais objetivamente possível os múltiplos aspectos doutrinários, nossa aspiração consistirá em mostrar que, quaisquer que sejam suas variantes, a esquerda aceita integralmente o fato maior de nossa contemporaneidade, ou seja, a globalização, verdadeiro perigo imediato para a nossa geração.
O Neoesquerdismo
Lênin já acusava, em 1920, aqueles que em sua época impediam a revolução que ele desejava, denunciando seu amadorismo político. Seu texto intitulado "Esquerdismo, a Doença Infantil do Comunismo"[2] apontava essas práticas anti-institucionais veiculadas por movimentos ultrarradicais que rejeitam qualquer forma de compromisso com a autoridade vigente. Segundo ele, tais métodos não poderiam ser realmente eficazes, pois não passavam pela tomada do poder do Estado, verdadeiro objetivo estrutural de uma revolução digna desse nome. Esse debate era uma verdadeira questão-chave daquele período, visto que conhecemos as lutas internas que Lênin e, além disso, Stálin, travaram contra Trotsky, líder da liga dissidente em relação à hegemonia soviética. Deste ponto de vista, este último talvez seja aquele que melhor encarna essa ideologia (como o uso comum da linguagem nos lembra, frequentemente confundimos o trotskista com o esquerdista), assim como Mao e sua revolução cultural, que queria empurrar a transformação social ao máximo, fazendo tábula rasa do passado. A intenção, em geral, é promover uma revolução internacionalista, sem um centro preciso, indo até querer a criação de um novo homem totalmente separado de qualquer filiação com o mundo "burguês". No fundo, as convicções se queriam ser anti-Estado, antinação, antifronteiras, antiburguesia, anti-instituição. Mesmo que isso possa parecer exagerado, não é falso dizer que o esquerdista é contra tudo (ou quase tudo), pois, em sua visão, apenas o proletário explorado pode fazer a revolução sem qualquer mediação, esta sendo vista como um obstáculo à pureza da luta contra o opressor.
No entanto, quando hoje falamos de esquerdismo, na realidade não nos referimos exatamente a essa concepção das coisas. Nesse meio-tempo, pensadores, dos quais os mais conhecidos são Derrida, Bourdieu, Foucault e Deleuze, ainda modificaram essa metodologia revolucionária. Tornaram-se rapidamente ícones da contestação na virada dos anos 70, não é preciso dizer que seus trabalhos impregnaram de maneira significativa os movimentos de lutas sociais. Sua originalidade foi direcionar as questões políticas para as minorias frágeis, uma vez que uma grande parte de suas obras, na maioria, consiste em interrogar as marginalidades, os excluídos, ou seja, os loucos, os criminosos, os homossexuais, os sadomasoquistas, etc. Pela primeira vez na história da esquerda, a questão das estruturas sociais é deslocada para o terreno dos problemas de costumes. Uma das consequências é que não se criticará mais fundamentalmente o sistema capitalista e sua exploração que é o fundamento, mas, antes de tudo, as normas produzidas pela sociedade. E isso vai induzir toda uma nova linguagem nos meios de radicalidade crítica. Deslocamentos de sentido ocorrerão sem fim. Nada é mais significativo, a esse respeito, do que a maneira como Foucault intitula sua introdução ao "Anti-Édipo"[3], obra de G. Deleuze e F. Guattari, "Introdução à Vida Não Fascista"[4], como se, além dos leitores desse livro, todos os indivíduos que habitam esta pobre terra fossem culpados de uma vida, potencialmente, "fascista". Onde antes se denunciava a burguesia (referência à exploração), hoje atacamos o fascismo (referência às normas). Isso anuncia, em contraste, os novos inimigos dos esquerdistas e, por conseguinte, seu novo fundamento doutrinário. Na verdade, tal fascinação por esse tipo de problema diz mais sobre sua real mentalidade do que sobre a pertinência de suas proposições.
Atualmente, Eric Fassin é, sem dúvida, um dos mais eminentes representantes desses intelectuais. Introdutor na França da ensaísta/filósofa Judith Butler, ele intervém regularmente nos grandes meios de comunicação. Em seu livro «Esquerda: O Futuro de uma Ilusão»[5], ele propõe uma síntese que poderia muito bem servir de breviário contemporâneo dessa doutrina. A ideia é simplesmente mostrar que a esquerda deve abandonar a noção clássica de povo, que, segundo ele, vem da «direita», a qual consiste em opor a nação ao xénos (estrangeiro), em suma, um dentro contra um fora, um cidadão contra um não-cidadão (distinção que, lembramos, é apenas o pressuposto de toda forma de democracia; pois é difícil imaginar como dar o poder ao povo se este é absolutamente indeterminado, se não há diferença entre um «nós» e um «eles»), e reconstruir uma definição supostamente mais progressista e democrática a partir das novas causas que povoam o espaço público (casamento para todos, luta contra o racismo), mas também das minorias ativas e dos excluídos…. Como se vê, invertem-se os significados das grandes categorias que marcaram a história política, como a oposição maioria/minoria e povo/elites. Não é insignificante que o título de seu último capítulo seja «Mudar de Povo». Isso nos lembra, a propósito, a famosa sentença de Bertolt Brecht de seu poema intitulado «A Solução»: «Como o povo vota contra o governo, é preciso dissolvê-lo para eleger outro», denunciando as derivas do poder soviético, que queria mudar a sociedade para «melhor» enquanto se preservava da opinião das pessoas envolvidas. Vamos aqui no mesmo sentido do lobby TERRA NOVA, vanguarda do PS, que se propõe, de maneira semelhante, a focar seu eleitorado apenas nas minorias, como mulheres, gays, jovens, imigrantes, e não mais nos proletários culpados de votar na Frente Nacional e, portanto, segundo eles, de serem potencialmente «racistas».
Mas, no fundo, o problema não para por aí. Pois, se ouvirmos nossos anticonformistas até o fim, perceberemos que todas essas mudanças na política não são, nem mais nem menos, que a consequência da dominação do homem branco hetero-católico-burguês que, segundo eles, teria o poder. Observamos que, evidentemente, não é o capitalista em si que eles visam, que pode ser de todas as religiões, todas as culturas e todas as raças, mas um indivíduo predominantemente presente no mundo europeu. Esta nuance é fundamental, porque vemos emergir o coração e a lógica subjacente às suas ações. Na verdade, é a partir deste inimigo que eles vão constantemente denunciar todos aqueles que atacam as minorias oprimidas, com seus apoios constantes e inabaláveis às expulsões dos sem-papéis, à repressão das prostitutas, à luta contra a estigmatização dos trans, bissexuais, homossexuais e ao ostracismo das mulheres muçulmanas que usam véu, dos muçulmanos, dos ciganos, etc. Observa-se frequentemente, com alguma distância, que este corrente – que é denominado nos círculos intelectuais como «diferencialistas identitários», na medida em que defendem diferenças de identidades – não luta contra a exploração salarial, nem contra a sociedade de consumo, nem contra as guerras de ingerência imperial, nem mesmo contra a miséria social, mas sim contra as normas da maioria, todas arbitrariamente designadas como más e supostamente encarnadas no Estado capitalista, patriarcal, hetero-normativo e colonial.
