Por Carolina
Figueroa León*
Nietzsche desde
o princípio apresentou um apego ao mundo grego, uma idealização deste como
estrutura social, ideológica e intelectual. Esta aproximação não é
especificamente com a época clássica, mas com a época arcaica que é
representada através dos poemas homéricos.
Tomando em conta
que o ideal que surge neste período se baseia na luta de poder, na excelência
de uma classe aristocrática que é representada através dos heróis e através da areté. Neste período em que o filósofo
encontra a essência do grego, porque
é o momento em que se desenvolve da melhor forma a condição inerente ao ser
humano: o instinto e a vontade de poder. Portanto, ao tomar esta leitura
deixamos de lado a visão de que estes poemas remetem necessariamente à época
micênica, senão que por sua vez estão carregados de elementos ideológicos,
morais e sociais correspondentes à época em que escreve Homero.
Para compreender
como este ideal guerreiro baseado em uma moral agonística se encontra na
sociedade aristocrática arcaica é necessário analisar a obra homérica, a qual
se deve relacionar com o contexto do século VIII a.c. e desde aí contrastar com
as posturas de Nietzsche, as quais se encontram em seus primeiros escritos mais
filológicos como O Estado grego e A luta de Homero.
Portanto, é
importante analisar o contexto histórico de enunciação destas epopeias, ver se
este realmente se vê representado em ditas obras e finalmente analisar o
problema a partir da leitura nietzschiana da cultura grega.
O mundo homérico e a moral agonística
O chamado mundo
homérico é o que historicamente corresponde à época arcaica da cultura grega,
em que se assentam as bases do crescimento e surgimento das grandes polis. Para
Nietzsche é neste momento específico em que se daria o apogeu da cultura grega,
não o mundo clássico que foi modificado pelo Romantismo e os filólogos
classicistas: “Mas os gregos aparecem ante nós, já que a priori, precisamente
pela grandeza de sua arte, como os homens políticos por excelência (...) Tão
excessivo era nos gregos tal instinto (...) a expressão triunfal de tigres que
mostravam ante o cadáver do inimigo; em suma, a incessante renovação daquelas
cenas da guerra de Tróia, em cuja contemplação se embriagava Homero como puro
heleno”[1].
Para começar
esta análise é necessário nos remeter à época arcaica em si, para logo trabalha-la
em comparação à homérica. A época arcaica é quando se destaca a imagem de um
governo aristocrático precedente à democracia. Para autores como Francisco
Rodríguez Adrados, este período é denominado a sociedade homérica, já que se
baseia na mesma estruturação social que dão conta os poemas homéricos, posto
que na cabeça da sociedade está o rei (Basileus)
e este é secundado por aristocracia que na épica é representada na imagem dos
heróis. Portanto, os pontos de reconstrução do ideal aristocrático se dão em
Homero, quem logra encarná-los em seus poemas. Para Rodríguez Adrados isto se deveria
a que o pensamento racional em que foi constituído esta aristocracia se baseia
no mito principalmente. Portanto, Homero
plasma através de suas obras tal realidade, a qual se mescla com a mitologia
existente de Micenas, mas por sua vez e com maior força aludindo a seu século
[2].
Frente à
utilização dos mitos como reconstrução de identidade e histórica, Rodríguez
Adrados refere: “Se trata de uma sabedoria tradicional, de um espelho de
conduta posto no passado e no aceitado tradicionalmente, que não tem porque ter
uma coerência absolutamente rigorosa” [3].
Dentro
deste tipo de sociedade vemos a imagem do homem que é similar aos deuses, com a
única diferença que é mortal. Esta aristocracia por sua vez se caracteriza por
uma moral agonística que se assenta nos valores como honra (time) e virtude ou excelência (aretê). Estes se encontram presentes já
em grande medida na epopeia grega: “A moral da aristocracia grega é na epopeia essencialmente
competitiva ou agonística” [4].
