12/08/2012

Meu nome é machado: Dostoiévski e as Metafísicas de São Petersburgo

por Aleksandr Dugin

O autor que escreveu a Rússia

O principal escritor da Rússia é o romancista Fyodor Mikhaylovich Dostoiévski. A cultura russa e a mentalidade russa reúnem-se nele, em uma espécie de síntese mágica. Toda a produção literária anterior antecipa Dostoiévski, tudo que vem depois resulta dele. Não há dúvida de que ele é o maior gênio nacional da Rússia.

A herança de Dostoiévski é imensa e quase todos os estudiosos estão de acordo com a importância central de seu romance Crime e Castigo. Se Dostoiévski é o principal escritor da Rússia, Crime e Castigo é a principal obra da literatura russa e o texto fundamental da história russa.

Conseqüentemente, não há nada acidental ou arbitrário sobre ele, e não pode haver. Certamente este livro deve conter algum misterioso hieróglifo, no qual todo o destino russo está concentrado. Decifrar este hieróglifo é o mesmo que obter o conhecimento do impenetrável Mistério Russo.

A Terceira Capital - A Terceira Rússia

O romance se passa em São Petersburgo. Este fato, em si mesmo, tem um significado simbólico. Qual é a função sagrada de Petersburgo na história russa? Pela compreensão disso chegaremos perto da posição de Dostoiévski.

São Petersburgo adquire uma significação sagrada somente em comparação com Moscou. Ambas as capitais estão em estreita ligação uma com a outra por uma lógica cíclica, por uma linha simbólica. Rússia teve três capitais. A primeira - Kiev - foi a capital de um estado nacional etnicamente uniforme, situado na periferia do Império Bizantino. Aquela região nordeste fronteiriça não desempenhou um importante papel civilizatório nem sagrado. Um lugar habitual para bárbaros arianos. Kiev é a capital da Rússia étnica.

A segunda capital - Moscou - é algo muito mais importante. Ela adquiriu uma significação especial no momento da queda de Constantinopla, quando a Rússia tornou-se o último Reino Cristão Ortodoxo, o último Império Cristão Ortodoxo restante.

Conseqüentemente alguns acreditaram: “Moscou é a Terceira Roma”. A idéia de um reino na tradição católica ortodoxa tem um especial papel escatalógico: o Estado, pelo reconhecimento da perfeição da verdade da Igreja é, em conformidade com a Tradição, o obstáculo no caminho do “Filho da Ruína”, o impedimento ao advento do Anticristo.

O Estado Cristão Ortodoxo, constitucionalmente reconhecendo a verdade da Cristandade Ortodoxa e a influência espiritual do Patriarca, é o “cathecon” ou “impedimento” (conceito presente na segunda carta de São Paulo Apóstolo aos Tessalonissenses). A introdução do Patriarcado na Rússia tornou-se possível apenas no momento em que caiu o Império Bizantino e, conseqüentemente, o Patriarcado de Constantinopla perdeu sua sigificação escataológica. Pois essa significação é concentrada não apenas na hieraquia da Igreja Cristã Ortodoxa, mas no Império que reconhece a autoridade desta hierarquia. Assim se segue a significação teológica e escatológica de Moscou.. A queda do Império Bizantino significou, na visão apocalíptica da cristandade ortodoxa, a aproximação do período de “apostasia”, de falsidade generalizada. Apenas por um escasso tempo pode Moscou tornar-se a Terceira Roma a ponto de retardar o advento do Anticristo, postergar o momento em que sua chegada se tornará um fenômeno universal. Moscou assim é, essencialmente, a capital de um Estado novo. Não um Estado nacional, mas de um soteriológico, escatológico, apocalíptico. A Rússia de Moscou, com seu Patriarca e rei cristão ortodoxo (ou czar), é uma Rússia que é absolutamente diferente daquela Rússia de Kiev. Não está mais na periferia do Império, mas é o último baluarte da salvação, a Arca, a terra limpa na qual a Nova Jerusalém irá descender.

