ÍNDICE
Lição I: Noologia
Lição II: Geosofia
Lição III: O Logos da Civilização Indo-Europeia
Lição IV: O Logos de Cibele
Lição V: O Logos de Dioniso
Lição VI: A Civilização Européia
por Aleksandr Dugin
(2018)
Vamos agora deixar de lado as outras sociedades indo-europeias, para nos concentrarmos na análise da história e cultura europeias. Agora está claro que a civilização européia se baseia na superposição de dois horizontes existenciais e na existência de um centro com o problema de Dioniso e sua interpretação. A história européia é caracterizada por uma Titanomaquia contínua ou Noomaquia, e a condição básica dessa Titanomaquia é a descida da cultura indo-europeia turânica no campo da civilização da Grande Mãe. Na lição anterior [1], também identificamos Dioniso como o principal problema desta civilização, representando o próprio terreno do confronto em que essa titanomaquia se desenvolve.
O Urheimat dos Bálcãs
Para iniciar a análise noológica da civilização européia, é aconselhável partir de um de seus principais pólos, constituindo o verdadeiro Urheimat das tradições agrícolas europeias, que é o Leste Europeu, erroneamente considerado periférico.
O primeiro povo indo-europeu a emergir historicamente foi o trácio. Os trácios desceram aos Bálcãs antes dos eslavos, por volta de 1200 a.C, estabelecendo uma espécie de império tribal, inicialmente nos Bálcãs do norte, para então ocupar aproximadamente a grande área da Europa Oriental. O que é importante notar é que os territórios nos quais a civilização trácia se expandiu eram os centros ou pólos da civilização da Grande Mãe – Lepenski Vir, a cultura de Vinča, a cultura Karanavo-Gumelnita e a cultura de Cucuteni-Tripiliana, etc. – que passaram a constituir o substrato do horizonte existencial trácio. Aliás, não podemos dizer com certeza que os trácios foram os primeiros povos indo-europeus a aparecer nesses territórios, mas eles são os mais antigos dos quais temos conhecimento.
A cultura trácia indo-européia representou, portanto, o campo em que ocorreu o encontro entre o horizonte apolíneo e o horizonte cibelino. As tribos eslavas que chegaram muito mais tarde nos Bálcãs assimilaram esses elementos trácios, incluindo-os em sua estrutura. Dioniso também era considerado pelos gregos um deus trácio. E, se ele era realmente trácio, ou se era pré-trácio – repito, não podemos ter certeza – Dioniso chegou à Grécia pelo norte, assim como Orfeu e a deusa Bendis, uma deusa trácia que se tornou extremamente popular em Atenas, basicamente outro nome para nomear a Grande Mãe. O festival a Bendis, chamado Bendideia, chega a ser mencionado por Platão na "República".
É possível que as tribos da Trácia sejam mais antigas do que imaginamos e talvez tenham sido as primeiras tribos indo-europeias a aparecer. O que podemos dizer com certeza é que eles constituíam uma sociedade indo-européia muito antiga, com traços nômades altamente desenvolvidos, e quanto mais para o norte, mais nomádica, porque da Transilvânia em diante já estávamos nas estepes eurasiáticas e no espaço turânico. Os trácios chegaram ao Danúbio e aos Bálcãs antes dos citas e dos sármatas, e muito antes dos eslavos, tendo assimilado a tradição paleo-europeia – direta ou indiretamente através de alguma outra sociedade indo-européia.
No entanto, o fato marcante é que, no espaço da Europa Oriental, antes que o horizonte eslavo se tornasse predominante após as invasões dos séculos V e VI d.C, existia uma civilização trácia indo-européia na qual o encontro entre os Logos de Apolo e Cibele ocorreu pela primeira vez. Se assim foi, isso significa que o mundo agrícola sedentário europeu teve suas origens e se expandiu do espaço dos Bálcãs, que, portanto, constituiria a pátria original – a Urheimat – não apenas dos camponeses da Europa Oriental, mas de todo o mundo rural europeu, porque a tradição agrícola se desenvolveu antes de tudo nos férteis territórios balcânicos, habitada por uma sociedade matriarcal muito antes da chegada da cultura turânica.
Portanto, a Europa Oriental, comumente considerada periférica e marginal para a civilização greco-romana e depois para a ocidental, deve ser considerada um polo central da civilização européia. De fato, é na Europa Oriental que o principal evento da história ontológica e semântica da Europa – o encontro entre os dois horizontes existenciais paleo-europeu e indo-europeu – teve lugar. Deve ser dada mais atenção ao Dasein da Europa Oriental, isto é, para o complexo (com muitas tribos, muitos povos e muitos níveis culturais) horizonte existencial da Europa Oriental, pois nessa perspectiva ele adquire uma nova dimensão que se torna crucial. Isso é ainda mais verdadeiro se considerarmos que tal como Orfeu, Dioniso, que vimos ser a figura-chave para decifrar a ontologia da história européia, é de origem trácia.
Precisamos, portanto, estudar melhor a natureza desse polo balcânico, não só para cultivarmos o orgulho de sermos eslavos balcânicos vivendo aqui após os trácios, mas porque ele está diretamente vinculado ao problema de Dioniso. Podemos deduzir que a Europa Oriental (o espaço trácio, eslavo, balcânico) é alguma espécie de continuação da Europa Ocidental e da Eurásia. Mas nele se dá um evento fundamentalmente novo na história ontológica e semântica da Europa. A Europa Oriental é a pátria de Dioniso. Levemos em consideração, por exemplo, para além da língua e cultura trácias, a figura de Zalmoxis, o único deus trácio plenamente conhecido. Há muitos paralelos entre Zalmoxis e Dioniso. Mircea Eliade e a tradição romena deram grande atenção à figura de Zalmoxis e seu papel no horizonte trácio.
