20/12/2019

Reinaldo Laddaga - Uma Cidade para Poetas e Piratas

por Reinaldo Laddaga

(2015)



Sempre achei intrigante que as histórias canônicas da arte e da literatura do início do século XX, geralmente tão generosas em seu tratamento do surgimento do avantgarde histórico, nunca mencionassem seu desenvolvimento mais espetacular: a criação e o fracasso final da chamada Regência Italiana de Carnaro. De certa forma, essa omissão é compreensível. O que aconteceu entre 1919 e 1920 na cidade disputada de Fiume, quando - sob a liderança do escritor Gabriele D'Annunzio - uma aliança peculiar de soldados, artistas e aventureiros ocupou a cidade com a intenção inicial de anexá-la à Itália, complica a narrativa mais comum em que a arte moderna e a política progressista por natureza caminham juntas.[1] Mas, como observa o excelente “Modernismo e Fascismo” do historiador Roger Griffin, vários movimentos de vanguarda compartilhavam a aspiração do fascismo de curar o mundo (ou pelo menos a Europa) da anomia e da perda de vitalidade. Essas condições eram entendidas como subprodutos da modernidade e, particularmente no final de uma guerra que patenteou o fracasso da promessa da modernidade de progresso material e social. Ambos os movimentos propuseram um retorno, em meio à crise, a um espaço primordial onde os enviados de uma nova humanidade poderiam colher as sementes para um mundo futuro. Em Fiume, fascistas e dadaístas, futuristas e bolcheviques estiveram, por alguns meses, no mesmo campo.


Vamos tentar imaginar a Itália no final da Primeira Guerra Mundial. Uma monarquia constitucional cujas regiões díspares haviam se integrado muito recentemente, entrou na guerra em 1915 ao lado da aliança franco-britânica um ano após o início das hostilidades, tendo recebido da França e da Inglaterra garantias de compensação territorial. Os três anos de combate que se seguiram causaram nessa sociedade agrária, majoritariamente tradicionalista, uma reviravolta ainda mais profunda do que a sofrida por seus aliados. As massivas mobilizações para a guerra e a substituição de homens jovens no mundo do trabalho por mulheres destruíram não apenas a base da economia, mas também as estruturas da sociedade anterior à guerra. Para alguns grupos sociais, as expectativas de influência política mudaram: o governo do país havia prometido um poder novo e sem precedentes para suas classes baixas desprivilegiadas (uma promessa que a classe política logo descobriria que nunca deveria ter feito). A guerra havia sido longa e havia jovens que não se lembravam de um modo de vida além da difícil, mas eminentemente emocionante, que haviam experimentado na frente, onde haviam morrido às centenas de milhares. Os sobreviventes ainda se lembravam dos esqueletos nus e secos nas colinas rochosas do Carso, o cenário das batalhas mais brutais, e agora identificavam sua própria dignidade com a dignidade da nação.

Isso era verdade para todo o exército, mas especialmente para as tropas de assalto conhecidas como arditi. Durante a guerra, os arditi haviam recusado todas as armas que os pesariam: preferiam granadas carregadas em bolsos e punhais entre os dentes enquanto corriam em direção às trincheiras inimigas, as quais raramente alcançavam. Eles gostavam de ser chamados de “jacarés”, tinham uma queda pela cocaína e, entre eles, a homossexualidade não era inaudita. Nenhum líder havia sido capaz de dar como certa a lealdade desses homens altamente voláteis. E agora que a guerra havia terminado, como os Freikorps alemães, eles não encontraram lugar para si mesmos em uma sociedade onde a maioria exausta esperava retornar a uma vida civil pacífica.

Não podemos entender os acontecimentos de Fiume (ou a subseqüente ascensão do fascismo) sem fazer um esforço para imaginar um mundo em que centenas de milhares de jovens aos quais havia sido prometida uma participação nos espólios da vitória retornaram, depois de anos assustadores e emocionantes - alguns deles meio cegos ou surdos, alguns insones ou viciados - para mães e esposas ansiosas que não queriam ouvir suas histórias, para empregos em indústrias onde os chefes só se preocupavam com a produtividade. Eles haviam conhecido angústias extremas, mas também uma glória fugaz, e por alguns anos haviam sido membros de uma comunidade guerreira onde seus poderes e fraquezas eram celebrados e reconhecidos. Alguns desses homens formaram o núcleo dos seguidores de D'Annunzio.

