26/09/2020

Sofia Metelkina - Entrevista com Aleksandr Dugin: A Inteligência Artificial é a Humanidade sem Dasein

 por Aleksandr Dugin

(2017)



A humanidade está enfrentando um estágio em que os robôs não são mais praticamente diferentes dos humanos. Os robôs estão agora desenvolvendo uma ética humana, como na série "Westworld", e as pessoas estão gradualmente se tornando andróides. Mais importante ainda, muitos ficam paralisados e atordoados à espera de uma explicação de alguém sobre como "chegamos a esta situação".

O filósofo Alexander Dugin conversou com Geopolitika.ru em detalhes sobre as origens e os aspectos filosóficos da inteligência artificial. Ele expressou sua opinião sobre se o ciborgue ainda é uma criação de Deus, se um "deus computador" é possível e qual, de fato, é a diferença entre um homem-zumbi moderno e um robô equipado com uma rede neural.


Qualquer Inteligência já é Artificial


Como você descreveria a inteligência artificial de um ponto de vista filosófico? Quando se assentaram as bases desta idéia?


Na verdade, o conceito de "artificial" e "natural", em relação ao intelecto, de um ponto de vista filosófico, está dividido ao longo de uma linha muito fina. Porque tudo que é óbvio, como qualquer filósofo sabe, provavelmente está errado. Até mesmo os comerciantes do mercado moderno entendem que a maioria está sempre errada.

Quando falamos de inteligência artificial (de agora em diante IA, ed.), queremos dizer algo específico, mas partimos do fato de que existe um natural. Mas qualquer filósofo questionará esta afirmação: o que significa "natural"? É natural não possuir inteligência, que está espontaneamente presente e não coloca nenhum questionamento entre ela e o mundo, ou seja, o Logos. Então, somente a falta de inteligência é natural. A presença da inteligência é algo complexo, artificial, porque sua principal função é duplicar o mundo que nos cerca com algumas Gestalts, imagens e, em suma, conceitos. O que é a linguagem, ou pensamento, se não a projeção das impressões processadas do mundo externo em uma tela artificial, ou vice-versa, a projeção de idéias ou imagens para fora a partir de algum ambiente apofático interno?

Mas, em todo caso, estamos falando do fato de que a própria inteligência é misteriosa. Suas origens são muito complexas. E, por exemplo, as hipóteses sobre Deus, a religião, o espírito estão precisamente ligadas à busca pela origem da inteligência. Ela é tão antinatural que deve haver uma razão especial e sobrenatural. Este é o ensinamento de Heráclito sobre o Logos.

A própria inteligência é, em certo sentido, artificial; ela não surge do orgânico, da natureza do dado. Para os materialistas, isto é uma falha no programa, uma dobra que se choca consigo mesma. Há, em particular, a hipótese abiótica da origem da consciência: do inanimado surge o vivo, e do vivo, o pensante, e ambas as transições (não-vida -> vida, vida -> consciência) são extremamente problemáticas, elas carregam algo artificial em si mesmas.

Neste sentido, a inteligência é o que faz com que o natural seja artifical. Por exemplo, quando concebemos uma montanha, uma chuva, um pássaro ou uma árvore, o mesmo processo de entendimento os transforma em algo artificial, em um conceito.

Uma pessoa que não reflete sobre a natureza do pensamento é meio humana, sub-humana. A visão tradicional sobre pessoa é a visão de um filósofo. Um filósofo é um homem. Na medida em que não se é um filósofo, não se é um homem. Conseqüentemente, uma pessoa tem uma idéia para dar ao intelecto um análogo mecânico. Acho que isto está relacionado, em certa medida, com o surgimento de disciplinas como a matemática. Mas a ciência como um todo, e a escrita, as letras, os símbolos, os signos, são uma tentativa de criar uma linguagem de código combinatório para o intelecto.

Cultura é IA. Nossa inteligência, que pensa em si mesma, tende a avançar em direção a uma rede artificial, por exemplo, um livro. O livro é uma forma de IA; especialmente se for a Sagrada Escritura, este é um tipo de computador global que fornece respostas a todas as perguntas que são externas e internas à nossa consciência. A idéia de dar formalismo abstrato às estruturas de pensamento e fixar este algoritmo em algum lugar é uma iniciativa característica da humanidade em várias etapas.

