27/04/2013

Michel Chossudovsky - A Verdade sobre Boston: A "Conexão Chechena", Al Qaeda e os Atentados na Maratona de Boston

por Michel Chossudovsky



Nove mil policiais fortemente armados incluindo esquipes da SWAT foram empregados em uma caçada humana para capturar um estudante de 19 anos de idade em U-Mass, depois que seu irmão Tamerlan Tsarnaev, o suposto terrorista da Maratona de Boston foi morto a tiros pela polícia supostamente após uma perseguição automobilística e um tiroteio.

Já antes da condução de uma investigação policial, o estudante de 19 anos já foi designado como "culpado". O princípio jurídico fundamental do "inocente até provado culpado" foi rasgado. Nas palavras do Presidente Obama (formado pela Harvard Law School), o estudante de 19 anos de Boston é "culpado" de crimes abomináveis (sem evidência e antes de ser acusado em uma corte de direito):

"Qualquer seja a agenda odiosa que moveu esses homens a tais atos abomináveis não vai, não pode, prevalecer. O que eles tenham pensado que poderiam alcançar, eles já falharam... Por que esses jovens que cresceram e estudaram aqui como parte de nossas comunidades e nossa nação recorreram a tamanha violência?"

Associado com as supostas cartas com antraz e ricina em Washington DC que misteriosamente apareceram logo após a tragédia de Boston, tanto Washington como a mídia tem enfatizado os tênues laços dos irmãos Tsarnaev com a insurgência jihadista militante da Chechênia.

Segundo o Wall Street Journal, citando opinião acadêmica especializada:

"...a origem chechena é talvez uma parte do que os leva a fazer o que fazem", disse Lorenzo Vidino, um especialista em militantes chechenos no Centro para Estudos de Segurança em Zurique... Um perfil na rede social russa Vkontakte que parece pertencer a Dzhokhar Tsarnaev inclui um vídeo de propaganda conclamando jihadistas a irem à Síria para lutarem junto aos rebeldes lá, citando dizeres do Profeta Maomé." [Amplamente documentado, acontece que os combatentes jihadistas estrangeiros na Síria são recrutados pelos EUA e seus aliados]

O que se quer dizer é que mesmo que os suspeitos não estejam ligados a uma rede extremista muçulmana, sua herança cultural e origem "muçulmana" os incita - muito naturalmente - a cometer atos de violência. como esse conceito - que rotineiramente associa muçulmanos com terrorismo - repetido ad nauseam nas redes de notícia ocidentais, afeta a mentalidade humana?

Enquanto a identidade e motivos dos suspeitos estão sendo atualmente examinados por investigadores policiais, os irmãos Tsarnaev já foram categorizados - sem qualquer evidência - como "radicais islâmicos".

Por todo o país, muçulmanos estão sendo insultados e demonizados. Uma nova onda de Islamofobia foi posta em movimento.

A Criação de uma Nova Lenda: "A Conexão Chechena"

Uma nova lenda se desdobra: "A Conexão Chechena" está ameaçando a América. O islamismo surgido na Federação Russa está sendo agora "exportado para a América".

Espalhados nos tablóides por todo os Estados Unidos, os atentados da Maratona de Boston de 15 de abril no Dia dos Patriotas estão sendo incansavelmente comparados ao 11 de setembro de 2001.

Segundo o Conselho de Relações Exteriores:

"Agências policiais em todos os níveis tem progredido em vigilância e policiamento desde os ataques de 11 de setembro de 2001, mas riscos de segurança ainda existem. Muitos especialistas em contraterrorismo pedem por um foco renovado na habilidade dos EUA em resistir e se recuperar de tais incidentes..."

Estaria a tragédia de Boston sendo utilizada por Washington para fomentar uma nova onda de medidas policiais públicas dirigidas contra diferentes categorias de "terroristas domésticos"?

Estaria esse evento catastrófico sendo aplicado para promover uma reação pública contra muçulmanos?

Estaria sendo usado para conquistar aceitação para a santa cruzada americana - iniciada durante a administração Bush - dirigida contra um número de países islâmicos, que supostamente "abrigam terroristas muçulmanos"?

Segundo o poderoso Conselho de Relações Exteriores (que exerce uma influência profunda tanto sobre a Casa Branco quanto sobre o Departamento de Estado), os atentados de Boston novamente "insuflam o espectro do terrorismo em solo americano, ressaltando as vulnerabilidades de uma sociedade livre e aberta".

Contraterrorismo e lei marcial - implicando a suspensão de liberdades civis - ao invés da execução do Direito Civil são as soluções propostas. Nas palavras do Secretário de Estado John Kerry, "Eu acho correto dizer que nessa semana inteira estivemos em um enfrentamento bastante direto com o mal".

O consenso da mídia de massa sendo gerado (incluindo o de Hollywood) é que a América está novamente sob ataque. Dessa vez, porém, os supostos perpetradores são "terroristas islâmicos" não do Afeganistão ou da Arábia Saudita, mas da Federação Russa:

"Se uma conexão entre os suspeitos do atentado e separatistas chechenos for estabelecida, isso marcaria a primeira vez que militantes da antiga república soviética teriam lançado um ataque mortal fora da Rússia. Insurgentes chechenos negam qualquer ligação ao atentado da maratona" - U.S. News

"A Conexão Chechena" se tornou incrustada em um novo consenso midiático. O solo americano é potencialmente ameaçado por terroristas islâmicos da Federação Russa, que possuem elos com a Al Qaeda.

Há também uma agenda de política externa por trás dos ataques. A Casa Branca sugeriu que se os "irmãos chechenos" tivessem ligações com o Islã radical, a administração "poderia expandir esforços de inteligência no exterior, bem como ampliar as medidas de vigilância e investigação nos Estados Unidos".

Ademais, a nova narrativa terrorista agora envolve jihadistas da Federação Russa ao invés do Oriente Médio.

Há implicações geopolíticas. Será que a Conexão Chechena será utilizada pela administração como um pretexto renovado para pressionar Moscou? Que tipo de propaganda midiática provavelmente emergirá?

Al Qaeda e a CIA



O público americano é iludido. Os relatórios da mídia cuidadosamente ignoram as origens históricas do movimento jihadista checheno e suas fortes ligações com a inteligência americana.

O fato é que o movimento jihadista é uma criação da inteligência americana, que também levou ao desenvolvimento do "Islã político". Enquanto o papel da CIA no apoio à jihad islâmica (incluindo a maioria das organizações afiliadas à Al Qaeda) é amplamente documentado, há também evidência de que o FBI secretamente equipou e incitou supostos terroristas dentro dos EUA (Ver James Corbett, The Boston Bombings in Context: How the FBI Fosters, Funds and Equips American Terrorists, Global Research April 17, 2013).

A agenda da CIA a partir do fim da década de 70 era recrutar e treinar jihadistas "combatentes da liberdade" (Mujahideen) para travar uma "guerra de liberação" dirigida contra o governo secular pró-soviético do Afeganistão.

A "Jihad Islâmica" (ou guerra santa contra os soviéticos) se tornou parte integral dos planos de inteligência da CIA. Ela era apoiada pelos EUA e pela Arábia Saudita, com uma parte significativa do financiamento gerada pelo tráfico de drogas do Crescente Dourado:

"Em março de 1985, o Presidente Reagan assinou a Decisão Diretiva de Segurança Nacional 166...[que] autorizava uma crescente ajuda militar secreta aos Mujahideen, e deixava claro que a guerra secreta afegã tinha um novo objetivo: derrotar as tropas soviéticas no Afeganistão pela ação encoberta e encorajar uma retirada soviética. A nova ajuda secreta americana começou com um aumento dramático no fornecimento de armas - um aumento crescente até chegar a 65.000 toneladas anualmente em 1987... bem como um "fluxo incessante" de especialistas da CIA e do Pentágono que viajaram para os quartéis-generais secretos da ISI paquistanesa na estrada principal próxima a Rawalpindi, Paquistão. Lá, os especialistas da CIA se encontraram com oficiais da inteligência paquistanesa para ajudar a planejar operações para os rebeldes afegãos". (Steve Coll, The Washington Post, July 19, 1992).

Mujahideen de um grande número de países muçulmanos foram recrutados pela CIA. Jihadistas das repúblicas islâmicas (e regiões autônomas) da União Soviética também foram recrutados. (Para uma análise mais extensa ver Michel Chossudovsky, Al Qaeda e a "Guerra contra o Terrorismo", Global Research, January 20, 2008).

Al Qaeda e a Jihad Chechena



A Chechênia é uma região autônoma da Federação Russa.

Entre os recrutas para treinamento especializado no início da década de 90 estava o líder da rebelião chechena Shamil Basayev que - imediatamente após a Guerra Fria - liderou a primeira guerra secessionista chechena contra a Rússia.

Durante seu treinamento no Afeganistão, Shamil Basayev se associou ao veterano mujahideen saudita o Comandante "Al Khattab" que lutou como voluntário no Afeganistão. Poucos meses após o retorno de Basayev a Grozny, Khattab foi convidado (início de 1995) a organizar uma base militar na Chechênia para o treinamento de combatentes mujahideen. Segundo a BBC, a transferência de Khattab para a Chechênia havia sido "arranjada através da International Islamic Relief Organization, uma organização religiosa militante, financiada por mesquitas e indivíduos ricos que canalizavam fundos para a Chechênia". (BBC, 29 de setembro 1999).

A evidência sugere que Shamil Basayev tinha elos com a inteligência americana desde o final da década de 80. Ele esteve envolvido no golpe de Estado de 1991 que levou à desintegração da União Soviética. Ele esteve subsequentemente envolvido na declaração unilateral de independência da Chechênia da Federação russa em novembro de 1991. Em 1992, ele liderou uma insurgência contra combatentes armênios no enclave de Nagorno-Karabakh. Ele também esteve envolvido na Abkhazia, a região separatista da Geórgia de maioria muçulmana.

A primeira Guerra da Chechênia (1994-1996) foi travada imediatamente após o colapso da União Soviética. Era parte de uma operação secreta americana para desestabilizar a Federação russa. A Segunda Guerra da Chechênia foi travada em 1999-2000.

Falando de modo geral as mesmas táticas terroristas de guerrilha aplicadas no Afeganistão foram implementadas na Chechênia.

Segundo Yossef Bodansky, diretor da Força-Tarefa sobre Terrorismo e Guerra Não-Convencional do Congresso americano, a insurgência na Chechênia havia sido planejada durante uma reunião secreta da HizbAllah International realizada em 1996 em Mogadishu, Somália. (Levon Sevunts, "Who's Calling the Shots? Chechen conflicts finds Islamic roots in Afghanistan and Pakistan", The Gazette, Montreal, 26 de outubro 1999).