São Peterbusrgo é a capital da Rússia que vem após a Terceira Roma. De certa maneira não é uma capital, não pode ser – “não haverá uma Quarta Roma”, está escrito. São Petersburgo estalebece a Terceira Rússia. Terceira pela condição, estrutura e sentido. Ela não é nem um Estado nacional, nem uma arca soteriológica. É uma estranha e titânica quimera, o “pós-morte” do país, a nação que vive e se desenvolve em um espaço que está além da história. Petersburgo é uma cidade de “Nav” (“encarnação da Morte”, em russo antigo), uma cidade do lado oposto. Assim se compreende a assonância de rio Neva (onde Petersburgo está situada) e “Nav”. A cidade do luar, da água, das construções estranhas, alheia ao ritmo da história, ao nacional e à estética religiosa. O período petersburguense da história da Rússia era o terceiro sentido de seu destino. Era um tempo de russos extraordinários, de russos que estavam além da arca. Os antigos crentes foram os últimos a embarcar na arca da Terceira Roma pelo batismo de fogo.

Dostoiévski é o escritor de Petersburgo. Ele não é compreensível sem Petersburgo. Mas Petersburgo em si permaneceria em um virtual e fantasioso estado sem Dostoiévski. Ele a revitaliza, e revela o sentido dessa enigmática cidade. Graças a Petersburgo, a literatura russa pode apresentar-se ao mundo

Se o período kieviano é o período das lendas épicas e o de Moscou o tempo da soteriologia e da teologia nacional, o de Petersburgo traz para a literatura da Rússia uma base profana que costuma ter um valioso sentido nacional, um rastro louvável de substâncias que tinham morrido. Literatura é uma proteção, uma mancha na superfície das ondas siderais, um vácuo que é lamentado com desespero. Dostoiévski prestou tanta atenção a esse chamado que perdeu tudo para ressuscitar com um heróico comportamento espiritual. Dostoiévski é mais do que literatura: é teologia, lenda épica. Por isso sua Petersburgo busca uma idéia, um sentido. Ela constantemente transforma-se na Terceira Roma. Ela agoniza e se debate na busca pelas fontes mais íntimas da nação russa.

O principal personagem de Crime e Castigo é chamado Raskolnikov, uma referência direta ao Cisma (ou “Raskol”). Raskolnikov é um homem da Terceira Roma, geworfen (ou “atirado”) dentro da navi Petersburgo. A alma sofredora que, por uma estranha lógica, repentinamente encontra a si mesma, após sua auto-imolação no úmido labirinto das ruas de Petersburgo e seus muros amarelos, em suas avenidas encharcadas e seus sombrios céus cinzas.

A Capital

A trama de Crime e Castigo é uma estrutura análoga a de O Capital, de Marx: a profecia da futura Revolução Russa. Simultaneamente, é um esboço de uma nova teologia, uma teologia de um ser desamparado por Deus, que se tornaria o principal problema filosófico do século XX. Esta teologia poderia ser chamada de “teologia de Petersburgo”.

A história é extremamente simples e pode ser resumida assim: o estudante Raskolnikov percebe nitidamente a realidade social como uma revelação do Mal, sensação que é extremamente característica de certos ensinamentos gnósticos e escatológicos.

O cianeto de potássio da civilização; a degeneração e o vício florescem onde as conexões orgânicas, os significados espirituais e as anagógicas espirais das hierarquias que ascendem sem obstáculos ao céu estão perdidas; a percepção da realidade profana; a insuportável perda da Terceira Roma; o horror perante o encontro com a substância universal do Anticristo, com Petersburgo: Raskolnikov acredita ser absolutamente correto que o pólo simbólico do mal seja um caráter feminino pervertido (Kali), que é amaldiçoado pela religião. A decadência e degradação do mundo: isso tudo é a velha usurária, a Baba-Yaga do mundo moderno, a Mulher do Inverno, a Morte, a assassina. Fora de sua suja morada ela trefila os fios da teia de Petersburgo, enviando através de suas ruas escuras Luzhins, Svidrigaylovs, Dvorniks e Marmeladovs, os “irmãos negros”, agentes secretos do pecado capitalista.

