29/09/2011

Em direção a uma Frente Nacional Comunista? – entrevista com Alain Soral.


Há já alguns meses, este sociólogo e escritor de combate empenhou-se no combate político com a firme vontade de se exprimir livremente sobre os temas que leva a peito. Uma coisa é clara, Alain Soral não é consensual. O seu empenhamento pela Frente Nacional fez correr muita tinta e agitou o pequeno mundo da net. Mesmo sendo bastante cépticos sobre a vontade do partido de Jean Marie Le Pen em contribuir para o nascimento de uma alternativa credível ao sistema capitalista, quisemos oferecer-lhe a ocasião de apresentar as suas idéias e as suas propostas. Isto porque uma vez que para lá das polêmicas vãs, dos anátemas ideológicos e dos slogans ocos, queríamos dar-lhe a ocasião de expor claramente nas nossas colunas, as razões e os objectivos da sua adesão. Pensamos que as pessoas que nos lêem, terão o espírito suficientemente aberto e livre para elaborarem a sua própria opinião sobre a escolha sincera de um homem que queimou os seus barcos.

Rébellion : O seu percurso político é dos mais atípicos. Como é que se passa em alguns anos do PC à FN? Quais são as etapas por onde passou o seu empenhamento [político]?

Alain Soral : O meu percurso não é assim tão atípico quanto isso. É a história oficial que se encarniça em fazer crer que é o caso, quando sempre houve pessoas de esquerda que se encontraram no campo nacionalista; é uma longa tradição francesa inspirando-se em Proudhon, Sorel, no sindicalismo revolucionário. Como para eles, trata-se, para mim, de continuar fiel a uma luta de insubmissão e de resistência. E desde a altura em que o PC renunciou a ele mesmo para se tornar num auxiliar do PS liberal, a partir do momento em que abandonou a resistência à mundialização por um discurso pró sem-papeis, passei logicamente do PC a Chevènement, depois deste à FN, numa linha antiliberal e antimundialista. Basta debruçarmo-nos sobre os arquivos do INA para descobrir que o discurso de Marchais no fim dos anos 70, é o discurso da FN de hoje: «produzamos francês», «alto à imigração». As pessoas modestas aperceberam-se disso imediatamente, elas que passaram do voto PC ao voto FN a partir de meados dos anos 90.

Qual é a sua situação no seio da FN? Que impressão tem do interior do partido? Dos seus quadros como dos seus militantes?


Alain Soral: A de um conselheiro especial, exterior, uma vez que não ocupo nenhum lugar na FN, um companheiro de caminho que se empenhou na altura da campanha presidencial. Quanto às minhas impressões, elas são diversas e mitigadas. A FN parece-se com aquilo que é: uma reunião de desiludidos de direita e de desiludidos de esquerda. É, pois, difícil de lá encontrar uma linha política clara e única, uma coerência doutrinal para a qual o trabalho [de elaboração] nunca foi efectuado, uma vez que se tratava de uma estratégia de ajuntamento. Um cálculo que foi ganhador durante anos, mas que a FN acabou por pagar aquando da campanha de Sarkozy. É preciso compreender que para além dos marginais e de alguns extremistas, há essencialmente dois tipos de eleitores na FN, pequenos burgueses liberais e assalariados antiliberais. A questão crucial é, pois, a de saber o que se entende por liberalismo. Um trabalho que se reenvia à questão do populismo, desse liberalismo anti neoliberal que analisa muito bem Michea, sociólogo também ele surgido da esquerda e que poderia ser o pensador da FN de amanhã se não tivesse medo de se “queimar” no meio universitário! Nas últimas presidenciais constata-se que são globalmente os desiludidos da direita – ou seja, o eleitorado médio e pequeno burguês – que votou Sarkozy, e que é o eleitorado popular, mais à esquerda, que permaneceu fiel. Na era Sarkozy, a saúde desse movimento patriótico e popular passa, pois, necessariamente por uma forte ancoragem à esquerda – no sentido de esquerda econômica e social. Uma visão que infelizmente não partilham os paladinos da união das direitas, uma corrente dominante no seio do aparelho actual da FN, mas minoritário no seu eleitorado, uma vez que é constituído por sobreviventes das antigas elites sucessivamente relegadas e tornadas obsoletas pela evolução do liberalismo mercantilista…

Entre os detritos da velha Extrema Direita (nostálgicos de Vichy e da Argélia Francesa) e a nova geração modernista de quadros sem linha precisa, pensa ter os meios para influenciar a linha política da FN? Não se arrisca a ser absorvido pela força da inércia de um movimento coagulado no seu discurso bem como na sua organização?

Alain Soral: Como bom marxista responder-lhe-ei que a única resposta é a acção. Cepticismo e fatalismo são posturas de direita, e enquanto homem de esquerda, não vejo outra solução que não seja tentar a aventura. É evidentemente arriscado. Mas face à realidade das forças em presença, não vejo outra possibilidade a tentar a não ser esta experiência heróica.

Como explica a evolução de pessoas surgidas dos movimentos contestatários, como Dieudonné, em direcção ao que os jornalistas do sistema qualificam de «esquerdo-lepenismo»? Existe um embrião de «Esquerda Nacional» no seio ou na margem da FN?

Alain Soral: A evolução de Dieudonné ancora-se nas suas posições em relação à Palestina. Por um percurso de sofrimento, de perseguições, ele descobriu a verdadeira clivagem esquerda – direita actual, que passa sistematicamente pela adesão ou pela recusa da dominação atlântico-sionista. Podemos verificá-lo plenamente hoje em dia pela governação Sarkozy que, a coberto de uma abertura à esquerda, está na realidade prestes a operar a união sagrada dos atlântico-sionistas franceses. De facto, é de direita, hoje, quem quer que seja que adira a essa linha ou participe nessa dominação, é de esquerda quem se lhe opõe. Essa descoberta, para Dieudonné, passou pela experiência, pela prática, e todas as pessoas de esquerda, das quais faço parte,que viveram essa experiência e da qual retiraram as conclusões que se impõem, encontram-se de facto nessa esfera esquerdo-lepenista. Quanto, a saber, se o futuro dessa tendência de esquerda nacional antiliberal antimundialista se situa na FN ou à margem da FN, isso dependerá da vontade da direcção da FN em se situar na vanguarda ou na rectaguarda da História!


No momento em que se fala tanto de Identidade Nacional, qual é a sua concepção deste termo tão vaporoso?

Alain Soral: Uma concepção à francesa que não é nem a germânica (racialista) nem a anglo-saxônica (comunitarista) e que mistura subtilmente direito do sangue e direito do solo no conceito de assimilação, projecto hoje em dia depreciado à vez pela esquerda integracionista – na realidade comunitarista – e a extrema direita racialista, também ela comunitarista, mas sob uma forma mais belicosa que fatalista. Comunitarismo de esquerda ou de direita, muito anti-francês – mesmo quando se julga patriota – que demonstra que o modelo que está em vias de nos ser imposto é o modelo anglo-saxão. Supremacia verificada, mais uma vez, pela governação Sarkozy que adiciona nas suas escolhas: submissão à dominação atlântico-sionista e clientelismo comunitarista. Tendo em conta a mentalidade francesa, a história da França e o seu passado colonial, parece-me, todavia, que o nosso modelo assimilacionista continua a ser o melhor para nós, e constato que é ainda a FN que melhor o defende. Constato também que a mídia mente sobre esta realidade assimilando sistemática, e voluntariamente, a preferência nacional à preferência racial para desqualificar a FN, e isto desprezando as bases fundamentais deste movimento, encarnados desde a sua fundação pela presença de um Roger Holeindre. Uma reductio ad hitlerum praticada sistematicamente pelo sistema, e difundida pela estupidez esquerdista, a fim de fazer passar um movimento patriota por um movimento colabo, quando os verdadeiros colabos são todos esses agentes coligados do Império, de de Villiers a Besancenot.

Que pensa do comunitarismo? Que modelo podemos opor a esse sistema americanizado, de controle das populações?

Alain Soral: Como devem estar a pensar, o pior possível; com o comunitarismo não se obtêm a paz das comunidades, mas a rivalidade victimária, a culpabilização sistemática do cidadão médio que, ele sim, joga o jogo da República una e indivisível. Quanto à solução, é sem dúvida o modelo assimilacionista francês que deu bons resultados até à aparição do reagrupamento familiar, época aquela em que o Estado Francês decidiu ele mesmo destruir a França aumentando massivamente a imigração não cristã e não europeia, destruindo um processo de assimilação que se tornava contudo cada vez mais necessário…

Navegando entre nacional liberalismo e paternalismo social, a linha da FN sobre estes assuntos é das mais obscuras. O discurso social e econômico da FN evoluiu desde a época em que Jean Marie Le Pen se proclamava o «Reagan Francês»? Como é que sendo marxista, como é, se pode reconhecer nestas questões cruciais?

Alain Soral: O discurso da FN, que partiu de um liberalismo declarativo e abstracto – digamos Tocquevilleano – ignorando tudo das evoluções e mutações do liberalismo real, começou, nestes últimos tempos, a enquadrar melhor o problema, a diferenciar, desde logo, liberdade de empreendimento e neoliberalismo mundializado – que é o seu oposto exacto. Tal foi visível no esforço de produzir um programa económico coerente aquando das últimas presidenciais. A posição actual da FN, embora não esteja ainda plenamente expressa, é a do populismo económico, tal como o define Michéa, ou seja a aliança dos pequenos produtores com os pequenos assalariados – vítimas do mesmo predador euro mundialista – sob o governo de um Estado Colbertista adepto do Plano e da economia mista. Infelizmente, aquando destas últimas eleições,os pequenos produtores deixaram-se seduzir pelo discurso hábil e mentiroso de um Sarkozy que não pode deixar de traí-los, ele que é o homem da grande finança mundializada. Este projecto de união sagrada entre camadas populares e classe média, está pois por realizar-se. E a tarefa da FN será, por uma critica da governação de Sarkozy e um grande trabalho doutrinal, ajudar a que coincidam interesse de classe e sensibilidade de classe na cabeça dos eleitores de direita onde perdura plenamente esta confusão entre liberdade e liberalismo…

Afirma-se que é o autor do «Discurso de Valmy» e auto designa-se também como «republicano»? Para si o que é a «República»?

Alain Soral: Digamos que sou o co-autor do discurso de Valmy, dado que em política tudo é colectivo. Um discurso símbolo cujo objectivo era insuflar uma linha nacional republicana a esta campanha! Quando se conhece a história da França e se compreende a origem sempre histórica das idéias políticas, somos obrigados a concluir que os dois termos Nação e República, no nosso País, são indissociáveis. Na França, fala-se sempre em República francesa, desse modelo que inventámos e que me permite precisar hoje em dia, enquanto Francês,de que maneira sou nacionalista. Não somente sou um nacionalista francês, mas pretendo que na realidade política francesa tal como ela é,só este objectivo é eleitoralmente atingível. O resto, o regresso à Cidade dos Gregos, à idade de ouro do Cristianismo medieval ou dos Hiperbóreos…é poesia.