"É óbvio que o envolvimento da ISI paquistanesa na Chechênia 'vai muito além de fornecer os chechenos com armas e especialistas: a ISI e seus proxies radicais islâmicos estão na verdade dando as ordens nessa guerra".

A ISI está em contato permanente com a CIA. O que essa afirmação significa é que a inteligência americana usando os Inter-Serviços de Inteligência do Paquistão (ISI) como intermediária estava dando as ordens na Guerra da Chechênia.

A principal rota de oleodutos da Rússia passa pela Chechênia e Daguestão. Apesar de Washington condenar o "terrorismo islâmico", os beneficiários das guerras na Chechênia foram os conglomerados petrolíferos anglo-americanos que estavam competindo pelo controle completo do petróleo e dos corredores de oleodutos da bacia do Mar Cáspio.

Os dois principais exércitos rebeldes (que à época eram liderados pelo Comandante Shamil Basayev e Emir Khattab), estimados em 35.000 homens, eram apoiados pela CIA e sua contraparte paquistanesa a ISI, que desempenhou um papel fundamental em organizar e treinar o exército rebelde checheno:

"Em 1994 os Inter-Serviços de Inteligência do Paquistão [em contato com a CIA] arranjaram para que Basayev e seus tenentes de confiança passassem por uma doutrinação islâmica intensiva e por treinamentos em tática de guerrilha na província de Khost no Afeganistão, no campo Amir Muawia, organizado no início da década de 80 pela CIA e pela ISI e comandando pelo famoso chefe afegão Gulbuddin Hekmatyar. Em julho de 1994, após se graduar em Amir Muawia, Basayev foi transferido para o campo Markaz-i-Dawar no Paquistão para passar por um treinamento em táticas de guerrilha avançadas. No Paquistão, Basayev se encontrou com os oficiais militares e de inteligência do Paquistão de mais alta hierarquia: o Ministro de Defesa General Aftab Shahban Mirani, o Ministro do Interior General Naserullah Babar, e o chefe do departamento da ISI encarregado de apoiar causas islâmicas o General Javed Ashraf (todos eles aposentados hoje em dia). Conexões no alto escalão logo se provaram muito úteis para Basayev". (Ibid).

Após seu treinamento e doutrinação, Basayev foi designado para liderar o ataque contra as tropas federais russas na Primeira Guerra da Chechênia em 1995. Sua organização também desenvolveu elos extensivos com sindicatos criminosos em Moscou bem como laços com o crime organizado albanês e a KLA. (Vitaly Romanov e Viktor Yadukha, "Chechen Front Moves to Kosovo", Segodnia, Moscow, 23 fevereiro 2000).

A insurgência chechena modelada segundo a jihad financiada pela CIA no Afeganistão também serviu como modelo para diversas intervenções militares orquestradas pelos EUA e pela OTAN, incluindo a Bósnia (1992-1995), Kosovo (1999), Líbia (2011) e Síria (2011 - ).

Rebeldes Chechenos: Operação Americana Secreta para Desestabilizar a Federação Russa



A Guerra da Chechênia de 1994-1996, instigada pelos principais movimentos rebeldes contra Moscou, serviu para solapar as instituições públicas seculares. A adoção da lei islâmica nas sociedades muçulmanas majoritariamente seculares da ex-URSS servia aos interesses estratégicos americanos na região.

Um sistema paralelo de governo local, controlado pela milícia islâmica, havia sido implantado em muitas localidades da Chechênia. Em algumas das pequenas aldeias e vilas, cortes da Sharia Islâmica foram estabelecidas sob um reino de terror político.

"Ajuda financeira da Arábia Saudita e dos países do Golfo para os exércitos rebeldes dependiam da instalação de cortes da Sharia, apesar da forte oposição da população civil. O Juiz Principal e Emir das cortes da Sharia na Chechênia era o Sheikh Abu Umar, que 'veio para a Chechênia em 1995 e se uniu às fileiras dos Mujahideen lá sob a liderança de Ibn-ul-Khattab. ... Ele começou a ensinar o Islã com a Aqeedah correta para os mujahideen chechenos, muitos dos quais mantinham crenças incorretas e distorcidas sobre o Islã'." (Global Muslim News, dezembro de 1997).

O movimento wahabi da Arábia Saudita estava não apenas tentando se apoderar das instituições civis públicas no Daguestão e na Chechênia, como também buscava expulsar os líderes sufi tradicionais. De fato, a resistência as rebeldes islâmicos e combatentes estrangeiros no Daguestão estava baseada na aliança entre governos locais (seculares) com os sheikhs sufi:

"Esses grupos [wahabi] consistem de uma minúscula porém bem armada e financiada minoria. Eles pretendem com esses ataques a criação de terror no coração das massas... Ao criarem anarquia e ilegalidade, esses grupos podem impor sua própria versão dura e intolerante do Islã... Tais grupos não representam a visão comum do Islã, mantida pela vasta maioria dos muçulmanos e dos estudiosos islâmicos, para os quais o Islã exemplifica um exemplo de civilização e moralidade aperfeiçoadas. Eles representam o que é nada menos que um movimento rumo à anarquia sob um rótulo islâmico. ...Sua intenção é não tanto criar um Estado Islâmico, mas criar um estado de confusão no qual eles possam prosperar." (Mateen Siddiqui, "Differentiating Islam from Militant 'Islamists'" San Francisco Chronicle, 21 setembro 1999).

A Segunda Guerra da Chechênia foi iniciada por Vladimir Putin em 1999, com o objetivo de consolidar o papel do governo central e derrotar os terroristas chechenos financiados pelos EUA contra a Federação Russa.

"Falsas Bandeiras"



O suspeito de 19 anos de idade está sendo usado como bode expiatório. Ele nem mesmo nasceu na Chechênia. Enquanto ele e seu irmão não tinham qualquer conexão com o movimento jihadista, a mídia americana está cuidadosamente construindo uma "Conexão Chechena" apontando para um padrão comportamental inerente associado a muçulmanos:

"Os irmãos passaram 10 anos nos EUA durante um período formativo de suas vidas, exibindo comportamento normal para imigrantes de primeira geração, disse Mitchell Silber, um ex-oficial de inteligência no Departamento de Polícia de Nova Iorque. "A questão é, o que catalizou a mudança? Foi o nacionalismo checheno? Teria começado com o nacionalismo checheno e de alguma forma migrado para uma causa jihadista pan-islamista?" (Renewed Fears About Homegrown Terror Threat", WSJ April 20, 2013).

Há evidência, porém, do testemunho de familiares de que os irmãos Tsarnaev estavam no radar do FBI por muitos anos antes dos atentados de Boston e foram objeto de constantes ameaças e assédios. Confirmado pelo Wall Street Journal, o FBI havia "entrevistado" Tamerlan Tsarnaev em 2011. (Ibid)

O que é abundantemente claro é que o governo americano não está comprometido com o combate a terroristas.

Muito pelo contrário. A inteligência americana tem recrutado e treinado terroristas por mais de trinta anos, enquanto ao mesmo tempo sustenta a noção absurda de que esses terroristas, que são "recursos de inteligência" bona fide da CIA, constituem uma ameaça a solo americano. Essas supostas ameaças por "Um Inimigo Externo" são parte de uma manobra de propaganda por trás da "Guerra Global ao Terrorismo".

Qual é a Verdade?

O desenvolvimento de uma milícia terrorista islâmica em diferentes países ao redor do Mundo é parte de um intrincado projeto de inteligência americana.

Enquanto os irmãos Tsarnaev são casualmente acusados sem evidência de terem elos com terroristas chechenos, a questão importante é quem está pro trás dos terroristas chechenos?

Em uma lógica completamente distorcida, os protagonistas da "Guerra Global ao Terrorismo" dirigida contra muçulmanos são os arquitetos de facto do "terrorismo islâmico".

A Mentalidade da "Guerra Global ao Terrorismo"

A mentalidade da "guerra ao terrorismo" constrói um consenso: milhões de americanos são levados a crer que um aparato policial militarizado é necessário para proteger a democracia. Pouco percebem que o governo americano é a principal fonte de terrorismo tanto nacionalmente quanto internacionalmente.

A mídia corporativa é o braço de propaganda de Washington, que consiste em retratar muçulmanos como uma ameaça à segurança nacional.

Nesse ponto de nossa história, na encruzilhada de uma crise econômica global e uma crise social, os atentados de Boston desempenham um papel fundamental. Eles justificam o Estado de Segurança Nacional.

O Estado de Polícia que está se desenvolvendo é assim defendido como meio de proteger liberdades civis. Sob a desculpa do contraterrorismo, execuções extrajudiciais, a suspensão do habeas corpus e a tortura são consideradas como meios de defender a Constituição americana.

Ao mesmo tempo, os terroristas - criados e apoiados pela CIA - são usados para participar em atos terroristas de "falsa bandeira" com o objetivo de justificar uma cruzada militar global contra países muçulmanos, os quais por acaso são economias produtoras de petróleo.

"Eventos Causadores de Baixas Massivas"

O ex-Comandante da CENTCOM, General Tommy Franks, que liderou a invasão do Iraque em 2003, delineou um cenário do que ele escreve como um "evento causado de baixas massivas" em solo americano, (um segundo 11/9). Implicada na afirmação do General Franks estava a noção e crença de que mortes civis eram necessárias para aumentar a consciência e arrebanhar apoio público para a "guerra global ao terrorismo".

"Um evento terrorista produtor de baixas massivas ocorrerá em algum lugar no mundo ocidental - pode ser nos Estados Unidos da América - que faça com que nossa população questione nossa própria Constituição e comece a militarizar nosso país de modo a evitar que um outro evento produtor de baixas massivas ocorra". (General Tommy Franks Interview, Cigar Aficionado, Dezembro 2003).

Ainda que os atentados de Boston sejam de uma natureza completamente diferente do "evento catastrófico" aludido pelo General Tommy Franks, a administração parece, não obstante, estar comprometida com a lógica de "militarizar nosso país" como meio de "proteger a democracia".

Os eventos de Boston já estão sendo usados para galvanizar apoio público para um aparato doméstico contraterrorista ampliado. Este seria implementado paralelamente a assassinatos extrajudiciais contra assim chamados "terroristas nativos auto-radicalizados":

"A política contraterrorista americana tem desde 2001 focado principalmente em matar terroristas no exterior ou em impedi-los de entrar nos EUA. Mas os atentados de Boston demonstram como a difusão de táticas terroristas facilmente transcende fronteiras. Combater pequenos grupos de indivíduos dentro dos EUA pode ser uma missão importuna.