Esta
imagem podemos percebê-la já que na maior parte do pensamento dos heróis, no
caso da Ilíada, por exemplo: Glauco
narra como seu pai Hipóloco o manda lutar a Tróia, o dizendo que é preferível
que regresse morto, antes que derrotado e sem lograr ser o primeiro em batalha:
“Me insto muitas vezes a ser o primeiro e
me destacar entre os outros e a não desonrar a linhagem de meus pais que foram
os primeiros em Feira e na vasta Licia” [5].
Frente a
esta imagem da desonra da linhagem surge a noção de que o herói sempre deve ser
virtuoso e é a partir deste elemento que surge o conceito de aretê. Esta excelência em primeiro
momento se dá a nível de linhagem, já que sempre o herói é de uma família
nobre. Esta traz o prêmio e a fama, o qual se demonstra através das botinhas
que se recebia (Geras) logo depois da
façanha.
A aretê que surge no ideal heroico é o que
conforma a excelência da nobreza da sociedade arcaica, já que neste ideal
assentam suas bases, que resgatam esses reis e heróis, porque são a
representação de sua classe.
Finley
também se refere á idéia que a aretê heroica
é símbolo da nobreza quando nos afirma que isto se faz patente em Odisséia: “Particularmente na Odisséia, a palavra “herói” é uma
expressão de classe para toda a aristocracia, e as vezes até parece compreender
todos os homens livres”[6].
Podemos
tomar o afirmado por Finley no seguinte fragmento da Odisséia: “Amanhã – indicou Atena
a Telêmaco – convoca no ágora os heróis aqueus” [7]. É nesse sentido que a aretê se converte em um valor de
ensinamento frente a esta sociedade. O que já é afirmado por Jeager em A Paideia [8] Para ele, o ideal de aretê é exemplificado através dos mitos heroicos.
Precisamente neste sentido a educação do século VIII se baseia nas epopeias. Os
cantos épicos se convertem em uma educação moral, em que se ensina que a
aristocracia possui uma excelência que é natural. Mas apesar de ser uma
condição imanente ao nobre, a aretê
se deve demonstrar individualmente. Portanto, há que esforçar-se para
conseguí-la, o que se vê na Ilíada
quando nos narra que Aquiles foi treinado para vencer na arte da guerra por
Fênix. O que nos apresente no canto IX quando Fênix trata de persuadir Aquiles
para que volte a lutar com os aqueus: “O ancião cavaleiro Peleo quis que eu te
acompanhasse no dia em que te enviar de Ptía a Agamenon. Todavia criança e sem
experiência da funesta guerra nem do ágora
(...) e me mandou que te ensinará a falar e a realizar grandes feitos (...) te
criei até fazer-te o que és”[9].
Neste
ponto vemos que não só importa a natureza especial do nobre, mas que há que
desenvolvê-la e a partir disto é que se reconhece seu mérito.
Seguindo
com as características desta excelência, surge a imagem da doxa, que se relaciona com a opinião que o resto possui do herói, é
esta a que da posteridade e transcendência encarnada na Fama. Portanto, como
antes mencionei, tal valor se representa através dos objetos materiais como os
despojos de guerra. Portanto, a culminação desta doxa é a Glória ou kleos.
Neste sentido ocorre a disputa entre Aquiles e Agamenon, já que ninguém dos
dois pôde ficar sem uma escrava, que seja o exemplo tangível de seu triunfo. É
por isso que a única forma para que Agamenon não perca sua honra ao entregar
sua escrava a Apolo é remover a de Aquiles, posto que este é um igual.
Ao
revistar este exemplo de Ilíada vemos
que no mundo aristocrático não há uma diferença entre o parecer e o ser, ambos
elementos são a mesma coisa, portanto, o que prima é a aparência
principalmente. Devido a esta visão do homem é que surgiria a antes mencionada doxa que é a opinião, a que afirma o
reconhecimento por parte do outro. Ao conseguir tal aceitação o herói pode
chegar a tal (euphrosyne), que se
representa através do despojo e do banquete “ O agathós ou homem destacado tem alguns meios de fortuna
proporcionados. Isto se deduz do paralelismo que se estabelece entre a time ou honra de cada chefe e a parte
de despojo que recebe”[10].