Portanto, a cultura matriarcal paleo-européia não desapareceu após a chegada dos trácios. Ela formou o substrato campesino e se espalhou junto com a cultura trácia no mundo rural da Europa Oriental e, a partir daí, expandiu-se com a classe campesina por toda a Europa. Podemos, portanto, falar do Dasein rural, um tipo particular da terceira função duméziliana que preservou traços culturais da tradição pré-indo-européia. E uma das primeiras sociedades indo-europeias que integraram esses elementos foi a Trácia, que foi seguida por todos os outros. Outro povo para prestar atenção especial é o dos ilírios, que habitavam os Bálcãs ocidentais junto com os trácios, e cujo espaço, segundo alguns historiadores, chegava ao mar Báltico, é por isso que se pode acreditar que eles viviam em terras muito mais ao norte antes das invasões eslavas. Sabemos muito pouco sobre esses povos, mas podemos deduzir alguns aspectos interpretando corretamente as tradições eslavas do sul, estas estando em continuidade cultural com esses povos, uma vez que todas as tradições agrícolas conhecidas por nós resultantes de milhares de anos de indo-europeização eram originalmente balcânicas – em outras palavras, o Dasein agrário europeu tem suas raízes nos Bálcãs.
Tendo dito isso sobre o Urheimat dos Bálcãs, pátria original do Dasein europeu rural, podemos analisar os horizontes ou subespaços existenciais inferiores que constituem o Großraum europeu.
Como já dissemos na terceira lição, existe o enorme espaço turânico indo-europeu que inclui substancialmente toda a Eurásia, das Ilhas Britânicas à Índia, que constitui o imenso horizonte existencial indo-europeu. A oeste deste horizonte se estende o grande espaço europeu, mas, descendo a um nível noológico e geosófico inferior, encontramos vários subespaços dentro dele. Estas são as sociedades indo-europeias individuais, cujas culturas específicas derivam de como cada uma delas resolveu o problema de Dioniso. Na tentativa de entender hermeneuticamente uma ou outra cultura européia, identificamos precisamente o equilíbrio noológico e o momento de Noomaquia que caracteriza cada sociedade.
A Tradição Helênica
Começaremos essa discussão a partir da tradição helênica[2].
A tradição grega é baseada na vitória completa do Logos de Apolo. No entanto, essa vitória, como mencionei na quarta lição, não foi imediata. As tribos helênicas dos jônios e dos eólios passaram em ondas migratórias pelos Bálcãs e pelo Peloponeso, dominando a civilização matriarcal existente. Mas, enquanto alguns territórios gregos mantiveram a estrutura indo-européia trifuncional puramente patriarcal, outros a perderam total ou parcialmente. Nas culturas minoica e micênica, portanto, houve uma mistura de elementos patriarcais e matriarcais. Foi apenas com a última onda migratória das tribos helênicas dos dórios – provenientes do norte, dos territórios macedônios e portadores de elementos apolíneos e pastorais essenciais – que a cultura micênica foi destruída e um estilo puramente turânico foi introduzido. Tudo isso se reflete no dualismo da cultura grega entre a Esparta dória e a Atenas jônia, um dualismo que reflete o equilíbrio de Noomaquia dentro do espaço existencial helênico, uma vez que o Logos apolíneo se manifesta em Esparta de forma clara e marcante, ao contrário de Atenas e nas colônias da Anatólia grega, onde, em vez disso, ele é menos preponderante. E esse dualismo entre Esparta e Atenas também desempenha um papel fundamental na geopolítica, na geosofia e na noologia.
Dioniso é um deus grego com origens trácias, mas devemos vê-lo como puramente grego porque ao seu redor se chocam a perspectiva apolínea com o espaço cibelino. E na cultura, na religiosidade, na filosofia dos helenos nós vemos esse elemento dionisíaco muito claramente.
O Logos apolíneo se manifesta não apenas na mitologia e na religião, mas também na filosofia. Isso se reflete de maneira absolutamente perfeita na filosofia platônica, bem como na lógica de Aristóteles, discípulo de Platão. Há outros aspectos apolíneos na filosofia de Aristóteles, mas já na física e na retórica – nas quais tudo o que existe é único e ao mesmo tempo duplo, possuindo forma e matéria (duas coisas em uma, puro Dioniso, e totalmente distinto de Apolo, onde um é um, uma coisa é uma coisa e não outra coisa) – bem como na filosofia de Heráclito – com base no ciclo, na guerra, na dialética entre o que é eterno e o que é corruptível – vemos muito claramente o aspecto dionisíaco, que não é materialista, mas expressão do noturno dramático. Veja-se, por tanto, que os vários campos do aristotelismo não podem ser julgados da mesma forma, não podemos, portanto, interpretar a lógica aristotélica da mesma maneira que interpretamos a física aristotélica. Quando fazemos isso, estamos projetando um objeto matemático físico, mas isso é impossível. Existe o objeto matemático que é puramente apolíneo e o objeto físico que é puramente dionisíaco. Disso se segue uma observação importante. Para podermos estudar o mundo físico precisamos aplicar ao mundo a retórica, e não a lógica. A retórica operará como a ciência precisa da física. Precisamos usar o conceito heraclítico de dialética e a retórica aristotélica.