Qualquer sistema de escrita e sinalização também é IA.

Tomamos, por exemplo, as gravuras rupestres dos bosquímanos (san) de Botsuana, Namíbia e África do Sul. Eles projetam sobre as rochas os resultados de experiências psicodélicas que vivem em ritos especiais. No coração desta experiência chamada "arte rupestre" estão formas de visão entóptica subjetiva primária. Ela se baseia no fluxo de alucinações produzidas entre os bosquímanos (sem tomar drogas psicodélicas) pelo método da respiração holotrópica. As origens desta experiência visual entóptica, quando uma pessoa vê o que só ela pode ver, que consiste em formas geométricas: triângulos, quadrados, pontos, cruzes, círculos, etc. Esta é a linguagem operacional artificial de nossa consciência. Os primeiros sinais das alucinações dos bosquímanos, que surpreendentemente lembram pinturas rupestres que datam da mais profunda antiguidade, lembram um alfabeto proto-rúnico. É um tipo de linguagem informática que codifica as profundezas da consciência. Há algo profundamente artificial na própria natureza de nossa consciência, e a humanidade está tentando dar-lhe formas diferentes.

A arte rupestre dos bosquímanos é uma espécie de computador. Assim como a própria escrita é um computador, uma combinação de sinais que se somam a filas de significados, sintagmas de significados.

Podemos lembrar tanto de Alberto Magno quanto de Raimundo Lúlio, que tentaram criar computadores artificiais, uma espécie de robô que responderia a todas as perguntas. Por exemplo, há uma lenda de que Alberto Magno desenhou um autômato: um humanóide perfeito, e seu discípulo (o futuro Santo Tomás de Aquino), temendo o andróide como uma criatura diabólica (segundo outra versão, o autômato era uma mulher ciborgue artificial que discutia com Tomás), quebrou-o.

Uma idéia semelhante existia entre alquimistas e magos da Renascença: criar um modelo combinatório que pudesse responder a perguntas.

Ou, por exemplo, a adivinhação (o Livro das Mudanças do I-Ching chinês ou o sistema iorubá, específico para a África). A idéia é que qualquer combinação de singnos dá uma certa mensagem semântica, que é percebida como um oráculo; a arbitrariedade é acrescentada a uma sintagma; a adivinhação é uma operação de inteligência artificial.

A adivinhação no I-Ching é um processo significativo, um oráculo. Quando as pessoas jogam paus, bolas ou dados, esta é uma forma simples de adivinhação, mas quando se trata do sistema I-Ching ou da adivinhação iorubá, qualquer combinação "aleatória" de elementos semânticos dispostos em uma determinada ordem é um oráculo, uma declaração seqüencial que tem sua própria lógica. E neste sentido, a IA que está sendo criada hoje não difere muito do pensamento na estrutura de inteligência que era característica da humanidade em diferentes formas culturais e em diferentes épocas históricas.

Assim, a IA não é apenas um desenvolvimento tecnológico, mas uma iniciativa que acompanha constantemente a humanidade para dar uma estrutura à nossa consciência com um certo aspecto formalizado. Neste caso, a inteligência pode existir em um ambiente externo: nas paredes das cavernas, na madeira, no pergaminho ou no papel. Tudo isso são tentativas de construir IA, de transferir o algoritmo.

Os desenvolvedores da IA moderna (tanto fraca quanto forte) seguem esta lógica: é uma combinação de seqüências quase aleatórias de elementos semânticos. Vamos lembrar como N. S. Trubetskoy definiu um fonema em lingüística estrutural: um fonema é um quantum mínimo de som dotado de significado. Uma combinação de fonemas sempre significará algo. Da mesma forma, uma seqüência de sinais sempre significará algo: o semsentido não vai funcionar, porque cada elemento do intelecto é um seme, um quantum semântico, assim como cada elemento da fala é um fonema.


Aspectos Religiosos do Mundo Ciborgue


Agora vamos ver a IA de um ponto de vista religioso. Você tem levantado repetidamente a questão do transumanismo. As tecnologias tornam possível transformar uma pessoa em quase um quebra-cabeças: não apenas uma perna pode ser substituída por uma prótese, mas também novos órgãos podem praticamente ser impressos em uma impressora 3D. Eles também estão pensando em experiências mais complexas para substituir o cérebro humano por uma rede neural.


