15/09/2011

Socialismo e Capitalismo: Irmãos Siameses

por Eduard Limonov

Em 1988, enquanto redigia o esboço de meu livro "Sanatório de Disciplina", acabei por manejar vários dicionários ao mesmo tempo. Recordo com assombro a definição de "Capitalismo" proposta pelo dicionário francês "Petite Robert": "Regime social onde os meios de produção, fábricas e instalações estão sujeitos à propriedade privada". Tal definição parecia ter saído da pena de dom Karl Marx. Porém quiçá não deveria ter surpreendido-me; é bem conhecido que Marx escreveu uma série de artigos para a "British Enciclopedy". Minha primeira reação foi a de buscar a mesma palavra em outros dicionários e enciclopédias. Em todas as partes, as muitas definições de "Capitalismo" estavam redatadas segundo a terminologia marxiana. Resulta que o capitalismo teve necessidade de olhar-se no espelho do marximo para ver a si mesmo. Não dispunha de outro espelho.

Pensando e pensando, foi fácil constatar que socialismo (e o marxismo somente é uma forma radical de socialismo) e capitalismo estão ambos orientados pela definição de propriedade. Os dois sistemas priorizam as relações entre propriedade e capital. Sob o capitalismo a propriedade e o capital pertencem, como já foi dito, às pessoas privadas, e sob o socialismo a propriedade e o capital pertencem aos trabalhadores - aos operários - ou seja, ao proletariado. Tudo parece simples, não?

Seguindo essa investigação elementar, esclarecemos que antes do surgimento do socialismo radical de Marx, o capitalismo não chamava-se "o capitalismo". Em geral, o capitalismo não denominava-se de nenhuma maneira, por não ser todavia um sistema socioeconômico diferenciado. Os primeiros "capitalistas" apareceram na Inglaterra, Holanda, norte da Itália (Milão), porém nem chamavam-se nem tinham consciência de capitalistas. Denominavam-se "negociantes", "mercadores", "comerciantes". Este tipo de sujeitos trabalhavam nos estados do regime estatal monárquico. Não era infrequente que os reis pudessem dispor das grandes somas de dinheiro (em qualidade de dívida) das que dispunham os comerciantes, para financiar uma guerra por exemplo, e não devolver nunca tais somas. A colaboração entre o mundo "dos negócios" e o mundo do poder começou antecipadamente nos estados protestantes: na Inglaterra e nos Estados Unidos da América. O emigrante Karl Marx, doutor alemão de origem judia, viveu a maior parte de sua vida em Londres, no epicentro do primeiro capitalismo, onde morreu e foi felizmente enterrado em seu cemitério. Durante 70 anos de poder soviético, os discípulos soviéticos de Marx peregrinaram a sua tumba.

Na segunda metade do século XVIII, após a conquista britânica da Índia, os ingleses tiveram acesso a muitas e grandes riquezas: pedras preciosas, ouro; converteram-se em possuidores de grandes plantações de algodão. Esse saque da Índia fez possível um próspero e ativo negócio na Grã-Bretanha. Mais riquezas, mais matérias-primas. Os valores materiais saqueados e as matérias-primas saqueadas fizeram possível a Revolução Industrial. Recordemos que as primeiras empresas "capitalistas" da Inglaterra foram as máquinas de tear. Os "luditas", os ativistas opostos à Revolução Industrial, destruíam, precisamente não qualquer máquina, senão concretamente as máquinas de tear, já que privavam de seu salário a até então florescente indústria dos artesãos-tecelãos. Ao menos assim relatava-o o Manual Soviético de História. E relatava-o loquazmente, pois falava sobre algo querido e valioso: sobre o capitalismo. O marxismo não tem nada a fazer sem o capitalismo.

