27/08/2011

Heidegger e o Retorno às Origens

por Marcello Veneziani

Houve um filósofo, acima do resto, que foi o compêndio da rebelião contra o niilismo, ou melhor da vontade de transcendê-lo: Martin Heideger. Sua revolta foi radical porque pôs em jogo todos os pilares de nossa época, começando pela linguagem: os "valores" do século XX, suas devastações, deu desenraizamento, sua fuga da morte, o domínio do Ocidente da Técnica, o sentido do progresso, o domínio da política e seu declive. Para Heidegger, o século XX não foi senão o apêndice agonizante do pensamento ocidental, sua última e insensata manifestação onde consumiu-se e representou-se mais vistosamente a perda do Ser e o cumprimento exaustivo dos recursos especulativos, dos resíduos acumulados no tempo, da falta de sentido.

A linguagem de Heidegger é obscura, às vezes oracular, para não poucos inclusive impenetrável; gira em torna a seu próprio dizer, gosta de embarcar em exercícios hermenêuticos e filológicos que mais de uma vez encalham nas praias da retórica ou desviam-se pelos meandros do detalhe e do preciosismo do perfeito literato alemão. No temor de descarrilhar de seu sentido último ou de banalizar e alterar seu entendimento, Heidegger opeta por circunavegar no mar de seu próprio pensamento. Por isso mesmo, somente violentando o extremo rigor do heideggerianismo é possível extrair alguns pontos para colocar sob processo à modernidade. Neste caso, mais que em outros, a operação deve fazer-se com sumo risco e cuidado, com plena consciência de que a linguagem heideggeriana é a imagem filológica do teorema de indeterminação de Heisenberg: na medida em que ganha clareza, perde exatidão, e viceversa. Quiçá seja mais justo, mais correto, reproduzir os efeitos que produziu o heideggerianismo sobre nosso tempo, até o ponto de configurar-se como a filosofia mais radical do antiniilismo.

Em relação a seu tempo, Heidegger produz uma série de curtocircuitos: o primado do fazer sobre o pensar, que foi - desde Marx até o pensamento utilitarista - a bandeira dos novos tempos, encontra nele uma inversão integral. À décima primeira tese marxiana sobre Feuerbach, que marcou o século com a irrupção da filosofia na história através da ideologia e do partido entendido como intelectual coletivo, contagiando todas as experiências de nossa era, opõe-se, radicalmente, a linha de Heidegger. Nas páginas de seu livro O Caminho para a Linguagem, Heidegger escreve que "O pensamento não é o meio para o conhecer, o pensar traça sulcos no campo do Ser." Em outra de suas obras (Quê é Filosofia?) recorda aquilo que escreveu Nietzsche a propósito do pensamento que "deve emanar um forte aroma não muito diferente de um campo de trigo maduro em uma tarde de verão." Auscultação do Ser. Pensamento meditante versus pensamento calculante, diz Heidegger. Pensamento que escava no Ser contra pensamento que resolve-se no fazer. É própria de Heidegger a argumentação mais inexorável sobre o marxismo, corretamente entendido pelo filósofo em seus Seminários como "o pensamento de hoje, porque corresponde à situação na qual reina simplesmente a autoprodução do homem e da sociedade". Em efeito, segundo Heidegger, a autoprodução do homem dá origem ao perigo de sua autodestruição; aqui, junto ao marxismo, golpea-se ao coração mesmo do sonho prometeico do século XX, a convicção de que a raiz do homem seja o homem mesmo, como recitava Marx em seu livro Crítica da Filosofia do Direito em Hegel. Todavia existe um delgado fio que parece enlaçar a Heidegger e a Marx: essa espécie de traça gnóstica, que empurra Heidegger a individualizar nosso destino no signo de "um cárcere que portamos em nós por toda a vida." Porém a liberação dos grilhões, em Marx, advém com a liberação do reino da necessidade através do ideal salvífico da revolução; enquanto que em Heidegger a única possibilidade de salvação consiste em poder remontar o esquecimento do Ser, que exila ao pensamento ocidental da esfera do sagrado. Também Heidegger hipotetizou em seus Seminários de Zollikon uma insurgência "contra a irresistível potência da Técnica", confiando-a a "células de resistência que, sem espetacularidade, retenham a meditação e preparem a inversão à qual chegar-se-á um dia, quando a desolação universal devenha insustentável".