O que frustra a inteligência é a expressão ultramaniqueísta que esses filósofos utilizam sobre a vida política. Apenas a Esquerda da Esquerda diz a verdade; os outros estão todos mais ou menos envolvidos na manipulação e na opressão oculta. Em resumo, eles são o "Bem", o resto é demoníaco. Pode-se ver claramente, nesse sentido, a concepção deles sobre o debate intelectual, especialmente com o que aconteceu com a pessoa de M. Gauchet, acusado de fazer parte do campo dos "reacionários" mesmo admitindo não ler seus textos[6]. Na origem, uma queixa que diz muito sobre as intenções dos discípulos da “French theory”. Ele se pergunta com toda honestidade: "contra o que Gauchet se rebelou em sua vida senão contra as greves de 1995, contra os movimentos sociais, contra o PaCS, contra o casamento para todos, contra a homoparentalidade, contra os movimentos feministas, contra Bourdieu, Foucault e o 'pensamento de 68', contra as reivindicações democráticas?" Para além do caráter falacioso e enganoso dessas acusações, que na maioria das vezes não são fundamentadas em nada, como o acusado soube muito bem demonstrar, é impressionante notar que tudo o que é criticado merece um verdadeiro debate em relação às evoluções do mundo do mercado contemporâneo. E se levamos nossa lógica ao extremo, podemos dizer que se rebelar contra tudo isso é, na verdade, uma prova de verdadeira resistência à ordem capitalista mutante que vemos surgir.
Para compreender suas interpretações da "revolução", pode-se ler a obra de um dos opositores, Édouard Louis, intitulada "Para acabar com Eddy Bellegueulle"[7]. É importante dizer, de imediato, que este livro representa certamente um auge artístico no ódio aos ambientes proletários. O enredo central conta as desventuras – violências, desprezo – que o personagem principal sofre devido à sua marginalidade sexual em sua aldeia natal antiquada, "atrasada". O que se vê claramente é que o autor, ao mesmo tempo em que pretende denunciar os supostos estereótipos "homofóbicos", "sexistas", "masculinistas" dessas categorias sociais, faz apenas transpor, para uma realidade totalmente estranha a essas questões, seus preconceitos pessoais. A forma de encenar a violência que ele sofre em sua aldeia natal devido às suas "maneiras afeminadas" faz crer, insidiosamente, que esse mundo é absolutamente desprovido de qualquer forma de inteligência e que seria possível estabelecer uma generalidade nesse tipo de denúncia. Além disso, ao se colocar como uma figura angelical perdida em um mundo brutal, ele oculta a relação dialética, ou seja, a violência que ele também pode gerar no sentido inverso. Na verdade, seu discurso revela mais sobre seus fantasmas íntimos do que sobre a simples brutalidade do concreto. Como P. Muray demonstrou muito bem, sem esse inimigo imaginário, seus discursos se desmoronariam de fato. Chegamos exatamente à descrição do mito do proletário, bronco, racista, violento, homofóbico que vota no Front National, uma ficção necessária à perpetuação de suas ideologias que promovem a transgressão de todas as normas estabelecidas. Não se pode ter o mesmo interesse, gosto, passando a vida na universidade ou trabalhando quinze horas por dia na fábrica. É verdade que, quando se vê fisicamente Édouard Louis, percebe-se fatalmente os estigmas da exploração capitalista e não as neuroses de um burguês desorientado!
Se esses indivíduos permanecessem marginais, como desejam, isso não causaria nenhum problema. Contudo, na realidade, os desenvolvimentos de suas ideias são numerosos e florescem cada vez mais nos meios universitários. A. Negri e M. Hardt, com suas obras "Império" e "Multidão", oferecem verdadeiras chaves de ação para essa perspectiva. Vemos também personalidades se afirmarem cada vez mais, como Gilles Silbertin Blanc, grande deleuziano por excelência, que chegou a admitir que queria sair da Frente de Esquerda porque Mélenchon usava o slogan "o poder ao povo"[8]. Isso porque entendia que a figura do povo, enquanto maioria dominante, não considerava a diversidade das minorias que o compõem e, portanto, fazia parte dos conceitos de dominação, ou até mesmo dos “reacionários de extrema direita”. Outros ainda animam pesquisas universitárias, como Geoffroy de Lagasnerie, que tenta levar ainda mais longe as análises de Foucault e Deleuze, chegando a encontrar uma virtude positiva no neoliberalismo[9], que seria, segundo ele, permitir "desdramatizar a reflexão sobre o crime". Nesse sentido, as declarações que S. Halimi aponta parecem bastante significativas: “Lagasnerie, ele, não se interessa pela história política do neoliberalismo. Ele sabe muito bem que Milton Friedman aconselhou Pinochet; Friedrich Hayek e Becker, Reagan e Thatcher. Mas isso não o impede de alegar que os trabalhos deles ‘desdramatizaram a reflexão sobre o crime’, libertaram-na da ‘influência que exercem sobre ela categorias morais e moralizantes’: ‘Com o neoliberalismo, todo o sistema penal desmorona e se desestabiliza, uma vez que esse sistema se baseia na patologização do criminoso e no poder psiquiátrico.’”[10] Dito isto, podemos ir ainda mais longe com R. Ogien, que nos explica, no programa de Taddéi na France 2 ou em seu texto intitulado "ética minimalista", que o incesto é apenas uma norma arbitrária que se pode facilmente superar. Para esses pensadores, a constante exposição de contradições pode parecer muito irritante: eles sempre denunciam a falta de moralidade dos outros (homofobia, xenofobia, etc.), enquanto buscam constantemente transgredir todos os códigos morais estabelecidos!
Não nos damos conta, mas são inumeráveis os defensores dessa ideologia nos meios de comunicação de massa. Obviamente, são as únicas pessoas que se dizem de esquerda e a quem se oferece uma tribuna quase permanente. Assim, não se pode evitar a inenarrável Rokhaya Diallo, que ocupa uma posição bastante central nos debates de esquerda, como demonstram suas várias colunas e intervenções televisivas. Sua associação « Les Indivisibles » organiza anualmente um concurso chamado « Y’a Bon Awards », cujo objetivo é premiar as declarações mais « racistas » do ano. Aqui, listas de diversas falas são feitas e isso não choca ninguém. E pior, reduz-se o debate político a estigmatização e opinião divergente. Citamos, então, C. Fourest, defendendo as « femen » através de um livro sobre sua líder, e mais recentemente ainda, um texto sobre o « direito ao blasfemo » do jornal Charlie Hebdo, apoiando a mesma visão. Ou ainda Jean-Loup Amselle, autor de um ensaio sobre os « novos vermelhos-marrons » e Philippe Corcuff, autor de um texto intitulado « os anos 30 voltam e a esquerda está na névoa » que tendem, ambos, a caricaturar o debate público para defender essas mesmas ideias. No mesmo movimento, Yannis Youlountas deve ser notado como um personagem importante dessa corrente. Diretor de longas-metragens amplamente difundidos como « Não vivamos mais como escravos » ou, mais recentemente, « Luto, portanto, sou », ele é, através de sua obra, uma das figuras principais das chamadas lutas « antifascistas » atuais. Acrescentemos a esta lista Didier Eribon, grande discípulo de Foucault, que se destacou por um texto original « Uma moral do minoritário » e Julien Salingue, bourdieusiano, fundador da ACRIMED, que passa a vida denunciando a imprensa que não se conforma com essa ideologia. Não devemos deixar de notar Pierre Tevanian, animador de um blog intitulado « as palavras são importantes », defendendo, por sua vez, a possibilidade de usar o véu na escola para as meninas muçulmanas, considerando que é uma discriminação insuportável obrigá-las a tirar. E, além disso, também C. Autain, que criticava o Syriza por ter traído a esquerda ao colocar apenas homens em seu governo após a tomada de poder. Sem esquecer N.V. Belkacem, nossa ministra da Educação, que repete abertamente mais ou menos a mesma coisa sobre muitos assuntos.
