01/08/2021

Juliette Faure - O Cosmismo: Uma Mitologia Nacional Russa Contra o Transumanismo

por Juliette Faure

(2021)


O cosmismo, um complexo movimento intelectual à beira da teologia e do futurismo científico que nasceu há quase 150 anos, está mais uma vez ganhando impulso na Rússia. Algumas das elites do país o veem como uma resposta tipicamente russa ao suposto transumanismo triunfante no Ocidente. Então o que é o cosmismo, e como ele está se espalhando na Rússia hoje?


Uma Breve História do Cosmismo, desde o Império, passando pela URSS, até a Federação Russa


No final do século XIX, o pensador russo Nikolai Fyodorov (1829-1903) defendeu uma concepção profundamente moral e cristã da ciência. Ele imaginou que a humanidade poderia usar o progresso tecnológico para alcançar a salvação universal. Os avanços científicos deveriam ser usados para ressuscitar os ancestrais, alcançar a imortalidade, transformar a natureza humana em direção à divinização e conquistar e regular o cosmos.

Em seu rastro, renomados cientistas russos - como o precursor da cosmonáutica Constantin Tsiolkovski (1857-1935) ou o fundador da geoquímica Vladimir Vernadski (1863-1945) - perseguiram sua visão futurista e espiritual do progresso técnico.

Nos anos 70, um grupo de intelectuais soviéticos ficou fascinado com as teses esotéricas desses autores e as reuniu sob o nome de "cosmismo russo". Embora heterodoxo em relação à ideologia comunista oficial, o cosmismo despertou o interesse de acadêmicos, bem como de membros de alto escalão do establishment político e militar. Por exemplo, o tenente-general Aleksei Savin, diretor da unidade secreta 10003, que foi responsável pela pesquisa sobre o uso militar de fenômenos paranormais de 1989 a 2003. Com base em sua leitura de Vernadski, ele desenvolveu os princípios de uma ciência do mundo extraterrestre, a noocosmologia. Da mesma forma, em 1994, Vladimir Rubanov, secretário adjunto do Conselho de Segurança russo e ex-diretor do departamento analítico do KGB, propôs usar o cosmismo como base para "a identidade nacional da Rússia".

Ainda hoje, o cosmismo serve de fonte de inspiração para os ideólogos que buscam uma ideia nacional para a Rússia pós-soviética. O legado do pensamento cosmista é particularmente reivindicado por um grupo de reflexão conservador próximo ao governo, o Clube Izborsk, criado em 2012.


O Clube Izborsk: O Cosmismo como uma Ideologia Nacional Russa


Este grupo reúne cerca de cinquenta acadêmicos, jornalistas, figuras políticas, empresários, clérigos e ex-militares em torno de uma linha pró-imperial e anti-ocidental. Apoiado em parte pelo financiamento da administração presidencial, o Clube visa definir uma ideologia para o Estado russo. Para isso, ele vê a ciência como um campo de batalha ideológico, no qual a Rússia deve opor sua própria "mitologia tecnocrática" ao modelo de desenvolvimento ocidental.

Este último está cruelmente associado ao "transumanismo", um conceito por trás do qual os ideólogos do Clube Izborsk classificam tanto os defensores explícitos do transumanismo, como Elon Musk, quanto qualquer forma de pensamento que se desvie de sua visão da sociedade tradicional, como o feminismo, a globalização ou o desenvolvimento sustentável. Enquanto alguns pensadores transumanistas ocidentais identificam Fyodorov como o profeta de sua busca pela imortalidade, o Clube Izborsk defende o caráter especificamente russo do cosmismo e sua ligação primordial com a "missão histórica" do povo russo.