E por que Fiume? No final da Primeira Guerra Mundial, uma disputa explodiu sobre o destino da península da Ístria. Majoritariamente governada pela República de Veneza ao longo dos séculos, a Ístria tornou-se parte do Império Austro-Húngaro em 1797. No decorrer do século XIX, Fiume - a maior cidade da península - tornou-se um dos principais portos do norte do Adriático e o resort de maior prestígio para a elite húngara. A população no campo era majoritariamente eslava, mas Fiume possuía uma comunidade italiana substancial e próspera, que controlava o poder econômico e trabalhava lentamente para restituir a cidade ao que viam como sua pátria. Esta comunidade estava totalmente justificada ao supor que a vitória dos Aliados e a dissolução do Império Austro-Húngaro representavam a ocasião crucial para alcançar esse objetivo: nas negociações anteriores à entrada da Itália na guerra, a Grã-Bretanha e a França prometeram transferir a Ístria para a Itália. Em vez disso, a conferência de Versalhes de 1919 sancionou a formação de uma nova nação - o Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, depois chamado Iugoslávia - cujo território, agora parecia, incluiria a Ístria. Para os italianos em Fiume, essa perspectiva terrível se devia à incompetência e fraqueza dos negociadores italianos e tinha que ser imediatamente corrigida pelo uso da força. Para os soldados desmobilizados que vagavam pelo país sem destino ou lugar específico na sociedade burguesa, e para homens como Gabriele D'Annunzio, Benito Mussolini e Filippo Tommaso Marinetti, essa negação dos frutos da vitória era a mais intolerável das humilhações. As conversas começaram entre os italianos em Fiume e alguns dos novos líderes políticos que emergiram nas ruínas da Itália do pós-guerra. É aqui que D’Annunzio entra na história.

Gabriele D'Annunzio era o escritor italiano de maior prestígio do final do século XIX. Ele foi o autor de romances realistas, peças teatrais simbolistas, coleções peculiares de poemas e melodramas psicossexuais exaltados. Ele havia vivido uma vida de luxo em Roma, Nápoles, Florença e Paris, e escreveu uma obra de teatro musical, “O Martírio de São Sebastião”, musicada por Claude Debussy. Mas no início da década de 1910, ele provavelmente sentia que tinha passado do auge. Isso deve ter sido pelo menos parte da razão pela qual ele viu - e não estava sozinho nisso - a guerra como a oportunidade para uma grande renovação. Aos cinquenta anos, surpreendentemente, tornou-se um aviador e, após uma deslumbrante série de incursões no território inimigo, um herói de guerra. Ele perdeu um olho em batalha, mas mesmo essa aflição foi a ocasião para escrever um livro eminentemente moderno chamado “Nocturne”. Para os jovens, ele era a prova de que a velha Itália ainda era capaz de façanhas magníficas. Também é compreensível que ele temesse que, agora que o conflito tivesse terminado, seu declínio pessoal dos anos anteriores à guerra fosse retomado. Ele considerou várias opções, incluindo liderar uma marcha a Roma para derrubar o atual governo e empreender uma fuga heróica e sem precedentes de Veneza para Tóquio - qualquer coisa, exceto retornar à calma de sua vida como um escritor de meia-idade desbotado. Ele começou a fazer discursos explosivos que pediam o retorno da grande glória da Itália. Ele anunciou e exigiu uma conflagração que restauraria a autoridade espiritual do país. Ele achava que a perda de Fiume teria uma dimensão simbólica profunda e que era vital recuperar a cidade.

Parecia à elite italiana de Fiume que eles haviam encontrado seu líder. D'Annunzio havia desenvolvido conexões com os os arditi em Veneza durante a guerra e mostrou-se perfeitamente capaz de suscitar extraordinário entusiasmo em seus seguidores. Em setembro de 1919, um bando de algumas centenas de ex-combatentes marchou sob seu comando em direção a Fiume. Ninguém os deteve; pelo contrário, os italianos entre as tropas aliadas encarregadas de proteger a cidade se uniram à sua causa. Entraram em Fiume, cuja população não-eslava recebeu inicialmente com euforia a chegada desse estranho líder que nunca havia governado antes, que possuía as mais vagas ideias políticas e que parecia estar principalmente ocupado na cansativa tarefa da autoglorificação. Ele professava uma profunda admiração por seus jovens seguidores e proferiu discursos intermináveis chamando Fiume de “a cidade do Holocausto”, o lugar onde o velho mundo iria acabar e formas de vida ainda desconhecidas se desenvolveriam.