A retórica é uma espécie de violação das leis da lógica. Na retórica afirmamos coisas que não correspondem precisamente ao que queremos dizer. Encontramos nela a ironia, uma das figuras mais importantes da retórica. Na ironia afirmamos uma coisa querendo dizer outra. Para nós, eslavos, isso é muito evidente, nossa linguagem é retórica e irônica. Vivemos uma cultura irônica. Nós dizemos o que queremos dizer. Afirmamos uma coisa, queremos dizer outra, chegamos a uma terceira e o resultado acaba sendo uma quarta. Por exemplo, também, a metonímifa, que é a figura que usamos ao falarmos em "cabeças de gado", querendo dizer vacas ou bois ou ovelhas, e não literalmente as suas "cabeças". Usamos a parte como todo como retórica. Uma violação da lógica. A sinédoque e a antífrase e todas as outras figuras da retórica cobrem a realidade física de maneira mais precisa que a lógica. O objeto físico não pertence às categorias matemáticas. Não existe uma matemática física. Com a lógica podemos estudar objetos matemáticos e geométricos, mas para objetos físicos precisamos de outros métodos. Sobre isso eu sugiro estudar os primeiros textos de Heidegger sobre Aristóteles, bem como os estudos aristotélicos de Husserl e Brentano, porque a tradição fenomenológica sempre enfatizou aspectos do aristotelismo que foram ignorados pelas tradições anteriores.
Mas no espaço existencial grego há também o terceiro Logos, o Logos de Cibele, representado filosoficamente por Demócrito, Epicuro e Lucrécio, expoentes típicos de uma antiga tradição materialista e imanenentista, uma vez que compartilham uma concepção atomística segundo a qual tudo é composto de átomos, e professam a ideia titânica de progresso e evolução segundo a qual tudo cresce de baixo para cima, de negativo para positivo, do pior para o melhor. O conceito de progresso é puramente titânico, é a visão titânica do cosmo.
Na filosofia grega, portanto, encontramos os três Logoi presentes. Mas é importante enfatizar que o Logos normativo é o de Apolo – o platonismo como um todo, mas em parte também Aristóteles e Heráclito (embora este último reflita principalmente o “Logos escuro” de Dioniso). Demócrito e, em escala menor, Epicuro, eram rechaçados. Não é por acaso que Platão sugeriu queimar os livros de Demócrito, considerando-os uma expressão de uma perigosa heresia. Em tudo isso, vemos claramente a continuação da titanomaquia ou noomaquia indo-européia. O momento grego da Noomaquia é, em última análise, baseado na vitória do Logos de Apolo, em amizade e aliança com o Logos de Dioniso, ou com “Dioniso apolíneo”, sobre o Logos materialista de Cibele.
O Dasein Helenístico
Esta é essencialmente a leitura noológica da tradição helênica. Mas as coisas mudam na era helenística. Sob Alexandre o Grande, os gregos expandem seu domínio sobre um espaço e horizonte existencial completamente novo. O horizonte existencial iraniano é incorporado à cultura mediterrânea grega e isso cria o fenômeno do helenismo.
A diferença fundamental entre a cultura helênica e a helenística reside precisamente nisso: enquanto a cultura helênica consiste na tradição grega que discutimos até agora, a cultura helenística nasce da fusão das culturas grega e iraniana. Essa passagem deve ser enfatizada: o que foi incorporado não foi qualquer cultura oriental, asiática, semítica, como geralmente se acredita, mas precisamente a cultura iraniana. Esta, no entanto, não correspondia apenas à cultura do Irã, mas à do Império Aquemênida, que também absorveu as tradições egípcia, babilônica e semítica, metabolizando todas essas culturas antigas em seu Logos iraniano, que eu abordo no volume "O Logos do Irã" [3]. É por isso que, ao distinguirmos o helenístico do helênico, neste caso, sugiro usar o termo iranístico em vez de iraniano. Dessa maneira, o Império Aquemênida não deve ser considerado puramente iraniano, mas sim iranístico. uma vez que incluía outras tradições, semanticamente transformadas, iranizadas, no contexto do Logos iraniano; em outras palavras, ele assimilou todas as culturas anteriores, transformando-as no contexto de sua própria concepção dominante zoroastriana-mazdeísta.
Assim, a cultura grega entrou em contato com os mundos egípcio, semítico e babilônico, mas em sua versão “iranizada” – não foi um contato direto, mas mediado pela cultura iraniana. Na era helenística, o Império Macedônio de Alexandre recebeu a herança cultural iraniana, sendo a absorção do Império Aquemênida pela Grécia. A especificidade dessa herança é quase sempre ignorada. Diz-se que o Império de Alexandre recebeu uma herança "oriental", porque consideramos as conquistas de Alexandre o Grande a partir de olhos helênicos. Neste sentido, nós europeus somos gregos, porque para nós a história grega é nossa história, e a história iraniana é a história do outro. Nunca consideramos a história iraniana como parte de nossa história. Enquanto quando falamos desses eventos falamos como se tratasse de uma conquista nossa sobre eles. Mas a partir da perspectiva iraniana as coisas são diferentes. Havia um Logos Iraniano, cuja essência deveríamos incluir no que entendemos por civilização européia, e que está baseada no princípio fundamental da “guerra da luz”. É, como vimos no final da terceira lição, uma forma de platonismo dualista radical, em que o Logos de Apolo entra em conflito com o Logos de Cibele, mas reconhecendo seu poder, substância e natureza autônoma. Enquanto no platonismo advaita (não dualista) a escuridão é a ausência de luz, na concepção iraniana ela é algo vivo, poderoso e também vitorioso. Para Platão, a vitória do mal sobre o bem é absurda, absolutamente impossível, pois no mundo puramente apolíneo há sempre apenas a eterna vitória da luz sobre as trevas, que não existem por conta própria; pelo contrário, na versão dualista iraniana existe a escuridão, poderíamos defini-la como uma poderosa divindade do signo oposto. A noite é poderosa e ela pode vencer. Então, pela primeira vez, a guerra entre luz e escuridão se torna algo sério e dramático, se comparado à versão não-dualista do platonismo, pois se baseia no reconhecimento por Apolo da substância, realidade e poder do Logos de Cibele.
