10/12/2020

Claudio Mutti - Estranhas Reconciliações e Antifascisteria

 por Claudio Mutti

(2004)



"O século 20 não vai acabar sem testemunhar estranhas reconciliações". - Pierre Drieu La Rochelle


No dia 27 de dezembro de 1942, enquanto em Stalingrado se desenrola a batalha que marcará o início da derrota do Eixo, Drieu La Rochelle observa em seu Diário: "Morrerei de alegria selvagem com a ideia de que Stálin será o mestre do mundo. Um mestre, finalmente. É bom que os homens tenham um mestre que os faça sentir a feroz onipotência de Deus, a voz inexorável da lei”.

Um mês depois, em 24 de fevereiro de 1943, Drieu esperava: "Ah, que todos esses burgueses morram também, eles merecem. Stálin vai lhes cortar a garganta, e depois deles a garganta dos judeus...talvez. Uma vez eliminados os fascistas, os democratas ficarão sozinhos diante dos comunistas: estou antecipando a ideia desse tête-à-tête. Exultarei na tumba."

Em 3 de março, ele esperava a vitória dos russos, e não a dos americanos: "Os russos têm uma forma, enquanto os americanos não a têm. Eles são uma raça, um povo; os americanos são um acólito de híbridos".

Quanto ao marxismo, segundo Drieu, é uma doença passageira que não compromete a saúde fundamental do organismo russo. A autocracia soviética permanece, portanto, a única alternativa ao individualismo e à democracia, produtos da decadência ocidental: "Todos os absurdos da Renascença, da Reforma, da Revolução Americana e Francesa desaparecerão. Voltemos à Ásia: precisamos dela" (25 de Abril de 1943). E novamente: "Meu ódio pela democracia me faz desejar o triunfo do comunismo. Na ausência do fascismo (...) só o comunismo pode realmente colocar o homem de costas contra a parede, forçando-o a admitir novamente, como não faz desde a Idade Média, que ele possui mestres. Stálin, mais do que Hitler, é a expressão da lei suprema" (2 de Setembro de 1943).

Considerações deste tipo se tornaram mais frequentes durante 1944, até que, em 20 de fevereiro de 1945, Drieu expressou sua confiança de que os russos poderiam "espiritualizar o materialismo" [1]. Perspectivas semelhantes às expressas por Drieu nestas passagens do Diário podem ser encontradas na longa carta que alguns meses depois, em 22 de Agosto de 1945, o chefe da União Fascista Russa, Konstantin Rodzaevsky, escreveu do exílio "ao Chefe dos Povos, Presidente do Conselho dos Comissários do Povo da URSS, Generalíssimo do Exército Vermelho, Iosif Vissarionovic Stálin". O líder fascista declara: "Gostaríamos de trazer sob as bandeiras stalinistas, sob as bandeiras odiadas ontem e adoradas amanhã do Exército Vermelho, sob as bandeiras da Nova Rússia e da Revolução, o que resta da nossa organização em todos os países do mundo: na Ásia, na Europa, na América do Norte e do Sul, na Austrália, para que a antiga União Fascista Russa flua para o leito da reconciliação com a Pátria e o amado governo de milhões de russos ainda espalhados pelo exterior. (...) Sem rejeitar minhas ideias, tanto mais que elas coincidem em parte com as ideias norteadoras do Estado soviético, mas rejeitando decididamente os vinte anos de minha existência antissoviética, entrego a mim mesmo, meus amigos, meus camaradas, minha organização nas mãos daqueles a quem o povo soviético confiou seus destinos históricos nestes anos apaixonantes e cruciais. Morte sem a Pátria, vida sem a Pátria ou trabalho contra a Pátria são infernos. Queremos morrer por ordem da Pátria ou fazer qualquer trabalho para a Pátria em qualquer lugar. (...) Glória à Rússia!" [2]

Antes do fascismo russo, já dentro de outros movimentos similares havia uma tendência a reconhecer e apreciar positivamente uma certa afinidade entre nacional-socialismo e sovietismo, uma tendência que culminou na época do Pacto de Não-Agressão Germano-Soviético, quando os partidos comunistas receberam ordens de Moscou para cessar todas as atividades hostis ao Terceiro Reich e no campo nacional-socialista e fascista muitos vislumbraram a possibilidade de que uma frente comum dos Estados proletários contra as plutocracias ocidentais pudesse ser formada. O caso da Hungria é emblemático: em agosto de 1939, durante uma manifestação cruz-flechada, os retratos de Hitler e Stálin foram vistos em Budapeste ao lado dos retratos de Szálasi; e em outubro de 1944 o governo dos Camisas Verdes também incluiu um ministro de origem comunista que havia evoluído no sentido nacional-bolchevique, Ferenc Kassai-Schallmayer.