As armadilhas do submundo envolvem tavernas e bordéis, antros de miséria e ignorância, escadarias e portões envoltos em semi-escuridão. O centro da roda do mal de Petersburgo é encontrado. Rodion Raskolnikov completa o reconhecimento ontológico. Certamente, ele é um comunista, embora esteja muito mais próximo dos socialistas revolucionários, dos narodniks. Certamente, ele está familiarizado com os ensinamentos sociais contemporâneos. Conhece línguas estrangeiras e poderia ter se familiarizado com o Manifesto de Marx ou mesmo com o Capital. O que é importante está no começo do Manifesto: “... um fantasma ronda a Europa...”. Isto não é uma metáfora, mas uma definição precisa do modo especial de ser que se cristaliza depois que uma sociedade se torna profana, depois da “morte de Deus”: é a partir desse momento que nós estamos no mundo dos fantasmas, no mundo das visões, das quimeras, das alucinações, das tramas da morte. Pois para a Rússiafoi justamente isso que significou a “jornada de Moscou para Petersburgo”, a encarnação do Nieva dentro da cidade, dentro do fantasma-cidade. Esta encarnação nunca poderia ser tão completa como em Crime e Castigo.

O espectro comunista tornou tudo realisticamente fantasmagórico. Tendo se estabelecido na consciência do estudante, que procurava pelo perdido Logos, ele mergulha-o em uma corrente de visões distorcidas: um velho libertino arrastando uma adolescente bêbada em algum lugar; Marmeladov chorando de um modo arrependido, depois de ter vendido o último xale de sua amada para conseguir dinheiro para o álcool; o endemoniado Svidrigaylov, o enviado da eterna teia, que está sob a tutela da velha usurária, aproxima-se silenciosamente na direção da casta irmã de Rodion. Mas o que é esta ilusão? O fantasma, tendo possuído a consciência, de fato liberta o inconsciente: a realidade revelada é assustadora, intolerável, mas verdadeira. Porém seria o Mal compreensível pelo Mal? Uma ilusão revelari o caráter ilusório do mundo? Pela insanidade pode-se compreender que a humanidade vive de acordo com as leis de uma lógica doente? O fantasma do marxismo, o narcótico da revelação, o chamado gnóstico para o levante contra o maligno Demiurgo... A sangrenta dor destas feridas é mais aguda do que a imagem de uma brilhante e iluminada sala, cheia de casais elegantes rodopiando enquanto dançam.

Raskolnikov, matando a velha decrépita, comete um ato paradigmático, realiza um Feito que, de um modo arquetípico, é reduzido a práxis, tal como o marxismo a concebe: o Feito de Rodion Raskolnikov é o ato da Revolução Russa, o sumário de toda a literatura social democrata, narodnika e bolchevique. É um gesto fundamental da história russa que ocorreu logo após Dostoiévski, tendo sido preparado muito antes dele em enigmáticos pontos fundamentais do destino nacional. Toda a nossa história é dividida em duas partes: antes do assassinato da velha usurária por Raskolnikov e depois desse assassinato. Mas sendo um fantasmagórico e atemporal momento, ele lança flashes para frente e para trás dentro do tempo. Mostra a si mesmo nas revoltas camponesas, nas heresias, nas rebeliões de Pugachov e Razin, na divisão da Igreja Cristão Ortodoxa (Cisma, Raskol em russo), no advento de uma era de trevas (eventos que começam na Rússia já no século XVII), em todas as complicadas, multifacetadas e insaciáveis metafísicas do Assassinato Russo, o qual difunde-se da profundidade do nascimento eslávico até o Terror Vermelho e o Gulag. A mão levantada sobre o crânio da vítima foi impelida por uma apaixonada e profunda irrupção de raiva.