Mas o homem é a criação de Deus. Muitos crentes começaram a fazer a pergunta: se uma pessoa é substituída não apenas fisicamente, não apenas em sua individualidade, mas também em sua consciência, será que essa rede neural na cabeça ainda será, em última análise, uma criação divina?


Uma boa pergunta, mas ela chega um pouco tarde em termos de nossa reação religiosa. O fato é que, na medida em que vivemos em sociedade, já somos produtos do que é chamado de consciência coletiva. Era disto que Durkheim estava falando. A sociologia mostra que nossa inteligência é artificial, na medida em que vivemos em sociedade. Ao mudar o paradigma do sistema ideológico na sociedade, estamos mudando nossa consciência. Ao mudar nossa consciência, já estamos nos afastando da idéia de que Deus nos cria diretamente. Deus nos cria, mas a sociedade em que vivemos nos educa e pode nos dar várias formas. Incluindo o fato de que o Deus que nos criou simplesmente não existe. Em outras palavras, a consciência humana se adapta à codificação. Ela é sempre codificada, se não por uma sociedade, será por outra.

O puro ato de criação da alma humana por Deus é realmente muito complexo. É extremamente difícil chegar ao fundo da experiência. Como Deus cria diretamente nossa alma? Nós nos relacionamos com este momento através do prisma da IA que já existe em nós, através da sociedade, através da ideologia, através da ciência, através da educação, através da criação.

Nos tempos modernos, tudo foi construído de tal forma que este momento do lampejo da alma sob a influência do dedo de Deus foi desterrado: este ato se tornou um mito, um conto de fadas, um disparate. Se você olhar para a ciência moderna (não apenas a ciência comunista, onde esta se tornou um dogma e onde a idéia da origem divina da alma foi queimada com um ferro quente), se você olhar para a Modernidade, você perceberá: tudo nela grita e clama contra este reconhecimento do ato divino. E isso não aconteceu com o Google, nem mesmo com a Grande Revolução Francesa, veio com os Novos Tempos. Isto foi tomando gradualmente forma no âmbito da cosmovisão científica, que substituiu a cosmovisão tradicional, renascentista e medieval. À medida que a Idade Média e o Renascimento se afastaram de nós, perdemos cada vez mais a dignidade religiosa baseada no ato de criação do Deus paterno celestial transcendental da alma imortal.

Hoje não estamos no início desta viagem, mas no final, quando cristãos belos e livres são privados do direito à liberdade de consciência, quando a humanidade, já privada da liberdade cristã para compreender a si mesma e o mundo ao seu redor há vários séculos, segundo o modelo criacionista, cria a inteligência artificial, construída pelos Novos Tempos e insere o microchip em nós. Mas isto não é algo novo, é apenas um substituto para o microchip social da Modernidade, um processador cristalino (ou quântico num futuro próximo). É apenas uma atualização do cérebro com atualizações de hardware (mais rápido e com mais memória).

A liberdade, em seu entendimento divino, como liberdade concedida à alma por Deus, há muito tempo, já há vários séculos, foi colocada fora da lei, deslocada para uma periferia profunda. Hoje, o totalitarismo inerente à Modernidade está tomando sua forma final. Todos desistem de sua - e livremente - consciência coletiva artificial e recebem a consciência 2.0. Sim, este é o fim da liberdade e, de certa forma, o fim do homem. Mas... isto não é o começo do fim, mas o fim do fim, a conclusão lógica da Modernidade. Portanto, nos demos conta disso um pouco tarde. Perdemos nossa liberdade quando matamos Deus. Na medida em que concordamos com a Modernidade, concordamos com a apostasia. E nesta medida, estamos amaldiçoados.

Já perdemos - bem-vindos ao inferno e ao pós-humanismo.