Participou numa viagem de apoio à resistência libanesa nos dias que se seguiram à agressão israelita do verão de 2006. Qual é a sua opinião sobre a legitimidade da política belicosa israelita e sobre o apoio que ela recebe da parte dos estados Unidos?

Alain Soral: A opinião que deve ter toda a testemunha e todo o intelectual honesto: a condenação total de uma agressão injustificável e contrária a todas as regras de direito internacional. Um testemunho e uma opinião conforme aos «direitos do homem» e contudo muito difícil de fazer passar nos medias franceses, nos quais a linha se pode resumir à declaração nada menos que lapidar de Sarkozy sobre o assunto:«Israel tem direito à sua segurança». Quem quer que seja que tenha um pouco de perspectiva de recuo sobre os acontecimentos vê, todavia, que assistimos ao desenrolar, implacável e sistemático, do projecto de re-desmembramento do Médio oriente. Um projecto belicoso e delirante querido pelos neoconservadores americanos que dominam actualmente o Congresso nessa coalizão, dita, de cristãos -sionistas. Um projecto que põe Israel no centro do mundo e que explica à vez a agressão do Líbano, a destruição do Iraque e a criminalização mediática do Irã…

No momento em que novas convergências se operam entre os opositores à mundialização e ao sistema capitalista sobre o conjunto do planeta, que forma poderia ter em França uma real alternativa popular e socialista?


Alain Soral: Isso poderia fazer-se em torno de um movimento que realizasse a união sagrada dos antimundialistas. Uma espécie de chavismo à francesa no qual se reconheceriam tanto nacionalistas de origem reaccionária como progressistas ideologicamente próximos do Partido dos Trabalhadores. Uma grande união sagrada antiliberal patriota e popular, socialmente de esquerda e socialitariamente de direita – ou seja exactamente o contrário do actual sistema liberal-libertário -, saudando o trabalho político de Chavez, mas também o de Putin… Pois quem pretender resistir ao Império deve saudar a determinação destes dois líderes, sob pena de ficar nessa incoerência de rapazinhos que desqualifica a LCR.Lembremos que esse tipo de união sagrada já foi tentado em França no passado pela aproximação Sorel/Maurras, na época do círculo Proudhon, e que a essa tentativa de união sagrada antiburguesa, a burguesia, desde logo, respondeu com outra união sagrada bem menos respeitável: a da guerra de 14 contra os malvados boches… Com a eleição de Sarkozy, a propaganda incessante contra a ameaça terrorista islamita e a criminalização do Irão, receio bem que o sistema tenha em mente o mesmo gênero de solução abjecta, mas desta vez com os bougnoules [termo pejorativo para os magrebinos já nascidos em França e ou aí residentes] no lugar dos boches!Quem viver verá.

Fonte: Revista Rébellion, Nº 25 – Julho/Agosto 2007

28/09/2011

O Papel da Alemanha contra a Técnica

por Martin Heidegger

Essa Europa, estando num estado de cegueira incurável, sempre pronta para se apunhalar a si mesma, encontra-se hoje na grande tenaz, encurralada entre a Rússia de um lado e a América do outro. A Rússia e a América, consideradas metafisicamente, são a mesma coisa; a mesma fúria desolada da desenfreada técnica e da insondável organização do homem vulgar. Quando o recanto mais remoto do globo tiver sido conquistado pela técnica e explorado pela economia, quando um qualquer acontecimento se tiver tornado acessível em qualquer lugar a qualquer hora e com uma rapidez qualquer, quando se puder “viver” simultaneamente um atentado a um rei na França e um concerto sinfônico em Tóquio, quando o tempo for apenas rapidez, momentaneidade e simultaneidade e o tempo enquanto História tiver de todo desaparecido da existência de todos os povos, quando o pugilista for considerado o grande homem de um povo, quando os milhões de manifestantes constituírem um triunfo – então, mesmo então continuará a pairar e estender-se, como um fantasma sobre toda esta maldição, a questão: para quê? – para onde? – e depois, o que?

O declínio espiritual da terra está tão avançado que os povos ameaçam perder a sua última força espiritual que [no que concerne o destino do “Ser”] permite sequer ver e avaliar o declínio como tal. Esta simples constatação nada tem a ver com um pessimismo cultural, nem tão-pouco, como é óbvio, com um otimismo; pois o obscurecimento do mundo, a fuga dos deuses, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odienta contra tudo que é criador e livre, atingiu, em toda a terra, proporções tais que categorias tão infantis como pessimismo e otimismo já há muito se tornaram ridículas.

Encontramo-nos entre os tenazes. O nosso povo, estando no meio, sofre a maior pressão das tenazes, é o povo com mais vizinhos e por isso mais ameaçado, sendo assim o povo metafísico. Mas essa determinação, da qual temos toda a certeza, só poderá ser transformada em destino quando o povo criar uma ressonância em si próprio, uma possibilidade de ressonância para essa determinação, compreendendo a sua tradição de um modo criador. Tudo isto implica que este povo enquanto povo histórico se coloque a si mesmo e, com isso, a História do Ocidente, fora do centro dos seus futuros acontecimentos, repondo-se assim no domínio originário dos poderes do Ser. É que, se a grande decisão sobre a Europa não deverá precisamente ser tomada por via da destruição, só poderá então ser tomada por via de um desenvolvimento de novas forças histórico-espirituais a partir do centro.

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Martin Heidegger - "Introdução à Metafísica"

27/09/2011

O Homem sob o Capitalismo

por Jack London

Eu tinha nascido na classe operária, e estava agora, aos dezoito anos, abaixo do ponto no qual tinha começado. Estava caído nos porões da sociedade, jogado no profundo subterrâneo da miséria a respeito do qual não é agradável nem digno falar: eu estava no fosso, no abismo, no esgoto humano, no matadouro, na capela mortuária da nossa civilização. Esta é a parte do edifício social que a sociedade prefere esquecer. A falta de espaço me leva aqui a ignorá-la, e eu devo dizer apenas que as coisas que vi lá me deram um medo terrível.

Eu estava apavorado até a alma. Eu vi as nuas simplicidades da complicada civilização na qual vivia. A vida era uma questão de abrigo e comida. Para conseguir abrigo e comida os homens vendem coisas. O comerciante vende seus sapatos, o político vende seu humanismo e o representante do povo, com exceções, é claro, vende sua credibilidade; enquanto quase todos vendem sua honra. As mulheres também, nas ruas ou na sagrada relação do casamento, estão prontas a vender seus corpos. Todas as coisas são mercadorias, todas as pessoas compradas e vendidas. A primeira coisa que o trabalhador tinha para vender era a força física. A honra do operariado não tinha preço no mercado. O operariado tinha musculosa e somente músculos para vender.

Mas havia uma diferença, uma diferença vital. Sapatos, credibilidade e honra têm maneiras de renovar a si mesmos. Eram estoques imperecíveis. Os músculos, de outra parte, não se renovam. Quando um comerciante vende seus sapatos, continuamente repõe o estoque. Mas não há como repor o estoque de energia do trabalhador. Quanto mais ele vende sua força, menos sobra para ele. A força física é sua única mercadoria, e a cada dia seu estoque diminui. No fim, se não morrer antes, ele vendeu tudo e fechou as portas. Está arruinado fisicamente e nada lhe restou senão descer aos porões da sociedade e morrer miseravelmente.

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Jack London - "A Paixão do Socialismo"

25/09/2011

Democracia Representativa e Democracia Participativa

por Alain de Benoist


A democracia representativa, de essência liberal e burguesa, na qual os representantes, através da eleição, estão autorizados a transformar a vontade popular em atos de governo constitui, no momento atual, o regime político mais comumente expandido nos países ocidentais. Uma das conseqüências disto é o fato de termos o costume de considerar que democracia e representação são de certa forma, sinônimos. Contudo, a história das idéias demonstra que não é assim.

Os grandes teóricos da representação são Hobbes e Locke. Tanto em um como no outro, de fato, o povo delega contratualmente sua soberania aos governantes. Em Hobbes, tal delegação é total; contudo, nunca se chega a uma democracia: seu resultado serve, ao contrário, para investir ao monarca de um poder absoluto (o “Leviatã”). Em Locke, a delegação está condicionada: o povo não aceita desfazer-se de sua soberania, a não ser em troca garantias que possuem relação com os direitos fundamentais e com as liberdades individuais. A soberania popular não é menos evanescente entre duas eleições, já que ela permanece suspensa tanto tempo enquanto os governantes respeitem os termos do contrato.

Rousseau, por sua vez, estabelece a exigência democrática como antagônica a qualquer regime representativo. Para ele, o povo não faz um contrato com o soberano; suas relações dependem exclusivamente da lei. O príncipe é somente o executante do povo, que se mantém como o único titular do poder legislativo. Tampouco está investido do poder que pertence à vontade geral; é, melhor, o povo quem governa através dele. O raciocínio de Rousseau é muito simples: se o povo está representado, são seus representantes aqueles que detêm o poder, em cujo caso, já não é soberano. O povo soberano é um “ser coletivo”, que não poderia estar representado mais do que por ele mesmo. Renunciar a sua soberania seria como renunciar a sua liberdade, isto é, destruir-se a si próprio. Tão pronto quanto o povo elege seus representantes, “torna-se escravo, não é nada” (Do contrato Social, III, 15). A liberdade, como direito inalienável, implica na plenitude de um exercício sem o qual não se poderia ter uma verdadeira cidadania política. A soberania popular não pode ser sob estas condições, mais do que indivisa e inalienável. Qualquer representação equivale, assim, a uma abdicação.

Se admitimos que a democracia é o regime fundado na soberania do povo, não se pode mais do que dar razão à Rousseau.

A democracia é a forma de governo que responde ao principio de identidade entre os governantes e os governados, isto é, da vontade popular e da lei. Tal identidade remete à igualdade substancial dos cidadãos, ou seja, ao fato de que todos são igualmente membros de uma mesma unidade política. Dizer que o povo é soberano não por essência, mas vocação, significa que é dele de onde procedem o poder público e as leis. Os governantes não podem ser mais do que agentes executivos, que devem conformar-se aos fins determinados pela vontade geral. O papel dos representantes deve estar reduzido ao máximo; o mandato representativo perde qualquer legitimidade desde o momento em que seus fins e projetos não correspondam à vontade geral.

