29/10/2010

A Ideologia Americana

por Francis Parker Yockey

Este individualismo orgânico foi formulado em constituições escritas e em uma literatura político-literária. É típico do espírito dessa literatura a Declaração de Independência. Como fragmentos de Realpolitik este manifesto de 1776 é magistral; aponta para o Futuro, e abraça o Espírito da Época do Racionalismo, que era então predominante na Cultura Ocidental. Porém, no século XX, a parte ideológica dessa declaração é simplesmente fantástica; "Declaramos que essas verdades são evidentes por si mesmas: que todos os homens são criados iguais; que todos são dotados por seu criador de direitos inerentes e inalienáveis; que entre estes se encontram a vida, a liberdade e a busca da felicidade; que para assegurar estes direitos, se instituem os governos entre os homens, derivando-se seus justos poderes do consentimento dos governados; que quando uma forma de governo é contrária a estes fins, o povo tem direito a alterá-lo ou aboli-lo, instituindo um novo governo, que baseie seu fundamento em certos princípios e organize seus poderes de forma tal que seja a mais efetiva para assegurar sua segurança e felicidade". E continuou dizendo, referindo-se à Guerra de Secessão então em curso: "...nos encontramos comprometidos em uma grande guerra civil, para demonstrar que esta nação, ou qualquer nação assim concebida e assim dedicada, pode sobreviver".

Este ideologia continuou até meados do século XX, e inclusive depois da Primeira e da Segunda Guerra Mundiais quando predominava uma perspectiva totalmente diferente e incompatível, foi oferecida ao território de origem da Civilização Ocidental como um modelo a ser imitado. Somente o êxito material, inteiramente fortuito, que sorriu às armas americanas, fez possível que esta ideologia sobrevivesse no decurso de um século que a haveria superiado e, não porque é um instrumento para dividir e desintegrar a Europa, deve ser examinada aqui esta arcaica ideologia.

A Declaração de Independência está saturada do pensamento de Rousseau e Montesquieu. A idéia básica, como em todo Racionalismo, consiste em estabelecer a equação do que deveria ser com o que será. O Racionalismo começa por confundir o racional com o real, e termina por confundir o real com o racional. Este arsenal de "verdades" sobre a igualdade, direitos inalienáveis e inerentes, reflete o espírito crítico emancipado, sem respeito pelos fatos e pela tradição. A idéia de que os governos são "instituídos" com um propósito utilitário, para satisfazer uma demanda de homens "iguais", e que esses homens "iguais" dão seu "consentimento" a uma certa "forma" de "governo", e logo a suprimem quando já não serve para este propósito, é pura poesia racionalista, e não corresponde a nenhum fato que já tenha ocorrido alguma vez em parte alguma. A fonte do governo é a desigualdade dos homens: isto é um fato. A natureza do governo é um reflexo da Cultura, da Nação, e da etapa de desenvolvimento de ambos. Assim, qualquer nação pode ter uma das duas possíveis formas de governo: um governo eficiente ou um governo deficiente. Um governo eficiente leva adiante a Idéia e nação, e não a "vontade das massas", já que esta não existe se a direção é eficiente. A liderança se desintegra, não quando "o povo" racionalmente decide aboli-lo, mas sim quando tal liderança chega a um grau de decadência que derruba a si mesmo. Nenhum governo, em nenhuma parte, está "fundado" em "princípios". Os governos são a expressão de instintos políticos, e a diferença de instintos entre os diferentes povos é a fonte das diferenças em sua prática do governo. Nenhum "princípio" escrito afeta a prática do governo o mínimo que seja, e a única coisa para que servem é para enriquecer o vocabulário das disputas políticas.

Isto é tão verdadeiro para a América como para qualquer outra unidade política que tenha existido em cinco milênios de história das Grandes Culturas. Contrariamente a certo sentimento messiânico existente na América, esta não é completamente singular. Sua morfologia e seu destino podem ser lidos na história de outras colônias, em nossa Cultura, e em outras anteriores.

Na Declaração de Independência, a referência ao governo cujo propósito é assegurar a "segurança" e a "felicidade" da população é uma idiotice racionalista. Governar é o processo de manter em forma a população para a tarefa política, a expressão da Idéia de Nação.