Outro
ponto importante é o das riquezas, que também é outro componente da excelência.
O qual se representa através das pertenças do oikos, tais como terras, gado, criados, escravos, etc. Todos estes
bens se transmitem diretamente por via de herança. Daqui podemos desprender
como nos afirma Rodríguez Adrados que, quando o nobre não pratica a guerra,
desfruta da riqueza em seu lugar. Isto nos fica bastante claro na imagem do
Banquete em Odisséia [11].
Para
concluir este imaginário do mundo homérico me parece importante ressaltar que: “É
uma sociedade voltada para o mundo, não a outra vida nem ao homem interior; mas
com um ideal de heroísmo ao próprio tempo. O ideal se encarna no nobre, o homem
superior ou excelente, cuja aretê é
fundamentalmente competitiva, mas pode desembocar no sacrifício ou na alegria
de um viver refinado” [12].
Tomando
esta citação compreendemos que a aristocracia se conforma a partir de sua
riqueza, e devido a isto é fundamental entre os nobres fomentar vínculos com
seus iguais, o qual se dá através da hospitalidade, já que se atende a alguém
do mesmo valor moral e social. Neste sentido também se volta importante uma
espécie de relação de parentesco dentro da que surge certo intercâmbio
econômico representado em presentes (hedna).
Na Odisséia se faz patente esta
relação de hospitalidade através da narração da viagem de Telêmaco pelas cortes
gregas, onde é bem recebido e por sua vez se atende tal como se formara parte
da família, sem importar de onde venha, nem as fronteiras que os separam. Outro
exemplo chave é o fato que conduz à Guerra de Tróia, a falta da hospitalidade
de Paris (Alexandre) frente a Menelau ao raptar Helena.
A luta de Nietzsche
O
fascínio do filósofo pelo grego parte já de sua infância, na época em que vive
com seu avô materno, quem o aproximará ao grego a partir das leituras de Homero
que realiza. É neste ponto que o grego se converte em um refúgio para Nietzsche,
quem detesta a educação petista na que cresceu, já que o grego se converte na
antítese e anti-utopia frente á miséria de sua existência cotidiana cristã-protestante.
A partir deste fascínio surge uma imagem do grego que irá contra o pensamento
filológico de sua época, para quem a essência do grego se daria no século V
ateniense, em pleno Classicismo. Para Nietzsche isto não é o grego, mas o
pré-clássico, principalmente assentado no pré-socrático e em Homero.
O que se
relaciona com as afirmações de Arsênio Ginzo em seu artigo “Nietzsche e os
gregos”: “Nietzsche havia chegado cedo à conclusão de que a visão da Grécia
transmitida pelo Classicismo alemão era instatisfatória. Já com anterioridade à
publicação de O nascimento da tragédia, Nietzsche havia distanciado da imagem
da Grécia dos clássicos alemães (...) A partir de 1869, quando começa sua
atividade como professor em Basiléia, Nietzsche mostra claramente que resulta
insatisfatória essa imagem da Grécia (...) A razão do rechaço nietzschiano consistia
em que primeiro os clássicos e depois seus epígonos nos haviam transmitido uma
imagem falsa da Antiguidade, uma <<falsa Antiguidade>>, idealizada,
unilateral, domesticada” [13].
Este
distanciamente o leva a afirmar que o centro de gravidade do grego já não é o
século de Péricles, como afirmava o resto dos filósofos alemães de sua época,
mas antes o século VI ou talvez antes: “Aqui se encontrariam a seu juízo os
verdadeiros gregos, uma cultura grega todavia não falsificada nem debilitada,
aqui residiria a <<origem criadora>> de uma cultura ocidental, a
modo de referente paradigmático que lamentavelmente havia caído em esquecimento
ou bem havia diluído seus perfis”[14].