Aqui enxerta-se o mais implacável processo ao século XX, através da reimersão heideggeriana nas Raízes em uma época dominada pelo desenraizamento e pela desorientação ("a desorientação como destino mundial é a verdadeira cifra da alienação da qual falaram Johann P. Habel e Marx", escreve Martin Heidegger em sua Carta Sobre o Humanismo). "O enraizamento estável do homem de hoje no próprio terreno reduziu-se até o terreno do íntimo. Mais ainda: esta perda de raízes, a impossibilidade da época na qual chegamos a viver." (esceve em seu ensaio O Abandono). E repetindo as palavras de Johann P. Habel, Heidegger esreve: "Estejamos dispostos ou não a admiti-lo, somos plantas que devemos crescer enraizadas na terra, sob risco de não florescer nunca, nem mesmo dar frutos", e "é nobre aquilo que tem uma origem e permanece na origem do próprio ser". Em outra ocasião, em seus Ensaios e Discursos, Heidegger recorda que a palavra "cura" tem em grego o sentido original etimológico de "regressar ao lar": "o convalescente é aquele que reorre o mundo para retornar à casa, isto é, para dirigir-se à morada de seu destino".

O problema crucial de nosso tempo, assim pois, seria este: "Se o antigo modo de enraizar-se do homem perdeu-se, poderia encontrar-se então um novo fundamento, um novo terreno no qual enraizar-se?" Daí a tentativa heideggeriana de situar as raízes não no passado, senão em nosso futuro, no qual a origem coincide com o destino. "O início está agora - escreve Heidegger ao modo nietzscheano em seu Discurso sobre a autoafirmação da universidade alemã - não às nossas costas, como um evento dos tempos passados, mas sim na nossa frente e diante de nós". Melhor precisam-se suas reflexões em Sinais do Caminho, onde o recolher-se em sua essência assume a modalidade de um retorno, porém agrega: "Não trata-se, naturalmente, de um retorno aos tempos pretéritos em uma tentativa de restaurá-los de maneira artificial. Retorno, aqui, significa a direção para aquela localidade (o esquecimento do Ser) da qual a metafísica recebeu e continua tendo sua proveniência". Trata-se de um retorno ao lugar no qual o pensar e o poetizar "sempre estiveram". Na coincidência do pensar e do poetizar ressoa "a graça do Ser": a poesia aparece, então, como uma evocação da origem, um estado auroral no qual alberga-se a luz, a voz do Ser. Na poesia recolhe-se a espera pelo início, a origem, as raízes.


Heidegger traça o sentido transpolítico da "Konservative Revolution", retendo o traço saliente do retorno à origem não como um retorno para trás, senão como um atravessamento/aprofundamento do niilismo: assim escreve-o no admirável ensaio A Linha, em diálogo com Ernst Jünger. Podemos falar do paradoxo de um retorno ao futuro. A intuição heideggeriana está em recolher-se na essência do niilismo, remontando-o (e neste caso o remontar é um sinônimo do projetar) até encontrar suas raízes não niilistas, na convicção de que seu cumprimento coincida com seu esgotamento. Do mesmo modo a Técnica, destino do niilismo e da modernidade, não pode ser eludida ou rechaçada, porque inclusive quando evadimo-nos do reino da Técnica, a Técnica invade-nos; também nomeando-a desde fora permanecemos dentro. Similarmente, também enste caso a única via é a busca das raízes da técnica, sem cair na armadilha de considerá-la como puro instrumento; porque na essência da Técnica alberga-se o crescimento daquilo que salva, seguindo um célebre verso de Hölderlin ("Ali onde está o perigo, ali também está a salvação"). Também aqui reúne-se todo o sentido da "Konservative Revolution", que de algum modo foi definida como um modernismo reacionário.