Nós, russos, somos uma nação abençoada. Por isso todas as nossas manifestações – altas e ordinárias, graciosas e terríveis – são santificadas por um sentido sobrenatural, pelos raios luminosos da cidade celeste, são ungidos por uma substância transcendente. Na abundância da Graça nacional o Bem e o Mal são misturados, lançados um contra o outro, e repentinamente as trevas se iluminam, enquanto que algo branco e cristalino transforma-se em um simples inferno. Somos tão incognoscíveis quanto o Absoluto. Somos uma nação divina. Mesmo nosso crime é incomparavelmente superior às virtudes dos outros.

Não “Não matar”

Entre os meados do século 19 e o início do 20, a consciência russa foi possuída por uma estranha compreensão de um dos dez mandamentos - "Não matar". Discutiu-se esse mandamento como se fosse a essência do cristianismo. Teólogos, revolucionários e terroristas constantemente o repetiram (Savinkov foi um obcecado por esse mandamento), assim como humanitários, progressistas e conservadores. Tanto o tema como a argumentação em torno dele eram tão importantes que afetou, em grande medida, toda a consciência moderna russa. Embora o significado desse debate tenha desaparecido com o advento da bolcheviques, ele ressurgiu no final do período soviético e começou a assombrar os cérebros intelectuais com uma força renovada.

"Não matar" não é exatamente um mandamento cristão e do Novo Testamento, mas sim judaico e do Velho Testamento. Esta é uma parte da Lei, a Torá, que regula, como um todo, o exotérico, normas exterior, social e ética da vida popular israelense. Esse mandamento não tem nenhum significado especial. Você pode encontrar algo análogo na maioria das tradições, nos seus códigos sociais. No hinduísmo o equivalente chama-se "ahimsa", "não-violência". Este "não matar", assim como o resto dos parágrafos da lei, regulamenta a liberdade humana, dirigindo-a para o fluxo que, de acordo com o espírito da Tradição, pertence à melhor parte, ao Caminho da Mão Direita. Além disso, é significativo que "não matar" não tem qualquer sentido absoluto metafísico. Bem como todas as estátuas exotéricas, este mandamento só serve para que seja mantida a existência coletiva em ordem e para preservar a comunidade de cair no caos ("A Lei nada faz", segundo São Paulo Apóstolo). Em princípio, se compararmos a realidade do Velho Testamento com o Novo, a fórmula para "não matar" corresponde a aproximadamente a inscrição "é proibido fumar", apresentada em uma parede de um teatro. Fumar em um teatro não é permitido, não é bom. Quando alguns espectadores tensos começam a fumar, os funcionários do local ficam em uma situação problemática. Essas pessoas são condenadas pela opinião pública e sujeita à repressão pelos servos da justiça.

É muito significativo que o Antigo Testamento esteja cheio de desafio não-observância desse mandamento: assassinatos estão em todas as suas páginas. É cometido não apenas por pecadores, mas também por homens justos, reis, soberanos ungido, até mesmo profetas. Aluno favorito de Elias, o profeta Eliseu foi especialmente severo: não tinha misericórdia nem mesmo de crianças. Eles mataram durante as guerras, mataram nativos e estrangeiros, mataram criminosos e também mataram mulheres. Eles não tinham misericórdia com crianças, idosos, goyim, profetas, idólatras, feiticeiros, nem mesmo parentes.

No Livro de Jó, Jeová - sem qualquer razão especial, exceto uma controvérsia bastante superficial com Lúcifer - trata de uma forma sádica seu próprio homem escolhido e virtuoso. Quando Jó, coberto com lepra, fica indignado com isso, Jeová o intimida com dois monstros: a terra chamada Behemoth e o mar chamado Leviathan. Jeová o mortifica no sentido moral também. A investigação bíblica moderna prova de modo convincente que o texto original do Livro de Jó chega a seu fim no auge da tragédia, e que o final ingenuamente moralista foi adicionado muito tempo depois pelos levitas, que ficaram aterrorizados com a natureza rígida dos fragmentos mais arcaicos do Antigo Testamento.