De fato, a essência iraniana é fundamentalmente apolínea porque ser iraniano significa ser portador da luz, filhos da luz enviados ao campo das trevas para combatê-las. A autoconsciência e a identidade iraniana zoroastriana se baseiam precisamente no conceito de que apenas os iranianos são pessoas puras e luminosas, enquanto todos os outros são pessoas das trevas – uma espécie de racismo metafísico que, entre outras coisas, cria a base para legitimar o casamento entre parentes de sangue e o incesto, como formas de salvaguardar a pureza do sangue e do espírito dos filhos da luz. Esta é a tradição iraniana; uma tradição que, no entanto, na evolução iraniana se torna menos exclusiva porque a inclusão dos povos semitas, egípcios, babilônios, etc., marca a transição da qualidade de ser filho da luz para um nível menos material e mais simbólico ou metafórico, de modo que o conceito de “guerra da luz” seja aceito em um sentido mais amplo. Ou seja, o iranismo deixou de ser exclusivamente iraniano.
Outro conceito-chave da tradição iraniana, desconhecido pelos gregos, é a ideia iraniana de tempo e de história. Na visão platônica não existe história e não existe tempo com oalgo importante. Há apenas sempre o mesmo, o ciclo de nascimento e morte, o eterno retorno das coisas. Não há desenvolvimento, progresso ou retresso. É uma concepção completamente diferente de tempo. Você emerge da origem e retorna à origem, e isso é tudo. E o que ocorre nesses ciclos sublunares não possui substância, conhecimento, sentido, direção, tempo ou história. Há apenas a eternidade. A história platônica é a história da eternidade e o tempo é reflexo da eternidade, de modo que ele não existe no sentido comumente entendido por nós.
Ao contrário, na tradição iraniana, o tempo adquire um significado, uma vez que essa tradição afirma que no começo a luz dominava as trevas; mais tarde na história iraniana, a escuridão invade o campo da luz, o reino solar, e começa a destruí-lo e pervertê-lo; em um terceiro momento, as trevas dominam a luz; mas no fim do domínio das trevas haverá a grande restauração, a ressurreição e o aparecimento do escolhido, que se tornará o Rei e Salvador da humanidade, o Saoshyant zoroastriano. Assim, enquanto em Platão o tempo não tem importância, uma vez que não tem significado, aqui ele assume um papel importante. E é aqui que a idéia de história, de tempo escatológico e de messianismo faz sua entrada. A figura do Messias aparece, do último rei do mundo chamado a restaurar o reino da luz como resultado final da “guerra da luz”, e é introduzido o conceito de ressurreição, de restauração da perfeição perdida, própria da criação da luz.
Isso é o iranismo, e na verdade trata-se de algo muito próximo de nós. Mas tudo isso – a história, o sentido do tempo, a ressurreição, a escatologia – constituía uma perspectiva totalmente nova e até então alheia aos gregos. Só o retorno à origem tinha sentido. Tempo e história não eram nada. Havia apenas o exemplo dos heróis para que possamos repeti-los. Os heróis são paradigmas, idéias. Foi somente após as conquistas de Alexandre, o Grande, que essa herança espiritual, filosófica e metafísica fez a sua entrada na cultura mediterrânea grega. O que era externo tornou-se interno.
Aliás, acredita-se amplamente que as idéias de tempo, história, messianismo etc., foram trazidos pelos semitas, pela Bíblia. Mas conhecemos a Bíblia somente após o fim do cativeiro babilônico, que acabou sob o Império Aquemênida que, portanto, espalhou esse Logos iraniano mesmo entre os judeus. O judaísmo tardio, aquele conhecido por nós e que está ligado aos conceitos de Messias, Fim dos Tempos, Ressurreição etc., é, portanto, uma espécie de redação iraniana do judaísmo original.
Na realidade, os conceitos de tempo, história e escatologia, bem como a “guerra de luz” constituíam o coração da cultura iraniana. Que, depois de Alexandre, o Grande, se fundiu com a tradição helênica, gerando o fenômeno do helenismo. O mundo helenístico em síntese assenta, portanto, em dois pilares, helênico e iraniano, e ele é de importância crucial para todas as culturas europeias, pois representa o horizonte existencial que deu origem ao Dasein helenístico, que a partir daquele momento constituiu o fundamento da civilização européia subsequente.
O Logos Latino
Com a passagem do domínio grego para o domínio romano, o Dasein helenístico se espalhou pelo resto da Europa.
A Roma antiga era originalmente puramente apolínea. No entanto, conquistando a Grécia e a região do Mediterrâneo, conquistou o mundo helenístico, abrindo suas influências culturais, e isso provocou uma mudança em sua própria estrutura, uma mudança iniciada no final da República e que foi consolidada com o advento da forma imperial – o mitraísmo, juntamente com muitos outros aspectos do Império Romano, foram emprestados dessas fontes helenísticas. A Roma puramente apolínea deu lugar à Roma helenística, e é a essa cultura que de fato nos referimos quando discutimos a tradição romana.