Do ponto de vista institucional, o jornal « Libération » e o programa televisivo « Petit journal de Canal Plus » são certamente os dois meios de comunicação que melhor transmitem toda essa ideologia. Atacam constantemente os « racistas », « homofóbicos », « machistas », a « França retrógrada », os « reacionários ». Utilizam à perfeição a « jaula dos fóbicos »[11] tão querida por P. Muray. Os LGBT têm aqui todos os seus direitos, e a Parada Gay é vista como uma vontade de emancipação social e humana. Defendem todos os excessos, como os dessa cronista regular, Marcela Iacub[12], que nos explica, sem hesitar, que o amor dentro de um casal leva a crianças depressivas e suicídios… insinuando, claro, que a vida familiar é uma norma puramente arbitrária e constrangedora. Esta última, talvez com todas as suas aventuras – principalmente com Strauss-Kahn – é a caricatura absoluta e o ponto culminante de todo esse pensamento. Por trás de tudo isso, que parece banal ou sem interesse, esconde-se na verdade algo muito grave, pois é uma lógica ultracomunitarista que tende a prevalecer e dividir a sociedade de acordo com grupos sexuais ou outros. E por que não uma Worker Pride?… Talvez isso não corresponda ao meio socioeconômico dessas pessoas. É triste ver que a visão da revolta pode mudar tanto com as épocas. Passamos dos Khmers Vermelhos para os Khmers Rosas mantendo o mesmo integrismo.
São os grupos ultrarradicais que muitas vezes se apropriam desse discurso. O NPA e todas as variantes extremistas, não institucionais, da esquerda atual integraram claramente todas essas opiniões, pois estão sempre na linha de frente para lutar contra todas as « discriminações », sejam elas de trans, homossexuais, etc… (Provocando tanta confusão nas lutas prioritárias quanto nas causas principais desses males). No entanto, uma vez que desse lado surgiram questões como o casamento para todos, a gestação por substituição (GPA) ou ainda o Gender, o Partido Socialista (PS) também se posiciona nessa perspectiva, e o Medef não se opõe a tudo isso. Para os outros defensores da contestação, isso permanece ou secundário ou absurdo. Na verdade, não é errado constatar que essa orientação talvez seja um dos maiores dramas de toda a história da luta social. Inúmeros são hoje os desvios dos defensores dessa ideologia. Podemos apontar, por exemplo, todas as violências dessas associações « antifascistas » que vandalizam, destroem locais inteiros de pessoas totalmente desprovidas de qualquer capital, ou agridem fisicamente outras, simplesmente por divergências ideológicas. Sem esquecer todas as conferências interrompidas por supostas ligações com certas ideias ou facções políticas. Mas o mais grave é que ninguém percebe que essa visão de mundo pode conter uma nova ideologia realmente nauseante. Pois, se substituirmos os « brancos cis-hétero-sexistas masculinistas e puta-fóbicos do Estado colonial capitalista » por « inimigo interno », chegamos exatamente às consequências dos Estados, mas desta vez, realmente fascistas.
Hoje, com distância, podemos dizer sem problema que o “pensamento de 68” revolucionou a sociedade de mercado, fazendo-a crescer e evoluir, mas não a civilização humana. Nesse sentido, pode ser considerada a ideologia do capitalismo absoluto, ou seja, do sistema social que integra todas as dimensões da vida humana, sejam elas a família, o ser vivo, a natureza, enquanto anteriormente, as consequências eram principalmente econômicas para aqueles que sofriam a opressão mercantil. É estranhamente singular ver que essas pessoas que denunciam toda forma de moralidade compreendem o mundo apenas através de categorias morais. Elas funcionam com o terror que fazem os outros sentir – o mundo é horrível – e pressionar os outros – você é potencialmente um fascista. Sua falta de perspectiva, que não retira o fato de que sua raiva seja legítima, torna absolutamente vazio de eficácia e até mesmo prejudicial suas ações. No tabuleiro político, esse pensamento pode ser visto como uma das ideologias mais integristas que já conhecemos. Na verdade, isso não é mais esquerdismo, é neocapitalismo no plano simbólico. A noção de “minoria oprimida” não existia nos primeiros internacionalistas. Assim como é difícil imaginar Trotski defendendo a gestação por substituição (GPA) em nome da liberdade individual, é impensável considerar que aqueles que se divertem defendendo isso em nome da “esquerda” não sejam rapidamente apanhados pela realidade. Notemos, por fim, que esses intelectuais rejeitam na maioria das vezes as outras duas visões da esquerda que vamos apresentar, vendo nelas apenas expressões de “opressores disfarçados” e não opiniões divergentes.
Neomarxismo
Desde os anos 1980/1990, análises marxistas voltam à cena. Esse retorno só pôde ocorrer através de uma separação entre as ações cometidas em seu nome (URSS, China, Vietnã) e a doutrina em si, o que deu origem a uma nova interpretação que se diz livre de suas possíveis ambiguidades. Dessa forma, estudos universitários começaram a surgir de maneira a encontrar nos textos de Marx a solução para nossos problemas contemporâneos. Vemos surgir um dicionário crítico do marxismo[13] por G. Labica, permitindo, pouco a pouco, um esclarecimento e um desenvolvimento progressivo das teses desse autor, nos meios intelectuais ditos “científicos” e não mais militantes. É evidente que o fim dos 30 anos chamados de “gloriosos” deu lugar ao retorno de um sistema funcionando por crise sistêmica, especialmente com o choque do petróleo de 1973, que marcou o que foi chamado de “virada da austeridade” na França sob Mitterrand, e mais recentemente ainda a crise das Subprimes, dos bancos americanos. Entendemos então que o fenômeno de crise de superprodução inevitável analisado por Marx pôde aparecer como uma das chaves do momento. A partir daí, é um Marx universitário, filtrado a partir de um método muito preciso, que vai surgir, e que nos permitirá analisar essas novidades.
Essa esquerda realmente se distancia da nossa primeira, como testemunha o livro de Isabelle Garo, “Foucault, Deleuze, Althusser & Marx: A política na filosofia”[14]. Esta obra, após uma releitura dos autores em questão, nota a ausência real de pensamento político consequente para estes últimos. Na conclusão, pode-se deduzir que é através de um retorno ao pensamento de Marx que poderíamos entender os eventos que animam nossa atualidade, e não desdobrando o aparato conceitual supérfluo que se desenvolveu após os eventos de maio de 68. Mas, na verdade, querendo ser preciso, essa exclusão desses pensadores ocorreu progressivamente por uma crítica que nasceu nos países anglófonos, na Inglaterra e nos Estados Unidos. É de lá que nos vem um primeiro distanciamento, talvez porque exerceu ali uma forte influência. Obras como “O pós-modernismo ou A lógica cultural do capitalismo tardio”[15] de F. Jameson representam um ponto de virada do pensamento crítico neomarxista, assim como “As origens da pós-modernidade”[16] de P. Anderson. Esses autores mostram os vínculos entre esses pensamentos e a nova ordem capitalista que emerge após a Segunda Guerra Mundial. É óbvio para eles que esse mundo do fluxo, das transgressões permanentes, tão proclamado por todos esses pensadores “pós-modernos”, corresponde às evoluções e às exigências do capitalismo contemporâneo.