Em outras palavras: o mandamento de "não matar", originado no contexto judaico, não tem qualquer caráter absoluto nem qualquer significado especial.

Não houve controvérsia sobre esse tema e, aparentemente, nenhuma reflexão foi dada com qualquer propósito expresso. Isso não quer dizer que o mandamento nunca foi tido em conta. Tentaram que não fosse derramado sangue sem nenhum propósito. Eles também tinham o tribunal rabínico. Se alguém fosse assassinado em vão, uma punição seguramente acontecia: a lei do costume, o mandamento comum. Nada de especial, tão somente o padrão geral de conduta humana.

No cristianismo tudo é diferente. Cristo é o cumprimento da lei. A Lei é ele. A missão do Direito é realizada. Em certo sentido, ela é removida da agenda - mas não revogada. Os problemas espirituais passam para um plano radicalmente diferente. A partir de agora a Pós-Lei, a era da Graça, começa. Estritamente falando, o advento dessa nova era significa uma era onde os Mandamentos perdem a importância.

Mesmo o primeiro mandamento de adorar o único Senhor é superado pelo Novo Testamento, pelo preceito do amor para Ele. Através da Encarnação, o Logos-Deus traz para as relações entre o Criador e toda a criação algo absolutamente novo. A partir de então tudo acontece sob o signo de Emmanuel, pela fórmula benéfica, "Deus está conosco". Deus não está em algum lugar longe, Ele realiza não apenas o papel de Juiz e Legislador, mas também o papel do Bem-Amado e Único Amor. O Novo Mandamento não rejeita os dez anteriores, mas os torna desnecessários.

A humanidade do Novo Testamento é diferente daquela do Antigo, que é judaica (ou pagã). Ela ostenta o sinal do Amor transcendente. É por isso que a dicotomia da Lei – adorar/não adorar, roubar/não roubar, seduzir/não seduzir e, finalmente, matar/não matar – não faz mais sentido.

O novo homem não precisa de regras, ele vive por uma única coisa - o sereno, eterno e indivisível Amor, permanecendo em oração e contemplação. Aqui, não há apenas "não matar". Os santos cristãos ririam dessa cautela porque neles a dualidade já está abolida, a barreira entre o eu e o não-eu é esmagada. Além disso, eles querem ser mortos, eles aspiram a sofrer, eles almejam o martírio. Uma vida cristã valiosa não tem qualquer relação com os velhos Dez Mandamentos. Eles foram de uma vez e para sempre superados com o batismo sagrado. Além disso, há apenas a realização na Graça.

Mas vamos considerar um cristão não em santidade, não em uma vida monástica, não em ascetismo e na vida eremítica. Será que a idéia definida pela ordem do Antigo Testamento é válida para ele? Não. Ele é batizado, o que significa ter renascido e, conseqüentemente, Deus está com ele também. Dentro dele, não fora. Portanto, mesmo sendo um pecador, um indigno da vida segundo o Velho Testamento, esse novo homem está abendoçoado pelo fluxo de luz da Graça. Observar ou não observar a legislação do Antigo Testamento não tem nada a ver com a essência íntima da existência cristã.

Claro, é mais conveniente para uma sociedade ter indivíduos que são obedientes e observam regras. Para uma sociedade cristã também. Mas tudo isso não tem qualquer medida comum com o sacramento da Igreja, com a vida mística de um crente. Aqui, o elemento mais interessante começa: um cristão, quando desobedece algum dos Mandamentos do Antigo Testamento, na verdade demonstra que nele não foi concluída a natureza misteriosa do Novo Homem, a personalidade potencial dada pelo Espírito Santo na fonte do batismo.

Mas quem pode gabar-se de ter atingido a completa deificação? Quanto mais se é santo, mais parece pecador e terrível para si mesmo quando colocado face à Trindade Luminosa. Conseqüentemente, como no caso do yurodivy ("loucos de Deus") que depreciavam o caráter humano, a Queda pode ser, de um modo paradoxalmente cristão, um sacramento.