O plano inicial, no entanto, era mais modesto: D'Annunzio pretendia repatriar a Ístria para a Itália. Mas o governo italiano, que havia aceitado as resoluções tomadas em Versalhes, não tinha interesse nesse presente. O projeto logo começou a sofrer mutações: se o regime italiano no poder era corrupto ou covarde demais - facilmente dominado pelos americanos e seus companheiros, os velhos europeus - o exemplo das tropas em Fiume desencadearia um movimento de massas que o derrubaria, e talvez até elevaria D'Annunzio à posição de líder da nação. Nada disso aconteceu. Em vez disso, começou um impasse tenso. O governo italiano envergonhado convenceu os Aliados de que lidaria com a situação, que argumentava ser uma questão interna. Mas, sem confiança em seu próprio exército, a Itália não tentou tomar Fiume; ao contrário, instituiu um cerco parcial, com a intenção de impedir que a revolta se expandisse sem asfixiar completamente a população. Quatro meses depois, em dezembro de 1919, o governo italiano apresentou ao Conselho Nacional, órgão da comunidade italiana de Fiume, uma declaração formal de que trabalharia para impedir a anexação da cidade ao Reino dos Sérvios, Croatas, e Eslovenos e uma garantia ou de sua anexação à Itália ou, se isso não fosse possível, de sua autonomia. Isso parecia bom o suficiente para os cidadãos fiumianos, que não estavam tão convencidos quanto antes das virtudes de seu novo líder, e decidiram aceitá-lo. Mas D'Annunzio não estava disposto. Ainda não. Talvez nunca. Os jovens mais radicais que o apoiaram também não estavam prontos para abandonar o que começaram a chamar de "Cidade da Vida".

Desde o início, a coexistência dos diversos grupos que gravitavam em torno de D'Annunzio havia sido difícil. Havia os cidadãos de Fiume e as tropas italianas (os arditi, os carabinieri), mas também os bolcheviques que correram para a cidade (em um discurso em Moscou, Lênin disse que ele e D'Annunzio eram os únicos revolucionários autênticos da Europa); anarcossindicalistas; dadaístas futuristas e fascistas; e esquisitices como o curioso herói de guerra Guido Keller, cujo mascote era uma águia, que dormia nu nas copas das árvores e que era um dos principais tenentes do novo comandante. O universo ao redor do líder rapidamente se fragmentou em facções. Forçado a tomar partido, D'Annunzio passou a confiar principalmente nos jovens artistas, anarquistas e arditi que constituíam a ala radical da grande aliança de Fiume e que formaram a “União dos Espíritos Livres Tendendo à Perfeição” (ou, como eles o apelidaram, "Yoga"). O grupo partilhava um entusiasmo pelo hinduísmo, pela aristocracia espiritual, pelo nudismo e pela construção de uma utopia agrária onde as formas de vida pré-industriais seriam restauradas. Subgrupos foram formados: os Lótus Marrons, que queriam levar uma vida simples e professavam um retorno à natureza; os Lótus Vermelhos, que proclamavam a chegada de um novo mundo transfigurado por uma sexualidade renovada; e um grupo que se identificou como seguidores de um "Amor Sagrado" ainda indefinido.

O destino da utopia que esse grupo perseguia se tornou cada vez mais terrível à medida que o isolamento de Fiume se tornava mais profundo: desde o início de 1920, a comida foi ficando mais escassa e ficou mais difícil encontrar o tecido necessário para a confecção de uniformes cada vez mais extravagantes para os soldados da cidade e flores cada vez mais esplêndidas para seus festivais. Mas, de acordo com todos os relatos, a atmosfera em Fiume permaneceu mais ou menos a de uma festa contínua, parcialmente alimentada pelas drogas com que os arditi haviam se viciado no campo de batalha e às quais seu líder agora também era viciado. Era um "Bal des Ardents", uma dança do fogo, disse o poeta belga Léon Kochnitzky, um dos assessores mais próximos de D'Annunzio. No festival de San Vito, ele continuou: "o olhar, para onde quer que fosse, via uma dança: de lanternas, faíscas, estrelas, famintas, em ruínas, em angústia. Talvez à beira da morte nas chamas ou sob uma chuva de granadas, Fiume, brandindo uma tocha, dançava à beira do mar”[2]. O regime era cada vez mais sustentado por ataques de piratas de vários tipos e pelos frutos do crescente comércio de drogas. Os navios de guerra atracados no porto no momento da ocupação foram utilizados para capturar navios mercantes ao longo da costa do Adriático, entre Messina e Trieste. Grupos de soldados rebeldes roubavam cavalos, armas e comida de guarnições italianas no campo. Mas ainda faltavam remédios e comida para as crianças, e D’Annunzio ordenou que dezenas de bebês fossem enviados para a Itália e dados para adoção. O contraste entre a euforia dos jovens e o crescente desespero da burguesia local se intensificou.

