03/12/2019

Ernst Jünger - As Memórias de Trótski

por Ernst Jünger

(1930)




1.

O estudo dessas memórias muito interessantes, disponíveis graças aos editores da S. Fischer, será mais fácil para quem sabe como olhar através dos olhos do autor. Trótski é um racionalista, embora um racionalista do tipo mais determinado, que de modo algum se contenta com a ordem das coisas como elas aparecem dentro dos limites do conhecimento. Em vez disso, ele está sempre pronto para realizar essa ordem no âmbito do Ser [diese Ordnung im Sein verwirklichen] - desde que as condições necessárias estejam presentes, isto é, se ele tiver o poder.

Pode parecer estranho associar esse nome, que está inseparavelmente ligado a um dos maiores processos de destruição da história moderna, à noção de ordem. E, no entanto, isso é justificado. Os leitores que possam ter certos preconceitos sobre a natureza da revolução russa, como os que são comuns em nosso país, ficarão surpresos ao encontrar uma mente precisa, educada em economia política, filosofia ocidental e na dialética da luta de classes, que em uma tarde de discussão provavelmente tem coisas interessantes a dizer sobre romances franceses, pinturas impressionistas e diferentes tipos de caça a patos também.


Para aprender sobre o aspecto bárbaro-cita desta revolução, é preciso consultar outras fontes. Essa envolve principalmente seu arcabouço teórico, seu método de preparação secreta e aberta e seus princípios organizacionais de tomada e manutenção do poder. Não por acaso coube a Trótski moldar o instrumento principal de seu poder, o Exército Vermelho, ou que a tarefa de racionalização científica - acima de tudo, a eletrificação da indústria de armamentos - lhe foi atribuída quando ele parecia se tornar um arriscado titular de sua posição.

Nesses papéis, ele alcançou feitos significativos. Na medida em que a revolução foi um evento ocidental, é justo dizer que esse era seu elemento real. Sua estrela, no entanto, estava fadada a desaparecer na medida em que o aspecto essencialmente russo desse fenômeno começou a ficar mais claro. Aqui Trótski pisa em terreno cada vez mais incerto. Seus olhos estão cegos para os poderes emergentes do solo, cujo princípio escapa ao seu cálculo. O que ele vê sobre eles é apenas seu aspecto personificado - ou seja, os novos homens gradualmente ganhando controle. Ele os despreza como pequenos-burgueses, nacionalistas, termidoristas e falsificadores das ideias marxistas e leninistas, mas não pode deixar de ser logrado de uma maneira que é inexplicável para ele.

Se Trotsky fosse um teórico puro, poder-se-ia aceitar o ditado que é o lema tácito de suas memórias, "contra a estupidez até os deuses lutam em vão", como desculpa adequada, embora apenas do seu próprio ponto de vista. Mas como ele também é um praticante de alto escalão, a desculpa é insuficiente: a estupidez humana, afinal, é um fator garantido - um elemento real importante que todo ator, especialmente o político, deve levar em consideração.

Mas talvez as pessoas ao redor de Stálin não sejam tão estúpidas quanto Trótski pensa que são? Talvez a superioridade delas consista exatamente em serem um pouco menos espertas que ele?

Seja como for - essas memórias garantem um livro interessante.

2.

A primeira parte do livro nos leva a uma Europa curiosa - aqueles que não conhecem essa Europa, é justo dizer, só podem ter uma visão parcial dos preparativos para a catástrofe.

O início do século XX anuncia um tempo que está longe de ser alegre. O ar, que já havia se tornado opressivo nas últimas décadas, se torna elétrico. Não é apenas a Guerra Mundial que se aproxima - é a revolução mundial também. Ambos os eventos são essencialmente dois lados de um e o mesmo fenômeno, interagindo caoticamente em diferentes combinações e interdependentes em muitos aspectos. Poder-se-ia dizer que uma grande revolução que compreende tensões nacionais e sociais está em preparação - mas igualmente, que uma grande guerra já está recrutando seus exércitos populares [völkisch] e sociais. De qualquer forma, fica claro que um dia as pessoas armadas ultrapassarão as fronteiras traçadas por tratados e acordos, não apenas nas margens dos países, mas também nas ruas das grandes cidades. Os conflitos diplomáticos e sociais assumem uma coloração simbólica e, em alguns registros do período, como as memórias do conde Waldersee, o incubus paira à frente em toda a sua gravidade.

A magnitude da catástrofe torna o estudo dos documentos políticos do período posteriores à demissão de Bismarck uma investigação emocionante para nós, sobreviventes. O grande xadrez diplomático, as redes arremessadas simultaneamente por muitos quarteis-generais diferentes, as garantias, reconfirmações e reforços de posição - esse complexo de movimentos intricados, que se assemelha a uma colheita que deve ser encerrada antes da tempestade iminente, cresce, mas nos parece mais simples em retrospectiva, pois já podemos ver as linhas de frente de milhares de quilômetros fumegando no horizonte.