Observar os Dez Mandamentos não é um fator decisivo para um cristão ortodoxo. Só uma coisa é importante para ele: Amor, o Novo – absolutamente novo – Testamento, o Testamento do Amor. Os Dez Mandamentos sem amor é o caminho para o inferno. E se o amor existe, então esses mandamentos não têm nenhum significado mais: isso tudo foi claro para os intelectuais radicais russos. No livro de Boris Savinkov, "The Pale Horse ", um terrorista chamado Vanya (um personagem literário, inspirado em Ivan Kalyayev ) diz que antes de cometer um assassinato:

- Olha, se você ama muito, se realmente ama, então você pode matar, não pode?.

E mais:

"... é necessário passar por um tormento na cruz, é necessário se empenhar a fazer tudo isso por amor e para o amor. Mas absolutamente por amor e para o amor... Se estou vivo, é para quê? Talvez eu viva para a hora da minha morte. Peço então: Senhor, dai-me a morte em nome do amor. Você não pode orar por assassinato, pode?"



Savinkov viveu, pensou, escreveu e matou depois de Dostoiévski. Mas nada é relacionado a Raskolnikov. Raskolnikov mata não apenas por causa da humanidade (embora para isso também), ele mata por causa do Amor. A fim de passar por sofrimento, ele tem que morrer, para matar a morte em si mesmo e nos outros. Ivan Kalyayev, bem como o próprio Savinkov, são profundamente russos, profundamente cristãos ortodoxos, profundamente “pessoas dostoiveskianas”: assim como toda a nação, têm um evidente caráter divino, e estão repletos de uma visão de mundo cristã ortodoxa elevada e paradoxal, algo que faz o mais refinado e profundo sistema filosófico ocidental parecer uma bobagem. Os russos não formularam uma teologia: eles a sofrem e a vivem por toda a sua vida. Esta é a teologia, que vem através dos poros, através da respiração, através de lágrimas, através do sono e que faz uma horrenda expressão de ira através do tormento e da tortura – através do úmido e sangrento elemento carnal e espiritualizado da Nova Vida.

Com amor e por amor ao Amor pode-se fazer tudo. Isso não significa que se deva fazer tudo e que todos os mandamentos devem ser revogados, rejeitados. Em nenhuma circunstância. Deve-se apenas demonstrar com a vida e com gestos que existe - e isso é o principal - outra medida de ser, uma nova luz, a luz do Amor.

O local do assassinato da velha agiota é São Petersburgo. Esse é o lugar do amor na Rússia, locus amoris.

Rodion levanta as duas mãos, dois sinais angulares, dois tendões do plexo, duas runas sobre o gelado e apodrecido crânio do Capital. Em sua mão há um grosseiro e bruto artefato. Com esse artefato, o ritual central da história russa e do mistério russo está comprometido. O fantasma se materializa, o momento se projeta para fora do tempo terrestre (Goethe teria ficado imediatamente louco se tivesse visto esse momento em que o tempo parou...). Duas teologias, dois testamentos, duas revelações se encontram em um ponto mágico. Esse ponto é absoluto – e “machado” é o seu nome.

Labris - uma breve genealogia do machado

As hipóteses mais brilhantes relativas a este artefato - sua origem e seu simbolismo - foram realizada por Herman Wirth, um gênio científico alemão e um especialista na área de recursos humanos pré-históricos e letras antigas. Wirth mostrou que o machado duplo era o símbolo primordial do Ano, do círculo, de suas duas metades: uma segue o solstício de inverno, e o outro o seu oposto. O machado padrão (com apenas um lado) simboliza a metade do ano, como regra a primavera, a metade ascendente.

Além disso, o uso utilitarista de um machado para cortar as árvores, também de acordo com Wirth, tem uma relação com o simbolismo anual, pois a Árvore, de acordo com a Tradição, simboliza o ano. Suas raízes são os meses de inverno, e sua coroa os de verão. Portanto, cortar árvores se relaciona, no contexto primordial simbólico das sociedades antigas, com o advento do Ano Novo e o final do velho.