Bruce Ridel, diretor do Projeto de Inteligência no Instituto Brookings, um think tank apartidário de Washington, disse que o ataque de Boston era provavelmente um precursor. "Nós provavelmente veremos essa como a face futura das ameaças terroristas aos EUA", ele disse, acrescentando que o caso de um pequeno número de participantes radicalizados que vivem nos EUA e executam um plano é "o pior pesadelo da comunidade contraterrorista, terrorismo nativo, auto-radicalizado, que adquire suas habilidades pela internet". (WSJ, Abril 20, op cit).

O "evento causador de baixas massivas" foi defendido pelo General Franks como uma reviravolta política crucial.

Constituiriam os atentados de Boston um ponto de transição, um divisor de águas que finalmente contribui para a gradual suspensão do governo constitucional?

24/04/2013

Alain de Benoist - Jünger, Heidegger & Niilismo

por Alain de Benoist



Ernst Jünger e Martin Heidegger empreenderam um diálogo sobre o niilismo em dois textos publicados com cinco anos de diferença entre um e outro na década de 50 por ocasião de seus respectivos aniversários de sessenta anos. O estudo e comparação desses textos é particularmente interessante porque eles nos permitem apreciar o que, nesse tema fundamental, separa dois autores que são frequentemente comparados e que mantiveram um relacionamento intelectual poderoso por diversas décadas. O que segue é um breve apanhado geral.

E sua abordagem, que ele cuidadosamente apresentou como "médica" (incluindo "diagnóstico" e "terapêutica"), Jünger inicialmente afirma que para remediar o niilismo, é necessário dar uma "definição positiva" dele. Tomando a opinião de Nietzsche de que o niilismo é o processo no qual e pelo qual "os mais altos valores degradam a si próprios" (A Vontade de Poder), ele afirma que isso é essencialmente caracterizado pela desvaloração e então pelo desaparecimento dos valores tradicionais, primordialmente dos valores cristãos.

Então ele reage contra a idéia de que o niilismo é primariamente um fenômeno caótico:

"Percebeu-se, com o auxílio do tempo, que o niilismo pode concordar com vastos sistemas de ordem, e que isso é ainda mais geralmente o caso, quando ele assume sua forma ativa e emprega seu poder. Ele encontra na ordem um substrato favorável; ele a reorganiza rumo a seu fim... A Ordem não apenas se rende aos requerimentos do niilismo, mas é um componente de seu estilo".

Nesse sentido, niilismo não é decadência. Ele ainda não caminha de mãos dadas com o afrouxamento, mas "ao contrário, produziu homens que marcham em linha reta como máquinas de ferro, insensíveis mesmo no momento em que uma catástrofe os despedaça". (p.57) Similarmente, o niilismo não é uma doença. Não há nada mórbido nele. Ao contrário, ele é encontrado "ligado à saúde física - acima de tudo, onde se situa vigorosamente para trabalhar" (p.54). O niilismo é por outro lado essencialmente redutivo: sua tendência mais constante é a de "reduzir o mundo, com seus antagonismos múltiplos e complexos, a um denominador comum" (p.65). Transformando a sociedade de "uma comunidade moral para uma conglomeração mecânica" (p.63), ele associa fanatismo, a completa ausência de sentimento moral, e a "perfeição" de organização técnica.

Essas observações são características. Elas demonstram que, onde quer que Jünger mencione niilismo, ele se refere em primeiro lugar ao modelo do Estado totalitário, e mais particularmente ao Nacional-Socialismo. De fato, o Terceiro Reich exemplifica o Estado social no qual os homens estão sujeitos a uma ordem absoluta, uma organização "automática", na qual a desvaloração de toda a moralidade tradicional caminhava junto a uma exaltação inegável da "saúde".

Mas se poderia perguntar se o que Jünger descreve é realmente niilismo. Não estaria ele, ao invés, simplesmente descrevendo o totalitarismo - o Leviatã totalitário que pôs a tecnologia a seu serviço e transformou a natureza em uma desolação industrial?

Jünger, ademais, professa um certo otimismo já aparente no título de seu texto: "Atravessando a Linha". Evocando Nietzsche e Dostoiévski, ele nota que suas críticas do niilismo não os impediram de se demonstrarem relativamente otimistas, dado que o niilismo pode ser ultrapassado por "algo por vir" (Nietzsche), dado que ele constitui um tipo de "fase necessária em um movimento rumo a fins precisos" (Dostoiévski). Jünger toma um ideal que lhe é familiar: após o pior, as coisas só podem ficar melhores. Ou mais exatamente: uma tendência empurrada até seu extremo deve seguir na direção oposta. Assim ele disse, na década de 30, que eles tiveram que "perder a guerra para ganhar a nação". É nesse espírito que ele cita Bernanos: "A luz só emerge se a escuridão tomou a tudo. A superioridade absoluta do inimigo é precisamente o que se volta contra ele" (pp.37-38). Porém,  o sentimento de Jünger é o de que o pior já passou, que "a cabeça já cruzou a linha", ou seja, que o homem já começou a deixar o niilismo para trás. Essa asserção também resulta de sua assimilação do niilismo ao totalitarismo. Como Julien Hervier escreve, "se Jünger acredita em ir para além do zero absoluto, então o colapso do Hitlerismo, a encarnação triunfante do niilismo moral, não foi à toa" (Prefácio, p.13). [2]

Em seu ensaio, Jünger portanto tenta primariamente descrever o estado do mundo como ele é, de modo a avaliar a possibilidade de que já se tenha passado ao outro lado da "linha". Sua conclusão, ademais, pode parecer modesta. Contra o niilismo, ele propõe recorrer aos poetas e ao amor ("Eros"). Ele apela à dissidência individual, à "anarquia autêntica". (Em 1950, ele ainda não havia inventado a Figura do Anarca). "Acima de tudo", ele escreve, "é necessário encontrar segurança no próprio coração. Então, o mundo mudará".

A abordagem de Heidegger é consideravelmente diferente. Seu texto, escrito em resposta ao de Jünger, é acima de tudo uma crítica - amigável, é claro, que enfatiza a consideração que ele tem por seu interlocutor, mas não obstante uma que objetiva substituir sua análise por um ponto de vista completamente diferente.

A modificação do título já é reveladora. Enquanto o título de Jünger Über die Linie significa "Sobre a Linha" no sentido de "além da linha", o título de Heidegger "Über 'die Linie'" significa "sobre 'a linha'", indicando sua convicção de que a linha não foi cruzada e seu desejo de levantar a questão sobre a razão pela qual ela ainda não foi cruzada. Assim à topografia trans lineam de Jünger, Heidegger explicitamente afirma que ele quer acrescentar (e em muitas coisas opor) uma topologia de linea: "Você examina e você ultrapassa a linha; eu estou satisfeito inicialmente em considerar essa linha que você representou. Um ajuda ao outro, e vice-versa" (p.203).

Heidegger começa disputando que seja possível, como Jünger busca, dar uma boa "definição" de niilismo. Heidegger escreve:

"Ainda nos atendo à imagem da linha, nós descobrimos que ela atravessa um espaço que é ele mesmo dado por um lugar. O lugar reúne. A reunião abriga os reunidos em sua essência. É o lugar da linha que dá a fonte da essência do niilismo e sua realização". (p.200)

Assim para investigar a realização do niilismo, para o qual o mundo inteiro se tornou o teatro - de modo que o niilismo é a partir de então o "estado normal" da humanidade - requer que localizemos esse "lugar da linha", que aponta na direção da essência do niilismo. Para Heidegger, propor a questão da situação do homem em relação ao movimento do niilismo requer uma "determinação de essência". Compreender o niilismo implica que o pensamento deve voltar a uma consideração de sua essência.

A resposta foi rápida em vir. Ela segue da filosofia de Heidegger, cujos princípios fundamentais eu presumirei aqui. O niilismo, aos olhos de  Heidegger, representa a consequência e a realização de uma lenta tendência rumo ao esquecimento do Ser, que começa com Sócrates e Platão, continua no Cristianismo e na metafísica ocidental, e triunfa nos tempos modernos. A essência do niilismo "reside no esquecimento do Ser" (p.247). O niilismo é o esquecimento do Ser em forma plena. É o reino do nada.

O esquecimento do Ser significa que o Ser está velado, que ele é mantido em um recuo velado que o oculta do pensamento do homem, mas que é também um recuo protetivo, um adiamento do desvelamento: "Tal encobrimento é a essência do esquecimento". O esquecimento é o ocultamento do Ser para a vantagem dos entes. Na metafísica ocidental, o próprio Deus não é nada além do ente supremo. A metafísica conhece apenas a transcendência, ou seja, o pensamento do ente. É por isso que não lhe é permitido não só ascender ao Ser, como até mesmo examinar sua verdadeira essência.

Heidegger acrescenta que a essência do niilismo se realiza no "reino da vontade de vontade". Aqui, é claro, o alvo é Nietzsche. Sabe-se, para Heidegger, a filosofia do autor do Zaratustra é, apesar de seus méritos, apenas Platonismo em reverso na medida em que ele não consegue abandonar o reino dos valores. A vontade de poder, analisada por Heidegger como a "vontade de vontade", ou seja, uma vontade que quer ser de maneira incondicional, é apenas um modo de manifestação do ente dos entes, e nesse sentido outra forma do esquecimento do Ser. "Pertence à essência da vontade de poder", escreve Heidegger, "não permitir à realidade na qual ela estabelece seu poder aparecer nessa realidade que ela em si mesma essencialmente é" (p.205). Nietzsche afirma em vão que "Deus está morto"; ele permanece na sombra desse Deus cuja morta ele proclama.

Porém, na medida em que o próprio Jünger permanece sob o horizonte do pensamento de Nietzsche, a crítica heideggeriana de Nietzsche também é dirigida a ele.

Aqui Heidegger retorna ao famoso livro de Jünger O Trabalhador, publicado em 1932. Aqui ele enfatiza que a Figura (ou Forma, Gestalt) do Trabalhador corresponde muito precisamente à Figura de Zaratustra dentro da metafísica da vontade de poder. Seu advento manifesta o poder como uma vontade de enfeitiçar o mundo, como uma "mobilização total". Em O Trabalhador, Jünger observa: "A tecnologia é o meio pelo qual a Figura do Trabalhador mobiliza o mundo". O trabalho é disposto em escala planetária sob a direção da vontade de poder.