Há alguns anos, alguns pesquisadores têm se reunido em torno da figura central de Marx. Eles se encontram em um seminário anual intitulado "Marx no século XXI"[17] – notável, aliás, pelo grande sucesso – organizado pela Universidade de Paris Sorbonne. Concentrando-se em torno de um coletivo bem definido, eles atualizam autores esquecidos ou pouco conhecidos dessa tradição, bem como seus grandes conceitos teóricos, como os movimentos de massa, o proletariado, etc. Podemos ver uma de suas últimas publicações, “Marx político”[18], como uma obra totalmente representativa de suas ideias. O objetivo dessa esquerda neo-marxista é atualizar uma leitura da história da humanidade através da luta de classes, que ela transpõe para nossa modernidade próxima. Ela enfatiza mais as condições de produção de nossas sociedades capitalistas e as diferentes formas de lutas que elas devem novamente engendrar. Um dos objetivos é reafirmar a importância central da dialética (aufhebung) da história no processo de compreensão da realidade, dialética absolutamente odiada pelos adeptos da primeira esquerda. Em suma, trata-se, para eles, de estabelecer uma estratégia anticapitalista eficaz, que leve em conta as contradições atuais, e não mais os esquemas, para eles antigos, do comunismo de outrora. A intenção é dar aos movimentos sociais uma direção correta para encontrar um projeto autenticamente internacionalista, o que supõe, para esse efeito, harmonizar as formas mais avançadas das forças de oposição ao sistema[19]. Isso dito, esses intelectuais mantêm igualmente as lutas “sociais” chamadas das minorias. Eles simplesmente reajustam as prioridades de combate, englobando-as em uma revolução mais global.
Os autores que parecem estar sendo redescobertos são pessoas muito diferentes. A. Gramsci (penúltimo colóquio) aparece, por exemplo, como uma nova autoridade, especialmente pela redescoberta de suas noções de hegemonia cultural (perda de referências da esquerda atualmente na sociedade) ou de “revolução passiva” (com a construção europeia). Mais recentemente, nota-se um trabalho sobre N. Poulantzas (último colóquio), filósofo francês que lhes permite encontrar filiações, entre outras, com Foucault e Marx. Seu principal livro, “O Estado, o poder e o socialismo”, nos diz que “O Estado não é um bloco monolítico, mas um campo estratégico”. Essa ideia, foucaultiana por excelência, os autoriza a repensar estratégias políticas localizadas a serem implementadas para agir sobre o corpo social a fim de fazer evoluir os quadros objetivos que este início de século (marxismo-leninismo) deu a toda perspectiva de revolução, especialmente com a função primordial de tomada de poder pelo Estado. O objetivo deles não é, concretamente, a imediata supressão da propriedade privada, mas, primeiro, aceitar esse componente para lutar contra assuntos mais primordiais no contexto presente, como a austeridade europeia: julga-se a radicalidade de uma doutrina pelo seu pano de fundo, e não em relação a ideias pré-estabelecidas. Ramzig Keucheyan é, deste ponto de vista, um ilustre intérprete desses pensadores. Ele escreveu uma síntese dos movimentos de contestação intitulada “Hemisfério Esquerdo. Uma cartografia dos novos pensamentos críticos”[20], na qual mostra o impasse prático de certas concepções políticas que não levam em consideração essas novas reflexões marxistas.
Como podemos ver através das suas publicações, os temas abordados aqui frequentemente correspondem a verdadeiros problemas políticos. Notamos o texto sob a direção de Cedrid Durand, "Acabar com a Europa" [21], que tem o mérito de levantar questões candentes. Nesse meio, uma figura emerge particularmente, na pessoa de Stathis Kouvelakis, rara singularidade ao destacar verdadeiros momentos de lucidez: “A UE é uma encarnação desse internacionalismo do capital. É um espaço político do qual as classes populares são excluídas. No passado, nuances puderam existir entre as elites europeias sobre o tipo de dinâmica econômica e regime político a desenvolver. Desde o relançamento do projeto europeu, com o ato único de 1986, o neoliberalismo reina sem contestação. A UE tende, desde suas origens, a escapar ao controle popular." [22] Representando a perspectiva mais coerente, ele é, sem dúvida, o mais brilhante e engajado, o que lhe permite se destacar como a referência legítima, publicando regularmente artigos em todos os meios de comunicação. Notamos também personalidades interessantes como François Ruffin, tanto com seu jornal FAKIR, raro instrumento de análise de esquerda hoje em dia, quanto com seu livro intitulado "Devemos queimar Bruxelas?". É aqui, junto com F. Lordon, que encontramos a visão crítica mais radical contra as instituições europeias, verdadeiros transmissores da lógica neoliberal. Esses dois últimos autores não pertencem diretamente a este grupo, mas compartilham muitos pontos de vista.
Uma das personalidades mais influentes, e certamente também uma das mais talentosas, é um eminente geógrafo marxista americano, em honra de D. Harvey. Este desenvolveu uma abordagem das mais inovadoras, mostrando a relação que a lógica do capital mantém com os diferentes territórios do planeta, o que lhe permite destacar as transformações das vilas, cidades, metrópoles, ao sabor das evoluções do mundo mercantil. Pela primeira vez, saímos de uma leitura estritamente economista. Além disso, ele retoma uma leitura da função hegemônica do capitalismo em seu livro "O novo imperialismo" [23], mostrando o desenvolvimento necessário do sistema de acumulação por despossessão que sofremos, mecanismo identificável pelo fenômeno da Dívida, que acumula despojando (lógica financeira) e não mais produzindo (lógica do capitalismo industrial). Novos elementos, que correspondem às evoluções das nossas sociedades, são introduzidos nas análises, o que, admitamos, estimula intelectualmente em comparação com as elucubrações fantasmagóricas da primeira esquerda dita cultural - colocando a luta no nível simbólico e não mais político.
Ao lado deles, notamos também figuras bastante interessantes, mas que permanecem um pouco como peixes voadores. Eles não estão imediatamente integrados a este vasto movimento, mas o sublimam de uma maneira diferente. Na verdade, personalidades como A. Badiou, tendo uma coluna regular no Mediapart, e S. Zizek, dando palestras para auditórios lotados como uma estrela do rock, figuram como verdadeiras ícones pop da contestação. Intelectualmente diferentes e interessantes, eles desenvolvem uma forte maestria dialética. No entanto, rapidamente percebemos que eles se unem politicamente em um apelo incantatório à revolução, sob uma forma de busca mística quase religiosa, o que os torna absolutamente ridículos do ponto de vista prático. Em última análise, são dois metafísicos que, por mais que raciocinem brilhantemente, não conseguem tocar a realidade e encontrar soluções pertinentes. Dito isso, onde Badiou permanece fechado apenas em seu sistema de "Ideias puras", Zizek, por outro lado, oferece uma verdadeira crítica, das mais pertinentes, da nossa pós-modernidade, embora suas conclusões não estejam à altura de suas análises.