O Machado é, simultaneamente, o Ano Novo e o instrumento com o qual o velho é destruído. Ao mesmo tempo é um instrumento cortante, dividindo o Tempo, cortando o seu cordão umbilical no ponto mágico do Solstício de Inverno, quando o grande mistério da morte e ressurreição do Sol acontece.

No antigo calendário rúnico, a runa que retratava o machado era chamada de "thurs" e foi dedicada ao deus Thor. Ele caiu sobre os primeiros meses do Ano Novo. Thor era o Deus do Machado ou o seu equivalente simbólico, o Deus do Martelo ou Mjollnir. Com este Machado-Martelo, Thor esmagou o crânio da Serpente do Mundo, Irmunganthr, que flutuava nas águas inferiores das trevas. Mais uma vez o mito do solstício, ligado ao ponto do Ano Novo: a Serpente é o Inverno, o frio, as águas mais baixas do ano Sagrado, aonde o sol polar desce. Thor, que é ao mesmo tempo o Sol e o espírito do Sol, vence o frio e torna a Luz livre. Em fases posteriores do mito, a imagem do Sol-Luz é dividida em duas - o salvador e os salvos - e depois em três, com a adição de instrumento da salvação, o machado. Na forma primordial, todos aqueles personagens eram algo unidos: Deus-Sol-Machado (ou Martelo).

A mais antiga inscrição do sinal de machado nas antigas cavernas do Paleolítico e gravuras rupestres foram analisadas por Herman Wirth à luz de todo o ritual e estrutura do calendário. Ele traçou a constância incrível desse proto-machado através das mais diferentes culturas, línguas, localidades e épocas. Ele mostrou a relação etimológica e semântica das palavras que significam “machado” com outras noções simbólicas e temas mitológicos, que também estão associados com o mistério de Ano Novo, com o meio do Inverno e também com o Solstício de Inverno.

Especialmente interessantes são os indícios de que o significado simbólico de "machado" é estritamente idêntico com outros dois antigos hieróglifos-palavras: "labirinto" e "barba".

O "labirinto" é um desenvolvimento da idéia de uma espiral do ano, que se vira para o Ano Novo e, em seguida, imediatamente começam a distorcer. "Barba" é a luz do Sol masculino durante o outono/inverno do círculo do ano (o cabelo como um todo são os raios do Sol). No círculo rúnico outra runa - "peorp" – se parece com um machado, porém significa “barba”. No meio do labirinto vive Minotauro, o monstro, o homem-touro, o equivalente a Irmunganthr, a Serpente do Mundo, e também equivalente a outro personagem: a velha agiota. Dostoiévski descreveu um antigo tema mitológico, o paradigma de uma sucessão simbólica, um ritual primordial que os nossos ancestrais praticaram por muitos milênios. Mas esse episódio de Crime e Castigo não é apenas um anacronismo ou fragmento desordenado do inconsciente coletivo. Na verdade o assunto é sobre uma imagem muito mais importante, escatológica, sobre o sentido e o gesto do Fim dos Tempos, sobre o momento sagrado apocalíptico, quando colide tempo e eternidade, quando o fogo arde no Dia do Juízo Final.

Os russos são a nação abençoada, e a história da Rússia é o resumo da história mundial. Para nós, semelhante a um ímã temporal, espacial e étnico, o destino dos séculos gravita com uma progressão crescente. A Primeira e a Segunda Roma existiram apenas para a Terceira aparecer. O Império Bizantino era a profecia de uma Rússia Santa. Uma Rússia Santa em sua forma apocalíptica surgiu como uma cidade-fantasma chamada São Petersburgo, cidade onde o maior profeta da Rússia apareceu: Fyodor Dostoiévski. A história de seu principal romance, "Crime e Castigo", situa-se no labirinto de ruas de Petersburgo e os personagens principais de seu romance são personagens principais da Rússia. Entre eles, os mais importantes são Raskolnikov, a velha agiota e o machado. É o machado o raio que conecta Raskolnikov com a velha.