Contudo, o que acontece hoje é exatamente o contrário. Nas democracias liberais, a supremacia está dada à representação e, mais especificamente, à representação-encarnação. O representante, longe de estar “comprometido” somente em expressar a vontade de seus eleitores, ele próprio encarna dita vontade de fazer somente aquilo para o que foi eleito. Isto quer dizer que encontra em sua eleição a justificativa que lhe permite atuar, não tanto segundo a vontade daqueles que o elegeram, mas segundo sua própria – em outras palavras, se considera autorizado pelo voto a fazer aquilo que considere bom.

Este sistema está na origem das críticas que não deixaram, no passado, de estar dirigidas contra o parlamentarismo; criticas que reaparecem hoje através dos debates sobre o “déficit democrático” e a “crise da representação”.

No sistema representativo – ao haver delegado o eleitor, mediante o sufrágio, sua vontade política a quem o representa –, o centro de gravidade do poder reside inevitavelmente nos representantes e nos partidos que os reagrupam e, não mais, no povo. A classe política forma, melhor, uma oligarquia de profissionais que defendem seus próprios interesses, dentro de um clima geral de confusão e irresponsabilidade. Acrescentamos que, hoje em dia, em uma época na qual aqueles que possuem poder de decisão têm em maior grau os de nominação, ou de cooptação, que o da eleição, constituem uma oligarquia de “especialistas”, de altos funcionários e de técnicos.

O Estado de direito, cujas virtudes celebram regularmente os teóricos liberais – apesar de todas as ambigüidades que esta expressão implica – não parece, que por sua própria natureza, possa corrigir dita situação. Ao descansar sobre um conjunto de procedimentos e regras jurídicas formais, na realidade é indiferente ante os fins específicos da política. Os valores estão excluídos de suas preocupações, deixando assim o campo livre para o enfrentamento de interesses. As leis somente possuem a autoridade de fazer o que seja legal, isto é, aquilo que esteja em conformidade com a Constituição e com os procedimentos previstos para sua adoção. A legitimidade se reduz desta forma, à legalidade. Esta concepção positivista-legalista da legitimidade convida a respeitar às instituições por elas próprias, como se constituíssem um fim em si, sem que a vontade popular possa modificá-las e controlar seu funcionamento.

Contudo, na democracia, a legitimidade do poder não depende somente da conformidade com a lei, nem tampouco da conformidade com a Constituição, mas sobre tudo, da conformidade com a prática governamental a respeito dos fins atribuídos pela vontade geral. A justiça e a validez das leis não poderiam residir por inteiro na atividade do Estado ou na produção legislativa do partido no poder. A legitimidade do direito não poderia, tampouco, ser garantia pela mera existência de um controle jurisdicional: falta ainda, para que o direito seja legítimo, que responda àquilo que os cidadãos esperam; que integre as finalidades orientadas em direção ao serviço do bem comum. Finalmente, não poderíamos falar da legitimidade da Constituição mais do que quando a autoridade do poder constituído é reconhecida sempre como sendo suscetível à modificação de sua forma e seu conteúdo. O que vem a dizer-nos que o poder constituído não pode ser delegado totalmente ou alienado, e que continua existindo e se mantém superior à Constituição e às regras constitucionais, inclusive quando estas mesmas procedem dele.

É evidente que jamais se poderá escapar totalmente à representação, pois a idéia da maioria governante enfrenta, nas sociedades modernas, dificuldades intransponíveis. A representação, que não é o que há de pior, não esgota, contudo o princípio democrático. Em grande medida, pode ser corrigida pelo colocar em marcha da democracia participativa, que também é chamada de democracia orgânica, ou democracia encarnada. Uma reorientação como tal parece hoje em dia de urgente necessidade devido à evolução geral da sociedade.

A crise das estruturas institucionais e a desaparição dos “grandes relatos” fundacionais, o crescente desapego do eleitorado pelos partidos políticos de moldes clássicos, a renovação da vida associativa, a emergência de novos movimentos sociais ou políticos (ecologistas, regionalistas, identitários), cuja característica comum é a de não defender os interesses negociáveis, mas os valores existenciais deixam entrever a possibilidade de recriar uma cidadania ativa desde a base.

A crise do Estado-nação, devida particularmente à mundialização da vida econômica e ao deslocamento de fenômenos de envergadura planetária, suscita por sua parte, dois modos de exceder: rumo ao alto, com diversas tentativas que buscam recriar a nível supranacional uma coerência e uma eficácia na decisão que permitam, em parte ao menos, conduzir o próprio processo de mundialização; rumo abaixo, com a retomada da importância das pequenas unidades políticas e as autonomias locais. Ambas as tendências, que não somente se opõe, mas se complementam, implicam-se uma na outra e conduzem o remédio ao déficit democrático que se constata atualmente.

Mas a paisagem política sofre ainda outras transformações. Para a direita, observamos uma ruptura com o antigo “bloco hegemônico”, resultante do fato de que o capitalismo já não possui uma aliança com as classes médias em razão da conclusão de sua modernização tardia, da evolução dos custos de produção e da transnacionalização do capital, devido à aceleração da crise. Ao mesmo tempo, enquanto que os estratos médios se encontram desorientados e freqüentemente ameaçados, os estratos populares estão cada vez mais decepcionados devidos às práticas governamentais de uma esquerda que, depois de ter renegado de praticamente todos os seus princípios, tende a identificar-se mais e mais com os interesses do estrato superior da burguesia média. Em outros termos, as classes médias já não se sentem representadas pelos partidos de direita, enquanto que os meios populares sentem-se abandonados e traídos pelos partidos de esquerda.

A isto se acrescenta, no fim, a desaparição das antigas coordenadas, a queda dos modelos, a desintegração das grandes ideologias da modernidade, a onipotência de um sistema de mercado que (eventualmente) dá os meios de existência, mas não as condições para viver; tudo isto faz ressurgir a questão crucial do sentido da presença humana no mundo, do sentido da existência individual e coletiva em um momento em que a economia produz cada vez mais bens e serviços com cada vez menos trabalho dos homens, o que tem como efeito multiplicar as exclusões em um contexto já fortemente marcado pelo desemprego, precariedade do emprego, o medo do futuro, a insegurança, reações agressivas e a tensões de todo tipo.

Todos estes fatores nos chamam a refazer profundamente as práticas democráticas que unicamente podem ser operadas em direção a uma verdadeira democracia participativa. Em uma sociedade que tende a tornar-se cada vez mais “ilegível”, isto tem como principal vantagem eliminar ou corrigir as distorções devidas à representação, assegurar uma maior conformidade com a lei e com a vontade geral, e ser fundadora de uma legitimidade sem a qual a legalidade institucional não é mais que um simulacro.

Não é ao nível das grandes instituições coletivas (partidos, sindicatos, igrejas, exército, escolas, etc.) – que hoje se encontram todas, em maior ou menor medida, em crise e que não podem desempenhar, desta forma, seu papel tradicional de integração e de intermediação social – que será possível recriar dita cidadania ativa. O controle do poder não pode ser tampouco patrimônio exclusivo dos partidos políticos, cuja atividade freqüentemente torna-se clientelismo. A democracia participativa não pode ser, hoje em dia, mais que uma democracia de base.

Dita democracia de base não tem por finalidade generalizar a discussão a todos os níveis, mas determinar, com a participação do maior número, os novos procedimentos de decisão conformes com suas próprias exigências, como as que derivam das aspirações dos cidadãos. Tampouco poderia tornar-se uma simples oposição entre a “sociedade civil” e a esfera pública, o que estenderia ainda mais o domínio do privado e abandonaria a iniciativa política às formas obsoletas de poder. Trata-se, ao contrário, de permitir aos indivíduos que se ponham a prova em tanto quanto cidadãos e não como membros da esfera privada, favorecendo ainda mais que se torne possível a eclosão e a multiplicação de novos espaços e a iniciativa e responsabilidade públicas.

O procedimento do referendo (que resulta da decisão dos governos ou da iniciativa popular, seja o referendo facultativo ou obrigatório) é somente uma forma de democracia dentre outras – e cujo alcance talvez se tenha superestimado. Assinalemos de uma vez que o principio político da democracia não é o de que a maioria decida, mas que o povo é soberano. O voto não é por si mesmo, mais do que um meio técnico para consultar e revelar a opinião. Isto significa que a democracia é um principio político que não poderia confundir-se com os meios dos quais se utiliza e que tampouco poderia ser produto de uma idéia puramente aritmética ou quantitativa. A qualidade de cidadão não se esgota no voto. Consiste, melhor, em colocar em prática todos os métodos que lhe permitam manifestar ou rechaçar o consentimento, expressar seu repúdio ou sua aprovação. Convêm, assim, explorar sistematicamente todas as formas possíveis de participação ativa da vida pública, que são também formas de responsabilidade e de autonomia por si, já que a vida pública condiciona a existência cotidiana de todos.

Mas a democracia participativa não possui somente um alcance político; têm também um social. Ao favorecer as relações de reciprocidade, ao permitir a recriação de um laço social, podem-se reconstituir as solidariedades orgânicas, debitadas hoje em dia, refazer um tecido social desagregado pelo advento do individualismo e a saída antecipada ao sistema da competição e do interesse. Em tanto quanto produtora da sociedade elemental, a democracia participativa anda de mãos dadas com o renascimento das comunidades vivas, da recriação das solidariedades de vizinhança, de bairro, dos locais de trabalho, etc.

Esta concepção participativa da democracia se opõe claramente à legitimação liberal da apatia política, que indiretamente encoraja a abstenção e acaba por ser um reino de gestores, de especialistas e de técnicos. A democracia, afinal de contas, descansa menos sobre a forma de governo propriamente dita, do que sobre a participação do povo na vida pública, de sorte tal que o máximo de democracia se confunde com o máximo de participação. Participar é tomar parte, é provar-se a si mesmo como parte de um conjunto ou de um todo e assumir o papel ativo que resulta deste pertencimento. “A participação – dizia René Capitant – é o ato individual do cidadão que o faz como membro da coletividade popular”. Vemos através disto como as noções de pertencimento, cidadania e democracia encontram-se ligadas. A participação sanciona a cidadania que resulta do pertencimento. O pertencimento justifica a cidadania que permite a participação.

Conhecemos o bordão republicano francês: “Liberdade, igualdade, fraternidade”. Se as democracias liberais exploraram a palavra “liberdade”; se os antigos democratas populares se relacionaram com a “igualdade”; a democracia orgânica ou participativa, fundada na cidadania ativa e na soberania do povo, bem poderia ser o melhor meio para responder ao imperativo de “fraternidade”.