É claro, não passou despercebido por Heidegger que a visão se Jünger sobre a tecnologia havia evoluído. Jünger primeiro teve uma revelação da importância da tecnologia através de uma experiência concreta: as batalhas tecnológicas da Primeira Guerra Mundial. Ele então explorou, não sem razão, o sentimento de que o reino da tecnologia inauguraria uma nova era da humanidade. Ele assimilou esse reino à dominação da Figura do Trabalhador, pensando que apenas tal Figura poderia se opor em uma escala global àquela do Burguês. Nesse ponto, Jünger estava equivocado, e ele depois reconheceu seu erro. Finalmente, sua própria opinião sobre a tecnologia mudou - talvez sob a influência de seu irmão, Friedrich Georg, autor de A Perfeição da Técnica, 1946. Após 1945, Jünger claramente relacionou niilismo ao "titanismo" de uma tecnologia que, como vontade de dominar o mundo, o homem e a natureza, segue seu próprio curso sem nada ser capaz de detê-la. A tecnologia obedece apenas a suas próprias regras, sua lei mais íntima consistindo na equivalência do possível e do desejável: tudo que é tecnologicamente possível será realizado em ato.

Heidegger elogia sem reservas o modo pelo qual Jünger, em Mobilização Total (1931), e então em O Trabalhador, descreveu o que ele encontrou "na luz do projeto nietzscheano do ser como vontade de poder". Heidegger lhe dá crédito por ter finalmente percebido que o reino do trabalho técnico pertence a um "niilismo ativo" que é a partir de então implementado em escala planetária. Ao mesmo tempo, porém, Heidegger reprova Jünger por não ter compreendido como o "projeto nietzscheano" continua a proibir o pensamento sobre o Ser, e enfatiza que O Trabalhador "permanece uma obra cuja metafísica é a pátria" (p.212).

Heidegger critica Jünger por permanecer, ao longo de seu desenvolvimento, no mundo da Figura e dos valores. A Figura, definida por Jünger como esse "calmo ser" que se torna aparente dando forma ao mundo como um selo deixa sua marca, é de fato nada além de um "poder metafísico". Como Heidegger enfatiza:

"A Figura reside nos traços essenciais de uma humanidade que, como um subjectum, está na fundação de todo ente... É a presença de um tipo humano (typus) que constitui a subjetividade última da qual a consecução da metafísica moderna marca o aparecimento e que se oferece no pensamento dessa metafísica. (pp.212-13)".

Não mais tomar parte no niilismo não significa ainda se manter à parte do niilismo. A maneira pela qual Jünger propõe "sair" do niilismo - "ouvir a terra", tentar saber "o que a terra deseja", enquanto ao mesmo tempo denuncia o caráter telúrico e titânico da tecnologia - é nesse sentido reveladora.

Jünger escreve: "O momento em que a linha será cruzada nos revelará uma nova virada do Ser; então o que realmente é começará a brilhar". Heidegger responde: "Falar sobre uma 'virada do Ser' permanece uma solução paliativa, e extremamente problemática, porque o Ser reside na virada, de modo que este jamais pode vir a 'Ser' a partir de fora" (p.229).

Heidegger de modo algum acredita que a "linha zero" está de agora em diante para trás de nós. A seus olhos, a "consumação" do niilismo não representa absolutamente o seu fim:

"Com a consumação do niilismo começa apenas a fase final do niilismo, cuja zona será provavelmente de uma amplitude incomum porque ela terá sido completamente dominada por um 'estado normal' e pela consolidação desse estado. É por isso que a linha zero, onde a consumação alcança seu fim, não é ainda de modo algum visível no fim". (pp. 209-10)

Mas ele também acrescenta que é ainda um erro raciocinar, como fez Jünger, como se a "linha zero" fosse um ponto externo ao homem que o homem poderia "cruzar". O próprio homem é a fonte do esquecimento do Ser. Ele mesmo é a "zona da linha". Heidegger acrescenta: "Em caso algum a linha, pensada como o signo da zona do niilismo consumado, se situa na frente do homem como algo que se pode cruzar. Assim, porém, as possibilidades de uma trans lineam e de tal cruzamento desabam". (p.223).

Mas então, se qualquer tentativa de "cruzar a linha" permanece "condenada a uma representação que apóia ela mesma a hegemonia do esquecimento do Ser" (p.247), como pode o homem esperar acabar com o niilismo? Heidegger responde: "Ao invés de querer ir além do niilismo, nós devemos finalmente tentar entrar em meditação sobre sua essência. Este é o primeiro passo que nos permitirá deixar o niilismo para trás" (p.247).

Heidegger partilha da opinião de Jünger de que o niilismo não é comparável ao mal ou a uma doença. Mas ele dá outro significado para essa observação. Quando ele afirma que "a essência do niilismo não é niilista" (p.207), ele quer dizer que a zona do perigo mais extremo é também aquilo que salva. A doença também pode apontar na direção da cura.

"Entrar em meditação" sobre a essência do niilismo significa dar a si mesmo a possibilidade de uma apropriação (Verwindung) da metafísica. A apropriação da metafísica é de fato também apropriação do esquecimento do Ser - e consequentemente a possibilidade de um desocultamento, de uma revelação da verdade (aletheia). Jünger escreveu que "a dificuldade em definir o niilismo significa que o espírito é incapaz de representar o nada" (p.47). Heidegger cita essa afirmação para enfatizar a proximidade do Ser e a essência do nada. A partir disso ele afirma que é através de uma meditação sobre o nada que nós compreenderemos o que é o niilismo, e é quando compreendermos o que o niilismo é que seremos capazes de superar o esquecimento do Ser. Heidegger escreve:

"O Nada, mesmo se o entendemos apenas no sentido de total ausência do ente, pertence, como ausência, à Presença como uma de suas possibilidades. Assim consequentemente é o nada que reina na essência do niilismo e que a essência do nada pertence ao Ser, se ademais o Ser é o destino da transcendência, é então a essência da metafísica que se demonstra como lugar da essência do niilismo". (p.236)

O lugar da essência do niilismo consumado deve assim ser buscado "onde a essência da metafísica emprega suas possibilidades extremas e se reúne nelas" (p.236). Finalmente, Heidegger escreve, "ir além do niilismo requer que se penetre em sua essência, a qual, quando adentrada, nulifica a vontade de ir além. A apropriação da metafísica convoca o pensamento a uma lembrança mais fundamental" (p.250).

Porém, para saltar a "barreira" que nos impede de entrar meditativamente na essência do niilismo, é ainda necessário ter uma palavra capaz de dar acesso ao pensamento do Ser. É necessário, em outras palavras, desistir da linguagem da metafísica - que é ainda aquela da vontade de poder, do valor e da Figura - porque essa linguagem, precisamente, proíbe o acesso. Heidegger é enfático:

"A única maneira na qual podemos refletir sobre a essência do niilismo é inicialmente tomar o caminho que leva ao local da residência do Ser. É apenas nesse caminho que a questão do nada pode ser situada. Mas a questão da residência do Ser definha se ela não abandona a linguagem da metafísica, porque a representação metafísica proíbe de pensar a questão da residência do Ser".

Porém, é precisamente aqui que Heidegger critica Jünger: ele o critica por questionar o niilismo em termos de pensamento e discurso que permanecem tributários à essência da metafísica. Na medida em que ele continua a pensar e se expressar na linguagem da metafísica, que é o lugar da essência do niilismo, Jünger torna impossível para ele resolver o problema que ele propôs. Heidegger pergunta:

"Em que linguagem fala o pensamento cujo plano fundamental esboça um cruzamento da linha? Deve a linguagem da metafísica da vontade de poder, da Figura, e do valor ser ainda preservada do outro lado da linha crítica? E é a linguagem, precisamente, da metafísica, e essa metafísica em si (seja ela do Deus vivo ou do Deus morto) constituída como metafísica, a barreira que proíbe a passagem da linha, ou seja, ir para além do niilismo? (pp.224-25)"

Assim não podemos penetrar na essência do niilismo enquanto continuemos a nos expressarmos em sua linguagem. É por isso que Heidegger pede por uma "mudança do dizer", por uma "mudança na relação com a essência da fala". Ele pede por um dizer que seja necessário para superar o esquecimento do Ser. Porque esse dizer corresponde à essência do Ser, ele pode tornar a essência do Ser acessível ao pensamento. Ele convida o Ser a "dizer o pensamento", enquanto especifica que "esse dizer não é a expressão do pensamento, mas é o próprio pensamento, seu curso e sua canção" (p.249). É necessário, ele conclui, fazer um "teste de dizer o que é de pensamento fiel". É necessário "trabalhar o caminho".

Como concluir? Eu falei sobre um "diálogo" entre Jünger e Heidegger em conexão com o niilismo, mas esse termo não é completamente apropriado. Heidegger e Jünger muitas vezes partem de premissas análogas, mas chegam a conclusões parcialmente opostas. Ambos concordam que o niilismo encontra seu apoio mais sólido na tecnologia moderna, mas eles não possuem a mesma idéia dela. Para Jünger, a tecnologia é acimia de tudo "titânica" em essência, enquanto para Heidegger ela é metafísica realizada. Jünger vê no niilismo o oposto dos valores da metafísica ocidental e cristã. Heidegger o vê como a consequência última desses mesmos valores. Jünger se limitar a saber, em seu relacionamento com o niilismo, se o homem "cruzou a linha". Heidegger nos convida a refletir sobre o que significa "cruzar". Na verdade, Heidegger pressiona a obra de Jünger a ir cada vez maias fundo, a ampliar a perspectiva de reflexão, a convidar o pensamento a sua própria transformação distinta. Jünger sugeriu um "recuo às florestas" para os "rebeldes". Heidegger nos convida a tomar um caminho na floresta que leva à clareira (Lichtung) onde a verdade (aletheia), o desocultamento, finalmente abandona o esquecimento, ou seja, esse erro milenário que tem governado a história da Europa, cuja consumação planetária nos ordena a pensar a rota de fuga.

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[1] Ernst Jünger, Über die Linie", em Anteile: Martin Heidegger zum 60.Geburtstag, 245-83; Martin Heidegger, "Über 'die Linie'", em Armin Mohler, ed., Freundschaftliche Begegnungen: Festschrift für Ernst Jünger zum 60. Geburtstag.

[2] Posteriormente, Jünger reconsiderou esse otimismo em alguma medida: "Após a derrota, eu disse em substância: a cabeça da serpente já cruzou a linha do niilismo, e a deixou para trás, e todo o corpo logo seguirá, e nós logo entraremos em um clima espiritual melhor, etc. Na verdade, estamos longe disso" (entrevista com Frédéric de Towarnicki, Paris: L'Herne, 1983, 149). Mais fundamentalmente, Jünger pensa que nós estamos em um tempo de transição - um interregnum - e é por isso que não se deve desesperar: "De minha parte, eu tenho um pressentimento de que o século XXI será melhor que o XX" (Entretiens avec Julien Hervier [Paris: Gallimard, 1986].