Na Itália, também, e vários anos antes, tinham surgido orientações semelhantes. Mesmo antes do governo fascista assinar o pato de amizade com Stálin em 1933 (Mussolini havia assinado em 1924 o acordo sobre o restabelecimento das relações diplomáticas e consulares entre a Itália e a URSS), os expoentes do corporativismo integral "acreditavam que a antítese entre Roma e Moscou não existia e que, ao contrário, o fascismo tinha de absorver a experiência soviética através do corporativismo" [3]. Bruno Spampanato, por exemplo, sustentou que a verdadeira e irredutível antítese não era a que contrapunha Roma a Moscou, mas a que opunha Roma e Moscou às democracias plutocráticas do Ocidente, mesmo que estivesse fora de questão que "o Estado fascista já se aproxima das conclusões às quais Moscou deve inevitavelmente chegar" [4]. E foi sempre no decorrer dos anos trinta que Nicola Bombacci, outrora fundador do Partido Comunista da Itália, pôde legalmente fundar e dirigir um par de revistas: "L'italo-russa", que defendia a amizade com a URSS, e "La Verità", cujo título constituía a tradução pura e simples da do órgão do PCUS, "Pravda".

Depois de Nicola Bombacci ter terminado na frente do lago de Dongo, ao grito de "Viva o socialismo!", sua carreira exemplar como nacional-bolchevique, alguns intelectuais de origem fascista tentaram cultivar o melhor potencial da esquerda: a continuidade que em muitos casos havia entre uma militância fascista anterior e um compromisso posterior no PCI ou no CGIL está bem documentada pelo relato autobiográfico de Ruggero Zangrandi e pelo estudo de Pietro Neglie sobre os "irmãos de camisa negra" [5].

Ao comunismo ocidental, que, "incapaz de realmente escapar de uma concepção individualista da vida", permanece "intrinsecamente ligado à metafísica burguesa e ainda permanece no nível iluminista da Carta dos Direitos" [6], o teórico do corporativismo integral, Ugo Spirito, contrapõe desde 1961, a ideal comunitário exemplificado naqueles anos pela revolução maoísta. Também Curzio Malaparte, que já havia indicado em Mussolini "um restaurador da autoridade, da fé, do dogma, do heroísmo, contra o espírito crítico, cético, racionalista e iluminista do Ocidente", se aproximou à China em 1956, enquanto na Itália, a "raça marxista nascida da decadência do capitalismo" estava em crise e se convertia em massa ao progressismo democrático. M. Antonietta Macciocchi atesta que o escritor "se apaixonou pelos chineses, por todos os chineses, do homem da velha Pequim de meio milhão de anos até Mao Tsé Tung, a quem entrevistou. Mas eu - lembra Macciocchi - não pude publicar as reportagens deslumbrantes (serão recolhidas no volume “Io”, na Rússia e na China), porque os intelectuais comunistas (incluindo, infelizmente, Calvino) haviam enviado um protesto a Togliatti contra a colaboração do 'fascista Malaparte' na imprensa proba do PCI". [7].

A ideia de recuperar os fascistas ou, pelo menos, de manter o diálogo aberto com eles, era para Palmiro Togliatti um projeto antigo. Primeiro signatário desse apelo com o qual o Partido Comunista, em 1936, havia exortado os "fascistas da velha guarda" e os "jovens fascistas" a "erguer o bastão contra os capitalistas que nos tem nos dividido" [8], o secretário comunista seguiu com "atenção respeitosa" [9] a tentativa do "Pensamento Nacional", empreendida por Stanis Ruinas, para alcançar uma convergência entre o PCI e os "fascistas de esquerda", e encarregou de cultivar contatos Gian Carlo Pajetta e Enrico Berlinguer [10]. Este último, que foi chefe da FGCI em 1950, "exaltou 'o patriotismo sincero dos jovens neofascistas' e esperava um pacto de união com eles contra o imperialismo americano" [11]. O jornal da juventude comunista "Pattuglia" (dirigido por Ugo Pecchioli), publicou numerosas intervenções de antigos combatentes da RSI e patrocinou uma série de manifestações conjuntas contra o Pacto Atlântico em toda a Itália.