A cidade havia se tornado um ímã para os radicais. Um deles, que chegou em 1920, era o proeminente sindicalista Alceste De Ambris, uma figura ativa no movimento dos trabalhadores e fundador da “Fasci d'Azione Rivoluzionaria Internazionalista”, que eventualmente se fundiria com outros fasci liderados por Benito Mussolini. De Ambris tornou-se chefe de gabinete de D’Annunzio e começou a trabalhar em uma Constituição para um novo Estado, que eles chamaram de Regência Italiana de Carnaro (o nome italiano tradicional da região que circunda a cidade). A Carta de Carnaro é um documento extraordinário. As ideias em sua base são principalmente as que esperaríamos de um sindicalista revolucionário, não surpreendentemente, dado que De Ambris foi responsável pelo primeiro rascunho do documento. O texto afirma desde o início que este será “um governo eleito pelo povo - res populi - baseado no trabalho produtivo, e seu princípio de ordenação é inspirado nas mais generosas e diversas formas de autonomia, tal como entendidas e exercidas nos quatro séculos gloriosos de nosso período comunal”[3]. A Constituição tenta manter um equilíbrio entre o reconhecimento da igualdade e a diversidade dos cidadãos (porque “a interação harmônica da diversidade fortalece e enriquece a vida comum”) e a intenção de “ampliar, expandir e sustentar o direito dos trabalhadores acima de qualquer outra lei”. O documento restringe a propriedade privada, que não é totalmente eliminada, mas está subordinada ao bem da comunidade. O trabalho é idealizado como uma atividade que provoca "o sentimento de alegria virtuosa" que deveria ser o humor dominante dos cidadãos e está localizada no centro das três "crenças religiosas" que a Constituição consagra:

“A vida é bela e digna de ser vivida de forma severa e magnífica por um homem inteiramente reconstruído pela liberdade;

O homem completo é aquele que sabe como exercer diariamente a sua própria virtude, para oferecer diariamente a seus irmãos um novo dom;

O trabalho, mesmo o mais humilde, mesmo o mais obscuro, se bem feito, tende à beleza e enfeita o mundo”.

Esse Estado do cidadão-trabalhador é organizado em torno de corporações, projetadas segundo o modelo de sindicatos. A Carta prescreve a formação de nove corporações constituídas, respectivamente, por operários, técnicos, gerentes, funcionários públicos, comerciantes, agricultores, estudantes e professores, profissionais, e marinheiros, e uma décima, complementar, vagamente definida e mais peculiar. [4] O Poder Executivo que preside sobre eles deve ser o mais fluido e transitório possível; o Judiciário deve incentivar os cidadãos a resolver seus conflitos, sempre que possível, sem a intervenção dos tribunais; os legisladores devem se reunir apenas algumas vezes por ano.

Mas a prosa barroca do documento final pertence, inequivocamente, ao poeta-líder que finalizou o rascunho de De Ambris. Além do caráter brilhante e ocasionalmente complicado do texto, é provavelmente devido a D'Annunzio que os pilares da Universidade Livre colocada no topo da estrutura educacional da regência são uma Escola de Belas Artes, uma Escola de Artes Decorativas e uma Escola de Música. Também a ele se deve a atenção desproporcional dada pela Carta à instituição de um Departamento de Conselheiros, composto por "homens de puro gosto, habilidade refinada e da mais nova educação". O trabalho deles era ornamentar ruas e praças "com aquele mesmo senso musical que guia a criação da ... pompa republicana ou uma representação carnavalesca”, preparar os festivais cívicos e educar as pessoas no amor pelas formas e cores, especialmente quando incorporadas às “ferramentas vívidas e poderosas” que são empregadas na vida cotidiana. E talvez também tenha sido devido a D’Annunzio que a Carta declarou a música a mais elevada de todas as artes da cidade. Desde o primeiro dia na escola, as crianças seriam ensinadas “canto coral fundado na poesia campesina mais ingênua”, porque a música anuncia o reino do espírito e dá um vislumbre do alvorecer de um novo tipo de liberdade. E elas aprenderiam a apreciar não apenas a música produzida por vozes e instrumentos, mas também a produzida por ferramentas utilizadas no trabalho e por máquinas que rugem seguindo seu próprio ritmo misterioso. Estas são as últimas linhas da Carta:

“Grupos corais e instrumentais subsidiados pelo Estado são instituídos em todas as Comunas da Regência.

O Colégio de Conselheiros é incumbido da tarefa de construir um domo capaz de abrigar no mínimo dez mil ouvintes, com assentos confortáveis para o povo e um vasto fosso para a orquestra e o coro.

Performances corais e orquestrais são inteiramente gratuitas, tal como disseram os Pais da Igreja dos dons de Deus”.