23/09/2011

As Raízes da Civilização

por Alain de Benoist

A grande revolução cultural teve seus primórdios há 35.000 anos, se não mais. "Parece ser - escreve o professor Marschack - que em uma época tão distante como 30.000 anos antes de nossa era, durante o período glacial, os caçadores-coletores da Europa ocidental faziam uso de um sistema de notação cronológica tão elaborado e complexo que já demandava uma tradição que quiçá remontasse-se a milhares de anos mais no passado. Este sistema de notação procede de uma técnica cognitiva cronofatorizada e cronofatorizante."

Trata-se, sem dúvida, de uma das mais importantes descobertas em matéria pré-histórica.

Tudo começou a princípios do decênio de 1960. Alexander Marschack, diretor de investigações do Museu Peabody de Etnologia e Arqueologia da Universidade de Harvard, interrogava-se sobre o problema das "origens". Buscava um método capaz de determinar a natureza dos processos mentais do homem da mais distante antiguidade.

"Nos limites da evolução da espécie - observa - o cérebro permaneceu constante durante cem ou duzentos milhares de anos". Não falamos pois de um "progresso humano", senão de uma transformação contínua do mundo por um homem que permaneceu sendo o mesmo desde os tempos mais imemoriais. Se o fenômeno humano forma um todo, a "cultura" é tão velha como o próprio homem.

"Sustento a hipótese - prossegue Marschack - de que o homem ante-histórico, o homem do período glacial, não difere em grande medida do homem contemporâneo. Diferem as idéias e as relações inculcadas em seu cérebro, porém não a maneira de funcionar do mesmo, nem suas aptidões, nem suas capacidades, nem sua inteligência."

Em outros termos, o homo sapiens é muito mais que um simples "fabricante de úteis", somente capaz de reconehcer e empregar as formas. Desde suas origens, tem consciência das noções de "sucessão", do símbolo e do tempo. O autor qualifica esta consciência com um termo: suas atividades são "cronofatorizadas".

A hipótese, antes de ser ousada, está bem fundamentada. Alexander Marschack não parte de um pensamento prédeterminado, senão de profundas reflexões sobre os registros históricos.

As "fases" lunares

Até então, os pré-historiadores, os descobridores dos sinais gravados nas cavernas e nos refúgios rochosos, haviam-se contentado com falar de "motivos decorativos" ou de "marcas de caça". Criticavam com suma dureza qualquer interpretação que ousasse aventurar-se mais além do simplismo naturalista.

Entre 1965 e 1970 o professor Marschack estudou mais de mil objetos pré-históricos proedentes de nove países diferentes da Europa, e submeteu-os a uma análise minuciosa: fotografias, escavação, cópias, exames no microscópio. Os resultados superaram suas esperanças: existia uma constante repetitiva nas marcas dos diferentes objetos, um "código de escrita", uma constante gráfica.

Na maior parte dos objetos (chifres de rena, omoplatos de diferentes mamíferos, objetos líticos, etc.), as marcas, os pontos e as estrias dispunham-se em linhas ou em grupos que foram gravados "em momentos diferentes, em ângulos diferentes e com marcas diferentes, sobre os quais haviam-se exercido pressões diferentes". Certos signos revelavam a marca de um só golpe; outros, de golpes repetidos. As técnicas também variam: simples golpes de punção, traços longos e pouco profundos, traços profundos e pouco longos, marcas que envolve o objeto ao seu redor, etc. É difícil falar de coincidências: constata-se uma intenção precisa, sim. Porém qual?

"Estas marcas - indica Marschack - não foram feitas no mesmo momento nem pela mesma pessoa, porém tem um mesmo ritmo, revelam um mesmo pensamento e uma mesma utilidade que estende-se no tempo. Pertencem a uma "tradição". São "cronofatorizadas".

Prosseguindo seus trabalhos, Marschack percebeu que as marcas não estavam dispostas ao azar. Geralmente, estão agrupadas em números múltiplos de vinte e nove ou de trinta, que imediatamente trazem à mente uma relação com os meses do ciclo lunar (a mais evidente e fácil de observar na natureza). Mais ainda: no interior de uma mesma "sequência", os "subgrupos" de signos gravados correspondem exatamente às diferentes fases da Lua. As explicações de Marschack revelam "um ano, um ciclo lunar completo perfeito em suas subdivisões".

Em seu livro, abundantemente ilustrado, Marschack oferece inúmeros exemplos destes "ciclos" e apresenta não menos esquemas verificados pelo computador. Estende-se particularmente em duas peças características: o denominado "bastão de La Marche" (um chifre de rena decorado), com suas correspondentes duzentas e vinte e uma marcas que correspondem a sete meses lunares, e o chamado "osso de Blanchard" (um omoplato de urso de caverna), cuja face principal oferece uma dupla linha de sessenta e nove marcas duplas em forma de ponta que mudam sua direção (para cima ou para baixo) vinte e quatro vezes.

Os grandes caçadores

O homem pré-histórico dispõe, pois, de "um sistema mnemotécnico visual de eras lunares", um sistema de notação comum a todo o paleolítico superior europeu e uma técnica ao menos tão complexa como outros sistemas historicamente testados, em muitos aspectos similar ao dos índios da América do Norte, particularmente.

Na segunda parte de seu livro, o professor Marschack relaciona este sistema de notação com as grandes pinturas rupestres, mais especialmente com as representações de animais, as silhuetas de figuras femininas e os símbolos públicos característicos do aurignaciano. O exame microscópico revelou que estas figuras foram igualmente compostas em períodos diferentes, quer dizer também estavam "cronofatorizadas", o que permite situá-las em um contexto "dramático-narrativo" ritual.

Comentando estas descobertas, Henri de Saint-Blanquat escreveu na revista Sciences et Avenir: "As representações animais, a sua maneira, aportam um testemunho. Um dos cavalos visíveis no bastão de La Marche aparece com três orelhas e três olhos, duas crinas e duas linhas de dorso. As três orelhas foram gravadas com três punções diferentes, uma para cada, assim como os três olhos e as duas crinas. Tudo parece indicar que o cavalo foi 'empregado' várias vezes, e cada 'emprego' corresponde a um acréscimo de órgãos gravados".

"Suponhamos - pontualizava Marschack - que um primeiro mês relata a história de um herói lunar que faz-se devorar por um espírito totêmico. Esta história poderia pertencer a uma época. Um segundo mês poderia relatar as aventuras deste mesmo herói com qualquer outro animal 'temporal' ou com outro espírito divino. A notação poderia então corresponder a um momento narrativo ou simbólico destas aventuras, etc."
O ritmo essencialmente temporizador da vida no paleolítico desenha os contornos de uma religião dos grandes caçadores, onde os ritos de gravidez, por exemplo, associam-se aos "ancestrais" animais do clã: o mamute, a rena, o bisão ou o rinoceronte lanoso.

Marschack rebate como infundadas as interpretações "sexuais" ou psicanalíticas nas quais satisfazem-se certos pré-historiadores. "A magia da fecundidade - escreve - não é senão uma das formas de participação na história e no mito que relatam a gravidez e o nascimento (...) A mesma vulva feminina é, até certo ponto, um símbolo "não-sexual", quer dizer não copulador e não erótico, senão que representa as histórias de processos que incluem a vida e a morte, a menstruação e os ciclos cronofatorizantes vinculados à natureza, como as fases da Lua".

Até quando remonta-se nos tempos este sistema de notação? É difícil saber. As marcas presentes no "osso de Pech-de-Lace", as mais antigas das descobertas até hoje (em 1968, pelo pré-historiador François Bordes), tem uma antiguidade de 230.000 anos. Sem dúvida, uma enormidade que abre as portas ao investigador diante de perspectivas fantásticas.

A tradição, em todo caso, mantém-se até o mesolítico e o primeiro neolítico, justo até a alvorada da história. A propósito de um calendário lunar gravado na caverna de Ungerlöse (Dinamarca), Marschack comenta: "Este calendário explica a presença de uma tradição cronológica, fundada na observação, que estende-se pela Europa central e setentrional em uma época na qual as distantes culturas agrícolas do Sul praticavam uma tradição regional diferente. Poderia explicar a origem dos calendários rúnicos descobertos no norte da Europa na era histórica moderna. É igualmente possível que esta tradição européia não seja estranha aos alinhamentos megalíticos extremamente tardios de Stonehenge."

Um rol revolucionário

Pré-história e escrita são geralmente aceitos como termos contraditórios. Porém a linguística e a arqueologia permitem-nos, até certo ponto, franquear os muros que separam os "milênios silenciosos". Marschack fala constantemente de "As raízes da ciência e da escrita".

Podemos falar então, como assinala Henri de Saint-Blanquat, de "uma espécie de pré-escrita, uma notação pré-numérica, em suma das bases sobre as quais, milênios mais tarde, edificar-se-ão a verdadeira escrita e a verdadeira numeração".

"Esta capacidade de anotar e de simbolizar é própria, até o momento, às culturas européias do paleolítico superior (...) As antigas culturas européias tiveram assim um rol relativamente dinâmico, formador e revolucionário, com relação aos posteriores desenvolvimentos culturais."

O homem pré-histórico muda assim de aspecto diante dos nossos olhos. O hominídio bestial e "primitivo" encolhido medrosamente diante do fogo, emitindo ruídos guturais, arrastando à caverna suas fêmeas pelo cabelo e talhando objetos de sílex com golpes imprecisos, esfuma-se para deixar lugar a um homem "acabado", possuidor de uma consciência teórica e prática do tempo, do lugar, da direção, dos limites de seu território, capaz de descrever suas experiências e de expressá-las mediante símbolos. Um homem, diz Marschack, de "um nível de evolução e de sofisticação que poderíamos denominar protomodernos".

O fenômeno humano aparece, desde seus primórdios, ligado ao sentimento da diferença na duração. O "fenômeno humano" caracteriza-se pelo aparecimento de uma percepção "de dois níveis": o homem é o animal que tem consciência de ter consciência. A dimensão histórica é a dimensão humana por excelência.

À simples noção do homem fabricante de objetos úteis, difundida sobre todos os trabalhos de Darwin sobre a seleção natural e a luta pela vida, opõe-se à idéia do homem "cronofatorizante". A arqueologia deixa de ser assim uma "mania de colecionadores" para tornar-se uma ciência auxiliar da etnosociologia.