Partindo
desta imagem do grego contextualizada na época arcaica vemos que Nietzsche
descobre neste o melhor exemplo da vontade de poder, a idéia de luta, de sobrepor-se
ao outro, que define ao ser humano, o que estaria representado em Homero. E é
neste contexto que se percebe a crueldade, a inveja, um gosto pela destruição,
dando conta que a destruição é algo próprio do ser humano. Os gregos não forma
deshumanos, mas os homems mais humanos dos tempos antigos. Aceitam, não
inventam nada papra criar outra humanidade alternativa. A luta para Nietzsche é
antes o fim da cultura e educação. E isto é o que afirma em seu texto A luta de Homero, onde a força do agon é o valor mais transcendente dentro
da sociedade homérica. Esta imagem apontaria no pensamento do filósofo à noção
de um grande desenvolvimento cultural, que só se havia logrado em tal
sociedade. Ele não queria pensar na humanidade da antiga Grécia sem sua
selvageria, na cultura em sua vigorosa natureza, nem na beleza de seu mundo sem
todo o terrível e feio que formavam parte dele:
“Assim vemos que os gregos, os homens mais
humanos da antiguidade, apresentam certos traços de crueldade, de frieza
destrutiva; traço que se reflete de uma maneira muito visível no grotesco
espelho de aumento dos helenos (...) Quando Alexandre perfurou os pés de Batis,
o valente defensor de Gaza, e atou seu corpo vivo ás rodas de seu carro para
arrastá-lo entre as provocações de seus soldados, esta soberba nos parece como
uma caricatura de Aquiles, que tratou o cadáver de Heitor de uma maneira
semelhante (...)” [15]
Ao
afirmar isto vai contra o otimismo do progresso que foi instaurado a partir do
Iluminismo. Para Nietzsche o grego é a antítese do que odeia de sua época. Para
ele os gregos seguem sendo o que haviam sido para os clássicos: paradigmas da
humanidade, cultura do homem político, mas a imagem que tinha começou a oscilar
entre a simplicidade da concepção clássico e o vigor, inclusive a atrocidade de
uma cultura pagã, cujos valores representavam a antítese da história cristã.
É em meio
a este ideal que começa a afirmar seu projeto de desmascaramento da cultura
ocidental como uma luta, uma conquista e a partir disto se homologa com a
sociedade homérica. Para ele tudo é visto como uma missão, os gregos eram
construtores de cultura, de sua cidade, este não era um agon pessoal. De aí que Nietzsche não entenda o conceito de fama só
como um reconhecimento egoísta que se comprova através dos bens materiais. E
sim antes é outorgada pela coletividade. Por exemplo, a fama à que apela
Aquiles tem que ver antes com a doxa,
o que nos fica clarro através da idéia que os aqueus veem possível triunfo em
Tróia se Aquiles não decide voltar a lutar. A partir deste exemplo podemos
situar a idéia da individualidade que representa o herói para Nietzsche:
“Cada ateniense, por exemplo, devia
desenvolver sua individualidade naquela medida que podia ser mais útil a Atenas
e que menos pudesse prejudica-la (...) cada jovem pensava no bem-estar de sua
cidade natal, quando se lançava, bem à carreira, ou a tirar ou cantar; queria
aumentar sua fama entre os seus; sua infância ardia em desejos de mostrar-se
nas lutas civis como um instrumento de salvação para sua pátria (...)” [16]
Analisando
o texto O Estado grego de Nietzsche
se visualiza seu ideal de um Estado orientado para a cultura, mas que deve ser
fundamentalmente hierarquizado e fundamentado em base à escravidão. Nietzsche
glorifica a pólis grega antiga como um arquétipo anti-socialista e
anti-liberal. Uma sociedade hierarquicamente estruturada, cruelmente opressiva,
cuja excelência cultural provém da implacável exploração dos escravos. Este
ideal iria contra a organização burguesa da modernidade. Finalmente, quando
conclui seu ensaio louva Platão como o grande teórico do Estado, mas o critica
por ser o artífice da Idéia, que será o que ficará na criação do Cristianismo e
uma filosofia metafísica. [17]
Outro dos
pontos que resgata neste texto em relação á sociedade homérica é a noção de
indivíduo excepcional que de desprende da imagem do herói, que possui virtude (aretê) e que é quem logra levar a cabo a
culminaçãp da grande cultura e determinam o curso da história.