Marx foi sobreatual e superatual. Até mesmo adiantado. Descreveu perfeitamente em "O Capital" um fenômeno que ainda não existia na Inglaterra. Somente existiam seus elementos. Marx foi um romântico "negro". O "Manifesto Comunista", publicado em 1814, não é por acaso uma obra romântica? "Um fantasma recorre a Europa, o fantasma do comunismo..." A literatura romântica ama os relatos sobre espíritos, os fantasmas abarrotam as novelas góticas. Não pretendo brincar sobre o sério erudito que foi Marx. Quero dizer que Karl Marx apressou-se ao descobrir o capitalismo. Realmente, o capitalismo como fenômeno socioeconômico não apareceu senão depois da morte de Marx. Quiçá, inclusive, um pouco mais tarde: depois do êxito da Revolução Russa que realizou-se sob a bandeira do marxismo. Foi então quando todo o mundo teve consciência da existência do capitalismo. Sem o êxito convincente da Revolução Russa, toda a atividade de Marx, todas as suas convenções, as diversas internacionais não seriam senão literatura gótica e tediosa. A partir da Revolução Russa estabeleceram-se várias sociedades, diferentes organizações e partidos políticos. Os historiadores costumam dizer que a Rússia não era um país desenvolvido capitalista, que seu proletariado era pouco numeroso no momento da revolução. Porém, não obstante, a primeira revolução proletária realizou-se na Rússia apesar de todas as regras postuladas por Marx, que havia previsto o início de sua Revolução Proletária Mundial na Inglaterra. E ademais realizou-se no país menos simpático a Karl Marx. A Rússia aborrecia a Marx, talvez porque nos ambientes dos emigrados em Londres costumava encontrar-se com certo senhor russo muito enérgico e irritante: o teórico anarquista Mikhail Bakunin. Talvez de suas colisões com Bakunin nascesra a opinião sarcástica de Marx sobre os russos: "Uma mescla da psicologia do escravo russo e do conquistador mongol". Os teóricos marxistas ortodoxos tem-se visto confusos diante da circunstância de que a primeira revolução socialista não ocorresse em um país capitalista. Assim surgiu a primeira explicação segundo a qual a Revolução Russa de 1917 foi uma revolução burguesa; e se seu primeiro estágio - o de Fevereiro - foi uma revolução burguesa clássica, não foi até Outubro quando radicais tomaram o poder. Sabemos que todas as revoluções são realizadas pelos marginais. E portanto sabemos quem realizou essa revolução. E também é sabido sob que bandeira realizou. Para nós é sumamente importante saber que em 1917 a Rússia não era capitalista. O poder pertencia exclusivamente ao czar, o regime social chamava-se "monarquia", e os negociantes russos eram certamente muito ricos, porém não detinham o poder. A maioria da população estava constituída por camponeses depauperados. Surge então uma pergunta: quê países eram capitalistas nesse momento? Quer dizer, onde governava o capital (financeiro ou industrial)? Temos uma primeira resposta: tais países não existiam no globo terrestre durante os tempos de Marx. E tampouco existiam durante os tempos de Lênin. As fundições de aço de Krupp eram muito importantes na Alemanha de Wilhelm I e Wilhelm II, porém Krupp não governava a Alemanha. E a Inglaterra (onde começou a Revolução Industrial) era uma monarquia parlamentar. Ali não governavam os capitalistas. Quer dizer, Marx adiantou-se talvez em demasia. E Lênin pôde demonstrar a existência do capitalismo como o regime social porque seu socialismo marxista venceu na contenda. "Destruímos a monarquia e o capitalismo", disseram os bolcheviques. Destruíram a monarquia, porém o capitalismo russo não existia.

Em 1997 (se não equivoco-me) no centro da imprensa da galeria Trietiakovskaya (de Trietiakov) ocorreu o encontro com George Soros. Foi um encontro para reunir aos grandes financistas russos e dos membros do "Instituto para a Sociedade Aberta" encabeçado por este filantropo norteamericano. Ali fomos Aleksandr Dugin e eu mesmo, e ambos intervimos no foro inscrevendo-nos de antemão, e inscrevendo também uma cópia prévia de nossas intervenções. Soros foi avisado tardiamente, quando alguém releu com mais cuidade a lista de interventores: "Vão vir dois revolucionários perigosos?" - contam que disse. "Essa não! Temos que impedi-los!" Porém era tarde. Nesse momento, Dugin e eu mesmo já estávamos comodamente instalados em nossas poltronas.