21/04/2013

Alain de Benoist - O Fim do Mundo realmente ocorreu

por Alain de Benoist




O fim do mundo aconteceu, de fato. Ele não ocorreu em um dia específico, mas se arrastou por várias décadas. O mundo que desapareceu era um mundo em que a maioria das crianças sabia como ler e escrever. Um mundo em que admirávamos os heróis ao invés das vítimas. Um mundo em que as máquinas políticas não tinham se tornado aparelhos de esmigalhar almas. Um mundo em que nós tínhamos mais modelos de papéis sociais que direitos. Um mundo em que uma pessoa podia entender o que Pascal queria dizer quando ele escreveu que os entretenimentos nos distraem de viver a verdadeira vida humana. Um mundo em que as fronteiras salvaguardavam aqueles que viviam seu modo de vida e uma vida própria.

Sim, tal mundo tinha seus defeitos e por vezes era um mundo horrível, mas a vida diária de muitos grandes povos era pelo menos regrada por uma miríade de significados fornecidos pelas marcações de terra. Através das memórias, este era um mundo ainda familiar para muitos de nós. Alguns lamentam sua ida. Mas tal mundo nunca irá voltar.

O novo mundo é líqüido. Espaço e tempo foram abolidos. Despida de toda mediação tradicional a sociedade se tornou mais e mais fluida e mais e mais segmentada, o que apenas facilita sua reificação. Uma pessoa vive nela através do zapping. Com o virtual desaparecimento de projetos coletivos maiores, os quais eram antes os portadores de diferentes visões de mundo, a religião do Eu - um Eu baseado na liberdade irrestrita do desejo narcisista, um Eu auto-gerado a partir do nada - resultou na disseminação geral da desterritorialização, a qual caminha lado a lado com a dissolução de todos os marcos e todas as referências, tornando portanto o indivíduo mais e mais maleável, mais condicionável, mais e mais vulnerável, e mais e mais nômade. Sob o verniz da "modernização" emancipatória, " por mais de meio século a osmose ideológica tem ocorrido entre a direita financeira e a esquerda multicultura" (Mathieu Bock-Côte), misturando liberalismo econômica com liberalismo social, o sistema de mercado com os elementos marginais da cultura, tudo isso devido primariamente à reciclagem mercantil da ideologia do desejo e à capitalização sobre a ruína de formas sociais tradicionais. O objetivo final é a eliminação das comunidades de significados que recusam-se a operar de acordo com a lógica do mercado.

Neste meio tempo, algumas verdadeiras transformações antropológicas tiveram lugar. Elas afetam a relação com nosso Eu, a relação com o Outro, a relação com o corpo, a relação com a tecnologia. Amanhã tais transformações podem nos empurrar adiante em direção à mistura planejada de aparelhos eletrônicos e os corpos vivos dos homens. Assim que a cobiça por lucro se torna a única motivação, às custas de todas as outras, seu resultado performático é a generalização do espírito mercantil, o qual por sua vez esmigalha os cidadãos em simples consumidores. Dentro deste contexto, o "politicamente correto" não é só uma moda passageira e engraçada, mas um poderoso meio para transformar o processo de pensamento, para restringir mais e mais o espaço comum como um gerador de obrigações recíprocas e para tornar impossível o resgate do mundo de significados que por enquanto desapareceu.

Nós estamos finalmente testemunhando a implementação do "governo" - uma espécie de cesarismo financeiro que se reduz a governar os povos ao mesmo tempo em que os mantem distantes. Da sua parte, o Estado terapêutico e gerencial, sendo o fornecedor de engenharia social e agindo como o Grande Supervisor, está trabalhando para a remoção de todas barreiras separando a ordem do caos. Ele afirma seu poder na implementação de uma situação sub-caótica perfeitamente deliberada contra o pano fundo de sua corrida desesperada ao adiante em direção a lugar nenhum, e em conjunto com atemporalidade generalizada, criando, assim, uma situação de um Guerra Fria civil. A sociologia do vitimismo dispensa a própria noção de classe social, inserindo em seu lugar a denúncia da "exclusão" e a "luta contra a discriminação", do mesmo modo que uma "ciência" econômica que concebe a noção de categorias de povos como uma categoria residual. Ao mesmo tempo, todavia, mais do que nunca antes, a luta de classes por acaso está a todo vapor.

Na Europa, sob o impacto das políticas de "austeridade", o processo de escorregar à recessão, se não mesmo à depressão, está tendo lugar. O desemprego em massa continua a crescer, o desmantelamento dos serviços públicos leva à redução de bens sociais, enquanto o poder aquisitivo continua diminuindo. Um quarto da população européia (120 milhões de pessoas) está ameaçada hoje pela pobreza. No passado, revoluções aconteciam por razões muito menores que esta. Hoje, não existe tal coisa. Terceirização, suspensão de empregos, realocações industriais, demissões abusivas de emprego e as assim ditas "reestruturações sociais" podem certamente desembocar em protestos sociais -  mas em nenhum lugar do horizonte próximo há qualquer greve de solidariedade, quanto mais greves gerais. A única preocupação em manter o seu próprio emprego não possui qualquer outro sentido além de si mesmo. Por que a crise está sendo tolerada tão passivamente? Estão as nações tão exaustas, tão ofuscadas, tão embrutecidas? Elas aceitaram a idéia de que não há alternativa? Nações vivem sob o horizonte da fatalidade. Todo mundo espera algo acontecer. Mas isto não irá acontecer, porque o capitalismo, em toda objetividade, está atingindo agora seus limites históricos absolutos.

Nós estamos experimentando uma crise de magnitude absolutamente sem precedentes, afetando o sistema capitalista a um nível da acumulação e produtividade que não foi nunca atingido antes. As crises do século XIX puderam ser superadas porque o capital não tinha ainda tomado controle de completos meios de reprodução social. A crise de 1929 foi superada devido ao fordismo, devido a regulações keynesianas e por causa da Segunda Guerra Mundial. A crise atual, acontecendo agora tendo como pano de fundo a terceira revolução industrial, é uma crise estrutural, capitaneada pelo total fortalecimento do mercado financeiro em detrimento da economia real e assolada adicionalmente por disseminada dívida pública. Um dos resultados diretos disto é o exercício do poder político em benefício dos representantes do Goldman Sachs e do Lehman Brothers. Mas nenhum desses pode solucionar o problema, porque não existe tal mecanismo capaz de superar a presente crise. Bolhas financeiras, crédito estatal e impressão de dinheiro, isto é, a criação de dinheiro-capital financeiro não podem mais resolver o problema da perda da substância do Capital. Na ausência de verdadeiro crescimento, e indiferentemente  se se move para uma inflação incontrolável ou para uma predeterminação do pagamento público geral, a crise de suficiência corrente (que está sendo agora tratada como uma crise de liqüidez) - tudo isso irá terminar em um terremoto.

Em tempos como nossos existem quatro tipos de pessoas. Existem aqueles que conscientemente querem se afundar mais e mais no caos e na escuridão. Existem que voluntariamente ou não estão sempre preparados para suportar qualquer coisa. Existem também aqueles que são dinossauros de direita por aí que vivenciam a presente situação através da lamentação. Do choro à comemoração, eles imaginam que podem trazer de volta a velha ordem, o que explica porque eles sempre contabilizam derrotas.

Mas também existem aqueles que desejam um novo início. Aqueles que vivem na escuridão, mas que não são da escuridão; isto é, aqueles que lutam para ressuscitar a luz. Aqueles que sabem que além do real, existe também o possível. Eles gostam de citar George Orwell: "Em um tempo de mentira universal, contar a verdade é um ato revolucionário". 

16/04/2013

Alex Kurtagic - Igualdade: Uma Justificativa do Privilégio, da Opressão e da Desumanidade

por Alex Kurtagic



É um clichê em nossa sociedade liberal de tendências esquerdistas que nós devamos permanecer vigilantes contra qualquer ideologia que rejeite a igualdade como um objetivo moralmente desejável, porque, caso essa ideologia alcança poder político, nós nos encontraremos novamente na ladeira escorregadia que começa por uma justificação do racismo e culmina com as câmaras de gás em Auschwitz-Birkenau.

Tanto liberais como seus críticos marxistas se apresentam como forças de liberação e emancipação, e sua historiografia retrata o tempo antes de seu advento como um de privilégio, opressão e desumanidade.

Porém, a história dos últimos cem anos demonstrou que, contrariamente ao preconceito dos liberais e da esquerda, e contrariamente à bela retórica que emana de seu campo, a lógica moral do igualitarismo também justifica privilégios, opressões e desumanidade, exatamente os mesmos males que ela afirma ter combatido.

Privilégio

Uma hipótese fundamental entre igualitaristas é a de que a igualdade de oportunidade deve produzir igualdade de resultados, e que, quando resultados são desiguais, é porque um indivíduo ou grupo de indivíduos tem desfrutado de alguma vantagem injusta. Os igualitaristas possuem uma visão-de-mundo materialista, de modo que essas vantagens injustas são sempre redutíveis a condições materiais, o que, em sua visão, e no sentido mais amplo possível, é o principal determinante de resultados. Essa vantagem injusta é chamada "privilégio". Para combater privilégios, a estratégia fundamental do igualitarismo é a redistribuição: aqueles que se pensa terem desfrutado de vantagens injustas são sujeitos à extração, e o "excesso" extraído é transferido para aqueles que se pensa terem sofrido com desvantagens injustas.

É obviamente verdadeiro que indivíduos ou grupos de indivíduos às vezes desfrutam de vantagens injustas, mas resultados desiguais nem sempre são resultado de oportunidades desiguais resultantes de "privilégio". Oportunidades iguais podem e de fato resultam - o tempo todo - em resultados desiguais. Os igualitaristas resistem à causa (a desigualdade humana inata) porque eles acreditam que uma sociedade desigual é imoral. A desigualdade é para eles sempre e necessariamente uma injustiça.

O problema é que eles efetivamente "corrigem" uma injustiça percebia com uma injustiça de fato. Onde não houve vantagem injusta, mas apenas resultado desigual, a redistribuição toma dos merecedores de modo a dar aos não-merecedores. Isso, de fato, cria uma classe de indivíduos privilegiados que desfrutam de vantagens não-merecidas, e portanto injustas, às custas daqueles que adquiriram, de modo justo, aquilo que foi deles tomado. O igualitarismo, portanto, simplesmente transfere privilégios de um grupo para outro - ele não os elimina.