Além desses tratados, alianças, visitas principescas, discursos de mesa, crises marroquinas e cúpulas de paz, no entanto, outro tipo de diplomacia está em andamento. Suas operações, embora indiscutivelmente mais clandestinas, não são menos significativas em suas consequências. Essas operações se assemelham a um documento escrito em uma tinta invisível que só se torna aparente se você segurar o papel sobre uma chama. Também aqui, um pequeno número de indivíduos está envolvido e os congressos são realizados em Zurique, Londres, Paris, Viena e Berlim. Aqui também eles se preparam para um dia decisivo, e a mobilização é preparada por outros meios, mas não menos eficazes. Personagens curiosos estão em ação aqui: andarilhos cosmopolitas, exilados da primeira revolução russa, semi-acadêmicos e semi-boêmios que você pode encontrar nas mesas de cafés esfumaçados ou nas salas de leitura das grandes bibliotecas ano após ano. Seus nomes são pouco conhecidos fora de pequenos círculos - talvez ninguém os conheça melhor do que a polícia, que os arquiva sob "estrangeiros problemáticos" em seus índices de fichas. Na maioria das vezes, eles atravessam fronteiras carregando ordens de deportação em vez de passaportes, acompanhados por homens discretos à paisana. No entanto, eles fazem de qualquer país novo seu lar com uma facilidade surpreendente - eles nadam, por assim dizer, em uma camada intelectual que atravessa todas as fronteiras naturais globais.

Após o primeiro tiro de canhão, eles também desaparecem em suas trincheiras, prontos para a batalha. Eles também saudam guerra - onde quer que suas devastações sejam piores, eles aparecerão primeiro.

3.

Mesmo assim, leva mais três anos até que eles possam reivindicar o legado do czarismo na Rússia. A mente humana adora acreditar no poder da conspiração - e, no entanto, é muito difícil decidir se esses revolucionários profissionais eram de fato sujeitos ou objetos da revolução. Eles são como corvos que sempre levam vidas solitárias em algum lugar, e de repente se aproximam de todas as direções quando uma carniça está nos campos? Eles se assemelham a bactérias que aparecem em feridas abertas e desaparecem novamente quando o poder curativo do sangue desperta? Eles têm um significado oculto muito diferente daquele que a sua própria consciência sugere? De qualquer maneira, eles estão lá, e sua existência é estranha o suficiente para ser digna de contemplação.

A revolução deve muito a Trotsky, pelo menos no que diz respeito ao seu primeiro estágio liderado pelos intelectos ocidentais. O fato de o século XX ter visto o milagre de Valmy repetido várias vezes nas fronteiras da Guerra Civil é sua realização. A extensão de seu comprometimento pessoal é exemplar. Além disso, ele possui a rara capacidade de passar de uma atividade quase puramente dogmática para uma tarefa prática em um instante. Ele construiu o Exército Vermelho não de uma maneira que pudesse corresponder às teorias do marxismo, mas da mesma maneira que os exércitos são estabelecidos através dos tempos. “Enquanto aqueles macacos sem cauda e maliciosos que se orgulham tanto de suas realizações técnicas - os animais que chamamos de homens - construírem exércitos e travarem guerras, o comando sempre será obrigado a colocar os soldados entre a possível morte na frente e a inevitável na retaguarda”(Trotsky). A história de seu trem blindado, no qual ele costumava viajar para os locais mais perigosos nas linhas de frente, é um exemplo perfeito de energia marcial moderna e estudo recomendado para qualquer soldado profissional.

A remoção desse mesmo homem, o simples fato de poderem removê-lo, foi um dos sinais mais claros de que a revolução havia começado a seguir leis diferentes, que inevitavelmente encontraram expressão em uma nova casta dominante [Führungsschicht].

4.

Trotsky relata como muito antes da guerra ele conheceu um pastor em Zurique, que unia em sua personalidade o cristianismo devoto com um socialismo extremo: “Em seu discurso, até um levante armado era investido com algum tipo de vapores de outro mundo que não me causava nada além de um arrepio desconfortável. Desde o momento em que comecei a pensar por mim, fui um materialista intuitivo e depois consciente.”

Esse calafrio é um sintoma muito revelador. Trótski existe em um reino muito bem organizado e coerente, a saber, o reino do intelecto. Lá, ele tem um grande significado e suas habilidades são extraordinárias. É lógico que uma consciência como a dele deve encontrar um tipo de vertigem quando, de repente, um reino seguindo as suas próprias leis, leis diferentes que não podem ser capturadas pelas ferramentas da lógica se abre diante dele. Nesse caso, é o reino russo que de repente se abre como um abismo sem fundo sob seus pés. Este é o seu destino: os poderes do intelecto são derrotados pelos poderes do solo. E este é o significado de seu livro: o intelecto tenta provar que o solo estava errado, mas sua lógica sopra sobre o solo como fumaça, sem deixar vestígios.

Ainda outra observação neste livro revela o daltonismo inato de Trótski no que concerne os limites inerentes à vida com muita clareza. Trótski considera uma coincidência que a revolução mundial tenha sido proclamada pela primeira vez na Rússia e não, por exemplo, na Alemanha. Ele acha que a Alemanha daria à revolução uma posição inicial muito mais forte, e isso é um elogio que é bom de ouvir. Sem dúvida, todo o mundo aliado não poderia ter resistido a nós se combinássemos a liderança da Guerra Mundial com a aspiração revolucionária mundial da mais alta ordem. Se isso seria possível é uma questão em aberto. Mas ainda hoje é o caso que a consciência nacional por si só não pode aproveitar os poderes necessários para resistir ou atacar - não a menos que se alie a uma tendência revolucionária mundial que exalte seu próprio poder no mesmo grau em que paralisa o de seu inimigo. O livro de Trótski mostra involuntariamente que o marxismo não está a par dessa tarefa - ele não é desprovido de razoabilidade lógica, mas carece das forças mais profundas e férteis da vida. Liberar essas forças e colocá-las a serviço de grandes tarefas nas quais podemos acreditar e pelas quais podemos lutar com a consciência limpa novamente - esse é o significado secreto das lutas políticas nas quais temos estado nos últimos dez anos e cujo fim não está ainda à vista.