As esquerdas institucionais e radicais surgem e se reivindicam desses pensadores. Syriza, contração de "Synaspismós Rizospastikís Aristerás" traduzido como Coalizão da Esquerda Radical, poderia ser o grande representante deste novo espírito, como vemos, desde seu nascimento, através dos intelectuais que agem diretamente de dentro. A vontade subjacente é criar uma nova força de esquerda (como seu nome indica) tanto capaz de reunir todas as forças contestatórias em luta quanto de se separar radicalmente da direita. Encontramos o mesmo no Front de Gauche na França, e o Die Linke (a esquerda) na Alemanha possui os mesmos pensamentos subjacentes. O programa de luta contra a austeridade e não de saída do euro, por exemplo, é o resultado dessas análises. E então, o pressuposto internacionalista visível na ideia de superação das fronteiras, das identidades, das nações está presente entre eles. Para se informar sobre o avanço de suas pesquisas, podemos frequentar a revista online Contretemps [24], que é seu principal porta-voz. Na Europa, apenas o partido "Podemos" permanece mais nuançado, pois é de inspiração mais latina, como testemunha a perda da referência esquerda/direita que ele coloca em destaque, e que dá lugar a uma oposição mais realista entre a "casta" e o "povo". Onde as esquerdas europeias têm suas raízes em uma renovação das leituras de Marx, na verdade, a contestação espanhola reativa laços que possui, por sua história, sua cultura, com a América Latina, o que a torna uma das principais introdutoras dos movimentos bolivarianos na Europa.
Hoje, pela primeira vez, propõe-se uma visão de um marxismo claramente compreendido, livre de suas fraquezas internas e, sobretudo, como bússolas para as lutas anticapitalistas futuras. Paradoxalmente, talvez também seja uma época em que o marxismo estrito permanece mudo sobre nossa realidade imediata. Pois, o que pode fazer o homem que falava de revolução proletária em um mundo onde as relações de classe não são mais claramente identificáveis como antes, onde o operário meramente explorado stricto sensu não existe mais, substituído por um trabalhador que é ao mesmo tempo explorado/explorador, onde a sociedade de consumo modificou a relação com a mais-valia, onde as novas tecnologias, os meios de comunicação de massa, mudam constantemente nossa relação com a alienação... Fazem-nos acreditar na radicalidade deste autor, mas muitas vezes ocultam que nunca houve anteriormente uma doutrina unificada em Marx, tanto em seus textos pessoais quanto entre seus leitores. Para terminar, de forma geral, pode-se dizer que essas duas esquerdas sempre jogaram a favor do capitalismo historicamente, assim como a ambiguidade dos textos de Marx nunca conseguiu se separar definitivamente da lógica do capital. Elas compreendem o mundo apenas a partir de um prisma exclusivamente teórico, o que as faz perder de vista novas realidades e frequentemente em contradição com a própria doutrina. Em si, o problema nunca foi Marx, mas esses supostos marxistas que acabam sempre transformando-o em um evangelho e terminam como fiéis recitando mantras.
Neo-stalinismo
Diferentes eventos aniquilaram a esperança que o mundo comunista estabelecido no Leste dava ao mundo. De Solzhenitsyn através de seu livro "O Arquipélago Gulag"[25], ao movimento antitotalitário que associava facilmente o comunismo e o fascismo como dois regimes identicamente totalitários, passando pelas descobertas estabelecidas definitivamente após a queda do Muro de Berlim (campo de trabalho, gulag, etc...), tudo isso deixou sem voz os defensores deste socialismo à moda antiga. Além disso, a Guerra Fria e a luta cultural que os Estados Unidos travavam contra seu rival soviético não ajudaram a tornar o assunto mais fácil. Hoje em dia, a reabertura da historiografia russa ainda é muito marginal, mas é inegável que ela tem toda a sua legitimidade.
O intelectual de referência desse meio é certamente Lênin. A originalidade de suas análises se decompõe em duas partes. Por um lado, há a obra que anima internamente esse movimento, sem dúvida, "Imperialismo, etapa superior do capitalismo [26]". Afirmando que o capitalismo, ao atingir um certo estágio, cria necessariamente monopólios, estes acabam por competir entre si, o que finalmente resulta em lutas dentro da própria oligarquia com o objetivo de conquistar territórios e mais poder exclusivo. Esta grade de análise explica notavelmente, admitamos, as diferentes conquistas coloniais que ocorreram no século XIX, em particular, a partilha da África entre os países europeus. Por outro lado, como complemento a esta obra fundamental, a solução que ele propõe é desenvolvida em seu texto "O que fazer? [27]", no qual ele explica que para lutar contra este império que estrutura nossas vidas, apenas a tomada de poder pelo Estado é legítima. Esta adição representa uma verdadeira contribuição à concepção ortodoxa do marxismo, que, com sua visão puramente mecanicista da história, dispensa a necessidade de intervir particularmente nela. Aqui, questiona-se a ideia de que é absolutamente necessário que as condições objetivas sejam favoráveis para fazer a revolução. É neste sentido que se fala de "marxismo-leninismo": retoma-se a teoria materialista da história, das relações de produção de Marx, e adiciona-se a lógica imperialista e o interesse da intervenção do Estado para modificar essas estruturas.
Ainda muito poucas pessoas sabem que Lênin não era apenas um político, mas também um grande teórico, como prova sua imensa obra e suas filiações, especialmente com sua discípula R. Luxemburgo. Sua obra, por exemplo, como "Materialismo e Empiriocriticismo", está no coração das controvérsias filosóficas que ainda animam a cena intelectual contemporânea. Este texto refuta, por si só, todas as tradições empiristas, pragmáticas e analíticas e suas variantes, que tendem a se tornar o pensamento oficial de nossas universidades. Ao mostrar que não podemos conceber a realidade apenas a partir da experiência, pois esta já é sempre construída por relações de classe, ele pretendia mostrar que o empirismo era o pensamento adequado à burguesia. De Bergson a W. James, discute-se o que hoje tomamos como evidente. Pode-se ver também em Stálin um autor de um corpus teórico significativo. No início do século, não havia distinção entre um homem de campo e um homem de ideias, separação que, aliás, marca uma virada radical em nossa visão da política.
Esta esquerda, que poderíamos qualificar de neo-stalinista, supondo que Stálin tenha continuado um trabalho já iniciado por Lênin, se destaca bastante das outras, ancorando seu discurso em uma realidade histórica específica. Ela afirma o Estado, o anti-imperialismo, mas rejeita os Estados-nações com o objetivo de sair definitivamente da lógica do mercado. Considera a supressão da propriedade privada como um elemento central, o que faz com que a defesa da nação e a regulação da economia por uma autoridade legislativa permaneçam, segundo ela, características do capitalismo antigo. Da mesma forma que Lênin já denunciava a defesa da nação como um "chauvinismo burguês", para ela, as questões culturais são totalmente deixadas de lado, uma rejeição que provém de uma leitura puramente materialista da história, nunca simultaneamente espiritual e material, simbólica e física. Politicamente, hoje, um partido representa esses interesses, o PRCF, partido de refundação do comunismo francês. É presidido por G. Gastaud, autor de vários livros, incluindo "Marxismo e Universalismo", bastante estimulante. Esse agrupamento propõe sair da Europa, do euro, da OTAN e também do capitalismo, o que, em comparação com o programa dos nossos outros camaradas, parece pela primeira vez radical. Aqui, G. Marchais é visto como um grande político, embora seja absolutamente odiado pelos outros. Detalhe que diz muito sobre o inconsciente das outras esquerdas.