Em
relação a esta idéia do homem excepcional podemos tomar em contra a noção do
herói homérico seguindo as afirmações de Moses Finley em seu texto O mundo de Odisseu: “A idade dos heróis,
tal como entendia Homero, foi, pois, uma época em que os homens superavam os
padrões sucessivos de um grupo de qualidades específicas e severamente
limitadas” [18].
A partir
dessa noção de Finley podemos relacionar a visão do termo da individuação e por
sua vez a imagem do gênio excepcional afirmada por Burckhardt.
Burckhardt
em seus estudos relacionados com o Renascimento começa a afirmar que esta é a
época em que surge a imagem do gênio, a idéia do desenvolvimento da
individualidade do artista, elemento que romperia com o anonimato presente na
arte da Idade Média. O que para ele se entenderia a partir do descobrimento do
homem como homem. O artista agora aspira à fama terrestre, já não à espiritual
tal como se via na Idade Média. Seu móvel é a glória, ser reconhecido por seus
logros artísticos. Se perde totalmente a idéia medievalista do homem que vê a
atividade terrestre como um passo ou preparação à vida celestial. O homem
moderno ou renascentista para Burckhardt vê antes que a atividade que realiza
recai em seu presente e em suas glórias futuras, é antes um benefício imediato
ao que pode ascender. É assim como Burckhardt afirma que este novo homem já não
é passivo e receptivo, mas que antes se transforma em um grande criador. Um
produtor de cultura. [19].
Esta
idéia logo é aplicada por Nietzsche, quem entende a este gênio como um
indivíduo excepcional que surge em toda sociedade como o artista ou militar.
Tomando esta idéia, Nietzsche afirma o princípio de individuação que estará
presente em sua obra O nascimento da
tragédia. Este princípio se relaciona com a vontade individual que propõe
Schopenhauer, a qual se relaciona com a denominada volição individual que é
antes uma maniestação limitada da vontade que se daria a nível do mundo
objetivo. Portanto, a vontade seria algo inconsciente que se manifesta no amor
à vida de cada um dos indivíduos. A partir destas idéias afirma que o mais
importante é entender que todos os fins que persegue o homem estão
impulsionados por uma vontade que é original. A essência do mundo é a vontade,
levada à vida mesma, sendo esta algo íntimo do ser, o que relacionamos com a
noção do núcleo do indivíduo, com sua natureza humana [20].
E é neste
sentido que se afirma que o Estado deve preocupar-se deste indivíduo
excepcional, que afirma uma vontade natural de aspirar à glória, seguindo as
afirmações de Burckhardt. Devido a sua genialidade, Nietzsche afirma que o
resto do povo (laos) deve se
submeter, já que graças a esta escravidão estes gênios podem ter o tempo
suficiente para o ofício e em meio dele criar cultura:
“Com o fim de que haja um terreno amplo,
profundo e fértil para o desenvolvimento da arte, a imensa maioria, ao serviço
de uma minoria e mais além de suas necessidades individuais, há de submeter-se
como escrava à necessidade da vida a seus gastos, por seu plus de trabalho, a
classe privilegiada há de ser subtraída à luta pela existência, par que crê e
satisfaça um novo mundo de necessidades” [21].
Ao ofício
a que se refere Nietzsche não é o que atualmente entendemos como Estado de não
atividade, senão que pelo contrário tomando a noção de ofício grega em que os
artistas só se dedicavam a produzir cultura. É a partir desta idéia que
Nietzsche nos propõe que para os gregos o trabalho era vergonhoso e frente a
isto os disse:
“O trabalho é uma vergonha porque a
existência não tem nenhum valor em si: mas se adornamos esta existência por
meio de ilusões artísticas sedutoras, e lhe conferimos deste modo um valor
aparente, ainda assim podemos repetir nossa afirmação de que o trabalho é uma
vergonha, e por certo na segurança de que o homem que se esforça unicamente por
conservar a existência não pode ser um artista” [22].