A história do mundo - através da história de Roma, através da história do Império Bizantino, através da história da Rússia, através da história de Moscou, através da história de São Petersburgo, através da história da Dostoiévski, através da história de "Crime e Castigo", através da história dos personagens principais do romance - é reduzida a um único artefato: o Machado.

Raskolnikov divide a cabeça da velha capitalista. O nome "Raskolnikov" ("Raskol" significa, literalmente, uma "divisão") indica o machado e a ação que ele comete. Raskolnikov realiza o ritual de Ano Novo, o mistério do Juízo Final, a celebração da ressurreição do Sol.

O Capitalismo, arrastando-se para a Rússia a partir do Ocidente, do lado do Sol, carnalmente representa a Serpente do Mundo. Seu agente é a velha e decrépita agiota, tecendo uma teia de escravidão usurária. Ela também é parte dela.

Raskolnikov traz o machado do Oriente.

O machado do Sol Nascente, o machado da Liberdade e da Nova Aurora.



A novela deveria ter acabado de uma forma triunfal, com a plena justificação de Rodion. O crime de Raskólnikov é a punição para a usurária. A era da revolução proletária e do Machado é proclamada. Mas forças adicionais entraram no caso: o investigador Porfiriy acaba por ser especialmente insidioso. O representante de jurisprudência kafkiana e do humanitarismo pseudo-farisaico começa uma intriga complicada para difamar o personagem principal e suas ações diante até mesmo dos próprios olhos de Raskólnikov. Porfiriy manipula os fatos, e leva Raskolnikov a um labirinto cego de dúvida, nervosismo e perturbação mental. Ele não apenas tentar colocar Rodion na cadeia, como também procura destruí-lo de uma forma espiritual. O personagem principal deveria ser tratado da mesma forma que tratou a anciã: "Esmague o crânio da serpente". Mas o nosso herói acaba por ser incapaz de resistir... Então o resto do tecido do mito também acaba por ser desvendado. Raskolnikov, de acordo com o cenário primordial, deveria ter levado a Sabedoria-Sophia para fora do bordel, como o gnóstico Simon fez com Helena. Mesmo a cena de recitar a narração do evangelho sobre a ressurreição de Lázaro permaneceu a partir da versão original: Sophia, resgatada por Amor e ao ser libertada da escravidão usurária, propaga a ressurreição universal. Mas aqui, por algum motivo, ela se junta em uma conspiração com o "o adorador da serpente humanitária", Porfiriy. Ela começa a sugerir a Raskolnikov uma idéia: que a velha deveria ter sido poupada, que ela não era "apenas um piolho": a sociedade do amor entre os animais, incluindo entre eles a serpente do mundo que vive na escuridão do caos. Uma ternura perante as lágrimas de dor da capitalista assassinada.

Como isso pode ser explicado?

Dostoiévski era um profeta e tinha o dom da clarividência. Ele previu não só a revolução (o golpe no crânio com o machado), mas também a sua degeneração, a sua traição, seu ser destruído pelo mercado. A Sophia do socialismo gradualmente degradada pelo humanitarismo farisaico. Porfiriy penetrou o Partido e minou os fundamentos do reinado escatológico do país soviético.

Primeiro, eles desistiram da revolução permanente; em seguida, os expurgos; e depois Sonya, sob a direção de intelectuais soviéticos tardios, mais uma vez começou a lamentar-se sobre as coisas mais ridículas – como o mandamento de "não matar"- e então o sangue jorrou como um rio. E não foi o sangue de velhas agiotas, mas o sangue inocente de crianças.

Existe uma versão virtual do "Crime e Castigo" que tem um final totalmente diferente. Tem a ver com o novo e vindouro período da história russa. Até agora vivemos a primeira versão. Mas agora tudo acabou. O novo mito está encarnando, a espada escarlate de Boris Savinkov é escaldante nas mãos de uma jovem nova Rússia, a Rússia do fim dos tempos – a Rússia cujo nome é Machado.

Tradução por Leonardo Márcio Ramos do blog Dissolve Coagula