por Andrea Casella
(2019)
"Era uma vez Sauron, o Maia, a quem os sindarin de Beleriand chamavam de Gorthaur. No início de Arda, Melkor o seduziu obtendo sua lealdade, e ele se tornou o maior e mais confiável servo do Inimigo, bem como o mais perigoso, pois ele era capaz de assumir muitas formas e, por muito tempo, ainda foi capaz, quando desejava, de parecer nobre e belo para enganar a todos, exceto os mais sábios." - Silmarillion
As seguintes considerações sobre a obra de J.R.R. Tolkien não pretendem se refletir explicitamente nela. É possível (e até provável) que sejam meras coincidências, que dão origem a sugestões, por mais fortes que sejam, mas inócuas. Afinal de contas, não seria possível que os caminhos seguidos pela mente humana enquanto se mergulha no abismo dos arquétipos sejam sempre os mesmos? Não seria possível que as mesmas sementes do inconsciente sejam capazes de dar frutos em uma obra de entretenimento literário tanto quanto em uma obra religiosa?
É impossível, quando se fala do trabalho de Tolkien, não ser tentado a atribuir-lhe um significado religioso. O catolicismo declarado do próprio autor é uma forte hipótese neste sentido e, afinal, a criação de um mundo completamente "diferente" do nosso, em pleno respeito aos cânones do gênero fantasia, impõe, como regra, uma exposição sobre "quem" e "como" criou esse mundo.
O que poderíamos chamar de a "Bíblia de Tolkien" é sem dúvida o Silmarillion, que abre com um inequívoco:
"Existia Eru, o Único, que em Arda é chamado Ilùvatar; e ele primeiro criou o Ainur, Aqueles que são santos, progênie de seu próprio pensamento, e eles eram com ele antes que qualquer outra coisa fosse criada."
Um deus único (um deus do monoteísmo) existe ab aeterno, incriado, onipotente: ele é conhecido pelo nome de Eru Ilùvatar por aqueles que o adoram; de seu pensamento nascem os Ainur, uma hoste angélica de criaturas inferiores apenas a ele. Ilúvatar lhes propõe temas musicais, e com base nisto eles começam a cantar. A única voz que subitamente se ergue em dissonância é a do mais poderoso de todos os Ainur, Melkor, que arde com o desejo de criar coisas próprias nas regiões do Vazio ignoradas por Ilùvatar, independentemente da direção dada por ele. O poder de criar, no entanto, a Chama Imperecível, está apenas com Ilúvatar, de modo que nada concebido por Melkor pode vir a existir de forma independente.
A música dos Ainur (Ainulindalë), sem que eles a esperassem, dá origem a um novo mundo, flutuando no vazio, que se chama Arda (o planeta Terra, diríamos); o mundo, ao que parece, deve sempre ter sua origem no som, seja ele o Verbo ou um Canto. Lentamente, Melkor passa da vergonha pelas reprovações de Ilúvatar à raiva secreta, até finalmente se degradar de uma criatura angélica a um ser demoníaco, mudando seu nome para Morgoth e concebendo como seu único objetivo desfigurar, deformar e, se possível, conquistar a criação de Ilúvatar, expulsando-o do domínio.
É fácil ver, neste início, uma recordação da rebelião de Lúcifer. A parte inicial do Silmarillion, o Ainulindalë, é, para todos os efeitos, um novo Gênese. De fato, o espírito geral da obra parece ser marcado por um forte gnosticismo do tipo iraniano (talvez até cátaro: Sauron, discípulo de Morgoth, parece assumir a parte de Satanás, filho de Lúcifer, segundo a versão de algumas fontes albigenses). O eterno conflito entre o Bem e o Mal é evidente. Além disso, não seriao próprio cristianismo ortodoxo um tributário das doutrinas de Zoroastro?
Mas todas as tentativas de Melkor/Morgoth fracassam. Mesmo quando ele toma posse de algumas partes de Arda, naquela parte que é chamada de Terra-Média, estabelecendo suas bases lá (primeiro em Utumno e depois em Angband, no extremo norte de Beleriand), ele é incapaz de realizar seu plano diabólico. Os Ainur que descem para cuidar de Arda, tomando o nome de Valar [1], auxiliados pelas raças que povoam o mundo, Elfos, Homens e Anões, declaram uma guerra implacável contra o mal, finalmente conseguindo por Angband em descoberto, reduzindo Thangorodrim a ruínas e capturando Morgoth. Tudo isso se dá no final da Primeira Era do Mundo, ao final do que é conhecido como a Guerra da Ira. A coroa de ferro de Morgoth, encrustada de silmarils, é arrebentada, colocada ao redor de seu pescoço como colar, suas pernas são cortadas à altura do joelho e ele é lançado para além dos limites do universo.
O papel de Senhor da Terra, portanto, não pode ser atribuído a Morgoth, que muito cedo deixou o cenário dos eventos de Arda. Tal título está destinado a outros. E eçe pertence a Sauron, fervoroso servo e discípulo de Morgoth. Os sistemas gnósticos nos transmitiram uma imagem do Demiurgo que se substancia em um "ordenador" do caos, da escuridão inferior. Ele não cria nada, portanto, mas "forja" algo com base em um material já dado: esta é a arte demiúrgica. Sauron faz algo semelhante com a Terra-Média (ou pelo menos aquela parte que não foi destruída com Beleriand) que, como diz o Silmarillion, inicialmente estava quase nua, deserta e escura.
