02/11/2010

Breve Discurso Sobre o Herói

por Rodrigo Emílio

O herói é o arquétipo da consciência mitológica do Homem; o ato heróico, uma excursão do Homem ao absoluto de si mesmo; o heroísmo, a memória de Deus no Homem. Todo aquele que, de algum modo, faz jus à dignidade suprema de ser tido e havido à conta de herói, está em condições humanamente ideais de evidenciar as potencialidades divinas (ou paradivinas), mediúnicas e demiúrgicas, do ser humano. Com isto, quero eu dizer, cá na minha, que só na qualidade de herói é que a criatura reduz um pouco a distância que a separa do Criador. O mesmo é dizer que, somente em face do herói, terá Deus boas razões para se orgulhar da criatura, razões de peso para se rever nela: pois só o herói - só ele, afinal - dá a Deus (e aos mortais) a certeza de ter sido o Homem uma criação concebida, e espiritualmente materializada, à imagem e semelhança da grandeza do Criador.

Muitos são os campos da afirmação heróica; muitos e às vezes simultâneos, às vezes concorrentes. É o caso do herói que congraça a coragem e a sabedoria, elevando-se a um plano de vitoriosa supremacia sobre a mediania humana: "numa mãe sempre a espada, noutra a pena", "braço às armas feito, mente às musas dada", Luís de Camões é aqui chamado.

Entre as mais altas espiritualizações do heroísmo, é de incluir os santos e mártires da Fé, entendidos como sendo os heróis de Deus; e, logo depois, o herói de condição guerreira - de preferência habitado pelo espírito de cruzada: trabalhado pela ascese cristã; animado e acionado por essa voltagem mística, que dá sentido pleno a todos os ideais vitalistas.

A nível supremo, o herói configura, assim, o modelo do homem idealmente perfeito, que consegue reunir em si um difícil equilíbrio de virtudes, ou toda uma gama de desmesuras coroadas pela religião.

É apanágio do herói transcendentalizar-se, isto é, humanificar, ou humanizar, a transcendência divina, com a imanência do próprio valor, e consumar, por aí, uma personalidade de exceção, que a façanha (ou proeza) heróica autenticará.

Quanto ao heroísmo, não será propriamente um estado (ou sê-lo-à, quando muito, de maneira latente e latejando). As mais das vezes, consigna um momento, esporádico, um lampejo, fulgurante, de trascensão e ultrapassagem, consagrando, desse modo, todo um código de acendrada determinação e de superadora estoicidade.

Concretamente. Herói é todo aquele que no tempo se levanta para a Eternidade. Quando o tempo vem cobrar o quinhão de anos que lhe adiantou no nascimento, chega tarde. Porque, a essas horas, já o herói conquistou no tempo a intemporalidade, a poder de cometimentos que, não raro, se chancelam numa eternidade de segundos.

Ora, no tempo decaído em que vivemos, está bem de ver que o sucedâneo do heroísmo é o vedetismo (no cinema, no teatro, no esporte, etc...) Acresce que as teorias filosóficas do absurdismo - rendendo laudas à imotivação e à ausência de finalidade da existência - põem desde logo em causa a validade humana do herói. Serve-se frio. "Serve-se morto" - diz-nos Reinaldo Ferreira em "Receita para fazer um Herói." Porque heróis, só por receita. Lá para esses abstrusos "do absurdo", só assim se confeccionam heróis; por meio de receita aviada. De contrário, revelam-se inobtíveis, visto que a fauna existencialista não produz disso. E nem admira que não: figurantes de trazer na botoeira da existência, exibe-os a vida na lapela. Compreende-se: na lapela. Quando muito, aí... Que a mariquice mental não entende além destes janotismos!

("O Debate": 01/12/1973)



Ainda Sobre o Herói e sua Conceituação

Em apostila à teoria - que por aqui expendemos, no passado número - sobre o que seja o Herói, tratemos de fornece a público, e de comentar a... preceito, a tal "Receita para fazer um herói", que Reinaldo Ferreira houve por bem aviar e que tanto êxito auferiu nas Centrais do nosso esquerdismo intelectual. Reza assim:

"Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a
fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.
Serve-se morto."

A inconsistência desta perversa interpretação do herói, entendido como um tipo obcecado, e obsessivamente dominado, por uma idéia fixa - maníaco irracional de vocações suicidas - saltará logo à vista do leitor, pois não lhe dá senão uma imagem extremamente cortical, e ainda assim, caricaturalmente deformada, da exterioridade heróica.

A má-intenção do poeta - que, desde início, se propõe desígnios eminentemente satirizantes - leva-o a confinar e a cristalizar todas as variantes do heroísmo, numa única modalidade que tem sempre por desfecho a morte física do herói.

Ora, quando o nosso poeta sustenta que o herói serve-se morto, está a generalizar situações, a padronizar circunstâncias, e como tal, a explorar um filão que lindamente quadra à ementa que alinhou.

Só que o heroísmo afina por uma gama de diapasões humanos muito mais rica; e nem sempre o herói se serve morto à mesa da Vida.

Nem sempre tem esse inconveniente - que de um inconveniente se trata, para a classe bem-pensante, isso de o heroísmo algumas vezes se pagar com a vida. E, neste capítulo, bem importa dar ouvidos a Rainer Maria Rilke, que é o primeiro a contrabater, em termos lapidares, essa estreita aceitação da morte, que caracteriza os anti-heróis de toda a sorte. Diz ele: "Quando alguém morre, nem só isso é a morte. Morte é quando alguém vive e não o sabe. Morte é quando alguém está privado de morrar. Muita coisa é morte: em nós, diariamente, há morrer e nascer."

E, já agora, escutemos outrossim a preclaríssima palavra de Ezra Pound, quando aponta a dedo os tempos e lugares por "onde os mortos caminham/e os vivos são feitos de cartão."

Como observa, e bem, um dos nossos mais avisados pensadores cristãos, "outra coisa não é a morte senão que é da Vida, até porque nascer é aparecer para morrer imortalizado".

Ora, nesta ordem de idéias, a morte pode não ser mais do que um detalhe ("La mort, c'est un détail!"), coroador da existência.

De onde resulta que o heroísmo, longe de ser "um vôo cego a nada" (como pretendem os sequazes de Reinaldo Ferreira), será, com maior força de verdade, "um vôo iluminado a tudo"!

Na presença da morte, o herói coloca-se perante toda a sua vida. Singulariza-o aquele poder de decisão e tenacidade, que consiste na exaltação do viver em plenitude, contraposto a todas as áureas mediocridades: Dom Quixote levando sempre a melhor, à pusilanimidade do Sancho seu escudeiro.

Concluindo. O herói é um ser, simultaneamente, rico de reclusão interior e de expansão ativa; ao mesmo tempo, em estado de sonho e de vigília; tanto se encerra como se descerra. E, como niguém mais, sabe restituir o real ao seu próprio mistério.

É no herói, sobretudo nele, que repousa a esperança de vivos e mortos.

("O Debate":08/12/1973)