19/09/2011

Mulher Absoluta: Um Esclarecimento do Pensamento de Evola em relação às Mulheres

por Amanda Bradley
Um dos conceitos centrais da filosofia de gênero de Julius Evola é a distinção entre homem absoluto e mulher absoluta. Mas ele raramente dá definições explícitas desses termos. Homem e mulher absolutos podem ser associados a Formas Platônicas, assim defini-los pode ser tão difícil quanto definir Justiça, Verdade, ou Amor.
O termo "mulher absoluta" inspira mais controvérsia do que "homem absoluto". Dado que o princípio masculino é associado com luz, bondade, e atividade, enquanto o princípio feminino é associado com escuridão, maldade, e passividade, as feministas podem facilmente afirmar que a opiniões de Evola são inerentemente misóginas. Outro ponto de controvérsia é a influência de Otto Weininger sobre Evola. O próprio Evola admite que Weininger deve ser lido criticamente devido a seu "complexo misógino inconsciente".
É importante abordar os escritos de Evola a respeito das mulheres para que suas opiniões sejam corretamente compreendidas. Dado que ele opunha-se ao feminismo emergente de seu tempo, seria fácil para aqueles não familiares com suas idéias inferir que Evola também era anti-mulher. Ao explicar suas opiniões e não ignorar quaisquer pontos que de fato soem misoginistas (como é o caso com alguns dos devotos de Evola) a Nova Direita pode solidificar os termos do discurso e elucidar precisamente sua posição.
Evola sobre a Composição dos Seres Humanos
A mais simples definição de "mulher absoluta" é o princípio feminino, a força feminina do universo. O homem e a mulher individuais possuem graus variáveis do homem e da mulher absolutos, ainda que o princípio feminino usualmente seja a força subjacente nas mulheres.
No mundo moderno (a Kali Yuga) essas forças aparecem em formas mais degeneradas e também não manifestam-se sempre apropriadamente. Em verdade, Evola disse que "casos de desenvolvimento sexual completo são raramente encontrados. Quase todo homem porta alguns traços de feminilidade e cada mulher resíduos de masculinidade... os traços que são considerados típicos para a psique feminina podem ser encontrados no homem tanto quanto na mulher, particularmente em fases regressivas de uma civilização". Ademais, estes "manifestam-se diferentemente dependendo da raça e do tipo de civilização".
Para compreender a influência da "mulher absoluta" é primeiro necessário compreender a concepção de Evola sobre o ser humano. Ele sustentava que os humanos são compostos de três partes:
1. o indivíduo exterior (a personalidade, ou ego).
2. o nível do ser profundo, o assento do principium individuationis. Essa é a verdadeira "face" de uma pessoa em oposição à máscara do ego.
3. o nível das forças elementares que são "superiores e anteriores à individuação, mas que atuam como o assento último do indivíduo".
É no terceiro nível, o das forças elementares, em que a atração sexual é despertada. Assim é aque que as forças elementares que compreendem o homem ou mulher absolutos estão localizadas. Isso é congruente com a descrição de Evola de algumas mulheres modernas, que são capazes de desenvolver habilidades "masculinas" como a lógica ou o intelectualismo. Ele diz que elas fizeram-o "através de uma camada situada sobre sua natureza mais profunda". Porém, elas não foram bem sucedidas em alterar sua natureza fundamental, apenas sua personalidade superficial.
Um Ponto de Partida Metafísico para Macho e Fêmea
Segundo doutrinas Tradicionais, os sexos eram forças metafísicas antes de terem manifestado-se no mundo. O homem e a mulher absolutos existiam desde o início do tempo, quando o Uno Universal dividiu-se em uma Díade, que então causa o resto da criação. Na maioria das formas de Hinduísmo, Shiva, o princípio masculino, é identificado com o puro Ser. Shakti, o princípio feminino, é identificado com o Devir e a Mudança. De modo similar, Aristóteles associava o princípio masculino com a Forma e o feminino com a Matéria. Segundo Evola, Forma significa "o poder que determina e desperta o princípio da moção, do desenvolvimento, do devir" enquanto Matéria significa "a substância ou poder que, sendo desprovida de Forma em si mesma, pode assumir qualquer Forma, e que em si mesma não é nada mas pode tornar-se tudo quando é despertada e fecundada". Na tradição do Extremo Oriente, o Yang (o princípio masculino) é associado com o céu, enquanto o Yin (o princípio feminino) é associado com a terra. Assim, Forma e Matéria combinaram-se para criar o universo manifesto. E do coito entre Shiva e Shakti "emerge o mundo". (Isso está em contraste com Oswald Spengler, que acreditava que o Devir era o elemento essencial, ao invés do Ser).
O princípio masculino é associado com verdade, luz, o Sol, virilidade, atividade, e estabilidade. Às vezes é associado com o Uno Universal que existia antes da Díade. A qualidade feminina é associada com a malícia, mutabilidade, a Lua, a terra, escrudião, umidade, passividade e dependência em outro. Nas palavras de Evola:
"O que os gregos chamavam 'heteridade', isto é, estar conectado a outro ou estar centrado em alguém além de si mesmo, é uma característica própria da fêmea cósmica, enquanto ter o próprio princípio em si mesmo é próprio do macho puro. (...) a vida feminina é quase sempre desprovida de um valor individual mas está ligada a alguém mais em sua necessidade, nascida da vaidade, de ser reconhecida, notada, bajulada, admirada, e desejada (essa tendência extrovertida está conectada com aquele 'olhar para fora' que em um nível metafísico tem sido atribuído a Shakti)."
Essas forças então manifestam-se em homens e mulheres reais. Mas Evola é claro em sustentar que o homem e a mulher absolutos não são simplesmente aspectos de caráter. Ao invés, eles são "elementos objetivos atuando em indivíduos quase tão impessoalmente quanto as propriedades químicas inerentes em uma substância particular". Como Evola diz:
"(...) antes e além de existir no corpo, o sexo existe na alma e, em certa medida, no próprio Espírito. Nós somos homens ou mulheres interiormente antes de sermos assim externamente; a qualidade do macho ou fêmea primordial penetra e satura o todo de nosso ser visivelmente e invisivelmente...tanto quanto uma cor permeia um líquido".
Enquanto tal, a mulher absoluta não é simplesmente um conceito idealizado de mulher. Ela é definida do divino ao humano, e não é uma concepção humana de algo divino.
Descrição Evoliana da Mulher Absoluta
A mulher absoluta é a régua pela qual todas as mulheres devem ser medidas. Evola escreve, "a única coisa que nós podemos fazer é estabelecer a superioridade ou inferioridade de uma dada mulher com base nela ser mais ou menos próximo ao tipo feminino, à mulher pura e absoluta, e o mesmo aplica-se ao homem também". Ademais, a superioridade é definida por quão perto alguém realiza a mulher ou homem absolutos. "Uma mulher que é perfeitamente mulher é superior a um homem que é imperfeitamente homem, tanto quanto um camponês que é fiel a sua terra e faz seu trabalho perfeitamente é superior ao rei que não é capaz de fazer seu próprio trabalho", diz Evola.
Muitas outras características são associadas com o princípio feminino do que aquelas descritas abaixo; porém, esses são os primários ressaltados por Evola em seus escritos sobre o assunto.
As Águas e a Mutabilidade
A característica feminina fundamental é a mutabilidade. Assim, a fêmea é associada com a água, que é fluida, e adapta-se a qualquer forma na qual ela seja colocada, assim como a matéria/Shakti é moldada pela forma/Shiva. Evola escreve que a mulher "reflete o feminino cósmico segundo seu aspecto como material recebendo uma forma que é externa a ela e que ela não produz a partir de dentro". Isso encaixa-se com a descrição de Carl Jung do animus da mulher, que não é auto-criado, mas ao invés é uma coleção subconsciente dos pensamentos dos homens.
Essa mutabilidade está relacionada com a tendência da mulher em viver por alguém fora dela, devido à fluidez e mutabilidade de sua natureza. Para Evola, isso significa seguir o caminho da mãe ou da amante, fixando-se a uma força viril de modo a obter a transcendência. Em contraste, "a mulher moderna ao querer ser por ela mesma destruiu-se". Crendo que ela é meramente sua personalidade, ela perde seu aspecto transcendente.
Essa mutabilidade é vista na associação do feminino com a água. Segundo Evola, a água representa "a vida indiferenciada anterior e ainda não fixada em uma forma", aquilo "que corre ou flui e é portanto instável e mutável", e "o princípio de toda fertilidade e crescimento segundo a analogia da ação fertilizadora da água na terra e no solo".
Evola também descreve a relação correta entre o princípio da água e o do fogo, associado com o masculino: "quando o princípio feminino, cuja força é centrífuga, não volta-se para objetos fugidios mas sim para uma estabilidade 'viril' na qual ela encontra um limite para sua 'inquietude'.
Evola concorda que certas mulheres modernas podem parecer muito imutáveis, mas insiste que isso é apenas em um nível superficial do seu ser:
"(...)uma possível rigidez pode seguir-se à recepção de idéias devido precisamente ao modo passivo pelo qual ela adotou-as, o que pode aparecer sob o disfarce de conformidade e conservadorismo. Desse modo, nós podemos explicar o contraste aparente inerente no fato de que a natureza feminina é mutável, e ainda assim as mulheres demonstram majoritariamente tendências conservadores sociologicamente e um desdém pelo novo. Isso pode ser ligado a seu papel na mitologia como figuras femininas como Deméter ou de tipo ctônico que guardam e vingam os costumes e a lei - a lei do sangue e da terra, mas não a lei urânica."
Assim, uma mulher pode ser razoavelmente imutável em suas crenças sobre a sociedade, etiqueta, e moralidade, mas carecerá de uma ligação a uma verdade transcendente. Muitas das idéias femininas concernentes a verdades sociais como honra e virtude "não são ética verdadeira, mas meros hábitos", diz Evola.
Essa mutabilidade das mulheres explica a noção de que as mulheres são ao mesmo tempo mais piedosas e mais cruéis que os homens; como a mulher é associada com a terra, ela expressa tanto a ternura da mão como a crueldade da natureza. O melhor exemplo dessa dualidade é a Deusa grega Ártemis, que era ao mesmo tempo protetora dos animais selvagens e caçadora.