Neste
texto também podemos ver que se desprende esta defesa da moral agonística
grega, da luta, o uso da violência para poder criar cultura, de aqui que para
ele a escravidão se converta em uma horrível necessidade:
“Os gregos se revelaram com seu certeiro
instinto político, que ainda nos estágios mais elevados de sua civilização e
humanidade não cessou de advertir-lhes com acento bronzeado: “o vencido
pertence ao vencedor, com sua mulher e seus filhos, com seus bens e com seu
sangue. A força se impõe ao direito, e não há direito que em sua origem não
seja demasia, usurpação violenta” [23].
Por sua vez
através desta visão violenta, de destruição e força, Nietzsche nos afirma como
exemplo Iliáda: “a expressão triunfal
de tigres que mostravam ante o cadáver do inimigo; em suma, a incessante
renovação daquelas cenas da guerra de Tróia, em cuja contemplação se embriagava
Homero como puro heleno” [24].
Em relação à
imagem do gênio extraordinário, Nietzsche toma Homero, o qual se afirma em seu
texto Homero e a filologia clássica.
Neste trabalho, apresentado na inauguração de sua cátedra de filologia em
Basiléia, não se mete na questão homérica, senão que antes interessa o que este
como figura em si simboliza. Deste ponto de vista para o filósofo, Homero se
converte em um modo de viver, uma política, um ideal religioso e na criação de
um panteão de deuses.
Resgata Homero
como o indivíduo excepcional que logra sublimar a
tradição, posto que já não é o poeta quem possui uma vontade racional,
portanto, nega o conceito de tradição homérica. Há para Nietzsche o
desenvolvimento dinâmico de um poeta que se eterniza em um futuro. Para os
filólogos da época, Homero recolhe uma tradição de muitos séculos, a concretiza
e a escreve. Mas Nietzsche disse que Homero não é isso, que não há uma vontade,
e sim uma dinâmica. Para ele a única forma de abordar Homero é através da arte,
não da razão, escrevê-lo através da experiência: “a possibilidade de um Homero
se faz cada vez mais necessária. Se desde aquele ponto culminante voltamos
atrás, encontramos logo a concepção aristotélica do problema homérico. Para
Aristóteles é o artista imaculado e infalível que tem perfeita consciência de
seus meios e de seus fins; com isto se revela também com a ingênua inclinação a
aceitar a opinião do povo que adjudicava Homero a origem de todos os poemas
cômicos, um ponto de vista contrário á tradição oral na crítica histórica (...)
é necessário perguntar-se se existe uma diferença característica entre as
manifestações do indivíduo genial e a alma poética de um povo” [25].
A excelência da
alma individual que não inventa nada, que eleva a outra categoria à alma
popular. O que nos leva a entender que personagens como Homero não são mais
uns, senão que sublimam, que são excepcionais e que levam a outra categoria a
uma tradição, dado por sua individualidade, seu caráter excepcional: “Agora se
compreende pela primeira vez o poder sentido das grandes individualidades e das
manifestações de vontade que constituem o mínimo evanescente da Humanidade;
agora se compreende que toda verdadeira grandeza e transcendência no reino da
vontade não pode ter suas raízes no fenômeno efímero e passageiro de uma
vontade particular; se concebem os instintos da massa, o impulso inconsciente
do povo como a única primavera, como o único palanque da chamada história do
mundo” [26].
Para Nietzsche.
Homero não só recompilou a poesia oral, visto que sem a figura do bardo não
existiria Ilíada Odisséia: “Nós
acreditamos em um grande poeta autor da Ilídia e Odisséia; sem embargo, não
acreditamos que este poeta seja Homero” [27]. Esta é uma visão muito distinta
da que afirmam os estudiosos da questão homérica. Nietzsche afirma uma terceira
visão, diferente da noção que foi afirmado, em que se vê Homero como um
personagem qualquer. Nietzsche ao invés disso disse que suas obras são produto
de uma excepcionalidade, o que se relacionaria com o princípio de
individualidade que aparece em o
nascimento da tragédia. De onde se desprende a idéia que os personagens
individuais determinam o curso da história.