A citação de Lincoln reflete todavia a época do Racionalismo, e na Europa de então ainda se podia sentir e compreender tal ideologia, pois ainda quando Estado, Nação e Tradição continuavam existindo na Europa - ainda que debilitados - sempre houve resistência às ideologias racionalistas, fossem da variedade de Rousseau, de Lincoln, ou de Marx. Nenhuma nação foi nunca "dedicada à uma proposição". As nações são criações de uma Grande Cultura, e em sua última essência são idéias místicas. Sua chegada, suas individualidades, sua forma, sua marcha, tudo, constituem reflexos de altos desenvolvimentos culturais. Dizer que uma nação está "dedicada a uma proposição" é reduzi-la a uma abstração que pode ser plasmada em um quadro-negro para uma demonstração em uma aula de Lógica. Isso é uma caricatura da Nação-Idéia. Falar de tal maneira de uma Nação é insultá-la e rebaixá-la: ninguém morreria nunca por uma proposição lógica. Se tal proposição - que mais além de ser proclamada "evidente" - não é convincente, a força armada não conseguirá que o seja.

A palavra "liberdade" é um dos principais tópicos da ideologia americana. A palavra somente pode ser definida negativamente como liberação de algum freio. Nem mesmo o mais moribundo ideólogo americano advoga por uma total liberdade em relação a qualquer forma de ordem, e paralelamente, nem a mais rígida tirania desejou jamais proibir a tudo. Em um país "dedicado" à "liberdade" os homens foram tirados de suas casas sob a ameaça de prisão, foram declarados soldados e enviados aos seus contrários como medida de "defesa" tomada por um governo que não pediu o "consentimento" de suas massas, sabendo perfeitamente que tal "consentimento" teria sido recusado.

No sentido prático, a liberdade americana significa liberdade perante o Estado, porém é óbvio que isso é mera literatura, toda vez que nunca houve um Estado na América, nem tampouco se sentiu a necessidade de que existisse. A palavra liberdade é, pois, meramente um conceito em uma religião materialista, e não representa nada no mundo dos fatos americanos.

Na ideologia americana é também importante a Constituição escrita adotada em 1789, como resultado do trabalho de Hamilton e Franklin. Seu interesse por ela era prático, já que sua idéia consistia em unificar as treze colônias em uma só unidade. Como união em si não poderia ter sido descrita como um governo, mas sim como uma anarquia regulamentada. As idéias da Constituição estavam inspiradas sobretudo nos escritos de Montesquieu. A idéia da "separação de poderes", particularmente, se deve a este teórico francês. De acordo com dita teoria, os poderes do governo são três: legislativo, executivo e judicial. Como todo o cristalino pensamento racionalista, isto se torna obscuro e confuso quando se aplica na vida Real. Estes poderes somente podem separar-se no papel, porém não na Vida. Nunca estiveram realmente separados na América, ainda que a teoria pretenda que sim, estiveram. Com a irrupção de uma crise interna na terceira década do século XX, todo o poder do governo central foi abertamente concentrado no executivo, e logo se encontraram teorias para abonar este fato, que continuou chamando-se "separação".

As diversas colônias conservaram a maioria dos poderes que lhes interessavam: o poder de fazer suas próprias leis, manter uma milícia e conduzir-se em estado de independência econômica em respeito às outras colônias. A palavra "estado" ("State") foi escolhida para designar aos componentes da União e isto conduziu a novas confusões no pensamento ideológico, haja vista que as formas estatais européias, nas quais o Estado era uma Idéia, foram tomadas como um equivalente dos "estados" americanos, os quais eram, acima de tudo, unidades territoriais econômico-legais, sem soberania, finalidade, destino, nem propósito.

Na União não havia soberania, quer dizer, nem se quer a contrapartida legal da Idéia-Estado. O governo central não era soberano, como tampouco o era nenhum dos governos estatais. A soberania estava representada pelo acordo de 2/3 dos estados e pelo legislativo central, ou seja, dito em outras palavras: uma abstração pura. Se tivessem havido cinqüenta, ou cem milhões de eslavos, ou inclusive de índios, nas fronteiras americanas, teria havido uma noção diferente acerca dessas coisas. Toda a ideologia americana pressupunha a situação geopolítica da América. Não haviam potências vizinhas, nem populações hostis, fortes, numerosas e organizadas. Não haviam perigos políticos...somente um amplo território semi-vazio, apenas ocupado por selvagens.