Para prevenir o que está acontecendo hoje com a IA, era necessário pelo menos 300 anos atrás ir em uma direção diferente. E para perceber isto agora, é necessário fazê-lo na direção oposta. Mas qual dos cristãos de hoje está disposto a fazer isso? Os cristãos modernos estudaram em escolas soviéticas ou liberais, todos eles tiveram (de forma autorizada) alguma idéia sobre a ciência moderna, sobre a lógica do desenvolvimento, sobre a matéria, sobre a ciência e sobre o progresso. Os cristãos modernos são eles mesmos um produto do moderno e vítimas de uma profunda codificação mental. Eles são necessariamente modernistas, o que significa que já são portadores da IA. Sim, os cristãos estão justamente horrorizados com o próximo estágio da apostasia. Mas eles estão seguindo um processo anterior: chegamos à AI não porque algumas pessoas más decidiram substituir as pessoas por computadores. De fato, há 300 anos estamos substituindo as pessoas por computadores, tornando a consciência humana cada vez mais manejável, feita pelo homem, através de ideologias, através do sistema de mídia, através da educação.

Já vivemos na matrix, antes de começarmos a nos fundir com outras espécies (quimeras) ou simulacros eletrônicos de redes neurais. Já somos em grande parte produtos da inteligência artificial, e nossa inteligência é 99% artificial, e não é mais controlada por Deus ou por modelos filosóficos superiores. A codificação que está embutida em nosso intelecto é completamente obscura, ctônica e demoníaca. Esta é a estação final, a última. Entramos neste trem há muito tempo, viajando rumo à IA, rumo à criação da matrix e rumo à mudança da humanidade para a pós-humanidade e para a raça dos ciborgues. Por que ficar surpreso quando dizem: "Logo estaremos na estação final, então preparem-se para descer dos vagões". Então ficamos alarmados e nos perguntamos para onde eles nos levavam. Mas precisávamos pensar nisso exatamente vários séculos antes, pegar em armas e lutar contra a Modernidade, contra o Ocidente, contra Newton, contra Galileu, contra o sistema solar, contra Copérnico, contra Francis Bacon, contra a Terra redonda e o pó das estrelas, contra os buracos negros, as estrelas anãs brancas e as gigantes vermelhas. Contra os fantasmas e demônios da Modernidade. Contra o progresso e a democracia, contra a Constituição e os direitos humanos. Contra o Prometeu rebelde e o Lúcifer libertado. Contra todo esse delírio negro em que caímos, contra a matriz do pensamento alienante, absolutamente falso.

Perdemos esta batalha e agora bem-vindos ao inferno e ao pós-humanismo. É estranho que tenhamos comprado um bilhete para ir a Arzamas e, ao chegar, fiquemos horrorizados com o lugar para onde nos levaram. Isto só acontece se uma pessoa fica muito bêbada e não se lembra onde estava ontem, de onde veio o bilhete e por que e para quê serve.

Portanto, não me surpreende que os cristãos modernos estejam horrorizados com isso, mas o porquê de estarem horrorizados apenas agora. E onde estavam eles nos 30 anos anteriores à loucura liberal na Rússia? Onde estavam eles durante os 70 anos de terror intelectual soviético? Onde estavam eles neste país ortodoxo nos séculos XVIII e XIX, quando foram criadas universidades com educação científica que ensinavam sistematicamente à nossa população esta visão racional terrorista que levou a estes resultados naturais? É como serrar um galho no qual se está sentado, não há necessidade de se surpreender depois de cair. Se você vai ao inferno e construir um mundo sem Deus, desafie-o, não se surpreenda que em algum momento você se encontre na matrix com mãos e olhos artificiais, e que os serviços secretos estejam bisbilhotando a sua mente, procurando possíveis materiais de natureza indecente ou com possibilidades de te comprometer pessoalmente em um ato terrorista contra os direitos humanos. Nós mesmos o fizemos, essa é apenas a próxima fase final.

Então, eu realmente não entendo este estupor diante da IA, que muitas pessoas têm hoje. Onde eles estiveram antes? É apenas mais um passo. O último. O trem não irá mais longe.


Deus é real e Deus está na fé


Você pode continuar com seu pensamento: até mesmo o próprio Deus está sendo atraído para esta matrix. Anthony Lewandowski, antigo engenheiro da Google, teve até a idéia de criar um Deus baseado na tecnologia da inteligência artificial. Como nosso mundo já é virtual, vamos colocar nosso deus ali.