Como temos
visto, Nietzsche é muito certeiro ao realizar uma leitura do mundo homérico, e
tomar deste aquela idéia que através do ideal guerreiro se pode lograr antes de
tudo produzir cultura, portanto, não é tão azaroso que em Grécia se tenha dado
a grande formação da cultura de Ocidenten, o qual claramente só se pode
conseguir a partir da guerra, a que eles chamavam polemos. Daqui que a educação que se recebera aludira exatamente a
um ideal guerreiro baseado na noção de aretê,
a qual se lograva tanto a nível de trabalho individual como por sua vez pelo
simples fato de nascer nobre. Portanto, os gregos foram uma cultura que se
educou e conformou na base da noção de uma moral agonística, em que sempre há
um que é superior ao outro. Mas ambos heróis estão na mesma altura, já que
ambos possuem as mesmas características de nobreza, entendida através do termo aristoi. Daqui que se repete
potentemente a imagem de Heitor, quem Homero nos apresenta como o único herói
que poderia competir com a potencialidade de Aquiles. Desde este ponto me
parece interessante o resgate que realiza Nietzsche frente ao que o resto de
seus contemporâneos haviam considerado dentro dos estudos filológicos o menos
importante, o mais bestial, que não teria comparação com ao nível artístico do
século V. E é neste sentido que depois da conclusão que se a sociedade arcaica
não tivesse sido constituída a partir desta noção de agon, não se tivesse logrado mais adiante tais manifestações
culturais tão magnânimas que nos tem deixado o século V ateniense.
***
*Carolina
Figueroa León é bacharel em Humanidades e Ciências Sociais. Licenciada em
Literatura Criativa da Universidade Diego Portais com um Menor em menção em
Cultura Clássica. Estudante do Programa de Magíster em Estudos Clássicos da
Universidade Metropolitana de Ciências na Educação (UMCE).
[1] Nietzsche, Friedrich, O
Estado grego. (Obra Póstuma) Prólogo de um livro que não foi escrito, 1871,
p. 6
[2] Ver Rodríguez Adrados,
Francisco, La democracia ateniense, Editorial Alianza, España, 1998.
[3] Ibíd., p. 32
[4] Ibíd., p. 36
[5] Homero, La Ilíada, Canto
VI, Editorial Plaza y Janés, Barcelona, 1961, p. 154
[6] Finley, M.I., El
mundo de Odiseo, Fondo de Cultura Económica, España, 1995, p. 30
[7] Ibíd., p. 20
[8] Ver Jaeger, Werner.
“Capítulo II: Cultura y educación de la nobleza homérica” en Paideia: los
ideales de la cultura griega, Editorial Fondo de Cultura Económica. México,
2001, pp. 32-47.
[9] Homero, Op. cit.,
pp.226-228
[10] Rodríguez Adrados, Op.
cit., p.39
[11] Ver Homero, La
Odisea, Canto XVII. Se menciona um banquete no cual se encontram os pretendentes
de Penélope.
[12] Rodríguez Adrados, Op.cit.,
p.38
[13] Ginzo, Arsenio,
“Nietzsche y los griegos”, Polis. Revista de ideas y formas políticas de la
Antigüedad Clásica, núm. 12, 2000, p.103
[14] Ibíd., p.106
[15] Nietzsche, Friedrich,
La lucha de Homero. Prólogo para um libro que não foi escrito (Obra
póstuma) (1871-72).
[16] Ibíd.
[17] Nietzsche, Friedrich, Op.
cit., pp.1-9
[18] Finley, M. I., Op.cit.,
p.30
[19] Burckhardt, Jacob, La
Civilización del Renacimiento en Italia, Vol. I (New York: Harper &
Row, Publishers, 1958), pp.143-174
[20] Véase Schopenhauer,
Arthur, El mundo como voluntad y representación, 1844 (2º Edición, con
los Suplementos).
[21] Nietzsche, Friedrich, Op.
cit., 1871.
[22] Ibíd.
[23] Ibíd.
[24] Ibíd.
[25] Nietzsche, Friedrich, Homero
y la filología clásica. Trabalho apresentado em Basilea no ano de 1869.
[26] Ibíd.
[27] Ibíd.