Também foi importante na ideologia americana o sentimento de universalidade expresso no citado discurso de Lincoln. Apesar de que a Guerra de Secessão não teve nada a ver com qualquer classe de ideologia e, em qualquer caso, a exposição razoável e legalista dos Sulistas fossem mais conseqüentes que a idéia Ianque. Lincoln se sentiu obrigado a injetar uma ideologia nessa Guerra. O oponente não poderia ser, simplesmente, um rival político, que buscava conquistar os mesmos poderes que o Ianque; devia ser um inimigo total, resolvido a destruir a ideologia americana. Este sentimento informou todas as guerras americanas a partir de então: todo inimigo político foi considerado ipso facto como um oponente ideológico, ainda quando o inimigo en questão não mostrara qualquer interesse na ideologia americana.

Na época das guerras mundiais, esta tendência a misturar as ideologias com a política se estendeu à escala mundial. A potência que a América escolhia por inimiga era, forçosamente, inimiga da "liberdade", da "democracia", e de todas as demais palavras, mágicas porém sem sentido, da mesma categoria. Isto conduziu a estranhos resultados. Qualquer potência lutando contra aquela que a América havia gratuitamente escolhido como inimiga se convertia ipso facto em uma potência amante da "liberdade". Assim, tanto a Rússia dos Romanov e como a Rússia Bolchevique foram potências amantes da "liberdade", em seus momentos.

A ideologia americana levou a América a considerar como aliados a países que não devolveram o cumprimento, porém o ardor americano não se resfriou por isso. Esta classe de política somente pode ser considerada na Europa como adolescente e em verdade, toda pretensão de que os problemas e formas do século XX possam ser descritos de acordo com uma ideologia racionalista do século XIX é, imatura ou, para dizê-lo mais claramente, idiota.

No século XX, quando o tipo de ideologia racionalista já havia sido descartado pela avançada Civilização Ocidental, a universalização americana da ideologia se transformou em messianismo: a idéia de que a América deve salvar o mundo. O veículo da salvação deve ser uma religião materialista na qual a "democracia" tome o lugar de Deus, a "Constituição" o da Igreja, os "princípios de governo" o dos dogmas religiosos, e a idéia da liberdade econômica o da Graça de Deus. A técnica da salvação consiste em submeter ao dólar ou, em último caso, submeter às baionetas e aos altos explosivos americanos.

A ideologia americana é uma religião, tal como o foi o Racionalismo do Terror francês, do Jacobinismo, de Napoleão. A ideologia americana é contemporânea deles, e eles estão mortos. Tão completa e internamente mortos como o está a ideologia americana. Sua principal utilidade na atualidade - 1948 - reside em dividir a Europa. O elemento "Michel" europeu se aproveita de qualquer ideologia que prometa "felicidade" e uma vida sem esforço nem energia. Desse modo a ideologia americana não serve mais do que para um propósito negativo. O Espírito de uma época passada não pode proporcionar nenhuma mensagem a uma época que a segue, porém pode negar a nova época e tentar atrasá-la, distorcê-la e apartá-la de seu âmbito vital. A ideologia americana não é um instinto, já que não inspira nenhum. É um sistema inorgânico, e quando um de seus dogmas molesta, é rapidamente descartado. Assim, a doutrina religiosa da "separação dos poderes" foi expulsa da lista de dogmas sagrados em 1933. Anteriormente, o dogma sagrado do isolamento havia sido abandonado em 1917, quando a América interveiu em uma Guerra do Ocidente que não lhe concernia nem afetava em absoluto. Ressuscitado depois da Primeira Guerra Mundial, foi novamente descartado na Segunda Guerra Mundial. Uma religião política que de tal maneira acende e apaga suas doutrinas sobrenaturais, não resulta convincente, nem desde um ponto de vista político, nem desde um ponto de vista religioso. A "Doutrina" de Monroe, por exemplo, fez saber, em princípios do século XIX, que todo o hemisfério Ocidental era uma esfera de influência imperialista americana. No século XX, isto se converteu no estatuto especial de uma doutrina esotérica, para uso doméstico, enquanto que o dogma externo era chamado "política de boa vizinhança".

A ideologia de um povo não é que vestimenta intelectual. Pode corresponder - ou não - ao instinto desse povo. Uma ideologia pode ser trocada de um dia para o outro, porém não o caráter de um povo. Uma vez que este tenha sido formado, é definitivo e influencia os acontecimentos mais do que estes a ele.


Tradução por Raphael Machado