O grande filósofo e metafísico muçulmano, a maior figura do sufismo, Ibn Arabi, teve a idéia de dividir Deus em dois: "o Deus atual" e "Deus que vive na religião". O "Deus que vive na religião" também é Deus, mas é criado como uma construção social, um conceito. Portanto, não é surpreendente que a IA também esteja tentando criar seu próprio "deus dos computadores", e seja tão válido quanto qualquer outro. De um ponto de vista sociológico, o que as pessoas acreditam já existe em virtude dessa crença.

É interessante que Ibn Arabi não diga que existe realmente um Deus, mas que existe um Deus inexistente e inventado que vive na fé. Do seu ponto de vista, há tanto isto quanto aquilo, só que eles têm um status ontológico diferente. Há um Deus que não depende do que você pensa dele e há outro que depende disso. Aquele que não depende, que está além, que é mais profundo, é ontologicamente primário. E o Deus que depende de sacrifícios e louvores, de louvores e incensos, está mais baixo e mais relacionado ao homem. Se houver fé, ele está vivo, se não houver, ele morre. Era exatamente isso que Nietzsche tinha em mente.

Não estou dizendo que se pode criar Deus. Embora, de fato, seja possível criá-lo: Deus existe, e ao mesmo tempo as pessoas o criam pela fé, e por falta de fé o matam. Recordemos as palavras de Nietzsche: "Deus está morto, nós o matamos, você e eu". Isto é verdade: Deus, que vive na fé, vive enquanto houver fé. Quando não há fé, ele morre. Portanto, a inteligência informática pode muito bem criar uma Razão por si só: haverá um deus informático e ele terá seu próprio status definido neste sistema epistemológico e cognitivo. O computador, como os deístas dos tempos modernos, pode muito bem colocar a pergunta: de onde sou? E a resposta é "Deus", "meus deuses". Descartes fez exatamente isso. Ele foi um dos primeiros computadores. Kant era mais perfeito, e assim por diante. Em Nietzsche, entretanto, o sistema não funcionou bem, o computador congelou.

Outra questão é se isto afeta a Deus, que é em si mesmo. É claro que não. Podemos lembrar da fórmula de Epicuro: os deuses que vivem nos intermundos. Os deuses são felizes, mas as pessoas não são, diz Epicuro, portanto, para não se aborrecerem, os deuses devem viver em um estado em que não se importam com os infortúnios humanos. Portanto, eles não entram de forma alguma em contato com seres humanos. Acontece que o Deus, que não depende de forma alguma da fé das pessoas, vive em um espaço onde nada (nem a fé nem a descrença) o afeta.

E aqui está nossa tarefa. É importante para nós que Deus viva em nossa fé. Ele pode passar facilmente sem nós. Não podemos passar sem ele, ou melhor, não queremos passar sem ele. E alguém quer e pode fazê-lo. E na teologia, este "alguém" tem um nome. Este é o ponto: em princípio, o Deus que vive na fé é, em algum sentido, mais importante do que Aquele que não depende dela. E nossa tarefa é aproximá-lo, nos fazer acreditar no Deus vivo, e não apenas no deus ídolo. Esta é a questão. Esta é uma linha muito fina, porque uma pessoa facilmente transforma um Deus vivo em um ídolo, e um ídolo pode vir à vida (e muitas vezes retorna à vida). Há um tipo de teurgia nisto, até mesmo magia negra em certo sentido. Mas a religião é sempre um risco, o maior risco. Esta é uma questão muito difícil. Difícil e perigosa. Acreditar em uma coisa, responder outra. Para chegar a esse Deus único e verdadeiro, é preciso passar por provas muito difíceis. E nem tudo será necessariamente coroado de sucesso.

Vivo/morto, ídolo/divindade real, divindade dependente/independente das pessoas: há uma dialética muito sutil em tudo isso. Portanto, não vejo nada de sobrenatural no surgimento de um "deus dos computadores". Hobbes tem o Leviatã: este é um deus-Estado artificial, um deus político. E o adoramos totalmente hoje, porque reconhecemos a soberania política. O Leviatã é válido porque nos ajoelhamos diante do Estado e o deixamos matar, reconhecemos o direito à violência legítima. A violência do Estado nem sequer é violência, uma vez que a violência legítima não é violência. Portanto, damos ao Estado o direito de cumprir as funções de Deus. Os ídolos podem ganhar vida.


Os Deuses da Globalização


O Estado-nação moderno é um deus político de acordo com Hobbes e dentro da estrutura da ciência política clássica.