Reunindo-se frequentemente na Livraria dos Trópicos em Paris, pode-se ver emergir diferentes figuras. Em particular, Annie Lacroix Riz, que com seus estudos sobre a oligarquia do entre-guerras, seus diversos prefácios, tornou-se por si só a grande representante desse meio. Historiadora de formação, ela se esforça para reconstituir a história real da experiência comunista na Rússia. Ela denuncia, entre outras coisas, a implicação da Sinarquia, elite burguesa composta por industriais e banqueiros, durante a Segunda Guerra Mundial. Ela critica rigorosamente as bases da construção europeia que ela relaciona com a vontade americana de prejudicar a ameaça soviética. Suas intervenções são cruciais para os defensores dessa linha política. Da mesma forma, uma personalidade importante como diretor e fundador das Edições Delga, Aymeric Monville destacou-se por alguns ensaios pertinentes sobre a evolução da esquerda. Discípulo de M. Clouscard, ele continua essa mesma crítica denunciando a deriva "libertária" através do prisma da evolução da sociedade industrial para uma sociedade permissiva para o consumo, repressiva para a produção. Tudo é permitido (do ponto de vista dos costumes, das ideias), mas nada é possível (do ponto de vista das melhorias para os trabalhadores/produtores). Esse autor, injustamente pouco conhecido, é um dos primeiros a falar da concepção "liberal-libertária" do capitalismo contemporâneo e até mesmo a desenvolver a nova maneira como o desejo e a sedução se desdobram em nossa nova vida cotidiana. Todos esses temas já estão na oposição às nossas duas primeiras concepções da esquerda contemporânea, que permanecem cegas ao mecanismo de recuperação do desejo que, para eles, é fundamental na contestação. Encontraremos na sequência autores como D. Pagani e F. Negroni, outros discípulos de Clouscard, que realizam conferências com o objetivo de divulgar seu pensamento.
As Edições Delga representam seu maior meio de difusão. Elas publicam uma série de textos em secessão com as duas outras vertentes da esquerda contemporânea e representam sempre um interesse real para questões candentes. Nota-se, por exemplo, o de Geoffrey Roberts "As guerras de Stalin", que é certamente uma das referências mais importantes atualmente nesse cenário. Ele pretende restabelecer uma leitura da história soviética independente da historiografia clássica, a respeito de um assunto eminentemente crucial que são as diferentes guerras que opuseram a Alemanha e a Rússia. Este último é tão contra a corrente que houve até uma polêmica[28] sobre a questão da censura na universidade Paris 1. No mesmo sentido, uma obra fundamental intitulada "Khrushchev mentiu"[29] de Grover Furr aponta que o julgamento feito a Stalin e todos os crimes que lhe foram atribuídos eram na realidade baseados em falsos testemunhos. Ou ainda dois livros mais contemporâneos que ousam abordar assuntos que os dois outros campos não ousam considerar, a saber, a instrumentalização americana para fins geopolíticos. A esse respeito, "Matar uma nação. O assassinato da Iugoslávia"[30] de Michael Parenti e "Ucrânia, o golpe de Estado"[31] de Stephen Lendman marcam um esforço real de ampliação da perspectiva dominante entre os outros representantes da esquerda. O mesmo vale para os livros de D. Losurdo, grande marxista italiano, raro representante da linha marxista-leninista na Europa; seus livros sobre o liberalismo, a novilíngua americana, permanecem livros totalmente fascinantes.
Pode-se notar através desta classificação que quanto mais a esquerda é conhecida, menos ela é perturbadora. Esta terceira linha política é talvez de todas a mais interessante. Mas do ponto de vista político, ela permanece absolutamente marginal. O neostalinismo consiste em restabelecer uma leitura alternativa da nossa concepção dos fenômenos comunistas no Leste durante o século XX. Teoricamente, pode-se notar também que embora Lênin tenha antecipado através de sua noção de imperialismo a globalização econômica, ele não podia ver todas as evoluções culturais, identitárias, tecnológicas, geográficas e naturais que tudo isso traria. Ele não podia, além disso, prever a internet, que modifica nossa relação com o mundo, nem a poluição, nem o desmantelamento dos tecidos culturais. Filho de sua época, ele viu longe, mas não o suficiente para antecipar nosso futuro. Mas dito isso, este movimento permanece afligido pelo maior erro de Marx, que consiste em acreditar que a história é o resultado da luta de classes. Na verdade, esta última é o produto das culturas, dos interesses diferentes, das identidades heterogêneas. As relações comerciais intervêm muito raramente. Não se pode explicar as diferentes lutas religiosas por simples conflitos econômicos, mas pela vontade propriamente humana de se encarnar no mundo. No fundo, esta esquerda não quer ultrapassar a grade de leitura marxista, o que a levou a interpretar eventos atuais com um esquema obsoleto. Observemos também que muitos dos temas abordados por este movimento são tratados por este jornal crucial que é o Le Monde diplomatique. Este último situa-se a meio caminho entre a nossa segunda esquerda e esta. Ele aborda, além disso, temas como a manipulação da informação, dos meios de comunicação por S. Halimi, assunto absolutamente ocultado por todos os outros, como se isso não fosse realmente importante.
Globalização e Anticapitalismo
O que podemos concluir, ao nos distanciarmos de todas essas análises? Que, evidentemente, e apesar de suas heterogeneidades, esses movimentos convergem em pelo menos algumas grandes linhas políticas. Todos concordam em combater o sistema econômico capitalista ou em defender certos avanços sociais, embora esses não sejam colocados no mesmo patamar por todas essas organizações. Também compartilham uma certa visão de progresso que visa superar os arcaísmos do passado. Do mesmo modo, rejeitam a religião como superstição e questões culturais e étnicas como invariantes de uma epistemê "de direita", considerando-as apenas reflexos de estruturas econômicas mais fundamentais. Esses acordos implícitos revelam uma verdade que lhes permanece desconhecida. De forma objetiva, o que os estrutura de maneira inconsciente é sua profunda incompreensão de um fenômeno chamado globalização, entendida como a tendência de generalizar as trocas entre os diferentes territórios do planeta[32]. O erro desses pensadores está em não assimilarem que todas as questões que levantam inevitavelmente encontram esse processo mais amplo. Eles se limitam a refletir dentro do esquema marxista que opõe a economia a outros domínios da vida social, sem considerar a intrincada interação entre essas esferas. No entanto, hoje, a desagregação dessa representação torna-se cada vez mais evidente, pelo menos no debate público, porque as últimas quatro décadas aceleraram esse movimento. Do Plano Marshall ao TAFTA, atualmente em negociação, do surgimento da sociedade de consumo à hegemonia americana, do desenvolvimento de guerras de intervenção à instrumentalização dos direitos humanos, da internet à destruição de ambientes e culturas, e, ainda mais, à financeirização que superou a industrialização, alterando profundamente nossa relação com o capital, tudo isso favoreceu a uniformização do planeta.