É possível, na Itália de hoje, prever uma unidade de ação entre pessoas, grupos, círculos e movimentos que, para além das suas diferenças de orientação política, têm em comum a rejeição do ocidentalismo e da hegemonia atlântica? Em mais de meio século, o sistema neutralizou potenciais oposições, utilizando os instrumentos do antifascismo e do anticomunismo para acentuar e reorientar os contrastes que sempre dividiram os seus antagonistas. Mesmo nas últimas semanas, em correspondência com projetos destinados a relançar um movimento de oposição ao imperialismo norte-americano e ao governo colaboracionista de Roma, o sistema encontrou imediatamente os sabotadores que se colocaram a seu serviço, desta vez em nome do antifascismo. 

Assustados com a ideia de que um movimento anti-imperialista que não discrimina os seus aderentes com base no seu contexto político e filiação ideológica poderia tomar forma, os zelotes e sectários do que tem sido chamado "a religião do antifascismo" berraram escândalo e levantaram o alarme contra as infiltrações fascistas. A Itália, como sabemos, é um país conformista; e o preconceito antifascista, que pode ser explicado pela necrose mental da qual muitos italianos sofrem, está entre todos os tabus pré-políticos um dos mais difíceis de morrer. Os idólatras que veneram este monstro sagrado no terceiro milênio mostram, se necessário, que o bom Amadeo Bordiga estava perfeitamente certo quando disse que o pior legado do fascismo é, precisamente, o antifascismo. Que muitas vezes se manifesta em formas reais e verdadeiras de antifasc-(h)isteria.


Notas

[1] - Para uma resenha mais ampla desses extratos do Diário de Drieu, cfr. C. Mutti, Un solo stendardo rosso, in: AA. VV., Omaggio a Drieu La Rochelle, Edizioni all’insegna del Veltro, Parma 1996, pp. 67-83.
(2) K. Rodzaevskij, Lettera a Stalin, in: Sergej Kulesov – Vittorio Strada, Il fascismo russo, Marsilio, Venezia 1998, pp. 238-239.
(3) Rosaria Quartararo, Roma e Mosca. L’immagine dell’Urss nella stampa fascista (1925-1935), “Storia contemporanea”, XXVII, 3, giugno 1996, p. 471.
(4) Bruno Spampanato, Popolo e regime, Bologna 1932, p. 86. Cfr. anche Roma e Mosca o la vecchia Europa?, “Critica fascista”, 15 novembre 1931.
(5) R. Zangrandi, Il lungo viaggio attraverso il fascismo, Feltrinelli, Milano 1962; P. Neglie, Fratelli in camicia nera. Comunisti e fascisti dal corporativismo alla CGIL (1928-1948), Il Mulino, Bologna 1996.
(6) U. Spirito, Il comunismo cinese, “Rassegna italiana di sociologia”, 1, 1961; depois em Comunismo russo e comunismo cinese, Sansoni, Firenze 1962, pp. 57-58. Escreveu, entre outras coisas, Spirito, retornado de uma viagem na República Popular da China: "O marxismo é, de fato, uma doutrina historicista bem definida de caráter ocidental que vai do judaísmo ao cristianismo, do iluminismo ao hegelianismo, e se concentra na análise da estrutura econômica de um industrialismo e de um capitalismo que transformam a sociedade europeia. Nada disso pode ter qualquer significado real para o chinês. (…) Além disso, a revolução comunista chinesa só pode ser indiretamente conectada com o marxismo original e também com o russo. (...) Revolução nacionalista e revolução camponesa, portanto, fora de qualquer esquema e lógica marxista. (…) É a tradição chinesa de sempre, que continua a se expressar fora de qualquer vínculo direto com o marxismo ”(op. Cit., Pp. 87-88). Portanto, a tentativa de reconciliação que nós mesmos fizemos entre os termos "maoísmo" e "tradição" não deve parecer completamente peregrina (Maoismo e tradizione, “Quaderni del Veltro”, Bologna, settembre 1973).
(7) M. A. Macciocchi, Chi ha paura dell’ombra di Malaparte?, “Corriere della sera”, 19 luglio 1987.
(8) AA. VV., Per la salvezza dell’Italia riconciliazione del popolo italiano!, “Lo Stato Operaio”, X, 8, agosto 1936; rist. in “I Quaderni di Storia Verità”, 1, s. d. (9) Giano Accame, Da Salò al Pci, “Area”, dicembre 1998.
(10) Para uma reconstrução da relação entre o grupo de Stanis Ruinas e os dirigentes do PCI, ver:  Paolo Buchignani, Fascisti rossi. Da Salò al PCI, la storia sconosciuta di una migrazione politica. 1943-53, Mondadori, Milano 1998.
(11) Antonio Socci, Berlinguer voleva allearsi col Msi, “L’Indipendente”, 5 gennaio 1994.