Há também deuses globalistas com o rosto de bruxa de Hillary Clinton, ou que participam de desfiles de orgulho gay e eventos feministas, ou Soros. Eles são os verdadeiros deuses da globalização: eles dizem o que é politicamente correto e o que não é, eles tomam suas próprias decisões sobre o que é aceitável e o que não é. Os deuses do liberalismo vivem em uma religião liberal. E este culto tem um grande rebanho, desde um programador até o chefe do Sberbank. O usuário médio também está sob sua hipnose.

Os deuses podem ser diferentes e, de fato, existe um "deus do computador": este é o próximo nível. Um deus com a cara de Zuckerberg ou Macron. Quando olho para Macron, ele me lembra de um cortador de grama de última geração, ele é feito de elétrons, as lâmpadas acendem e apagam. Mesmo se você olhar para seus olhos, parece que na íris você pode ver faíscas que piscam microscopicamente de vez em quando. Portanto, se Macron não é o deus da inteligência artificial, ele poderia ser o profeta de um deus eletrônico: ele ama tanto o futuro, iluminando com sua presença sem sentido um grande número de migrantes que mal entendem a gramática francesa. Curiosamente, na véspera das eleições na França, o jornal "Liberation" saiu com uma grande manchete: "Faites tous ce que vous voulez, votez Macron! Esta é a lei principal da seita "Thelema" de Aleister Crowley: "Faz o que queres, esta é a lei!" Aí está o Macron! 


A Única Diferença entre o Ser Humano e a IA


Você admite a possibilidade de que não haverá humanidade? Que, como em uma distopia, somente o espírito da IA permanecerá, flutuando na água?


Difícil dizer. Talvez não reste nada da humanidade...

O que é a IA? Em geral, ela tem tudo o que uma pessoa tem. Qual é a verdadeira diferença entre o ser humano e a IA? Nem biologia nem vida: tudo isso pode ser imaginado como um conjunto de processos físico-químicos e reproduzidos (esta é a base das impressoras 3D do futuro, que podem até imprimir um ouriço, até mesmo um fígado). O segredo da existência biológica pode ser encontrado através da engenharia genética.

Então, o que falta na IA? Ela não tem o Dasein. Isto é muito importante. Quando Dasein, de acordo com Heidegger, existe sem autenticidade, como Das Man, ele se constitui como sua própria oposição, como IA. A inteligência artificial é o Das Man. E se o Dasein existe de forma inautêntica, então por esta existência ele cancela a si mesmo. Mas, ao contrário da IA, o Dasein, mesmo na forma mais extrema de existência inautêntica, quando ele é completamente indistinguível do Das Man, sempre tem a oportunidade de mudar seu modo. Ou seja, de existir autenticamente. Isto acontece quando uma pessoa enfrenta a morte, o sofrimento. Nem sempre, mas em alguns casos críticos, esta mudança pode acontecer. E o Dasein pode se lembrar de si mesmo (o Dasein, não o intelecto!) e mudar o modo de existência de inautêntico para autêntico. Mesmo que uma pessoa passe toda sua vida profundamente imersa nas estruturas da vida cotidiana, no Das Man, mesmo que ela seja indistinguível de uma máquina, ela ainda difere, apenas em uma coisa: ela pode despertar, pode ingressar no ser até a morte.

Mas na IA, isto não é mais possível. A IA é a absolutização do Das Man, que não pode mais colocar o problema da morte. Já que, segundo Heidegger, a existência autêntica é o ser-para-a-morte, então o ir "para-a-morte" só pode ser portador do Dasein. Quem não é portador do Dasein é, em certo sentido, imortal, e a busca da imortalidade física, que é agora o tema principal dos desenvolvimentos pós-humanistas (incluindo os tecnológicos, portanto, criogênicos e muito mais) é uma busca de como a humanidade pode se livrar dele, de seu núcleo existencial, ou seja, do Dasein.

O que é IA? Esta é a humanidade sem Dasein. Mas o Dasein, muitos dirão, é uma pequena perda. Não está claro o que ele é, é uma palavra em alemão, é vago e difícil, é isso que se horroriza em seu próprio fim. Bem, ele não ficará horrorizado, porque o seu não terá fim, e daí? De acordo com Heidegger, a essência do homem está em sua limitação, sua finitude. Bem, não haverá extremos, o bom, o bem. Não haverá Dasein, e ele que se dane. Não haverá existência, e bem...