Oh, como animou-se Soros durante nossas intervenções! Despertou-se momentaneamente do seu sono indiferente, esticava-se em sua cadeira, ajeitava os óculos. Sorria, aproximava seu ouvido. Somente nós dois - únicos oponentes dos 48 interventores - resultamos interessantes para dom George. Todos os demais eram empregados do "Fundo Soros" na Rússia, junto a algum intelectual que havia recebido ajuda de Soros. A seu lado sentava-se Pedro Aven, ex-ministro e diretor do grupo financeiro "Alfa". Durante minha intervenção via claramente como diante dos meus olhos renascia um morto. "A Sociedade Aberta" de Soros exige o desaparecimento de pessoas como eu. Porém sem inimigo a vida acaba sendo muito tediosa. E Soros estava feliz porque eu estava vivo e desde a segunda fileira estava dizendo-lhe algumas coisas que eram-lhe muito desagradáveis. Com os grossos cristais de seus óculos, seu não muito bom inglês, seu nariz redondo, este capitalista milionário recordava-me meu primeiro editor - o judeu romeno David Dascal. Em 1979, em Nova Iorque, Dascal aceitou publicar meu primeiro romance em russo ("Descobridores e Conquistadores"). Este tipo de homens somente distinguem-se pelo número de dólares embolsados. Os conquistadores atlantistas da Europa Oriental apareceram nos fins dos anos 80, e não necessitaram de nenhuma máscara para esconder seu rosto.

Porém voltemos à questão do socialismo e do capitalismo. Em seu último livro, Soros - o financista e o filantropo e, como dizem, o intrépido especulador que conseguiu desvalorizar as divisas da Indonésia - aparece quase como um inimigo do capitalismo. Enuncia suas dúvidas em relação ao capitalismo (por desgraça, não posso citar o livro de Soros. Ontem, o chefe do corredor negou-me uma petição sobre uma lâmpada de mesa que um camarada havia depositado para mim no economato da prisão). Em todo caso, Soros declara-se inimigo do capitalismo na Rússia. Ao mesmo tempo, o filantropo costuma derramar milhões de dólares para apoiar a atividade das personalidades russas dedicadas à ciência, para publicar os manuais em russo que explicam aos alunos como pode organizar-se o mundo segundo Soros. É um homem com uma certa mania de grandeza. E graças ao dinheiro todos os seus desejos são possíveis.

Ao final daquela conferência de imprensa Soros pôde pronunciar seu discurso. Foi então quando cravou seu olhar fixamente em mim. Pois eu havia dito-lhe, ainda mais insolentemente que Dugin, que ele era nosso inimigo e que nós lutaríamos contra ele. Soros recordava-me a Zuganov. Em seu discurso toda sua terminologia era socialista, marxista, como no dicionário Petite Robert. Marcando o compasso de seu discurso, Pedro Aven sorria alegremente.

Em 1993, durante minha candidatura pelo distrito eleitoral nº172, na região de Tver, respondia por uma emissora de rádio local às perguntas dos eleitores: sou favorável à propriedade privada ou sou contra? Não respondia onomatopeicamente, com simples "sim" ou "não"; respondia que sou por uma forma efetiva de propriedade. É importante que a fábrica seja fonte de benefício, que os operários tenham um bom salários, que os impostos sejam pagos ao Estado. Pois é indiferente saber quem é o possuidor da fábrica (uma pessoa, uma coletividade operário ou os acionistas). Hoje em dia sigo opinando assim sobre esses horríveis edifícios de formigueiro instalados nos extremos das cidades chamados fábricas. Durante minha juventude, parti, carreguei, fundi metais e minerais em semelhantes edifícios, por isso mesmo conheço-os de sobra. Ninguém iria ali voluntariamente, onde ou faz muito calor ou frio demasiado, onde há muitas correntes de ar que arrastam um odor malsão. Por isso mesmo não há que discutir o problema da propriedade (quem tem as ações da empresa, este senhor vestido de "Gucci" ou estas dezenas de homens vestidos como vaqueiros?). Há que falar do problema da liberação da humanidade de uma coisa tão repugnante como são as fábricas.

Em 1988, em "Sanatório de Disciplina", eu havia previsto a aparição dos grupos ecológicos radicais que defenderiam suas convicções com as armas em mãos. Ainda que semelhantes grupos agressivos ainda não haja sido registrados pelo governo, nem pelos meios de informação de massas, estou seguro de haver previsto o futuro. Estou seguro também de que a questão da forma da propriedade das empresas, das fábricas e dos meios de produção em suma, já não é revolucionária (ninguém marchará nestes tempos sob o lema "As fábricas para os operários!"), porque tal questão é já um absurdo.