Quando lemos a Carta, escrita na primeira metade de 1920 e proclamada (para consternação da burguesia local) em julho daquele ano, percebemos que Fiume havia sofrido, em apenas alguns meses, uma profunda mutação. Inicialmente, pretendia-se provocar uma mudança nas políticas italianas, mas agora que esse plano inicial falhou, D'Annunzio, De Ambris, Kochnitzky e Keller viam-na como um lugar onde começaria uma profunda reestruturação da política global. Agora eles concebiam a regência como o começo de um movimento em que italianos, sérvios, egípcios, turcos, indianos, irlandeses e outros se revoltariam contra o domínio do capitalismo, do imperialismo, de todas as formas de decadência. Portanto, eles decidiram estabelecer uma Liga dos Povos Oprimidos para realizar essa tarefa magnífica e trazer a Fiume um número de delegados para iniciar as discussões destinadas a dar uma forma específica para, finalmente, a revolução mundial, da qual uma grande revolta nos Balcãs seria o primeiro passo.

Mas era tarde demais: a crise econômica e política havia se tornado profunda demais. As recompensas da pirataria não eram suficientes para manter a cidade funcionando. Os vínculos entre o círculo do líder e as instituições da comunidade burguesa (com o Conselho Nacional no centro) haviam rompido. As facções do exército atraídas pelo programa nacionalista de 1919 começaram a partir. D’Annunzio, que desde o início oscilava entre apoiar os planos mais extremos de sua ala esquerda e agir para conquistar a confiança dos elementos mais conservadores de sua estranha coalizão, tornou-se cada vez mais errático. Até alguns de seus colaboradores mais próximos, que agora raramente o viam, na medida em que ele se trancava em sua suíte no Hotel Europe, começaram a duvidar dele.

A aventura de Fiume terminou nos últimos dias de 1920 de maneira anticlimática. O Tratado de Rapallo, que estabeleceu as relações entre a Itália e o Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, concedeu total autonomia à cidade. Pode-se supor que D'Annunzio, derrotado politicamente, teria desistido da luta e abandonado Fiume, mas ele não o fez. Nem o primeiro de seus objetivos (a anexação da Ístria à Itália) nem o segundo (a criação de uma entidade política de um novo tipo) cumpridos, ele se recusou a reconhecer a validade do tratado. Um ataque italiano à cidade no final de dezembro de 1920 (Natal Sangrento é o nome que a tradição daria àqueles dias) superou as tropas de ocupantes remanescentes - agora totalmente desordenadas - em exatamente dois dias.

Muitos dos soldados desmobilizados que apoiaram D'Annunzio logo se tornariam os membros mais dedicados e ativos do emergente movimento fascista. Quanto ao próprio poeta, ele passaria os últimos anos de sua vida em um esplêndido confinamento em uma casa no Lago Garda. Ele foi honrado, apoiado materialmente e comemorado publicamente pelo regime fascista, mas entendeu-se que sua vida política havia terminado. Sua obra literária também havia sido essencialmente concluída: ele passou o resto de sua vida editando, reordenando e monumentalizando o que escreveu em suas primeiras cinco décadas e morreu em 1938. Seu legado mais duradouro como figura pública talvez fosse o desenvolvimento de uma espécie de espetáculo político que seria aperfeiçoado pelos infinitamente mais sombrios Benito Mussolini e Adolf Hitler.

Notas

1 - Em inglês, o único relato em livro da história é The First Duce: D'Annunzio at Fiume, de Michael A. Ledeen (Baltimore and London: The John Hopkins University Press, 1977). A história também é contada, ainda que de forma mais fragmentária, por Lucy Hughes-Hallet em sua biografia de D'Annunzio, Gabriele D'Annunzio: Poet, Seducer and Preacher of War (New York: Knopf, 2013).
2 - Citado em The First Duce, p. 151, de Michael A. Ledeen.
3 - A não ser que indicado de outro modo, todas as traduções são minhas.
4 - A décima corporação, diz o texto, não possui arte ou categorias ou vocabulário. A sua realização é antecipada como a da décima Musa. Reservada para os poderes misteriosos do povo em operação e em ascensão, é uma figura votiva devotada ao gênio desconhecido, as aparições do novo homem, a transfiguração ideal dos trabalhos e dias, a libertação completa do espírito em relação ao sopro doloroso e ao suor sangrento. É representado no santuário cívico por uma lâmpada incandescente inscrita com uma expressão toscana da era das comunas, que alude de forma esplêndida a uma forma espiritualizada de trabalho humano: Fatica senza fatica ("esforço sem fadiga").