O Dasein, quando não é autêntico, é muito semelhante à IA. Mas ele tem a oportunidade de mudar este processo. Quando migrarmos para a IA, para os mundos virtuais, não teremos esta oportunidade. E a perda não é grande, dizem os cidadãos, que, em princípio, vivem como se não existissem em um regime autêntico. E não são apenas pessoas ruins como Hillary Clinton ou o maníaco George Soros. Trata-se de cada pessoa que está imersa nas estruturas da vida cotidiana. Eles podem sair deles por enquanto, mas não querem, de qualquer forma é uma sensação boa.

Estes peixes de águas profundas têm a chance de nadar, de fato, para respirar ar. E os carros não têm essa chance. São apenas águas profundas, só isso. Eles são o fundo. Aqui é onde se encontra a profundidade plana frente a um programa de computador. Na verdade, na transição para a IA, perdemos um pouco em comparação com o que temos agora. Naturalmente, se tomarmos a civilização sagrada, onde tudo foi construído sobre um regime autêntico (pelo menos, com o desejo de um regime autêntico), perdemos muito. Além disso, estamos perdendo tudo. Mas começamos a perder tudo gradualmente. O processo dos Novos Tempos é uma transição gradual para a civilização da tecnologia. Afinal de contas, a tecnologia é metafísica, disse Heidegger. A tecnologia é a alienação crescente do modo de existência do Dasein, da autenticidade à inautenticidade. Acumulamos esta existência inautêntica a tal ponto que ficamos completamente presos à falta de autenticidade e somos quase incapazes de romper com a autenticidade. Mas aqui a palavra "quase" tem um significado. "Quase não podemos" é hoje; "não podemos" é amanhã.

Portanto, a diferença entre humanos e IA, entre nós hoje e amanhã, é muito pequena. São praticamente o mesmo. O que fazemos pode ser feito por máquinas. Somos apenas piores, mais fracos. Eles são mais divertidos e rápidos. A AI calcula muito mais rápido, entende melhor, etc. A diferença é muito pequena, não há motivo para entrar em pânico: a humanidade degenerada de hoje nem vai perceber como foi parar aí, porque não há nada para notar, não há dispositivos. Ela será simplesmente substituída, à medida que os passaportes ou cartões forem sendo substituídos. E nem se dará conta: nada vai acontecer com a pessoa comum (ou melhor, ela não será capaz de notar o que vai acontecer). Em qualquer caso, quase as mesmas coisas lhe acontecem: por exemplo, os Estados nacionais se dissolvem. Você vivia na França, não se deu conta e já está na UE, por isso viverá em um mundo global e nem vai notar perceber. Eu já fui um homem e agora você é um dispositivo. Muito bem, eles lhe explicarão que isto é progresso e que deve ser assim.

Por outro lado, a coisa mais importante vai acontecer. Uma pessoa será privada daquele elemento microscópico, completamente desnecessário em si mesmo, que ela nunca usa. Imagine que você tem algo que você não conhece. O que acontece se isso for tirado você? Nada, você nem vai notar. Mas isto é exatamente o que o Evangelho chama de uma pedra que os construtores não utilizaram. De qualquer forma, esta é a pedra angular. É a mais valiosa, mas foi simplesmente descartada, porque os construtores construíram tudo sem ela. Eles a jogaram fora e a esqueceram.

E estamos perdendo esta pedra. Isto é algo muito sutil. Mas, na verdade, o que nos é tirado e o que não sabemos é o mais importante. Portanto, o que está acontecendo no presente e vai acontecer no futuro é realmente assustador. Mas causa medo a alguém que ainda tem algum órgão que possa sentir terror. Se ele não estiver lá, então não há nada para experimentar o horror. Porque existe -- isto é, em princípio, o horror. E se o status quo for normal para nós, "surgirá", então, a próxima etapa que será normal Também "tudo bem". Devemos encarar a verdade: ninguém vai sentir nada. É como a eutanásia, tudo vai ficar bem. De qualquer forma, eles tiram o que não é necessário. Não vai estar lá. Embora isto seja o mais importante.