Posteriormente, o fenômeno helenístico em sua versão romana – poderíamos chamá-lo de helenismo greco-irânico-romano – se expandiu de mãos dadas com a expansão do Império Romano. Todas as conquistas romanas – nos Bálcãs, no noroeste da Europa, etc. – em sua dimensão cultural, representavam conquistas helenísticas. As legiões romanas levaram o helenismo para onde quer que fossem. Poderíamos dizer que o Império Romano era culturalmente um império helenístico.
Do ponto de vista noológico, esse helenismo era caracterizado pelo Logos de Apolo refletido na tradição grega platônica, pelo Logos de Dioniso refletido na tradição misteriosófica e filosófica e heraclítica grega, pelo Logos de Apolo em sua versão iraniana dualista – nos conceitos de tempo, escatologia e “guerra da luz” – e, finalmente, nenhum Logos de Cibele, que estava presente nas profundezas desse espaço existencial, mas não claramente representado. Podemos rastrear este último, talvez em alguma profecia ligada à pedra negra de Pérgamo, pertencente a Cibele, e sua transferência da Frígia para Roma, no contexto das guerras púnicas [4], mas esses são aspectos marginais. Havia um tipo de culto matriarcal no império romano helenístico, mas ele não era dominante. Dominavam as culturas greco-apolínea, irânico-apolínea e greco-dionisíaca.
Esse espaço existencial helenístico romano passou posteriormente por um processo de cristianização. O cristianismo foi erguido nessa cultura e representou sua continuação lógica. E os aspectos iranianos tiveram um papel crucial nisso. Esse ponto é muito importante, mas o discutiremos mais detidamente na próxima lição, que será para a nota dedicada ao Logos Cristão.
Esta forma de helenismo romano, com o domínio do Logos de Apolo combinado com alguns traços culturais dionisíacos, representa precisamente o Logos latino [5], e ele se preservou substancialmente intacta até a modernidade. O Logos Latino, ou o Logos do Império Romano, é romano em seu nível mais profundo, ao qual é adicionada uma sobreposição helenística com alguns aspectos dualísticos relacionados ao iranismo e ao maniqueísmo – Agostinho de Hipona era maniqueu, e o maniqueísmo é uma forma de iranismo, de natureza dualista, como vimos –, o último presente em Roma de uma maneira mais marcante que em Bizâncio, onde em vez disso havia uma forma de platonismo não dual – na Ortodoxia, identificamos um equilíbrio mais dionisíaco ou uma forma não-dualista de platonismo, diferentemente do catolicismo romano, que representa uma forma dualista.
De qualquer forma, o Império Católico Romano estava baseado no Logos de Apolo, com aspectos mais dualistas e talvez até menos dionisíacos que Bizâncio, mas, no entanto, puramente indo-europeu. E esse foi o destino da Itália. Até a era contemporânea, ele manteve esse Logos, preservando esse momento específico da Noomaquia italiana. A Itália foi o lugar onde Roma se originou, foi o centro do Império Romano, foi invadida por tribos indo-europeias germânicas, criou novos estados, mas permaneceu fiel a esta versão cristianizada do helenismo até o fim. A última forma deste Logos, em uma versão bastante modernizada e um tanto deturpada, foi a do fascismo. Ali havia uma continuação dessa atitude apolínea, uma hierarquia vertical modernizada. O fascismo italiano foi a última nota dessa melodia. Antes vimos o Concíclio de Trento, onde o Catolicismo se recusou a seguir o caminho protestante. A defesa dessa identidade romana apolínea e católica representava, portanto, o destino do horizonte existencial italiano. Isso não foi meramente caricatural no fascismo. É claro que havia um aspecto caricatural da tradição romano no fascismo, já que tudo na modernidade é uma caricatura, mas ao mesmo tempo havia algo lógico, autêntico, nessa continuação da tradição romana.
O Logos Celta
A partir da Idade Média, os principais pólos da construção dialética da civilização européia passam a ser a França e a Alemanha. Foram esses dois pólos que de fato determinaram a semântica histórica, política e cultural dos processos mais importantes da história da Europa Ocidental no último meio milênio. O próximo horizonte existencial europeu que examinaremos é, portanto, o francês ou mais geralmente a tradição celta.
A particularidade do horizonte celta é o poder que possui o princípio feminino, o poder da mãe. A tradição celta tem suas raízes no matriarcado, está sujeita a uma forte atração por um poderoso pólo cibelino. Assim, o cristianismo celta é caracterizado por uma maior proximidade aos aspectos femininos. Também encontramos na tradição celta muitos mitos e lendas sobre a ilha das mães. A própria morte era considerada uma mulher. Em parte, mesmo a concepção de amor cortês entre os cavaleiros-poetas medievais se baseia nesse tipo de tradição celta. A esse respeito, refiro-me à leitura do autor francês Denis de Rougemont, que em sua obra "O Amor e o Ocidente" [6] estudou as fontes e raízes da tradição da glorificação do amor na cultura cavalheiresca medieval. Em essência, estamos lidando com influências celtas caracterizadas por uma presença muito forte da Grande Mãe.
O livro da Noomaquia dedicado à cultura francesa, intitulei O Logos Francês: Orfeu e Melusina [7]. Estudando as estruturas do Logos francês, cheguei à conclusão de que seus componentes principais são as duas figuras fundamentais (Gestalt) de Orfeu e de Melusina, a fada que assume a forma de um dragão na mitologia celta.