Opressão

Alguns críticos na Direita tem dito que devemos distinguir "igualdade boa" de "igualdade ruim", citando a igualdade perante a lei como um exemplo de "igualdade boa".

A igualdade pode fazer sentido em certos contextos, desde que ela seja tratada como uma questão prática. Quando ela é tratada como um imperativo moral, porém, se torna impossível justificar a oposição às sociedades multirraciais que temos agora no Ocidente, onde os indígenas não devem ser considerados como especiais, onde os níveis de imigrantes geneticamente distantes são determinados puramente por considerações econômicas.

As sociedades multirraciais resultantes são inerentemente instáveis, porque elas não mais podem ser governadas sob um conjunto partilhado de pressupostos, valores e costumes, e porque a identificação racial e étnica entre vários grupos os coloca em competição mútua por poder e recursos. É desnecessário dizer que a competição entre grupos diferentes também ocorre em sociedades racialmente homogêneas, mas o multirracialismo acrescenta camadas de complexidade totalmente desnecessárias, demandando níveis inteiramente novos de envolvimento estatal. Conforme o experimento multicultural tem demonstrado no Ocidente, o crescimento do multiculturalismo contra um pano-de-fundo de moralidade igualitária fomenta o crescimento de políticas de igualdade, regulamentos, legislações, policiamentos, imposições, burocracias e programas sociais, construídos para impedir que os nativos desenvolvam estratégias de exclusão contra os grupos exógenos cada vez maiores. A garantia liberal da liberdade de expressão é progressivamente limitada de modo a evitar ofender algum grupo ou outro. A liberdade de associação é progressivamente limitada para garantir que nenhum grupo será excluído com base em sua diferença. A liberdade de representação é progressivamente limitada para impedir que os nativos organizem uma oposição política. A liberdade econômica é progressivamente limitada - por exemplo, pela taxação - de modo a igualar resultados e financiar o aparato estatal de igualdade. Este, obviamente, cresce continuamente, se tornando cada vez mais intrusivo, invasivo, caro e opressivo. No Ocidente nós chegamos a uma fase em que expressar uma opinião no Twitter, com menos de 140 caracteres, pode resultar em uma condenação a prisão.

Também há outros efeitos que contribuem para uma atmosfera opressiva. Sociedades multirraciais sofrem de níveis mais elevados de criminalidade e níveis menores de confiança, ambos os quais destroem o espírito comunitário, reduzem a qualidade de vida e encorajam cidadãos a recuarem em casas cheias de alarmes com janelas gradeadas, às vezes por trás de condomínios fechados com patrulhas de segurança armada. Mesmo isso não oferece garantias, de modo que os cidadãos vivem em constante estado de medo: medo de ofender alguém; medo de expressar certas opiniões; medo de espaços públicos; medo de outros cidadãos; medo de ser associado a certos partidos políticos; e, no caso dos nativos, também medo de se opor à própria despossessão, mesmo que no fim não haja para onde fugir. Novamente, com exceção do último elemento, tudo o descrito acima existe em sociedades homogêneas, porém sob o multiculturalismo igualitário as fontes de medo se multiplicam, porque as variáveis se multiplicam.

Desumanidade

Como eu demonstrei em um outro artigo, a crença no bem moral da igualdade rouba da vida seu sentido, porque o sentido vem da diferença ou desigualdade. No processo, ela arranca tudo que faz da vida boa a digna de ser vivida, pois isso depende de sentido e de várias formas de diferença. Associada à moralidade igualitária é a noção de direitos humanos. Na ideologia liberal, se considera que os humanos possuem valor igual em dignidade e direitos. Porém, este não é realmente o caso, pois isso se aplica somente àqueles que acreditam na bondade moral da igualdade.

Se considera que humanos possuem direitos pela simples virtude de serem humanos. Ao mesmo tempo, é considerado um indicativo da própria humanidade reconhecer os direitos humanos. O tratamento de outros humanos que desconsidere abertamente os direitos humanos é descrito como "inumano", "bestial" ou "demoníaco". Uma descrição mais suave é "bárbaro", o que conota uma humanidade inferior.

Mas não é necessário praticar tortura ou algum homicídio cruel ou um extermínio em massa para se tornar, pelo menos pelo ponto de vista liberal, uma besta ou um demônio, porque simplesmente rejeitar a noção de que a igualdade é um bem moral absoluto possui o mesmo efeito. O racismo, por exemplo, implica essa rejeição. Portanto, basta apenas que alguém seja considerado "racista" para que ele seja tratado como alguém dotado de uma humanidade inferior. A animalização e demonização do recém identificado "racista" marca sua mudança em status.

A razão é simples: se o igualitarismo é moral, e se uma capacidade para a moralidade é o que nos faz humanos, o anti-igualitário é automaticamente inumano, e portanto uma besta ou um demônio.

Não obstante, a observação confirma que a regra não é aplicada de modo uniforme: a acusação de "racismo" é muito mais desumanizante para brancos do que para outros. Um negro no Ocidente pode se engajar em um comportamento gritantemente racista sem ter sua humanidade questionada. Por outro lado, um homem branco no Ocidente é julgada segundo parâmetros bem mais rigorosos: custa muito menos ele ser categorizado de "racista" e os efeitos do rótulo são para ele muito mais severos. Isso poderia potencialmente indicar uma pressuposição tácita entre liberais de que os negros já possuiriam de partida uma humanidade menor, e que os brancos possuiriam uma maior, pois isso explicaria a indulgência para com os primeiros e a severidade para com os segundos, mas isso está fora do escopo desse ensaio. Permanece verdadeiro porém, que uma vez considerado "racista", o diabo branco não mais desfruta dos mesmos direitos e privilégios que o "não-racista". Sua liberdade de expressão e associação podem ser pervertidas, restringidas ou negadas; sua propriedade e criações artísticas podem ser vandalizadas, confiscadas ou destruídas; e sua liberdade e meios de sobrevivência podem ser arrancados dele, às vezes sem uma explicação - tudo com total impunidade e aprovação universal. Pior ainda, aos olhos de amigos e parentes, aquele que é rotulado como "racista" deixa de ser uma pessoa, e qualquer tipo de abuso dirigido contra ele é possível. É, na verdade, visto como correto e plenamente justificado.

Essa pode ser uma das várias razões pelas quais sociedades comunistas, que viveram sob um sistema de igualitarismo radical, viram o pior tratamento e os piores extermínios em massa de seres humanos na história. Também pode ser por isso que tantos perderam as cabeças sob o estandarte de "liberdade, igualdade e fraternidade". Como eu afirmei algures, a busca da igualdade implica a destruição do valor, e torna toda vida humana equivalente e substituível. Se, ainda por cima, nós acrescentarmos uma lógica moral que desumaniza aqueles que rejeitam aquela lógica, nós culminamos em uma situação que começa com chamar alguém de "racista", "reacionário" ou "burguês" e termina na guilhotina ou em um gulag siberiano.


12/04/2013

Alberto Buela - A América Colonial: Alguns Aspectos Econômicos

por Alberto Buela



Por motivo de uma longa entrevista que me fez o bom politólogo Arnaud Imatz para uma revista parisiense de história e como algumas de minhas respostas me pareceram incompletas no aspecto econômico sobre os três séculos de dominação espanhola sobre a América, é que redigimos o seguinte texto.

É sabido que Cristóvão Colombo chegou às praias de Santo Domingo em 1492 e que por vinte anos a exploração da América e dos americanos foi cruel e rude. É o famoso sermão de 21 de dezembro de 1511 do frei Antônio de Montesinos onde acusa às autoridades espanholas: "que todos estáis em pecado mortal e nele viveis e morreis, pela crueldade e tirania que usais com essas inocentes gentes", que chama a atenção do rei e do governo espanhol sobre a situação de exploração dos índios americanos, transgredindo as ordens expressas de proteção à população nativa dadas por Isabel a Católica.

Os próximos quarenta anos, até as juntas de Valladolid em 1550/51, a Espanha realiza o maior esforço já realizado por um povo na história da humanidade: descobre, conquista, coloniza e organiza política e economicamente um território de 20 milhões de quilômetros quadrados.

Tomamos a data das juntas de Valladolid de maneira emblemática porque são a culminação de um processo de discussão sobre os justos títulos que tem a Espanha sobre a América e as condições dos índios. Em realidade entraram em discussão os projetos ou modelos do que fazer com a América. E assim Ginés de Sepúlveda vai sustentar que o índio não é intrinsecamente mau senão que é sua cultura o que o perverte. A conquista encontra um fundamento moral. Em contraposição Las Casas vai sustentar que os costumes dos indígenas não são mais cruéis que os do passado da Espanha. Aparece também o projeto de Pedro de Gante e suas escolas e de Vasco de Quiroga e suas cidades-hospitais, que consideram a América e a seus índios uma espécie de paraíso terreno. Finalmente temos o projeto para a América de Francisco de Vitória e sua escola de Salamanca com teólogos do nível de Domingo Soto e Melchor Cano que buscam uma organização jurídica da América e inauguram o direito internacional público.

Essa última é a postura adotada por Carlos V, que seja dito, foi o único imperador no munto que se propôs de modo sério e detido o tema de seus justos títulos. Tão é assim que estando em Barcelona esteve a ponto de renunciar à América.

Segundo o professor colombiano Luis Corsi Otálora, especialista me história da economia, a América foi para a Espanha uma sangria econômica. E mais além dos investimentos pontualmente computados e estabelecidos pelo professor Otálora, vemos como os fatos históricos assim nos indicam.

A Espanha utilizou na América o sistema de monopólio comercial, isto é, se apresentou como dono exclusivo do comércio com a América, porém isso nunca representou a dependência comercial da América em relação à Espanha. E este foi o grande paradoxo econômico americano.

Porque a América foi, desde pouco menos que o princípio da conquista e colonização, autárquica. Bastou-se a si mesma para a produção de alimentos e indústrias.

Durante o reinado de Felipe II veio abaixo o poderio marítimo espanhol com o desastre da Armada Invencível em 1588. Se produz um segundo paradoxo. Que Espanha, a potência mundial da época, ficou sem marinha para defender suas colônias e ao mesmo tempo marca o começo do poderio inglês como "os espumadores de mares".

Essa falta de poder marítimo espanhol originou a criação do regime de "galeões", enormes navios que muito custodiados partiam, geralmente, de um porto único (Santo Domingo no Atlântico ou Manila no Pacífico) a um porto único, geralmente, Cádiz.

Foi a forma que encontraram as autoridades espanholas de defender o tráfego comercial entre as colônias e a metrópole do açoite dos piratas ingleses, holandeses e dinamarqueses que infectavam os mares.