Podemos recordar que, quando um ministro tentou lançar um debate sobre a "identidade nacional", toda a esquerda se uniu, como em um catecismo, para negar brutalmente a controvérsia. Segundo ela, essa questão só poderia ser vista como uma estigmatização de uma parte da população que não seria bem aceita no país. No entanto, certamente é o sentido inverso dessa resposta que deveria ter sido destacado pelos espíritos mais lúcidos de nossa época. Era preciso, antes de tudo, recolocar o problema em seu contexto, mostrando que, na era das cidades globais, onde todas as culturas se cruzam sem dialogar, talvez seja importante perguntar o que ainda conecta, une, as pessoas que habitam este mesmo lugar chamado França. Quem somos nós? Onde habitamos? Que valores temos? Em um mundo onde tudo se transforma da noite para o dia, temos o direito de questionar esse fluxo perpétuo? Essas perguntas são legítimas, não para excluir ninguém, mas, ao contrário, para afirmar a possibilidade de um direito à diferença diante da indiferença promovida pela massificação indefinida da humanidade – uma diferença que, por fim, permite abrir-se ao mundo. Querem nos fazer acreditar que o movimento perpétuo é uma norma absoluta. No entanto, para que haja mudança, é necessário que em algum momento haja fixação, seguida de superação; caso contrário, não é variação, mas destruição mútua. A identidade, nesse sentido, é tanto o que resta após uma transformação quanto o que a permite. Portanto, reduzir essa questão a um simples "tudo muda o tempo todo" (hipótese construtivista), como fazem aqueles que se opõem a essa problemática, não responde às suas premissas. Isso equivale, pura e simplesmente, a negá-la. Uma árvore, por exemplo, que perde suas folhas é ao mesmo tempo a mesma e outra: a mesma porque mantém seu tronco, outra porque perdeu uma parte de si. Aqui, através da passagem de um estado a outro, constatamos o surgimento de uma mudança. Mas, se eliminarmos completamente seu tronco e suas folhas, então ela será destruída definitivamente. O mesmo esquema pode ser aplicado às civilizações. Se, da noite para o dia, zonas urbanas (como os subúrbios franceses) perdem toda referência ao que as precedeu, não se trata mais de mistura, mas de aniquilação pura e simples de costumes e alteridade. Dessa forma, se considerarmos que essa globalização tende a reduzir a diversidade cultural pela aceleração dos fluxos humanos, teremos a tendência de querer preservar essa diversidade. Isso não nos tornará "homens de direita", mas simplesmente nos levará a resistir a um rolo compressor que nivela todos os seres humanos na Terra. Na realidade imediata, podemos dizer que defender a cristandade da Europa é defender o direito dos europeus a uma singularidade que não corresponde a um mundo onde tudo seria idêntico, uniforme, intercambiável ao infinito, e isso nada tem a ver com restaurar, de maneira "reacionária", um mundo antigo.
Nada é mais emblemático do fenômeno globalista do que os shopping centers, que se espalham pelo mundo, mostrando a consequência imediata dessa globalização: edifícios absolutamente uniformes destinados a atividades similares, sem refletir qualquer particularidade cultural, singularidade ou vínculo histórico. São locais de atividade constante, mas nos quais, propriamente falando, nada de humano ou memorável acontece – nenhuma marca ou registro é deixado. Esteja você em uma loja ou hotel na França, na Índia ou no Alasca, você está sempre no mesmo ambiente, um mundo que se repete infinitamente. Essa lógica das grandes superfícies pode ser estendida hoje a outros elementos que estruturam nossa sociedade: os lugares de conhecimento (universidades), os espaços políticos (instituições) e os marcos históricos (monumentos), que começam a se alinhar a esse padrão, tornando-se cada vez mais parecidos com supermercados para turistas ou consumidores. O mesmo se aplica a atividades específicas, como a alimentação, com produtos industrializados consumíveis em qualquer lugar; às relações humanas, moldadas por códigos supranacionais que invadem nossas vidas; e à sexualidade, com a pornografia se institucionalizando como norma global. O mesmo ocorre com a moralidade e os valores, agora ajustados a um molde liberal/libertário universal. Esses fenômenos, que se tornam cada vez mais homogêneos de Paris a Hong Kong, passando por Caracas, Nova Délhi e Dakar, mostram que agora vivemos em uma cultura mundial única. No entanto, assim como um crente não admite que tem fé em Deus porque essa crença é fundamental para sua vida, temos enorme dificuldade em perceber nossas atividades na escala global. Pela primeira vez na história, as instituições – desprovidas de qualquer vínculo histórico ou raízes – se instalam ao nosso redor sem gerar questionamentos. O número de ferramentas que facilitam os intercâmbios (internet, smartphones) e os meios de transporte que aceleram a globalização continua crescendo. Hoje, essas práticas já se tornaram tão inconscientes que perdemos a capacidade de compreendê-las plenamente. Seu objetivo não é valorizar a diferença, mas trazer o outro para dentro de si mesmo, nunca ver no outro um reflexo legítimo de sua própria alteridade. É bem visto ter amigos chineses, não para entender as diferenças que nos separam, mas para reafirmar uma particularidade individual.
Uma vez que admitimos isso, observamos um paradoxo: os grupos que hoje animam a contestação mantêm uma binaridade absoluta em suas análises (esquerda = bem e direita = mal), acompanhada de um sectarismo e isolamento. Vendo-se como um bloco único, eles percebem seus adversários de forma homogênea, ignorando diferenças internas. Seu lema é: "Nós, a esquerda, independentemente de nossas divergências, nos opomos à direita, que seria o nosso exato oposto." Misturando De Gaulle, Bonaparte, Barrès e Maurras como se fossem indistinguíveis, amalgamam ideias de enraizamento e nação como conceitos a serem rejeitados. É como misturar Marx, Proudhon, Stálin e Mao para dizer que todos são "potencialmente nocivos" apenas por suas conexões históricas. Essa oposição irreconciliável, que estrutura o debate intelectual contemporâneo, é fruto da Revolução Francesa e atravessa as épocas separando o espectro político com base em ideologias abstratas, ignorando atos concretos. Quantos católicos dedicaram suas vidas aos pobres, enquanto muitos "bobos urbanos" raramente pensaram além de si mesmos ao criticar os menos favorecidos? Ainda assim, em nosso sistema político, organizações católicas são marcadas como de direita, enquanto os "bobos" são todos associados à esquerda. Mesmo anticapitalistas sinceros preferem evitar a luta contra a gestação por substituição (GPA) a se associarem a um movimento religioso que a conteste. E fora de nossas fronteiras? Seria possível imaginar, por exemplo, Rafael Correa liderando a França sem ser rotulado como "extrema-direita"? Um presidente anticapitalista, católico, patriota e contra o "casamento para todos" seria imediatamente classificado como tal. Da mesma forma, seria possível ouvir um líder de esquerda clamar "pátria ou morte" na ONU, como fez Che Guevara em resposta ao embargo dos EUA contra Cuba? Ou escutar um discurso de Hugo Chávez ou Evo Morales sem suspeitar de "reacionarismo", priorizando o desenvolvimento material e a saúde universal em vez da igualdade de gênero? Essas diferenças são, na verdade, fluidas. A América Latina mostrou que sua história revolucionária não se baseia nas distinções de 1789, evitando oposições artificiais como religião à direita e ateísmo à esquerda, divisões que facilmente se invertem nos arquivos da resistência. Nesse sentido, é mais importante saber contra quem lutamos do que como ou com quem. O objetivo é mais relevante do que os meios. Essa confusão permeia tanto a esquerda que envenena todas as iniciativas contestatórias, destacando as "más companhias" em vez dos problemas principais. Por exemplo, Étienne Chouard não é criticado por sua ideia de democracia por sorteio, mas por suas associações intelectuais. Ao se recusar a aceitar que a esquerda sempre tem razão e que a direita é sempre má, ele se torna alvo de intermináveis acusações de "má conduta ideológica."