Talvez a característica mais controversa da mulher absoluta de Evola, que ele pega de Weininger, é uma concepção comum através da história: de que a mulher não possui alma, ou ser. Weininger afirma que a mulher não possui ego, referindo-se ao Ego Transcendental de Immanuel Kant, que Evola descreve como "acima de todo o mundo fenomênico (em termos metafísicos dir-se-ia 'acima de toda manifestação', como o atman hindu)". Em algumas escolas de Hinduísmo, o atman (ou "eu superior") é idêntico com o Brahman, a alma infinita do Universo. Em outra concepção hindu, o atman é o princípio vital. Como a existência manifesta seria impossível sem o atman, essa descrição da mulher como carente de Ego Transcendental não deve ser tomado para querer dizer que as mulheres são incapazes de desenvolver ou solidificar esse aspecto, ainda que elas estejam em desvantagem em relação aos homens. Também, na Kali Yuga, todas as pessoas estão o mais possivelmente removidas do divino, então os homens e mulheres modernos estão provavelmente na mesma posição de partida em termos de desenvolvimento do Ser.
Evola expande a noção, afirmando que se alma significa "psique" ou "princípio vital", então "isso significa na verdade que a mulher não apenas tem uma alma mas é eminentemente 'alma'", enquanto o homem não é uma alma mas um "espírito". Ele continua: "o ponto que acreditamos ter fixado é o de que a mulher é uma parta da 'natureza' (em um sentido metafísico ela é uma manifestação do mesmo princípio que a natureza) e que ela afirma a natureza, enquanto o homem por virtude de nascimento na forma humana masculina vai tendencialmente para além da natureza".
Malícia e uma Conexão com a Verdade
Outro atributo da mulher absoluta é a falsidade. Em verdade, Evola afirma que ele é tão essencial que mentir tem sido reconhecido como uma característica essencial na natureza feminina "em todos os tempos e em todos os lugares pela sabedoria popular". Segundo Weininger, essa tendência é devida a sua carência do ser. Sem essência fixa, a maioria das mulheres (e dos homens modernos) não está ligada a nenhuma verdade transcendente, e portanto não há nada contra o que mentir - a Verdade existe apenas quando possui-se substância e valores. Nas palavras de Evola:
"(...)Weininger observou que nada era mais desconcertante para um homem do que a reação de uma mulher quando pega mentindo. Quando questionada sobre o porquê da mentira, ela é incapaz de compreender a pergunta, age assustada, começa a chorar, ou tenta pacificá-lo sorrindo. Ela não consegue compreender o lado ético e transcendente de mentir ou o fato de que a mentira representa um dano ao Ser e, como era reconhecido no antigo Irã, constitui um crime até mesmo pior que o homicídio...A verdade, pura e simples, é que a mulher é predisposta a mentir e a disfarçar seu verdadeiro eu até mesmo quando ela não precisa fazê-lo; esse não é um traço social adquirido na luta pela existência, mas algo ligado a sua natureza mais profunda e genuína".
Essa qualidade de falsidade, ainda que brote da estrutura fundamental das mulheres, não deve implicar que deve ser aceita como um traço dado de todas as mulheres, como alguns dos escritos de Weininger implicam. Pois, tanto quanto o homem, o objetivo último da existência de mulher é conectar-se com e viver pelo transcendente, o que requer uma fixação que não pode admitir a falsidade.
Intuição Feminina, Ética e Lógica Masculinas
Outra idéia que Evola pega de Weininger é a noção de que a mulher absoluta, já que ela carece de ser, também carece de memória, lógica e ética. De modo a explicar isso, Evola distingue entre dois tipos de lógica: lógica quotidiana, que as mulheres podem usar muito bem sucedidamente (ainda que às vezes como um "sofista") e "lógica como um amor à pura verdade e à coerência interior". Essa distinção pode mais comumente ser vista quando as mulheres usam a lógica em discussões como um meio para fins pessoais, ao invés de chegar a uma verdade para além de seus desejos. Evola escreve que:
"(...) a mulher, na medida em que é mulher, jamais conhecerá a ética no sentido categórico de uma lei interior pura distanciada de qualquer conexão empírica, eudemonística, sensitiva, sentimental e pessoal. Nada na mulher que possa ter um caráter ético pode ser separado do instinto, do sentimento, da sexualidade, da 'vida'; ela não pode ter relação com o puro 'ser'."
A ferramenta primária de cognição da mulher não é a lógica, mas intuição e sensitividade.
Ao explicar a memória, Evola volta-se para Henri Bergson, que descreveu dois tipos de memória. Uma é mais comum nas mulheres: a memória conectada ao subconsciente, que pode lembrar sonhos, ter premonições, e inesperadamente lembrar de experiências esquecidas. O segundo tipo de memória, que as mulheres carecem devido a sua natureza fluida, é 'determinada, organizada, e dominada pelo intelecto'."
O Princípio Feminino como Poderoso, Soberano, e Ativo
Geralmente o princípio feminino é descrito como passivo, e o masculino como ativo. Segundo Evola, isso é verdade apenas no plano mais externo. No plano sutil, ele diz, "é a mulher que é ativa e o homem que é passivo (a mulher é 'ativamente passiva' e o homem 'passivamente ativo')". Em termos hindus o espírito impassível (purusa) é masculino, enquanto a matriz ativa de cada forma condicionada (prakriti) é feminina. Assim, para usar a criação de uma criança como um exemplo, o homem dá sua semente, mas é a mulher que ativamente cria e dá origem à criança.
A mitologia suporta o aspecto soberano da mulher. Evola dá os exemplos da deusa terrestre Cibele levada em uma carruagem puxada por dois tigres domados, e a deusa hindu Durga sentada sobre um leão com rédeas em suas mãos. Evola afirma que o homem sabe dessa qualidade soberana da mulher, e "às vezes graças a uma sobrecompensação neurótica inconsciente por seu complexo de inferioridade, ele esbnja diante da mulher uma masculinidade ostentosa, indiferença, ou mesmo brutalidade e desdém. Mas isso garante-lhe a vantagem, ao contrário. O fato de que a mulher às vezes torna-se uma vítima em um nível externo, material sentimental ou social, dando azo a seu instintivo 'medo de amar', não altera a estrutura fundamental da situação".
Associação com o Demônico e Aspiração
Outra qualidade "negativa" da mulher absoluta é aquela da aspiração, no sentido de uma qualidade vampírica, que também é associada com o demônico. Em um nível profano, em uma forma degenerada, isso poderia ser a mulher que está constantemente demandando mais de seu marido e de outros - mais tempo juntos, um carro melhor, uma casa maior, ou mais atenção. Como ela não tem "alma" (como definida acima), ela deve preencher o vácuo dentro dela sugando a força vital de outros em um vampirismo emocional, monetário ou temporal.
Em um nível metafísico, essa qualidade meramente refere-se ao divino feminino, Shakti, puxando Shiva para o mundo da manifestação. Assim, isso não é bom ou ruim, a não ser para Gnósticos ou outras seitas que creem que o mundo criado é maligno. Como Evola afirma, a mulher "está orientada para a manutenção daquela ordem que o Gnosticismo, em um pano-de-fundo dualista, chamou o 'mundo do Demiurgo', o mundo da natureza em oposição àquele do espírito". Esse elemento demônico é expresso na vida atual quando as mulheres puxam os homens para o reino da terra, da natureza e das crianças. Isso é expresso no sexo quando a semente do homem é sugada para dentro da mulher, criando uma criança ligada à natureza. "Ainda que a 'mulher' possa dar a vida," Evola escreve," ela fecha ou tende a fechar o acesso para aquilo que está além da vida".
Em algumas doutrinas orientais, a semente do homem é pensada como sendo a virilidade espiritual - daí a formação de seitas que ensinam os homens a reter essa força para alcançar a liberação ao invés de gastá-la através da ejaculação. Mulheres apropriadamente treinadas são ditas capazes de capturar essa essência durante o sexo, então seduzindo o homem em desistir de sua virilidade.
O aspecto positivo desse traço está na habilidade feminina de superá-lo, mais comumente seguindo o caminho da mãe ou da amante. Nas ações requeridas por esses caminhos (se seguindo-os em uma atitude de auto-sacrifício e não de auto-engrandecimento), ela não mais drena os outros, mas ao invés aprende a construir uma força vital dentro de si através da renúncia dos desejos. Pelo abandono do controle do ego/personalidade por ao invés estar devotada a outros, a mulher é capaz de fixar a si mesma no transcendente.
Como as outras qualidades da mulher absoluta, aquela da aspiração também pode ser encontrada no homem, especialmente na Kali Yuga. Evola refere-se às práticas sexuais encontradas no Taoísmo chinês, na Índia, e Tibet, onde o homem suga a energia vital feminina de uma mulher durante o sexo, uma técnica que ele descreve como beirando o "vampirismo 'psíquico' masculino".
O Valor da Mulher Absoluta no Mundo Moderno
Na Idade de Ouro, nós podemos imaginar que os elementos metafísicos compreendendo uma pessoa manifestaram-se do modo apropriado. Em tal época, as classes mais altas deram origem ao povo mais elevado; a raça era indicativa de uma qualidade interior correspondente; a beleza exterior atestava uma beleza interior; e o gênero físico alinhava-se com as qualidades do homem ou mulher absolutos.
Mas na Kali Yuga, há párias nas classes mais altas, homems que agem como mulheres, e homens de linhagem ária que não incorporam quaisquer das virtudes atribuídas a sua raça. Como Evola diz, é possível para uma pessoa ser de um sexo diferente fisicamente do que eles são na alma. Esses casos são similares àqueles nos quais indivíduos de uma raça "possuem características psíquicas e espirituais de outra raça".
Portanto, os homens hoje podem não possuir inatamente qualquer semente viril, tanto quanto as mulheres modernas não expressam necessariamente o princípio feminino absoluto. Lendo as obras de Evola, então, nós não devemos interpretar erroneamente o que ele diz sobre o homem e mulher absolutos como correspondendo com homens e mulheres individuais de hoje. Homens e mulheres modernos são quase completamente removidos dos aspectos mais profundos de si mesmos, funcionando apenas como personalidades. Assim, o sexo ou casta de uma pessoa tem pouca importância em determinar vocações ou relações sociais. Que relevância, então, as descrições de Evola do homem e mulher absolutos tem no mundo moderno?
Uma resposta é encontrada na Angst existencial que definiu o século XX. Martin Heidegger escreveu da vida inautêntica, e Jean-Paul Sartre da má-fé; a maioria das pessoas hoje ainda enquadram-se na descrição de mera personalidades, carecendo conexões divinas ou dos meios para encontrá-las. Em um mundo que perdeu seus valores e sua conexão com a Tradição, descobrir esses princípios em nossas naturezas interiores torna-se ainda mais importante. Examinando a obra de Evola, e a de outros Tradicionalistas, nós podemos encontrar nosso caminho de volta para nossos verdadeiros eus, a verdadeira relação entre os sexos, e uma conexão com o transcendente. 