À margem das implicações culturais e políticas do heideggerianismo, reafloram periodicamente as sombras "nazis" sobre Heidegger em uma tentativa de neutralizar, através da demonização, o alcance e a incidência histórica de seu pensar. Os "compromissos" de Heidegger com o regime nacional-socialista são evidentes (por outro lado, ele mesmo escreve que quem pensa grande erra também grande e que "todo aquele que é grande está na tempestade"), e a assonância de algumas de suas teses com aquelas que circulavam nos ambientes nacional-socialistas são inegáveis, porém é necessário sublinhar com clareza ao menos três coisas: Primeiro, em Heidegger permanece um desprezo pela condição política que situa-o fora de todo possível compromisso. Ele, como revelara em seus cursos universitários sobre Hölderlin, nos anos do nacional-socialismo, reconhecia-se na Antígona de Sófocles, "impolítico" em seu sentido de "suprapolítico", desprezando a autonomia da política e suas formas dominantes no século XX, pois estariam condenadas todas elas enquanto são formas do "esquecimento do Ser" no qual o poder está subordinado à Técnica. Em segundo lugar, Hannah Arendt recorda que seus cursos universitários durante a década de 1930 estavam centrados no juízo sobre as idéias nietzscheanas de vontade e de poder, nas quais podia evidenciar-se a essência mesma do nazismo e de outros muitos regimes modernos. Comentando o ensaio de Jünger O Trabalhador, Martin Heidegger escrevia em 1933 "Na atualidade domina no âmbito planetário a vontade de poder e tudo - comunismo, fascismo e democracia liberal - encontra-se hoje nesta realidade". Enfim, não podem ler-se, a não ser como simples propaganda demonizadora, as palavras de Heidegger em 1933 à luz dos supostos e muito mais que discutíveis campos de extermínio. Em qualquer caso não há um nexo entre suas palavras em defesa do enraizamento espiritual no sangue e na terra de um povo e os delírios do racismo. Em todo caso pode-se marginalmente observar que Heidegger (como, ademais, também Spengler e Schmitt, por exemplo) sentia-se mais próximo ao fascismo italiano que ao nacional-socialismo. Em seu livro sobre Heidegger, Nolte recorta como Mussolini havia protegido o filósofo alemão (como fez também com Jünger, ou com Niekisch, ou inclusive com Freud) através de Roberto Alfieri, seu embaixador em Berlim.



No pensamento heideggeriano e em sua obra vigorosa ficam muitos traços de antimodernismo através da reapresentação dos grandes tabús do século, não somente sobre a comunidade e o enraizamento, senão também sobre a morte e o sagrado. Bastará recordar sua implacável crítica a nossa época assinalada pelo rechaço supersticioso da morte: "A quotidianidade - escreve em O Ser e o Tempo - é inseparável do tomar cuidado e do evitar o obstáculo tétrico e inativo do pensar a morte...referida ao 'mais tarde'". Daí o desvio da vida autêntica que caracteriza nossa condição contemporânea. Porém pensar a morte, pensar-se no umbral do morrer, desvelando a condição humana, é também a origem para pensar o outro grande convidado de pedra de nosso tempo: o sagrado. O sagrado recorre constantemente as páginas heideggerianas sobre o Ser e sua revelação, para explicitar-se por fim em sua célebre invocação: "Agora, somente um Deus pode salvar-nos". Porque "a filosofia não poderá produzir nenhuma imediata modificação do estado atual do mundo (...) e resta como única possibilidade a de preparar, no pensar e no poetizar, uma disponibilidade para a aparição de um Deus ou para a ausência do Deus da decadência, pois na presença do Deus ausente nós decaimos." Porém uma inversão da condição atual, agrega, somente será possível "a partir do mesmo lugar do mundo do qual surgiu o moderno mundo técnico"; portanto "não há um espaço diligente para a assunção do budismo zen ou de outras experiências orientais do mundo. Para mudar o modo de pensar é necessário a ajuda da tradição européia, e de sua reapropriação. O pensamento vem modificado somente por aquele pensamento que tem a mesma origem e o mesmo destino." O Ocidente deverá encontrar em suas raízes a energia para cruzar o novo milênio. É aqui onde enxertam-se as memoráveis páginas de Heidegger contra o americanismo. Escrevia em 1942: "Hoje sabemos que o mundo anglo-saxão do americanismo está decidido a aniquilar a Europa, quer dizer, à Pátria e o início do que é ocidental. Aquilo que é inicial é indestrutível." Sublinhando a equivalência metafísica entre os EUA e a URSS sob o signo do domínio da Técnica desenfreada, Heidegger anota, em meados da década de 1930, nas páginas de sua Introdução à Metafísica, "seu ilimitado materialismo e sua invasão demoníaca (no sentido de destruição maléfica) que ataca todo valor, toda espiritualidade, destruindo-a e fazendo-a passar por mentira". Em 1960 sua crítica ao americanismo transcende os horizontes europeus para referir-se à totalidade do planeta: "Se hoje os povos subdesenvolvidos, dos quais tanto fala-se, devem receber em doação as prestações, os sucessos e os úteis da Técnica moderna, esta demanda, temo, virá acompanhada da destruição de tudo o que é-lhes próprios e conatural, a substituição de tudo o que é-lhes natural por aquilo que é-lhes estranho e forasteiro".

Destruição e extirpação. Em uma palavra: desenraizmento. O mal do século XX, segundo Heidegger.