O capitalismo, tão criticado por certos pensadores como um problema central, é, na verdade, apenas um epifenômeno de um processo mais amplo e ainda mais perigoso: a homogeneização completa do mundo. Ele representa o elemento mais visível de uma questão maior. Para além dessa visão simplista, pode-se definir esse sistema como o "reinado da quantidade sobre a qualidade"[33]. Trata-se de um confronto entre o mundo dos valores comerciais (mercantilização de todos os aspectos da vida – cultural, natural, sexual, biológico) e o mundo dos valores humanos, históricos, éticos e tradicionais. Em outras palavras, é o embate entre a determinação e a limitação (qualitativas) contra a indeterminação e a ilimitabilidade (quantitativas); o confronto entre o imaginário do número, do abstrato, e o domínio do incalculável, do concreto e do inestimável. Esse processo resulta na eliminação de todas as fronteiras, sejam simbólicas, econômicas, antropológicas (como na transição para uma humanidade "ciborgue"), naturais ou geográficas. Tudo converge para a formação de um magma informe, prenatural e infinitamente moldável. Nossas elites, frequentemente presas a uma visão economicista, não percebem que a sociedade de mercado não é apenas um fenômeno econômico – erro comum a comunistas e liberais – mas um processo que visa, intrinsecamente, unificar tudo, esvaziando coisas de suas qualidades por meio de estruturas institucionais padronizadas. Enquanto essa visão predominar, questões essenciais, como fronteiras, protecionismo estatal, identidades coletivas, migrações incessantes e desenraizamento, permanecerão tabus. O sociólogo Zygmunt Bauman descreve essa realidade cotidiana como uma "vida líquida", onde nada é estável ou duradouro. Hoje, essa liquidez tende a se tornar gasosa. Não há mais transcendência – não no sentido religioso, mas como uma estrutura vertical ou hierarquia legítima. Como observou Marcel Gauchet, a "norma antinormativa"[34] permeia a arte, a sociedade e os debates intelectuais, alimentando a sensação de que não há mais limites, seja para o homem, para o mundo ou para a natureza.
Um dia veremos esse fenômeno explodir? É a opinião de Hervé Juvin, que observa em seu livro "Le renversement du monde: Politique de la crise"[35] que estamos testemunhando atualmente não uma simples crise econômica clássica, mas uma das primeiras crises da globalização, como evidenciam as diversas tensões que surgem em todas as esferas da vida social. Para além dessa constatação, sua obra oferece certamente uma das melhores compreensões da nossa situação mundial. Seus três livros fundamentais, "L’avènement du corps", "Produire le monde" e "La grande séparation", analisam profundamente as grandes transformações que estão por vir. Ele se esforça em responder às grandes questões do nosso presente imediato, abordando, por um lado, a maneira como o corpo surgiu em nossas sociedades como o único absoluto de nossas vidas cotidianas; depois, sua reflexão aponta o desafio atual do esgotamento de nossos recursos, o que, segundo ele, nos levará inevitavelmente a "produzir" o mundo em que vivemos, incluindo elementos essenciais como o ar, a água e a terra, exigindo desde já a formulação de uma mudança vital de paradigma. Finalmente, ele aborda a destruição da diversidade humana que está em curso e que, certamente, é o maior desafio da nossa época. Sob a pressão dessa mobilidade permanente de trocas constantes, estamos, em última análise, revisitando fundamentos antropológicos ao criar uma sociedade baseada na separação entre "nós" e "eles" – um critério de diferenciação, riqueza e complexidade do mundo. Por isso, suas pesquisas culminam em seu último livro, "Le mur de l’ouest n’est pas tombé"[36], que levanta todas as questões relacionadas a essa nova condição humana. Nossa dependência do "mundo do Tio Sam" é, atualmente, sobretudo cultural. Contra isso, será necessário, no futuro, recuperar a força de afirmar ser francês, reafirmando nossa singularidade no mundo. Trata-se de enfrentar um tempo que considera suas origens, sua identidade, como uma ofensa, uma vergonha, e um tabu, preferindo, para toda a população, tanto a negação quanto o abandono de si mesmo em troca da perda de suas preferências singulares, a fim de se afogar em uma cultura mundial, miscigenada, pacificada e diretamente produzida pelo soft power americano. Em breve, será necessário assumir a ideia de que se distinguir, se particularizar, é a essência mesma da vida – uma condição mínima para oferecer aos outros uma riqueza, uma alteridade. A contradição lógica entre a defesa da diversidade e a do miscigenamento deverá, no futuro, ressurgir, pois não pode haver diferença entre indivíduos se essas mesmas pessoas estão todas misturadas de maneira indistinta. As divisões culturais deverão reaparecer como uma libertação da superabundância global, pois ser francês, inglês, chinês, congolês – e não outra coisa – é, antes de tudo, o maior presente que podemos oferecer aos outros. Essa será a questão que anunciará a revolução dos tempos vindouros em resposta à nossa globalização.
O que todos esses intelectuais de "esquerda" não conseguem enxergar é o fenômeno de homogeneização que tomou conta de todo o planeta. Ao negá-lo, eles rejeitam, de fato, todas as questões relativas à sua compreensão e superação. A esquerda europeia nasceu em um mundo fechado, delimitado e oprimido por uma classe dominante local. No momento atual, quando a globalização nunca foi tão forte, ela perde todo o sentido, pois os marcos que estruturam nossas sociedades evoluíram. Por isso, um dia será necessário atualizar uma crítica ao sistema que vá além de seus fundamentos históricos. Questões como imigração, identidade e nação – tabus absolutos para todas as variantes da esquerda – terão de ser abordadas mais cedo ou mais tarde, não pela sobrevivência da contestação oficial, mas pela sobrevivência da humanidade. É um truísmo dizer que só podemos lutar contra aquilo que acreditamos ser nosso inimigo. Contudo, hoje, o adversário está tão mal identificado que isso torna todas as lutas dispersas e seus resultados praticamente nulos. Se a esquerda não modificar algumas de suas orientações teóricas, será a realidade que a forçará a fazê-lo. Nossa visão desglobalizante ainda não tem uma resposta política precisa, mas a história certamente será obrigada a encontrá-la.
Notas
[2] Lénine, Gauchisme, maladie infantile du communisme , Editions Des Langues Etrangers,1970
[3] G.Deleuze et G.Guattari, l’Anti-Œdipe, Editions de Minuit, 1972
[4] Cf. http://1libertaire.free.fr/IntroVieNonfFasciste.html
[5]Eric Fassin, gauche : l’avenir d’une illusion, Textuel, 2014
[6] Aveu de Nicolas Offenstadt https://www.youtube.com/watch?v=-Eokttsr_jU
[7] Édouard Louis, Pour en finir avec Eddy bellegueulle, Points, 2015
[8] Gilles Silbertin Blanc. Conference.https://www.youtube.com/watch?v=JbwGs9YrD9E