16/09/2011

Mulheres Fortes

por Michael Polignano



“Você simplesmente tem medo de mulheres fortes!” Não consigo contar a quantidade de vezes que escutei esta acusação sendo lançada aos homens que rompem com suas namoradas depois de cansarem-se de suas posturas feministas e excêntricas.

Eu confesso: tenho medo de “mulheres fortes”. Há boas razões para não gostar delas e até mesmo para temê-las.

Vamos analisar a corrente definição de “mulheres fortes”. “Mulheres fortes” não são aquelas que podem erguer objetos pesados, carregar cestas em suas cabeças e assim por diante. “Mulheres fortes” não são aquelas que podem agüentar com dignidade as tristezas da vida e da morte. “Mulheres Fortes” não são aquelas que, além do fardo da maternidade, heroicamente assumem as responsabilidades dos pais que morreram, são disfuncionais, divorciados ou simplesmente ausentes.

Não, o que hoje se quer dizer com “mulheres fortes” é: mulheres que podem fazer qualquer coisa e tudo aquilo que um homem pode; tão bem quanto, ou até mesmo melhor e, desta forma, não precisam do homem. Como diz o ditado: uma “mulher forte” precisa de um homem tanto quanto um peixe precisa de uma bicicleta. (Certamente esta é uma das mais feias e estúpidas analogias que já atingiram o sublime status de cliché).

Mas é bom ser necessário: necessário emocionalmente, não somente para as tarefas físicas, como levar o lixo para fora, matar aranhas e abrir tampas de potes persistentes. Que homem em seu perfeito juízo preferiria; uma mulher que não precisa dele, ou uma que precisa? O único tipo de homem que prefere uma mulher que não necessita dele é aquele que também não necessita dela. Ela até pode ser útil a ele por um tempo, para o sexo, ou um companheirismo superficial. Mas, por que ele iria arriscar um comprometimento emocionalmente profundo – por que iria arriscar que necessitasse dela – quando ela constantemente insiste que, de forma alguma, precisa dele?

Homens são naturalmente promíscuos e eles vão colocar-se com “mulheres fortes” enquanto o sexo for bom. Mas os homens também são naturalmente românticos. Estou convencido de que os homens possuem sentimentos mais profundos por suas parceiras do que as mulheres têm pelos seus. (Mulheres reservam seus sentimentos mais profundos para suas crianças). Homens são desta forma, emocionalmente mais vulneráveis do que as mulheres e eles irão, naturalmente, ser cautelosos em comprometerem-se emocionalmente com as “mulheres fortes”, que são muito mais prováveis de colocá-los em um inferno emocional somente para provar quão “fortes” elas são. Por isso, é comum que “mulheres fortes” tenham parceiros, mas é incomum que estejam casadas.

É simplesmente falso, de forma plena, que as mulheres possam fazer tudo o que um homem faz, ou ainda melhor. Sim, há mulheres excepcionalmente fortes e homens excepcionalmente fracos. Mas, na média, os sexos diferem em formas incontáveis. Assim, é verdadeiro dizer que o homem comum pode ultrapassar a mulher comum em incontáveis atividades, assim como a mulher comum pode ter um desempenho melhor que o homem comum em incontáveis outras. Além disso, em qualquer casal, há sempre algumas coisas que o homem pode fazer melhor do que a mulher e outras que a mulher pode fazer melhor do que o homem.

Nunca conheci um homem que fosse obcecado em esmiuçar todas as coisas que sua namorada pensasse fazer melhor do que ele, para que pudesse provar a ela que estava errada. Somente sei de uma coisa: certamente eu não o chamaria de um homem forte. Além disso, posso imaginar que sua namorada se cansaria rapidamente de suas tentativas de ser melhor do que ela na cozinha ou no bordado. Depois de certo tempo, penso que ela iria achar ele um ser francamente desprezível. E quando ela finalmente acabar com ele, imagino que ele estará na porta da cozinha, de avental e preparando no forno o perfeito suflê, erguendo-o ao alto em triunfo e gritando, “Você simplesmente tem medo de homens fortes!”

“Mulheres fortes” são, na realidade, as mais inseguras, triviais e competitivas ao nosso redor. E estas são fraquezas, e não forças.

Nenhum homem quer uma mulher que constantemente compete com ele e procura por suas fraquezas. Os homens tornam a vida competitiva e insegura o suficiente para seus companheiros homens. Então, eles naturalmente querem que seus relacionamentos com as mulheres sejam paraísos livres do constante complexo de superioridade. Mas as “mulheres fortes” não permitem isso.

Outro problema com as “mulheres fortes” é que elas tendem a imitar concepções errôneas do comportamento masculino. Elas podem imitar a competitividade masculina, mas não as formas masculinas de camaradagem, cortesia e irmandade que dão à competição alguma humanidade. Como poderiam elas, quando todas estas virtudes comunitárias e suaves são associadas com a feminilidade que as “mulheres fortes” estão tão preocupadas em superar?

“Mulheres fortes” fazem-se irritantes pelo fato de que injetam competição onde ela não é bem vinda. Elas tornam-se ridículas porque inevitavelmente falham em algumas de suas tentativas para ultrapassarem seus homens. Elas tornam-se desprezíveis pelo fato de que chantageiam seus homens em deixá-las vencer algumas rodadas esperando que, talvez, eles tirem esta competitividade maldita de seu sistema.

O que é uma “mulher forte”? Uma criatura que abandonou as melhores características de seu próprio sexo em troca das piores características do outro. Isto é algo que deve ser temido.

15/09/2011

Socialismo e Capitalismo: Irmãos Siameses

por Eduard Limonov

Em 1988, enquanto redigia o esboço de meu livro "Sanatório de Disciplina", acabei por manejar vários dicionários ao mesmo tempo. Recordo com assombro a definição de "Capitalismo" proposta pelo dicionário francês "Petite Robert": "Regime social onde os meios de produção, fábricas e instalações estão sujeitos à propriedade privada". Tal definição parecia ter saído da pena de dom Karl Marx. Porém quiçá não deveria ter surpreendido-me; é bem conhecido que Marx escreveu uma série de artigos para a "British Enciclopedy". Minha primeira reação foi a de buscar a mesma palavra em outros dicionários e enciclopédias. Em todas as partes, as muitas definições de "Capitalismo" estavam redatadas segundo a terminologia marxiana. Resulta que o capitalismo teve necessidade de olhar-se no espelho do marximo para ver a si mesmo. Não dispunha de outro espelho.

Pensando e pensando, foi fácil constatar que socialismo (e o marxismo somente é uma forma radical de socialismo) e capitalismo estão ambos orientados pela definição de propriedade. Os dois sistemas priorizam as relações entre propriedade e capital. Sob o capitalismo a propriedade e o capital pertencem, como já foi dito, às pessoas privadas, e sob o socialismo a propriedade e o capital pertencem aos trabalhadores - aos operários - ou seja, ao proletariado. Tudo parece simples, não?

Seguindo essa investigação elementar, esclarecemos que antes do surgimento do socialismo radical de Marx, o capitalismo não chamava-se "o capitalismo". Em geral, o capitalismo não denominava-se de nenhuma maneira, por não ser todavia um sistema socioeconômico diferenciado. Os primeiros "capitalistas" apareceram na Inglaterra, Holanda, norte da Itália (Milão), porém nem chamavam-se nem tinham consciência de capitalistas. Denominavam-se "negociantes", "mercadores", "comerciantes". Este tipo de sujeitos trabalhavam nos estados do regime estatal monárquico. Não era infrequente que os reis pudessem dispor das grandes somas de dinheiro (em qualidade de dívida) das que dispunham os comerciantes, para financiar uma guerra por exemplo, e não devolver nunca tais somas. A colaboração entre o mundo "dos negócios" e o mundo do poder começou antecipadamente nos estados protestantes: na Inglaterra e nos Estados Unidos da América. O emigrante Karl Marx, doutor alemão de origem judia, viveu a maior parte de sua vida em Londres, no epicentro do primeiro capitalismo, onde morreu e foi felizmente enterrado em seu cemitério. Durante 70 anos de poder soviético, os discípulos soviéticos de Marx peregrinaram a sua tumba.

Na segunda metade do século XVIII, após a conquista britânica da Índia, os ingleses tiveram acesso a muitas e grandes riquezas: pedras preciosas, ouro; converteram-se em possuidores de grandes plantações de algodão. Esse saque da Índia fez possível um próspero e ativo negócio na Grã-Bretanha. Mais riquezas, mais matérias-primas. Os valores materiais saqueados e as matérias-primas saqueadas fizeram possível a Revolução Industrial. Recordemos que as primeiras empresas "capitalistas" da Inglaterra foram as máquinas de tear. Os "luditas", os ativistas opostos à Revolução Industrial, destruíam, precisamente não qualquer máquina, senão concretamente as máquinas de tear, já que privavam de seu salário a até então florescente indústria dos artesãos-tecelãos. Ao menos assim relatava-o o Manual Soviético de História. E relatava-o loquazmente, pois falava sobre algo querido e valioso: sobre o capitalismo. O marxismo não tem nada a fazer sem o capitalismo.

Marx foi sobreatual e superatual. Até mesmo adiantado. Descreveu perfeitamente em "O Capital" um fenômeno que ainda não existia na Inglaterra. Somente existiam seus elementos. Marx foi um romântico "negro". O "Manifesto Comunista", publicado em 1814, não é por acaso uma obra romântica? "Um fantasma recorre a Europa, o fantasma do comunismo..." A literatura romântica ama os relatos sobre espíritos, os fantasmas abarrotam as novelas góticas. Não pretendo brincar sobre o sério erudito que foi Marx. Quero dizer que Karl Marx apressou-se ao descobrir o capitalismo. Realmente, o capitalismo como fenômeno socioeconômico não apareceu senão depois da morte de Marx. Quiçá, inclusive, um pouco mais tarde: depois do êxito da Revolução Russa que realizou-se sob a bandeira do marxismo. Foi então quando todo o mundo teve consciência da existência do capitalismo. Sem o êxito convincente da Revolução Russa, toda a atividade de Marx, todas as suas convenções, as diversas internacionais não seriam senão literatura gótica e tediosa. A partir da Revolução Russa estabeleceram-se várias sociedades, diferentes organizações e partidos políticos. Os historiadores costumam dizer que a Rússia não era um país desenvolvido capitalista, que seu proletariado era pouco numeroso no momento da revolução. Porém, não obstante, a primeira revolução proletária realizou-se na Rússia apesar de todas as regras postuladas por Marx, que havia previsto o início de sua Revolução Proletária Mundial na Inglaterra. E ademais realizou-se no país menos simpático a Karl Marx. A Rússia aborrecia a Marx, talvez porque nos ambientes dos emigrados em Londres costumava encontrar-se com certo senhor russo muito enérgico e irritante: o teórico anarquista Mikhail Bakunin. Talvez de suas colisões com Bakunin nascesra a opinião sarcástica de Marx sobre os russos: "Uma mescla da psicologia do escravo russo e do conquistador mongol". Os teóricos marxistas ortodoxos tem-se visto confusos diante da circunstância de que a primeira revolução socialista não ocorresse em um país capitalista. Assim surgiu a primeira explicação segundo a qual a Revolução Russa de 1917 foi uma revolução burguesa; e se seu primeiro estágio - o de Fevereiro - foi uma revolução burguesa clássica, não foi até Outubro quando radicais tomaram o poder. Sabemos que todas as revoluções são realizadas pelos marginais. E portanto sabemos quem realizou essa revolução. E também é sabido sob que bandeira realizou. Para nós é sumamente importante saber que em 1917 a Rússia não era capitalista. O poder pertencia exclusivamente ao czar, o regime social chamava-se "monarquia", e os negociantes russos eram certamente muito ricos, porém não detinham o poder. A maioria da população estava constituída por camponeses depauperados. Surge então uma pergunta: quê países eram capitalistas nesse momento? Quer dizer, onde governava o capital (financeiro ou industrial)? Temos uma primeira resposta: tais países não existiam no globo terrestre durante os tempos de Marx. E tampouco existiam durante os tempos de Lênin. As fundições de aço de Krupp eram muito importantes na Alemanha de Wilhelm I e Wilhelm II, porém Krupp não governava a Alemanha. E a Inglaterra (onde começou a Revolução Industrial) era uma monarquia parlamentar. Ali não governavam os capitalistas. Quer dizer, Marx adiantou-se talvez em demasia. E Lênin pôde demonstrar a existência do capitalismo como o regime social porque seu socialismo marxista venceu na contenda. "Destruímos a monarquia e o capitalismo", disseram os bolcheviques. Destruíram a monarquia, porém o capitalismo russo não existia.