Essa redução do comércio hispano-americano a uma frota anual de galeões reduziu sem querer a dependência americana em relação a Espanha.

À dificuldade do transporte se uniu outra causa que foi a massiva importação de ouro americano que produziu no mercado espanhol um aumento desmesurado do valor das mercadorias, porém como o ouro ficava em poucas mãos, a fome e a pobreza se generalizaram na própria Espanha.

Não obstante, os economistas espanhóis da época pensaram que a subida de preço das mercadorias se devia à saída de produtos da Espanha para a América, com o que limitaram a exportação ao indispensável. Começa a América a se auto-abastecer para satisfazer as necessidades do mercado interno com a multiplicação de indústrias.

Como afirmou o estudioso Alfonso López Michelsen, que chegou a ser presidente da Colômbia: "A paz, a cultura e o progresso de nosso continente durante os séculos XVI, XVII e XVIII foram o fruto de um intervencionismo de Estado anti-individualista em toda a acepção do vocábulo".

O Imperialismo Inglês e a Independência Americana

Até meados do século XVIII os produtos americanos competiam com os fabricados na Inglaterra, porém com o surgimento da Revolução Industrial (a aplicação da máquina a vapor na elaboração de mercadorias, fiação e tecidos, acima de tudo) fez com que se produzisse mais, e por menor custo, com o que a única coisa que se necessitava era encontrar mercados de consumo.

Em 1783 a Inglaterra reconhece como Estado independente aos EUA que fixa tarifas aduaneiras protecionistas para suas indústrias, razão pela qual em relação à América só resta para a Inglaterra a América Ibérica como potencial mercado de consumo para a colocação de seus produtos.

Desde o início do século XVII vinha buscando a penetração ou o desmembramento do império espanhol na América desde um ponto exclusivamente militar porém suas ações, em geral, foram rechaçadas. O fracasso mais retumbante se produziu com a invasão por Cartagena das Índias (Colômbia) em 1741 quando o almirante Vernon com uma formidável armada de 186 bascos (sessenta a mais que a Armada Invencível), 2000 canhões e 24.600 combatentes, foi derrotado por Blas de Lezo com 6 barcos e 3600 homens no forte de San Felipe. Os ingleses perderam 10.000 homens e 1500 canhões. Tiveram 7500 feridos. Uma vintena de barcos ficaram inutilizados e muitos foram incendiados por carecerem de tripulação.

Em 1805 se produz a derrota naval franco-espanhola de Trafalgar que deixa os mares nas mãos dos ingleses. Em 1806 e 1807 tentam a conquista militar de Buenos Aires porém uma vez mais fracassam. Em 1807 assume como ministro de guerra britânico Robert Stewarts que afirma: "Há que se aproximar como mercadores e não como inimigos".

Por motivo da guerra de Independência da Espanha contra os franceses se firma em 1809 o Tratado Apodaca-Canning que busca o apoio militar inglês e, em troca, concede a estes facilidades para seu comércio com a América.

Em julho de 1809 se enche o porto de Buenos Aires de buques ingleses cheios de mercadorias e o Vice-Rei Cisneros e Mariano Moreno (mentor da independência argentina) em representação dos fazendeiros, abrem o porto americano ao livre-comércio com a Inglaterra.

As consequências são a destruição das oficinas e indústrias locais, o empobrecimento paulatino da população, a declaração de uma Independência fictícia, as intermináveis guerras civis. Em definitiva, o enfeudamento da América Espanhola ao imperialismo inglês.


07/04/2013

Tomislav Sunic - Vilfredo Pareto e Irracionalidade Política


por Tomislav Sunic





Poucos pensadores políticos tem causado tanta controvérsia quanto o sociólogo e economista franco-italiano Vilfredo Pareto (1848-1923). No início do século XX, Pareto exerceu influência considerável sobre os pensadores conservadores europeus, ainda que sua popularidade tenha declinado rapidamente após a Segunda Guerra Mundial. Os fascistas italianos que usaram e abusaram do legado intelectual de Pareto foram provavelmente a causa principal de sua queda subsequente no esquecimento.


A sociologia política de Pareto é de qualquer forma irreconciliável com a perspectiva igualitária moderna. De fato, Pareto foi um de seus mais severos críticos. Porém seu foco se estende para além de um mero ataque contra a modernidade; sua obra é um escrutínio meticuloso da energia e das forças impulsoras que subjazem idéias e crenças políticas. De seu estudo, ele conclui que independentemente de sua aparente utilidade ou validade, idéias e crenças muitas vezes dissimula comportamento mórbido. Alguns dos estudantes de Pareto chegaram ao ponto de traçar um paralelo entre ele e Freud, notando que enquanto Freud tentou descobrir comportamento patológico entre indivíduos aparentemente normais, Pareto tentou desmascarar condutas sociais irracionais que jazem camufladas em ideologias e crenças políticas respeitáveis.


Em geral, Pareto afirma que os governos tentam preservar sua estrutura institucional e harmonia interna por uma justificativa a posteriori do comportamento de sua elite governante - um procedimento que está em contraste direto aos objetivos originais do governo. Isso significa que os governos devem "sanar" comportamentos violentos e às vezes criminosos pela adoção de rótulos auto-racionalizantes como "democracia", "necessidade democrática" e "luta pela paz", para nomear alguns. Seria errado, porém, assumir que comportamento inadequado é exclusivamente o resultado de conspiração governamental ou de políticos corruptos engajados em enganar o povo. Políticos e mesmo pessoas comuns tendem a perceber um fenômeno social como se ele estivesse refletido em um espelho convexo. Eles avaliam seu valor apenas após terem primeiro deformado sua realidade objetiva. Assim, alguns fenômenos sociais, como revoltas, golpes, ou atos terroristas, são vistos pelo prisma de convicções pessoais, e resultam em opiniões baseadas na força ou fraqueza relativas dessas convicções. Muito provavelmente, tal líder é uma vítima de auto-enganos, cujos atributos ele considera "cientificamente" e corretamente fundados, e que ele benevolamente deseja partilhar com seus súditos. Para ilustrar o poder da auto-enganação, Pareto aponta para o exemplo dos intelectuais socialistas. Ele observa que "muitas pessoas não são socialistas por terem sido persuadidos pela razão. Muito pelo contrário, essas pessoas aquiescem a tal raciocínio por elas (já) serem socialistas".


Ideologias Modernas e Neuroses


Em seu ensaio sobre Pareto, Guillaume Faye, um dos fundadores da "Nova Direita" Européia, nota que liberais e socialistas ficam escandalizados pela comparação de Pareto das ideologias modernas a neuroses: a manifestações latentes de efeitos irreais, ainda que essas ideologias - socialismo e liberalismo - afirmem apresentar descobertas racionais e "científicas". Na teoria de Freud, complexos psíquicos se manifestam em idéias de obsessão: nomeadamente, neuroses e paranóias. Na teoria de Pareto, em contraste, impulsos psíquicos - que são chamados resíduos - se manifestam em derivativos ideológicos. Retórica sobre necessidade histórica, verdades auto-evidentes, ou determinismo econômico e histórico são os meros derivativos que expressam impulsos psíquicos residuais e forças como a persistência de grupos uma vez formados e o instinto para combinação.


Para Pareto, nenhum sistema de crença ou ideologia é completamente imune ao poder dos resíduos, ainda que no tempo devido cada sistema de crença ou ideologia deva passar pelo processo de desmitologização. O resultado final é o declínio de uma crença ou ideologia bem como o declínio da elite que a colocou em prática.


Como muitos conservadores europeus antes da guerra, Pareto repudiava o mito moderno liberal e socialista de que a história demonstrava um progresso inevitável levando a paz social e prosperidade. Junto a seu contemporâneo alemão Oswald Spengler, Pareto acreditava que não importa quão sofisticada a aparência de alguma crença ou ideologia, ela quase certamente decairia, com o tempo. Não surpreendentemente, as tentativas de Pareto de denunciar a ilusão do progresso e revelar a natureza do socialismo e do liberalismo levou a que muitos teóricos contemporâneos se distanciassem de seu pensamento.


Pareto afirma que ideologias políticas raramente atraem por causa de seu caráter empírico ou científico - ainda que, é claro, toda ideologia reivindique tais qualidades - mas por causa de seu enorme poder sentimental sobre a população. Por exemplo, uma obscura religião da Galiléia mobilizou massas de pessoas dispostas a morrer e a serem torturadas. Na Era da Razão, a "religião" dominante era o racionalismo e a crença no progresso humano ilimitado. Então veio Marx com o socialismo científico, seguidos pelos liberais modernos e sua "religião auto-evidente dos direitos humanos e da igualdade". Segundo Pareto, resíduos subjacentes são prováveis de se materializar em formas ou derivativos ideológicos diferentes, dependendo de cada época histórica. Já que as pessoas necessitam transcender a realidade e realizar incursões frequentes nas esferas do irreal e do imaginário, é natural que elas abracem justificativas religiosas e ideológicas, independentemente do quão intelectualmente indefensáveis esses recursos possam parecer para uma geração posterior. Ao analisar este fenômeno, Pareto toma o exemplo dos "crentes" marxistas e nota: "Esse é um esquema mental atual de alguns marxistas educados e inteligentes em relação à teoria do valor. Desde o ponto de vista lógico eles estão errados; do ponto de vista prático e da utilidade para sua causa, eles estão provavelmente corretos". Infelizmente, continua Pareto, esses crentes que clamam por mudanças sociais sabem apenas o que destruir e como destruir; eles estão plenos de ilusões sobre com o que eles devem substituir: "E se eles pudessem imaginar, um grande número entre eles seriam fulminados de horror e assombro".


Ideologia e História


Os resíduos de cada ideologia são tão poderosos que eles podem obscurecer completamente a razão e o senso de realidade; ademais, não é provável que desapareçam mesmo quando eles assumem uma "capa" diferente em um mito ou ideologia aparentemente mais respeitável. Para Pareto este é um processo histórico perturbador para o qual não há fim em vistas:


"Essencialmente, a fisiologia social e a patologia social estão ainda em sua infância. Se queremos compará-las à fisiologia e patologia humanas, não é a Hipócrates que temos que retornar, mas muito além dele. Governos se comportam como médicos ignorantes que aleatoriamente escolhem remédios em uma farmácia e os administram aos pacientes".