Além disso, a figura de Orfeu, de origem trácica, é muito importante na cultura francesa, pois a ideia de descer ao meio do submundo para encontrar o princípio feminino que aí reside. – uma espécie de “jornada ao centro da Terra” para rastrear a feminilidade, a Mãe – constitui o destino da cultura francesa, tanto em seus melhores aspectos quanto em seus aspectos decadentes. Também a figura de Melusina assume uma importância notável, uma vez que o paradigma da modernidade, em suas raízes mitológicas e culturais, remonta à sua Gestalt.
O Logos Germânico
Diferentemente do Logos celta, o Logos germânico [8] é do tipo apolíneo, mas constitui uma versão heróica e guerreira dele. Aqui encontramos a luta contra as forças ctônicas que também caracterizam a tradição iraniana. Ser germânico significa estar engajado em uma eterna luta: a guerra dos heróis germânicos contra os gigantes, as serpentes, os dragões e todas as outras forças ctônicas. É uma cultura paranoica no sentido que demos a esse termo, discutindo na lição anterior sobre os regimes do imaginário em Gilbert Durand, com traços fortemente patriarcais e caracterizada por uma aniliginia acentuada – as mulheres germânicas possuem características culturais mais próximas às dos homens do que em outras culturas (pense nas Valquírias, em Brunilda). As mulheres são guerreiras.
Estamos, portanto, lidando com uma sociedade heroica destinada a combater os Titãs. No entanto, os alemães, quando seguem seu destino, lutam com tanto entusiasmo e sinceridade que não conseguem perceber o momento em que sua própria luta se torna titânica. Eles são tão dedicados à sua causa que vão além dos limites naturais – começam a destruir todos ao seu redor e, finalmente, a si mesmos – e isso é algo titânico. Esse aspecto titânico do espírito germânico é evidente em Hitler: se criar a Grande Alemanha pode ser uma boa ideia em si mesma, não se pode dizer o mesmo da tentativa de destruir tudo ao seu redor e, eventualmente, culminando na própria destruição Alemanha. Existe uma palavra grega para esse tipo de atitude: ὕβϱις (húbris), que significa substancialmente excesso, ausência de medida. Por exemplo, o guerreiro que mata seus inimigos em batalha tem um ethos heróico, mas se ele mata seus filhos depois de matá-los e viola suas mulheres, em um esforço para continuar esta guerra e humilhar inimigos derrotados, ele se torna vítima de húbris. Tudo isso é sempre um componente da guerra, mas não se trata mais de algo heroico, trata-se de húbris.
No caso germânico, portanto, observamos um espírito guerreiro puramente apolíneo que, no entanto, às vezes excede seus limites, de modo que os inimigos dos próprios Titãs se tornam titânicos. Apesar de serem os combatentes do Céu contra a Terra, eles começam a combatê-la de maneira ctônica. Este é o destino e o Logos germânico.
Na tradição iraniana, existe a ideia de que o exército da luz é mais fraco que o exército das trevas. E que a derrota do exército da luz é um elemento necessário para a ressurreição e a vitória final. Assim, para vencer, deve-se suportar uma derrota. Em outras palavras, se a luz morrer, é preferível morrer com a luz que vencer com as trevas. Ou seja, a última palavra não é dada pela força, mas pela verdade da luz. Segue-se que, se atravessarmos as fronteiras, ultrapassarmos os limites, ultrapassarmos a medida lutando de maneira titânica, seremos finalmente condenados à derrota e acabaremos destruindo tudo, inclusive a nós mesmos.
Outro exemplo desse aspecto titânico do Logos germânico pode ser encontrado no protestantismo. A ideia original do protestantismo é que Cristo não representa apenas exterior, pertencente à adoração, mas é antes de tudo algo interior ao homem, que vem de dentro. No coração, em suas raízes, essa ideia original remete ao platonismo, bem como ao misticismo alemão de Meister Eckhart. Mas cultivada sem medida, levada à húbris, essa ideia se traduz em algo completamente diferente: individualismo, racionalismo, ausência de mistério, falta de humildade diante de Deus. É como o arianismo herético, como um retorno ao arianismo. Esse foi o protestantismo alemão, em seus melhores e piores aspectos. O protestantismo é a versão titânica do Cristianismo, enquanto o Catolicismo e a Ortodoxia seriam as versões apolíneas do Cristianismo. O protestantismo moderno (especialmente o calvinismo) e as versões ainda mais radicais de protestantismo não são cristãos, mas paródias titânicas.
A Esquizofrenia Albiônica
Chegamos à Inglaterra e ao horizonte britânico [9]. Depois de estudar a história britânica, cheguei à conclusão de que não poderia ter chamado o livro da série Noomaquia dedicado a esse espaço “O Logos Inglês”, pois não encontrei o Logos Inglês. Pelo contrário, descobri uma dualidade profunda e instável na cultura inglesa. Existem substancialmente dois pólos nele. O primeiro é o polo celta representado pelas nações do País de Gales, Irlanda, Escócia, nações celtas e, portanto, parte do horizonte existencial celta, caracterizado pelo mesmo fascínio pelo princípio feminino, pela mesma ideia de descer ao inferno, pelo mesmo romantismo negro e assim por diante. Mas os elementos celtas não são rastreáveis apenas na Irlanda, no País de Gales e na Escócia, eles também fazem parte da sociedade inglesa e da identidade inglesa – por exemplo, a dinastia Stuart era celta – já que, de fato, a maioria da população das Ilhas Britânicas é composta de celtas germanizados ao longo do tempo. O segundo pólo é, portanto, o germânico.
No entanto, a mistura de elementos celtas e germânicos não deu origem a uma síntese. Portanto, um novo Logos ou horizonte existencial não foi gerado; o que surgiu foi o que poderíamos chamar de esquizofrenia ou bipolarismo inglês. Estamos lidando com uma mistura desequilibrada e doentia, uma confusão de elementos contraditórios que não geraram uma identidade unitária, mas uma sociedade bipolar, muito problemática em seu interior.