Em 1997 (se não equivoco-me) no centro da imprensa da galeria Trietiakovskaya (de Trietiakov) ocorreu o encontro com George Soros. Foi um encontro para reunir aos grandes financistas russos e dos membros do "Instituto para a Sociedade Aberta" encabeçado por este filantropo norteamericano. Ali fomos Aleksandr Dugin e eu mesmo, e ambos intervimos no foro inscrevendo-nos de antemão, e inscrevendo também uma cópia prévia de nossas intervenções. Soros foi avisado tardiamente, quando alguém releu com mais cuidade a lista de interventores: "Vão vir dois revolucionários perigosos?" - contam que disse. "Essa não! Temos que impedi-los!" Porém era tarde. Nesse momento, Dugin e eu mesmo já estávamos comodamente instalados em nossas poltronas.

Oh, como animou-se Soros durante nossas intervenções! Despertou-se momentaneamente do seu sono indiferente, esticava-se em sua cadeira, ajeitava os óculos. Sorria, aproximava seu ouvido. Somente nós dois - únicos oponentes dos 48 interventores - resultamos interessantes para dom George. Todos os demais eram empregados do "Fundo Soros" na Rússia, junto a algum intelectual que havia recebido ajuda de Soros. A seu lado sentava-se Pedro Aven, ex-ministro e diretor do grupo financeiro "Alfa". Durante minha intervenção via claramente como diante dos meus olhos renascia um morto. "A Sociedade Aberta" de Soros exige o desaparecimento de pessoas como eu. Porém sem inimigo a vida acaba sendo muito tediosa. E Soros estava feliz porque eu estava vivo e desde a segunda fileira estava dizendo-lhe algumas coisas que eram-lhe muito desagradáveis. Com os grossos cristais de seus óculos, seu não muito bom inglês, seu nariz redondo, este capitalista milionário recordava-me meu primeiro editor - o judeu romeno David Dascal. Em 1979, em Nova Iorque, Dascal aceitou publicar meu primeiro romance em russo ("Descobridores e Conquistadores"). Este tipo de homens somente distinguem-se pelo número de dólares embolsados. Os conquistadores atlantistas da Europa Oriental apareceram nos fins dos anos 80, e não necessitaram de nenhuma máscara para esconder seu rosto.

Porém voltemos à questão do socialismo e do capitalismo. Em seu último livro, Soros - o financista e o filantropo e, como dizem, o intrépido especulador que conseguiu desvalorizar as divisas da Indonésia - aparece quase como um inimigo do capitalismo. Enuncia suas dúvidas em relação ao capitalismo (por desgraça, não posso citar o livro de Soros. Ontem, o chefe do corredor negou-me uma petição sobre uma lâmpada de mesa que um camarada havia depositado para mim no economato da prisão). Em todo caso, Soros declara-se inimigo do capitalismo na Rússia. Ao mesmo tempo, o filantropo costuma derramar milhões de dólares para apoiar a atividade das personalidades russas dedicadas à ciência, para publicar os manuais em russo que explicam aos alunos como pode organizar-se o mundo segundo Soros. É um homem com uma certa mania de grandeza. E graças ao dinheiro todos os seus desejos são possíveis.

Ao final daquela conferência de imprensa Soros pôde pronunciar seu discurso. Foi então quando cravou seu olhar fixamente em mim. Pois eu havia dito-lhe, ainda mais insolentemente que Dugin, que ele era nosso inimigo e que nós lutaríamos contra ele. Soros recordava-me a Zuganov. Em seu discurso toda sua terminologia era socialista, marxista, como no dicionário Petite Robert. Marcando o compasso de seu discurso, Pedro Aven sorria alegremente.

Em 1993, durante minha candidatura pelo distrito eleitoral nº172, na região de Tver, respondia por uma emissora de rádio local às perguntas dos eleitores: sou favorável à propriedade privada ou sou contra? Não respondia onomatopeicamente, com simples "sim" ou "não"; respondia que sou por uma forma efetiva de propriedade. É importante que a fábrica seja fonte de benefício, que os operários tenham um bom salários, que os impostos sejam pagos ao Estado. Pois é indiferente saber quem é o possuidor da fábrica (uma pessoa, uma coletividade operário ou os acionistas). Hoje em dia sigo opinando assim sobre esses horríveis edifícios de formigueiro instalados nos extremos das cidades chamados fábricas. Durante minha juventude, parti, carreguei, fundi metais e minerais em semelhantes edifícios, por isso mesmo conheço-os de sobra. Ninguém iria ali voluntariamente, onde ou faz muito calor ou frio demasiado, onde há muitas correntes de ar que arrastam um odor malsão. Por isso mesmo não há que discutir o problema da propriedade (quem tem as ações da empresa, este senhor vestido de "Gucci" ou estas dezenas de homens vestidos como vaqueiros?). Há que falar do problema da liberação da humanidade de uma coisa tão repugnante como são as fábricas.

Em 1988, em "Sanatório de Disciplina", eu havia previsto a aparição dos grupos ecológicos radicais que defenderiam suas convicções com as armas em mãos. Ainda que semelhantes grupos agressivos ainda não haja sido registrados pelo governo, nem pelos meios de informação de massas, estou seguro de haver previsto o futuro. Estou seguro também de que a questão da forma da propriedade das empresas, das fábricas e dos meios de produção em suma, já não é revolucionária (ninguém marchará nestes tempos sob o lema "As fábricas para os operários!"), porque tal questão é já um absurdo.

Não há por que assombrar-se. Os costumes da humanidade mudam. As leis de Manú castigavam com pena de morte a quem alterasse as demarcações de fronteira. Agora, problemas semelhantes decidem-se mediante o mútuo intercâmbio de insultos e palavrotas na administração rural.

Desde um princípio, a colisão entre capitalismo e socialismo foi uma ficção inventada pelo professor Marx. Era uma mescla de seus conhecimentos de economia e do balde de sua fantasia. Em realidade, o conquistador Marx necessitava de uma classe revolucionária (um sujeito revolucionário e um povo são a mesma coisa). Efetivamente se tu mesmo despertas de teu sono, se nunca abandonas o deserto, ninguém notará tua ação. Porém conscientizar uma classe, entregar a um povo a Terra Prometida, é toda uma façanha.

Em sua aparição, o proletariado era pobre e mal pago. Porém esse problema foi temporal, como todos os outros problemas semelhantes (mais salário, mais horas, o número de jornadas). Tais problemas são decididos na prática das relações. Por certo, a revolução "proletária" na Rússia foi o fator que mais ajudou a elevar o nível de vida dos operários ocidentais. A Revolução Russa esmagava a psique dos governos dos países euroamericanos. Para evitar qualquer mostra de extremismo por parte dos operários, para que não mostrassem nenhuma extremidade, decidiu-se elevar substancialmente seu nível de vida. Do contrário, poderia chegar a revolução proletária.

É muito interessante comparar os lemas dos operários e dos estudantes durante o Maior de 68 parisiense. Os operários expressavam-se mediante lemas sucintos, geralmente numéricos: "40", "60", "1000". Um bom estilo que oculta um horizonte estreito. Reivindicavam a semana laboral de 40 horas, a aposentadoria aos 60 anos e um salário mínimo de 1000 francos.

Os estudantes pronunciaram-se mediante lemas geniais: "Somos realistas, exigimos o impossível!", "É proibido proibir", "A imaginação ao poder!"

Quando Zuganov e Soros dizem as mesmas coisas sobre a propriedade, quando os possuidores de alguma corporação transnacional são milhões de acionistas e pode ser considerada como a propriedade coletiva, a fronteira entre socialismo e capitalismo esfuma-se e perde categoria existencial. Nunca teve-a. Como não existiu o capitalismo, agora não há socialismo. Um tipo astuto Marx: apenas inventou a terminologia. E sobre a vitória de Lênin sob a bandeira do marxismo podemos dizer que foi um marginal genial que reuniui os materiais humanos valiosos; Lênin teria vencido sob qualquer bandeira. E uma nova observação: eu vivi na França um ano e meio durante o regime direitista de Giscard D'Estein e durante dez anos sob o socialista Mitterrand. E a única diferença perceptível entre os dois regimes consistiu e que sob Giscard o "Le Figaro" costumava publicar, em sua última página, as fotografias dos pouquíssimos delinquentes executados (2, a cada ano e meio). Nos tempos dos socialistas foi abolida a pena de morte e as fotografias desapareceram.

Assim esclarece-se, pelas diferentes memórias publicadas, que não foram poucos os companheiros de Lênin que leram o primeiro tomo de "O Capital" começando pelo final. As reflexões do professor Marx não eram para eles, gente de ação, necessárias. Necessitavam de uma bandeira bonita, o mais vistosa possível, e de lemas atrantes. O que pode ser mais vistoso que uma bandeira vermelha?

Por quê degeneraram os partidos comunistas e socialistas? Porque operam com as mesmas categorias que os liberais; chamam aos mesmos fins. Porém se nossos inimigos ideológicos dão sermões sobre a produtividade do trabalho, seria coisa de imbecis dar sermões sobre a maior produtividade do trabalho. Ademais, eles conhecem muito melhor as temáticas do trabalho mecânico e da produtividade (são seu mundo). Há que dar sermões sobre outros campos: a fraternidade humana, a liberação do homem do trabalho mecânico, a estética e a arte, o prazer sexual, o direito de autodefesa.