A edição de novembro de 2020 da revista do Clube Izborsk pretende demonstrar a oposição entre o cosmismo e o transumanismo. O transumanismo é apresentado como uma extensão do progressismo evolucionista, visando emancipar o indivíduo das restrições da natureza humana através da hibridização com a máquina. O cosmismo, por outro lado, é descrito como uma busca escatológica pela espiritualização da humanidade, guiada por uma interpretação literal das promessas bíblicas da ressurreição. Enquanto os autores do Clube Izborsk criticam a fé científica no aperfeiçoamento técnico do homem, eles também rejeitam a tecnofobia bioconservadora ou ecologista. O cosmismo serve assim como base para uma ideologia sincrética, que eles chamam de "tradicionalismo tecnocrático", e que combina modernidade tecnológica e conservadorismo religioso.

Esta ideologia torna possível sintetizar os legados da história russa, reivindicando tanto o poder tecnológico e industrial da União Soviética quanto os valores ortodoxos tradicionais da Rússia czarista. Além disso, o presidente do Clube Izborsk, Aleksandr Prokhanov, escritor e editor do jornal de extrema-direita Zavtra, usa a frase "cosmismo-leninismo" para argumentar que o significado mais profundo da utopia industrial de Lênin emanou e ampliou a "doutrina dos cosmistas russos". A reinvenção da herança cosmista produz, assim, uma narrativa nacional unificada que responde ao desejo do regime de Vladimir Putin de obliterar os conflitos de memória, afirmando a "indivisibilidade" e a "continuidade" da história russa.

Além disso, o cosmismo é promovido pelos membros do Clube Izborsk como a base de um "novo projeto global de desenvolvimento alternativo que a Rússia poderia expressar e propor". O casamento da ciência moderna e do tradicionalismo político aqui pretende contradizer as teorias clássicas ocidentais de modernização, que prevêem que o desenvolvimento econômico leva à convergência das sociedades em direção a um modelo político único de democracia liberal. Em contraste com o libertarianismo e o cosmopolitismo atribuído ao Vale do Silício, os ideólogos do Clube defendem a modernização estalinista, liderada por um Estado autoritário e uma economia dirigista e coletivista.

No lugar do ideal decaído da sociedade bolchevique, o cosmismo permite a renovação de uma concepção imperial e messiânica do propósito da ciência. Os principais projetos científicos promovidos pelo Clube (exploração espacial e submarina, desenvolvimento do Ártico, pesquisa sobre a melhoria das capacidades humanas) estão ligados à defesa da "civilização" russa e de sua "segurança espiritual". A ciência torna-se assim o vetor para a realização do "sonho russo", que deve ser exportado e substituir o sonho americano por uma oposição ao transumanismo com os "ideais do cosmismo russo" e uma "ciência espiritual".

Uma visão cada vez mais compartilhada nos mais altos níveis de poder


O Clube Izborsk está inserido em redes de poder influentes que lhe permitem propagar suas ideias. Em julho de 2019, o presidente do clube Aleksandr Prokhanov foi convidado ao Parlamento para apresentar seu filme "Rússia - Uma Nação de Sonhos", no qual ele promoveu sua visão de uma mitologia nacional científica e espiritual. O Clube Izborsk também está próximo de figuras-chave da elite conservadora - o oligarca monarquista Konstantin Malofeev e Dmitri Rogozine, o chefe da agência espacial Roscosmos. Finalmente, ele tem acesso ao coração do complexo militar-industrial. Um bombardeiro estratégico carregando mísseis Tupolev Tu95-MC recebeu o nome do Clube, "Izborsk", em 2014.

Além disso, as referências ao cosmismo permeiam os discursos das mais altas autoridades. Valeri Zorkin, o Presidente do Tribunal Constitucional, citou recentemente um fervoroso propagador do cosmismo, Arseni Gulyga (1921-1996), para insistir que o significado do destino comum do povo russo, consagrado no preâmbulo da Constituição, seja ampliado para incluir um significado global orientado para a "salvação universal".

O cosmismo se configura assim como uma mitologia nacional que responde aos dois imperativos do atual regime russo: a corrida ao poder e a definição de uma alternativa política imaginária à modernidade ocidental.