Um exemplo diferente da relação entre identidade celta e germânica é dado pela Suíça, pela Bélgica, e por toda a herança de Lotário, terceiro herdeiro de Carlos Magno. Na Suíça, há um equilíbrio sutil entre essas duas identidades. Mais do que uma síntese, é correto falar de harmonização. Em vez disso, o que vemos na Inglaterra é uma absoluta desarmonia. Há um lado germânico bastante agressivo ao lado de uma parte celta extremamente deprimida. Eles não formam um ὅλος (hólos), uma estrutura holística, mas uma entidade bipolar com um profundo conflito interno que não pode se curar internamente e, portanto, se expande para o exterior. Isso deu origem ao império britânico, cuja expansão é semelhante à explosão de uma mistura instável composta por dois elementos contraditórios. Se o Logos celta, essencialmente francês, tem mais traços dionisíacos, mas também apresenta muitos aspectos do "duplo negro" de Dioniso, se o Logos germânico é apolíneo, mas sempre existe a possibilidade de uma tradução para o campo do titânico, a cultura inglesa reúne de maneira extremamente conflitante o duplo negro de Dioniso e os aspectos titânicos do Logos germânico, e os expande mundialmente. O resultado é a expansão do império britânico – capitalismo, imperialismo, liberalismo, etc. -, ou seja, o contágio em escala global de uma doença que não foi e não pode de forma alguma ser tratada internamente.
Essa relação instável e contraditória subjacente à esquizofrenia inglesa se manifesta no principal mito inglês: a luta entre o dragão vermelho e o dragão branco. Os dois dragões representam respectivamente as identidades celta e germânica, e ainda estão em batalha desde que o fim do império britânico não produziu nenhuma mudança na mente inglesa, não a curou. Ela permanece doente, bipolar e hoje, como ontem, se encontra imersa nesse conflito.
O Novo Mundo
Perto do século XVI, os europeus descobriram e começaram a colonizar o continente americano, renomeando-os de “Novo Mundo” [10]. Portanto, embora a América do Norte e a América do Sul apresentem dois Logos diferentes, nos dois casos estamos lidando com Logoi que, em sua origem, são coloniais, pois representam projeções transatlânticas da Europa que transformaram os traços originais das culturas locais.
Especificamente, na América do Sul, encontramos hoje uma continuação e ramificação do Logos Latino, já que seus territórios foram conquistados principalmente pela Espanha e Portugal, os portadores juntamente com a Itália precisamente do Logos latino. De fato, o Logos ibero-americano apresenta uma estrutura apolíniea, que, no entanto, incorporou as populações pré-europeias não sem problemas, mas ainda gerando uma síntese harmônica.
O mesmo não pode ser dito da América do Norte. Aqui os anglo-saxões trouxeram sua doença com eles. Como conseqüência, em vez de integrar os povos indígenas em sua sociedade, eles começaram a destruir os indígenas e deram à luz uma sociedade norte-americana doente, em muitos aspectos afetados pelos mesmos problemas anglo-saxões. No entanto, ao contrário da Grã-Bretanha, aqui podemos identificar um Logos.
O Logos norte-americano pode ser identificado na filosofia pragmática, que constitui a principal corrente filosófica da América do Norte. Na base dessa filosofia está a ideia de que não há conhecimento normativo sobre o sujeito e o objeto, mas que apenas a interação deles existe na prática. Querendo simplificar, não há prescrição do que o sujeito ou o objeto deve ser – do que deve ser a matéria, a natureza, o cosmos ou a alma do homem. Teoricamente, você pode fingir ser o que você quiser, talvez Elvis Presley ou um marciano. Só existe o que funciona. Se funcionar, ótimo; se não funcionar, pior para você, mais sorte na próxima vez. Os filósofos pragmáticos americanos acreditam apenas no que constitui interação prática. Daí vem a liberdade pragmática de considerar o mundo da maneira que desejarmos. É por isso que quando filósofos americanos tentaram adaptar Heidegger ao pragmatismo não se trata mais de Heidegger, mas de uma leitura american de Heidegger, precisamente porque eles compreenderam apenas aquilo que dizia respeito a relação, a interação, a algum elemento prático. Se, por exemplo, queremos construir uma máquina do tempo, somos livres para fazê-lo, porque algo acontecerá na construção dela; talvez não viajemos no tempo, mas provavelmente faremos algumas descobertas científicas ou adquiriremos um conhecimento que será útil no campo comercial talvez encontremos um novo elemento para construir uma nova lata de Coca Cola! Você é totalmente livre para tentar o que desejar, porque não há limitações de qualquer tipo sobre o sujeito ou objeto, ou melhor, não há sujeito e objeto, apenas existe interação entre eles, e a interação é prática e pragmática.
Este é o Logos norte-americano. No entanto, hoje, na era da globalização, estamos testemunhando seu desaparecimento. De fato, a globalização da qual a América é promotora representa uma forma de colonização, mas o colonialismo tem em si um propósito, um objetivo final, uma prescrição, e isso distorce a própria América porque o Logos americano pragmático não pode tolerar nenhum fim ou prescrição. Na perspectiva pragmática, você pode tentar de tudo, algo vai acontecer ou não,, mas nada pode ser prescrito para ninguém. O politicamente correto, por exemplo, com seus ditames do que pode e não pode ser dito, é antipragmático e, portanto, antiamericano, uma vez que, do ponto de vista pragmático, é preciso ser livre para dizer qualquer coisa e agir da maneira que preferir, construir qualquer monumento ou não ter monumento nenhum, já que nada existe interna ou externamente – como eu já disse, não existem concepções normativas sobre sujeito e objeto, mas apenas sua interação prática. Este é o puro Logos norte-americano, algo certamente diferente da América globalista de hoje.