Sauron era inicialmente um dos Maiar [2], ou seja, um daqueles Ainur de nível inferior criados para assistir e servir aos Valar. Sauron, cujo nome original era Mairon, era um Maia de Aulë, o grande Vala detentor da arte da forja. Em seu serviço, Sauron aprendeu seus segredos e especialmente a ciência da criação de objetos. Através de Aulë, Sauron é, portanto, o detentor de uma arte demiúrgica. Mesmo depois de se permitir ser corrompido por Morgoth, ele manteve seu conhecimento intacto: sapientíssimo entre todos, ele é sempre descrito; não um conhecimento sem escuridão, é claro. A história de Sauron pode ser comparada à dos "anjos que fizeram o mundo" do sistema gnóstico de Simão Mago, embora seja importante salientar que eles não têm o poder de criar nada ex nihilo, mas sim de modelar um material pré-existente a fim de dar-lhe uma nova forma.
Sauron, após a derrota de seu mestre e um primeiro sinal de arrependimento [3], aspirou a tornar-se o único senhor da terra. Ele corrompeu os corações dos Dúnedain de Númenor, que há muito haviam se distanciado dos Valar, fazendo com que a ilha afundasse e que o último Dùnedain fiel fosse exilado para a Terra-Média. Acima de tudo, ele ensinou aos Elfos de Eregion como forjar anéis para dar aos senhores das principais raças da Terra-Média, a fim de controlá-los por meio do Um Anel, forjado por ele em segredo nas chamas do Monte da Perdição, na terra de Mordor.
Após a Guerra da Ira e a destruição da maior parte de Beleriand, a Terra-Média era uma terra escura e quase desabitada. Sauron pôs seus olhos nela. Naquela época, ele ainda tinha a capacidade de mudar de forma e aparecer aos olhos do povo como uma criatura angelical e sábia. O Silmarillion conta:
"Sauron tinha tomado o nome de Annatar, o Senhor dos Presentes, e no início os Elfos lucraram muito com sua amizade. E ele lhes disse: 'Ai de mim, se não fosse pela fraqueza dos grandes! Pois Gil-Galad é um rei poderoso e hábil em todas as tradições é o Mestre Elrond, mas eles não estão dispostos a ajudar meus esforços. Será que eles não desejam ver outras terras se tornarem tão abençoadas quanto as suas próprias? Mas por que a Terra Média deveria permanecer para sempre desolada e escura, quando os Elfos poderiam torná-la tão bela quanto Eressëa, e mesmo tão bela quanto Valinor?'"
Como já mencionado, a fim de estabelecer seu poder sobre a Terra-Média, ele se hospedou com os Elfos de Eregion na cidade de Ost-in-Edhil e ensinou aos artesãos daquela terra como forjar muitas coisas, inclusive os Anéis do Poder: "Ele desejava seduzir os Elfos para tê-los sob seu controle". Finalmente, três anéis permaneceram com os Elfos, cujos nomes também são conhecidos: Narya, Nenya e Vilya. Mais sete foram dados aos reis anões, nove aos reis dos homens, a frágil raça mortal, que são os mais fáceis de conduzir para o mal. Eles caíram lentamente na sombra:
"Eles poderiam vaguear, se quisessem, sem serem vistos pelos olhos de todos neste mundo sob o sol, e poderiam ver coisas de mundos invisíveis para os homens mortais; mas muitas vezes eles viam apenas os fantasmas e ilusões de Sauron."
Ilusões, fábulas, névoas, são tudo o que os homens veem sob o poder de Sauron, o Demiurgo. Logo eles se tornaram sombras de pleno direito, nem vivos nem mortos, nem reais nem irreais, envolvidos por um véu de Maya que não pode ser levantado, e tomaram o nome de Nazgûl, também chamados de Os Nove ou de Espectros do Anel. É curioso que seu número corresponda precisamente a nove, que é o número de Maya.
Os Anéis, governados pelo Um, têm o poder de agir sobre a matéria, tornando seus portadores invisíveis e retardando o fluxo do tempo. Esta é uma potência tipicamente demiúrgica. O Demiurgo é tradicionalmente o senhor das formas e do tempo. Sauron pode assumir qualquer forma, pelo menos até a queda de Númenor, ele pode tornar os corpos invisíveis através dos anéis, o que também retarda o fluxo do tempo. Em uma carta a Milton Waldman [4], Tolkien escreve:
"Seu principal poder (de todos os anéis juntos) era evitar e retardar a 'decadência' (ou seja, a 'mudança', que é considerada repreensível), bem como preservar o que se deseja ou ama, ou seu semblante: e este é mais ou menos um tema élfico recorrente [5]... Os anéis também possuíam outros poderes... por exemplo, o de tornar o corpo material invisível e fazer com que as realidades do mundo invisível se tornassem visíveis."
O anel, então, pode revelar o substrato oculto da matéria e controlar o tempo. O anel é tradicionalmente um símbolo de Chronos/Kronos: sabe-se que as palavras latinas annus (ano) e annulus (anel) têm sua raiz na partícula an (no sentido de circum). Gollum e Bilbo viveram muito mais tempo do que o normal graças à relíquia que guardavam na ignorância.
Sauron, ao lançar suas mãos sobre o espaço e o tempo (que juntos, como diz Schopenhauer, formam o princípio da causalidade), aspira a ser o único artifex e mestre do cosmos. Como o Demiurgo gnóstico, ele não cria nada a partir nada, e ainda assim lança seu poder sobre o cosmos, aprisionando-o a si mesmo com o Um Anel e moldando-o de acordo com sua própria vontade sombria.