Não há por que assombrar-se. Os costumes da humanidade mudam. As leis de Manú castigavam com pena de morte a quem alterasse as demarcações de fronteira. Agora, problemas semelhantes decidem-se mediante o mútuo intercâmbio de insultos e palavrotas na administração rural.

Desde um princípio, a colisão entre capitalismo e socialismo foi uma ficção inventada pelo professor Marx. Era uma mescla de seus conhecimentos de economia e do balde de sua fantasia. Em realidade, o conquistador Marx necessitava de uma classe revolucionária (um sujeito revolucionário e um povo são a mesma coisa). Efetivamente se tu mesmo despertas de teu sono, se nunca abandonas o deserto, ninguém notará tua ação. Porém conscientizar uma classe, entregar a um povo a Terra Prometida, é toda uma façanha.

Em sua aparição, o proletariado era pobre e mal pago. Porém esse problema foi temporal, como todos os outros problemas semelhantes (mais salário, mais horas, o número de jornadas). Tais problemas são decididos na prática das relações. Por certo, a revolução "proletária" na Rússia foi o fator que mais ajudou a elevar o nível de vida dos operários ocidentais. A Revolução Russa esmagava a psique dos governos dos países euroamericanos. Para evitar qualquer mostra de extremismo por parte dos operários, para que não mostrassem nenhuma extremidade, decidiu-se elevar substancialmente seu nível de vida. Do contrário, poderia chegar a revolução proletária.

É muito interessante comparar os lemas dos operários e dos estudantes durante o Maior de 68 parisiense. Os operários expressavam-se mediante lemas sucintos, geralmente numéricos: "40", "60", "1000". Um bom estilo que oculta um horizonte estreito. Reivindicavam a semana laboral de 40 horas, a aposentadoria aos 60 anos e um salário mínimo de 1000 francos.

Os estudantes pronunciaram-se mediante lemas geniais: "Somos realistas, exigimos o impossível!", "É proibido proibir", "A imaginação ao poder!"

Quando Zuganov e Soros dizem as mesmas coisas sobre a propriedade, quando os possuidores de alguma corporação transnacional são milhões de acionistas e pode ser considerada como a propriedade coletiva, a fronteira entre socialismo e capitalismo esfuma-se e perde categoria existencial. Nunca teve-a. Como não existiu o capitalismo, agora não há socialismo. Um tipo astuto Marx: apenas inventou a terminologia. E sobre a vitória de Lênin sob a bandeira do marxismo podemos dizer que foi um marginal genial que reuniui os materiais humanos valiosos; Lênin teria vencido sob qualquer bandeira. E uma nova observação: eu vivi na França um ano e meio durante o regime direitista de Giscard D'Estein e durante dez anos sob o socialista Mitterrand. E a única diferença perceptível entre os dois regimes consistiu e que sob Giscard o "Le Figaro" costumava publicar, em sua última página, as fotografias dos pouquíssimos delinquentes executados (2, a cada ano e meio). Nos tempos dos socialistas foi abolida a pena de morte e as fotografias desapareceram.

Assim esclarece-se, pelas diferentes memórias publicadas, que não foram poucos os companheiros de Lênin que leram o primeiro tomo de "O Capital" começando pelo final. As reflexões do professor Marx não eram para eles, gente de ação, necessárias. Necessitavam de uma bandeira bonita, o mais vistosa possível, e de lemas atrantes. O que pode ser mais vistoso que uma bandeira vermelha?

Por quê degeneraram os partidos comunistas e socialistas? Porque operam com as mesmas categorias que os liberais; chamam aos mesmos fins. Porém se nossos inimigos ideológicos dão sermões sobre a produtividade do trabalho, seria coisa de imbecis dar sermões sobre a maior produtividade do trabalho. Ademais, eles conhecem muito melhor as temáticas do trabalho mecânico e da produtividade (são seu mundo). Há que dar sermões sobre outros campos: a fraternidade humana, a liberação do homem do trabalho mecânico, a estética e a arte, o prazer sexual, o direito de autodefesa.