O Logos Eslavo
Ao final dessa análise noológica, em termos resumidos, dos diferentes horizontes existenciais que constituem a civilização européia, ainda precisamos lidar com o espaço eslavo.
Em primeiro lugar, os eslavos constituem, sem dúvida, uma sociedade indo-européia; no século passado, os povos eslavos sofreram uma grande influência por parte do Ocidente, portanto, em parte, compartilham alguns problemas metafísicos com alemães, franceses, britânicos, gregos, latinos, mas possuem características peculiares.
Nós dedicaremos à identidade sérvia uma aula específica, mas o que podemos dizer sobre o Logos eslavo em geral? Ele é claramente parte do espaço cultural helenístico, assim como todos os outros Logoi que descrevemos, que nascem do cristianismo helenístico, do qual representam diferentes combinações; no entanto, é ao mesmo tempo evidente que o Logos eslavo, ao contrário de outros Logoi, não constitui algo completo ou dado. Em outras palavras, é um Logos aberto, e isso constitui um desafio para nós eslavos.
Em relação ao Logos russo, ou melhor, à sua possibilidade, o último livro da série Noomaquia (até o momento ainda não foram todos publicados) é dedicado a ele [11], mas também estudei em outros livros fora do projeto Noomaquia a possibilidade de uma filosofia russa, baseada em Heidegger [12]. No que diz respeito ao Logos eslavo da Europa Oriental [13], é certamente possível e em alguns momentos históricos os eslavos se aproximaram dele – por exemplo, sob o imperador sérvio Estêvão Ducham, o Poderoso, no Primeiro e Segundo Império Búlgaro, em alguns momentos na Confederação Polaco-Lituana, como na Grande Morávia, em algumas tendências filosóficas particulares – mas nós, eslavos, até agora nunca conseguimos chegar à versão final deste Logos eslavo, nem na Europa Oriental nem na Rússia.
O horizonte existencial eslavo não está completo, não recebeu sua formalização definitiva e talvez este seja o desafio histórico que enfrentamos. Os filósofos eslavófilos observaram que nós eslavos entramos em nossa história mais tarde do que outros povos, de modo que, enquanto os enormes edifícios da filosofia alemã, francesa, romana, grega etc., já estavam erguidos juntamente com histórias políticas relacionadas, nossa filosofia ainda é relativamente verde. Não é que chegamos tarde à história, chegamos tarde a um entendimento da história e da nossa filosofia. Vimos uma grande explosão de riqueza intelectual por parte de alguns pensadores de alto valor, tal como Pedro II Petrovic-Njegos, o russo Dostoiévski, mas tudo isso representou mais o pré-anúncio do Logos do que o próprio Logos. Vivemos na antecipação do Logos eslavos. Nós fazemos isso perfeitamente quando estudamos nosso passado; ele está cheio de feitos heroicos, mas nenhum deles mostra o Logos eslavo em sua forma final. Personagens como São Sava, um precursor da missão histórica da Sérvia, ou Ivan, o Terrível na Rússia, foram uma espécie de antecipação do Logos Eslavo.
Isso torna mais difícil para nós, eslavos, descrever nosso Logos do que estudar os Logoi de outras culturas, uma vez que essa atividade requer uma análise introspectiva de nossa cultura muito mais profunda e exigente.
No entanto, se quisermos delinear uma descrição resumida dos Logoi eslavos possíveis, mas ainda inacabados, podemos dizer que os eslavos têm características marcadamente dionisíacas e cibelinas, devido à proximidade do pólo do matriarcado nos Bálcãs, apesar dos diversos elementos apolíneos. O camponês europeu é de fato de origem balcânica, como vimos no início desta lição, e esse aspecto deve ser levado em consideração. Também é necessário reconhecer que por alguns séculos nós eslavos sofremos a influência de outros horizontes existenciais, que definiram muitos aspectos de nossa consciência atual. Incidentalmente, isso faz o estudo aprofundado dos horizontes existenciais que nos cercam uma condição necessária para que nós, eslavos, possamos entender onde estamos, com quem nos relacionamos – quem deve ser considerado um amigo e quem é um inimigo, quem para nós é um salvador e quem é um opressor – e , a coisa mais importante, quem somos, de modo que sem conhecer os outros, não podemos conhecer a nós mesmos.
No entanto, apesar das influências externas, preservamos nossa identidade, mantivemos o coração de nosso horizonte existencial essencialmente eslavo, e essa é uma verdade científica. Talvez ele esteja enterrado nas profundezas, mas ele existe e esse coração ainda bate. E a tenaz resistência sérvia à globalização foi um exemplo. Sim, terminou em derrota. Assim como a batalha pelo Kosovo foi perdida. Mas é sobre essas derrotas que a vitória final será construída; é na capacidade de resistir que a futura ressurreição será fundada. A morte heróica é também a promessa de ressurreição.
Na sinceridade, sou muito pessimista em relação ao estado da sociedade eslava moderna, mas, ao mesmo tempo, tenho muito otimismo quanto à possibilidade desse Logos eslavo. Ele ainda está inacabado, mas isso constitui o principal desafio para uma nova geração da elite intelectual eslava, que é chamada a dar o passo final, completando toda a experiência histórica de nossa presença ontológica no mundo.