Então o que resta dessa tão exaltada crença moderna no progresso, pergunta Pareto? Quase nada, dado que a história continua a ser um eterno retorno perpétuo e cósmico, com vítimas e vencedores, heróis e vilões alternando seus papéis, lamentando seu destino quando estão em posição de fraqueza, abusando do mais fraco quando estão em posição de força. Para Pareto, a única língua que as pessoas entendem é a da força. E com seu sarcasmo usual, ele acrescenta: "Há algumas pessoas que imaginam que podem desarmar seu inimigo através de bajulação complacente. Elas estão erradas. O mundo sempre pertenceu ao mais forte e pertencerá a eles por muitos anos ainda. Os homens só respeitam aqueles que se fazem respeitar. Quem se tornar uma ovelha encontrará um lobo para comê-lo".


Nações, Impérios e Estados nunca morrem de conquista estrangeira, diz Pareto, mas sempre de suicídio. Quando uma nação, classe, partido ou Estado se torna avesso ao amargo conflito - o que parece ser o caso com as sociedades liberais modernas - então uma contraparte mais poderosa emerge e atrai o apoio do povo, independentemente da utilidade ou validade da nova ideologia política ou teologia:


"Um sinal que quase sempre acompanha a decadência de uma aristocracia é a invasão de sentimentos humanitários e choramingos delicados que a tornam incapaz de defender sua posição. Nós não devemos confundir violência com força. A violência usualmente acompanha a fraqueza. Nós podemos observar indivíduos e classes, que, tendo perdido a força de se manterem no poder, se tornam mais e mais odiosos ao recorrerem à violência indiscriminada. Um homem forte ataca somente quando absolutamente necessário - e então nada pode detê-lo. Trajano era forte, porém não era violento; Calígula era violento mas não era forte".


Armadas com as armas da justiça, da igualdade e da liberdade, que armas as democracias liberais possuem a sua disposição contra as populações oprimidas do mundo? O senso de culpabilidade mórbida, que paralisaram um número de políticos conservadores em relação àqueles despossuídos e oprimidos, permanece um abrigo escasso contra os conquistadores de amanhã. Pois, caso africanos e asiáticos possuíssem a metralhadora Gatling, caso eles tivessem o mesmo nível tecnológico que os europeus, que tipo de destino eles teriam reservado para suas vítimas? De fato, isso é algo sobre o que Pareto gosta de especular. De fato, nem os mouros nem os turcos pensavam em conquistar a Europa só com o Corão; eles compreendiam bem a importância da espada:


"Cada povo que fica horrorizado pelo sangue ao ponto de não saber como se defender, mais cedo ou mais tarde se tornará presa de um povo belicoso. Provavelmente não há um único pé de terra no mundo que não foi conquistado pela espada, ou onde o povo ocupante dessa terra não se manteve pela força. Se os negros fossem mais fortes que os europeus, seriam os negros dividindo a Europa e não os europeus a África. O suposto 'direito' que as pessoas se atribuem com os títulos 'civilizados' - de modo a conquistar outros povos que eles se acostumaram a chamar de 'não-civilizados' - é absolutamente ridículo, ou melhor esse direito não é nada além da força. Enquanto os europeus permanecerem mais fortes que o chinês, eles vão impor sua vontade, mas se o chinês se tornasse mais forte que os europeus, os papéis se inverteriam".


Política de Poder


Para Pareto, a força vem primeiro, o direito bem longe em segundo; portanto todos aqueles que assumem que seus apelos apaixonados por justiça e fraternidade serão ouvidos por aqueles que foram anteriormente escravizados estão gravemente equivocados. Em geral, os novos vencedores ensinam aos seus outrora mestres que sinais de fraqueza resultam em punições proporcionalmente cada vez maiores. A falta de determinação na hora de decisão e torna disposição para se render à generosidade antecipada dos novos vencedores. É desejável para a sociedade que ela se salve de tais cidadãos degenerados antes que ela seja sacrificada por sua covardia. Caso, porém, a velha elite fosse expulsa e uma nova elite "humanitária" chegasse ao poder, os desejados ideais de justiça e igualdade novamente aparecerão como objetivos distantes e inatingíveis. Possivelmente, afirma Pareto, essa nova elite será pior ou mais opressiva que a anterior, principalmente por que os "melhoradores do mundo" não hesitarão em fazer uso de retórica astuciosa para justificar sua opressão. Paz pode então se tornar um termo para guerra, democracia para totalitarismo, e humanidade para bestialidade. A distorcida "linguagem de madeira" das elites comunistas indica o quão correto estava Pareto em prever a desconcertante estabilidade dos sistemas comunistas contemporâneos.


Infelizmente, desde a perspectiva de Pareto, é difícil lidar com esse tipo de hipocrisia. O que subjaz a ela, afinal, não é um juízo moral ou intelectual falho, mas uma necessidade psíquica inflexível. Mesmo assim, Pareto desafiou enfaticamente os postulados quase-religiosos do humanismo igualitário e da democracia - nos quais ele via não apenas utopias mas também erros e mentiras de interesses investidos. Aplicada à ideologia dos "direitos humanos", a análise de Pareto sobre as crenças políticas pode deitar mais luz sobre que ideologia é um "derivativo", ou justificativa de um complexo pseudo-humanitário residual. Ademais, sua análise também pode fornecer um maior insight sobre como definir direitos humanos e os principais arquitetos por trás dessas definições.


Deve ser notado, porém, que apesar de Pareto discernir em cada crença política uma fonte irracional, ele jamais disputa sua importância como fatores unificadores e mobilizadores indispensáveis em cada sociedade. Por exemplo, quando ele afirma o absurdo de uma doutrina, ele não sugere que a doutrina ou ideologia é necessariamente danosa para a sociedade; na verdade, ela pode até ser benéfica. Em contraste, quando ele fala da utilidade de uma doutrina ele não quer dizer que ela é necessariamente uma reflexão verdadeira sobre o comportamento humano. Sobre as questões de valor, porém, Pareto permanece em silêncio; para ele, argumentos razoáveis sobre bem e mal não são mais sustentáveis.


A metodologia de Pareto é muitas vezes retratada como pertencendo à tradição do politeísmo intelectual. Com Hobbes, Maquiavel, Spengler e Carl Schmitt, Pareto nega a realidade de uma verdade única e singular. Ele vê o mundo contendo muitas verdades e uma pluralidade de valores, com cada um sendo verdadeiro dentro dos limites de uma certa época histórica e um povo específico. Ademais, o relativismo de Pareto em relação ao significado da verdade política também é relevante em reexaminar aquelas crenças e sentimentos políticos que se afirmam como sendo não-doutrinárias. Vale a pena notar que Pareto nega às ideologias modernas do socialismo e do liberalismo qualquer forma de objetividade. Ao invés, ele considera ambas como tendo derivado de necessidades psíquicas, que ambas disfarçam.


A Nova Classe


Por suas tentativas de desmistificar crenças políticas modernas, não deveria surpreender que a teoria de Pareto sobre ações não-lógicas e resíduos patológicos continua a desconcertar muitos teóricos políticos modernos; consequentemente seus livros não são facilmente acessíveis. Certamente em relação a países comunistas, isso é mais demonstravelmente o caso, pois Pareto foi o primeiro em prever a ascensão da "nova classe" - uma classe muito mais opressora do que as elites governantes tradicionais. Mas intelectuais não-comunistas também possuem dificuldades em lidar com Pareto. Assim, em uma edição recente de ensaios de Pareto, Ronald Fletcher escreve que lhe foi dito por pesquisadores de mercado de editoras britânicas que Pareto "não está na lista de bibliografia" e "não é ensinado" nos atuais cursos sobre teoria sociológica nas universidades. Respostas similares de editores são bem previsíveis em vistas do fato de que as análises de Pareto soam a cinismo e amoralidade - uma blasfêmia imperdoável para muitos acadêmicos modernos.


Não obstante, apesar da probidade de sua análise, a obra de Pareto demanda cuidado. O historiador Zev Sternell, em seu notável livro La Droite Revolutionnaire, observa que idéias políticas, como feitos políticos, jamais podem ser inocentes, e que idéias políticas sofisticadas muitas vezes justificam um crime político sofisticado. No final da década de 20, durante um período de grande estresse moral e econômico que chocou profundamente a intelligentsia européia, as teorias de Pareto forneceram uma racionalização para a supressão fascista de oponentes políticos. É compreensível, então, o motivo pelo qual Pareto não é bem vindo pela desiludida intelligentsia conservadora, enojados, por um lado, pela violência bolchevique, e pelo outro, pelo materialismo demo-liberal. Durante a guerra subsequente, a aplicação profana das teorias de Pareto contribuiu para o caos intelectual e violência cujos resultados continuam a ser vistos.


Falando de modo mais amplo, porém, deve-se admitir que em muitas coisas Pareto estava certo. Da história, ele sabia que nem uma única nação obteve legitimidade apenas pregando paz e amor, que mesmo a Carta de Direitos americana e a difusão da democracia moderna demandaram a repressão inicial de muitos - desconhecidos que ou não estavam prontos para a democracia, ou pior, que não eram nem mesmo considerados pessoas (aqueles que, como Koestler uma vez escreveu, "perecerem com uma encolhida de ombros da eternidade"). Para Pareto o futuro permanece na caixa de Pandora e a violência provavelmente continuará a ser o destino do homem.


A Vingança das Sociedades Democráticas


Os livros de Pareto continuam a comandar respeito sessenta e cinco anos após sua morte. Se a Esquerda tivesse possuído tal gigante intelectual, ele jamais teria sido facilmente esquecido. Ainda assim a amplitude de influência de Pareto inclui tais nomes como Gustave Le Bon, Robert Michels, Joseph Schumpeter, e Rayond Aron. Mas infelizmente, enquanto o nome de Pareto permanecer encoberto em silêncio, sua contribuição para a ciência política e para a sociologia não serão adequadamente reconhecidas. Fletcher escreve que o ressurgimento acadêmico pós-guerra de escolas de pensamento como "análise de sistema", "behaviorismo", "reformulações" e "novos paradigmas", não incluiu Pareto porque ele não era considerado democrático. O resultado, é claro, é a aniquilação intelectual sutil da enorme erudição de Pareto - uma erudição que vai da linguística à economia, do conhecimento de literatura helênica à sexologia moderna.


Mas as análises de Pareto sobre o poder de resíduos são úteis para examinar a instabilidade de tais panelinhas intelectuais. E seus estudos sobre mímica intelectual ilustram a patologia daqueles que por um longo tempo defenderam o socialismo "científico" apenas para acordarem para o som das sirenes do "auto-evidente" neoconservadorismo - aqueles que, como um escritor francês recentemente notou, desceram com impunidade do "pináculo de Mao para o Rotary Club". Considerando a história dúbia e não raro amoral da intelligentsia do século XX, o estudo de Pareto sobre patologia política permanece, como sempre, apto.